Voltar O HUMANISMO FILOSÓFICO DE JOÃO PAULO II Prof. Ismar Dias de Matos, Unileste-MG/ 2005. Este artigo é uma reflexão sobre o pensamento do Papa João Paulo II, presente, sobretudo, na magna encíclica Fides et Ratio (Fé e Razão, 1998, FR) na qual o Pontífice apresenta o seu desejo de que os pastores e formadores de opinião – teólogos, filósofos e cientistas - se empenhem na busca de uma filosofia que tenha como objetivo harmonizar fé e razão. Essa filosofia, segundo o Papa, é a filosofia tomista, que deve ser retomada e atualizada para dar ao homem contemporâneo as condições de responder aos apelos mais profundos de sua existência. Um resumo da filosofia teorética de São Tomás de Aquino será apresentado ao final, em 24 teses. Introdução As pessoas estão acostumadas a olhar para João Paulo II e vê-lo como o líder máximo da Igreja Católica Romana. Mas, antes de se tornar Papa, João Paulo II era Karol Wojtyla, um filósofo e teólogo polonês1, nascido em 1920. Doutor em Filosofia e em Moral, foi professor na Universidade Católica de Lublin e na Universidade Estatal de Cracóvia. Considerado um “filósofo da pessoa”, Wojtyla procura, na sua maneira de compreender o homem, “integrar todos os elementos que compõem este ser complexo que é a pessoa humana. O pensamento wojtyliano compreende o homem como ser pessoal, o qual é uma realidade dinâmica e chamada a ‘ser e a fazer-se’”2. Abelardo Lobato declara que o pensamento wojtyliano apresenta três fases significativas3. A primeira é a da formação, quando, a partir dos fundamentos tomistas, Wojtyla descobre a fenomenologia de Max Scheler. Essa fase culmina em 1960. Na segunda, a pessoa é estudada em seu dinamismo integral, o que pode ser visto na obra-síntese ‘Persona y acción’, de 1969. A terceira fase começa a partir de 1974 com a consolidação e irradiação do pensamento wojtyliano. Além dessas, pode-se dizer que em 1978 começa uma quarta fase, quando Wojtyla se torna Papa, pois o filósofo continuará presente em todos os textos teológicos de seu magistério pontifício, quaisquer que sejam os temas tratados: catequese, ecumenismo, família, os fundamentos da ética, a defesa da vida, as relações entre o trabalho e o capital, a unidade da Igreja, a vida consagrada ou a validade do mandato missionário. Há, mesmo nos meios eclesiásticos, contestação às posições filosófico-teológicas tomadas pelo pontífice, mas isso não é estranho no mundo do pensamento. No grupo dos opositores não é raro encontrar aqueles que nem se deram ao trabalho de conhecer os textos produzidos pelo Papa. 1. Servidores da verdade Em sua primeira encíclica – Redemptor Hominis (O Redentor do homem, 1979)4 o Papa João Paulo II, cinco meses após sua eleição à cátedra de Pedro, lançou as bases de seu pensamento pastoral, apresentando o mistério da redenção, e a pessoa de Jesus Cristo como salvador do homem agora 1 As principais obras de Karol Wojtyla que contêm a síntese de seu pensamento filosófico são: Persona y acción e Max Scheler y la ética cristiana. Em 1985, o pensamento filosófico de João Paulo II foi estudado em um Congresso Internacional e a publicação completa dos trabalhos foi reunida na obra Antropologia e práxis no pensamento de João Paulo II, Congresso Internacional, Rio de Janeiro: Edições LUMEN CHRISTI, 1985. 2 SILVA. A pessoa em Karol Wojtyla: uma introdução à sua leitura, p. 13 3 LOBATO. La persona en el pensamiento de Karol Wojtyla, p. 181 4 Cf. SARTORI. Encíclicas do Papa João Paulo II, p. 9-56. Os números das encíclicas, citados entre parêntesis, remetem aos parágrafos do texto. remido e responsável por seu destino na história. O filósofo, investido da missão pastoral máxima na Igreja, afirmou que nós, “participantes da missão de Cristo profeta, e, em virtude dessa mesma missão e juntamente com Ele, servimos à verdade divina na Igreja. A responsabilidade por essa verdade implica também amá-la e procurar obter sua mais exata compreensão, a fim de a tornarmos mais próxima de nós mesmos e dos outros” (RH, 19). Na encíclica Veritatis Splendor (O esplendor da verdade, 1993)5, o mesmo Pontífice chamou a atenção para “algumas verdades fundamentais da doutrina católica que, no contexto atual, correm o risco de serem deformadas ou negadas” (VS, 4). E, continuando na encíclica FR 6 essa reflexão de 1993, o Papa concentra a atenção sobre o tema da verdade e sobre seu fundamento em relação com a fé. Chama a Igreja, anunciadora de Jesus Cristo – “caminho, verdade e vida”, Jo 14, 6 – a exercer a “diaconia da verdade” (FR, 2). Uma das motivações do Pontífice para escrever essa encíclica foi a “constatação, sobretudo em nossos dias, de que a busca da verdade última aparece muitas vezes ofuscada” (FR, 5). Então ele convoca os bispos, teólogos, filósofos, cientistas e a todos para essa tarefa de suma importância para a humanidade: alcançar uma verdade universal. Assim, o Papa, em seu texto, afirma que “por si mesma, qualquer verdade, mesmo parcial, se realmente é verdade, apresenta-se como universal e absoluta” (FR, 27). A Encíclica FR faz parte da imensa produção doutrinal do Papa João Paulo II que, nesses vinte e seis anos de pontificado, praticamente revisou toda a doutrina católica. Destacando os textos mais substanciais, pode-se dizer que foi durante seu pastoreio que foi promulgado o atual Código de Direito Canônico (1983) e foi editado o Catecismo da Igreja Católica (1992). Na história da Igreja, nenhum Papa produziu uma quantidade de textos como João Paulo II. São Encíclicas, Cartas, Exortações Apostólicas, além das permanentes catequeses de todas as quartas-feiras, no Vaticano. Acrescentem-se aí os inúmeros discursos pronunciados durante as Visitas Pastorais ao mundo inteiro, em viagens que ultrapassam um milhão de quilômetros. FR aborda o tema da mútua convivência ou mútua contribuição entre fé e razão, que, segundo o Pontífice, são “as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” (cf. Preâmbulo). O texto pontifício afirma que o “homem, ser que busca a verdade, é também aquele que vive de crenças”(FR, 31). Cada um crê, confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas. Na vida de cada um, são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que aquelas adquiridas por verificação pessoal. O conhecimento por crença, que se fundamenta na confiança interpessoal, tem a ver também com a verdade. De fato, acreditando, o homem confia na verdade que o outro lhe manifesta (FR, 31-32). A verdade que Deus nos revela em Jesus Cristo, diz o Papa, “não está em contraste com as verdades que se alcançam filosofando. Pelo contrário, as duas ordens de conhecimento conduzem à verdade em sua plenitude. A unidade da verdade já é um postulado fundamental da razão humana, expresso no princípio de não-contradição”(FR, 34). Como todo o texto da encíclica é a busca da harmonia entre fé e razão, essa harmonia é afirmada em vários trechos: “a prioridade da fé não faz concorrência à investigação própria da razão” (FR, 42); “a luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus, por isso não podem contradizer entre si... A fé não teme a razão, mas solicita-a e confia nela. A razão do homem não é anulada nem humilhada quando presta assentimento aos conteúdos da fé; é que estes são alcançados por decisão livre e consciente” (FR, 43). A lição da história deixada pelo segundo milênio aponta que o caminho a seguir é “não perder a paixão pela verdade última, nem o anseio de pesquisa, unidos à audácia de descobrir novos 5 Cf. SARTORI. o.c. p. 455-532 Cf. SARTORI. o.c. p. 673-736. Ver também estudos de PERINE: “Reflexões a partir da encíclica Fides et Ratio”, Síntese nº 85, 1999, p.149-164; de LIMA VAZ: “Metafísica e fé cristã: uma leitura da ‘Fides et Ratio’”, Síntese, nº 86, p. 293-305 6 percursos”(FR, 56). E, se a verdade é o grande objetivo a ser alcançado, esse caminho se faz “evitando cair em estéreis repetições de esquemas antiquados” (FR, 97). 2. Em busca da filosofia do ser O texto da FR refaz o caminho percorrido pela Encíclica Aeterni Patris (1879), do Papa Leão XIII, que ali “retoma e desenvolve a doutrina do Concílio Vaticano I sobre a relação entre razão e fé, mostrando como o pensamento filosófico é um contributo fundamental para a fé e para a ciência teológica” (FR, 57). Na FR, o Concílio Ecumênico Vaticano II (1965) é o texto mais citado: 27 vezes. João Paulo II cita 26 vezes os seus próprios escritos. Depois seguem-se São Tomás de Aquino (13 vezes), o Concílio Ecumênico Vaticano I (1870), citado explicitamente em dez lugares, Santo Agostinho (6 vezes), Leão XIII e Paulo VI (que são citados, cada um, 4 vezes). Várias outras citações são feitas, com menos repetições. No texto da encíclica, dirigindo-se primeiramente aos Bispos, o Papa faz um apelo ao dizer que “reafirmando a verdade da fé, podemos restituir ao homem de hoje uma genuína confiança nas suas capacidades cognoscitivas e oferecer à filosofia um estímulo para promover a sua plena dignidade” (FR,6). Aos filósofos, o Sumo Pontífice pede que “saibam aprofundar aquelas dimensões de verdade, bem e beleza, que dão acesso a Palavra de Deus” (FR, 103). E a todos ele pede “para que se debrucem profundamente sobre o homem, que Cristo salvou no mistério do seu amor, e sobre sua busca constante de verdade e de sentido” (FR, 107). O que o Pontífice-filósofo busca com sua Encíclica é a volta de uma filosofia do ser. Seu texto, depois de fazer um forte apelo à Metafísica (ns.80-86), fala de uma filosofia do ser que permita à teologia dogmática realizar adequadamente as suas funções e tornar-se capaz de propor o problema do ser segundo as exigências e as contribuições de toda a tradição filosófica, incluindo a mais recente. (FR, 97). O modelo proposto é o da filosofia tomista. Para João Paulo II, “entre as grandes intuições de São Tomás, consta-se a de atribuir ao Espírito Santo o papel de fazer amadurecer, como sapiência, a ciência humana (...) A sua filosofia é verdadeiramente uma filosofia do ser, e não do aparecer”(FR, 44). No capítulo VII, João Paulo II apresenta o que considera serem as três urgências básicas para a atualidade: encontrar a dimensão sapiencial, isto é, a procura de um sentido último da vida (n.81) e superar o pragmatismo, a instrumentalização da razão (ns.45-48); verificar e demonstrar a capacidade do homem de chegar ao conhecimento da verdade (n.82); transcender os dados empíricos para chegar, na busca da verdade, a algo de absoluto, definitivo, básico e realizar a passagem do fenômeno ao fundamento (n.83). O texto da encíclica parece resumir-se em um claro silogismo, que pode ser assim expresso: há necessidade de se restaurar uma filosofia que harmonize a fé com a razão, para dar ao homem condição de responder a seus apelos últimos (ns.1-35); ora, a filosofia tomista é a que melhor atende aos requisitos para se chegar a essa harmonia (ns.43-48); logo, deve-se recuperar a tradição tomista (ns. 100-108). Certamente, o que deseja João Paulo II é que os estudiosos de hoje possam se enriquecer com os frutos da extraordinária inteligência de São Tomás, que “conseguiu penetrar os mistérios tanto do ser, como também de Deus e do homem. Ele descobriu que o ser é a máxima perfeição, superior à própria bondade e à própria verdade e, por conseguinte, a raiz de qualquer outra perfeição; a respeito de Deus ele compreendeu que a Sua essência se identifica com o Seu ser e, por conseguinte, Ele é o próprio ser subsistente – ipsum esse subsistens -; e por fim, no homem colocou em destaque a sua grandíssima dignidade”7. 7 MONDIN. O humanismo filosófico de Tomás de Aquino, p. 35 Em sua obra mais recente – Memória e identidade (2005) – o pontífice afirma “que temos que voltar a São Tomás de Aquino, isto é, à filosofia do ser. Com o método fenomenológico, por exemplo, podem-se examinar experiëncias como as de moralidade, da religião ou mesmo do ser humano, daí recebendo um significativo enriquecimento do nosso conhecimento, mas não se pode esquecer que todas estas análises pressupõem a realidade do ser humano, isto é, de um ser criado, e também a realidade de um ser absoluto. Se não se parte de tais pressupostos ‘realistas’ acaba-se por andar em círculos”8. 3. Um pouco da filosofia tomista Em sua preocupação em harmonizar razão e fé, João Paulo II insiste em recuperar a tradição tomista porque São Tomás, na Idade Média, foi o primeiro pensador a realizar esse trabalho, ressaltando a plena autonomia da razão em face da fé, sem o risco de aceitar a tese da dupla verdade: uma verdade que é própria da razão e outra que é afirmada pela fé, tese sustentada pelos averroístas latinos9. Assim, o presente artigo, sem maiores pretensões, deseja apresentar aos alunos do Curso de Filosofia do Unileste-MG, algumas pistas para um estudo do pensamento tomista e sugestão de leituras atuais e abalizadas sobre esse tema. O filósofo jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz, falecido em maio de 2002, durante sua profícua atividade intelectual, antecipou o desejo de João Paulo II, publicando importantes textos atualizando o pensamento de São Tomás10. Embora tenha vivido em um exíguo espaço de tempo, São Tomás de Aquino (1225-1274) produziu uma extensa obra: Comentário sobre as sentenças, Suma contra os gentios e a famosa Suma Teológica. Para que se tenha uma visão geral desse grande pensador, são apresentadas, abaixo, algumas teses que contêm o essencial de sua filosofia teorética, que foram resumidas pelo jesuíta Guido Mattiussi, professor na Universidade Gregoriana, de Roma. Em 1916 a Santa Sé aprovou esse resumo e a Sagrada Congregação dos Seminários o recomendou aos estudantes. O texto, aqui dividido didaticamente em quatro tópicos, chegou ao autor deste artigo através do Pe. Dr. Celso de Carvalho, professor de Filosofia no Seminário Arquidiocesano de Diamantina, que foi aluno do Padre Mattiussi, em Roma, na década de 1940. Essas teses foram vistas durante as aulas de Filosofia Medieval II, no Unileste-MG, e são apresentadas aqui sem nenhum comentário, pois comentá-las é tarefa de todo um curso sobre o pensamento tomista, o que não é propósito deste escrito. 3.1. Metafísica 1. Potência e ato de tal modo dividem o ente, que tudo quanto existe ou é ato puro ou resulta necessariamente de potência e ato como suas partes ou princípios intrínsecos. 2. O ato, como perfeição, só é limitado pela potência, que é capacidade de perfeição. Portanto, na ordem em que há um ato puro ele é necessariamente infinito e único; pelo contrário, onde ele é finito e multíplice, aí ele entra em verdadeira composição com a potência. 3. Por isso, na absoluta razão (conceito, aspecto) do ser mesmo, só Deus é que subsiste, uno e simplicíssimo; tudo o mais que participa do ser tem uma natureza, na qual o ser é contraído; tudo o mais consta de essência e existência como princípios distintos. 8 JOÃO PAULO II, Memória e identidade, p. 23 MONDIN. o.c., p. 20-22 10 Cf. LIMA VAZ. Tomás de Aquino: pensar a metafísica na aurora de um novo século (1996); Presença de Tomás de Aquino no horizonte filosófico do século XXI (1998); A metafísica da idéia em Tomás de Aquino (2001). 9 4. O ente (denominação que lhe vem do esse ou ser) não é predicado univocamente de Deus e das criaturas, mas não é predicado tampouco equivocamente; mas analogicamente – tanto por analogia de atribuição como pela analogia de proporcionalidade. 5. Além disso, há em toda criatura a composição real de sujeito subsistente com formas acrescentadas secundariamente, isto é, acidentes; essa composição, porém, não poderia ser entendida, se o esse não fosse realmente recebido numa essência distinta. 6. Além de acidente absoluto, existe ainda o relativo (relação ou ad aliquid). Com efeito, embora o ad aliquid não signifique no seu conceito (ratio) exato, algo inerente a algo, tem, freqüentemente, sua causa nas coisas reais e, portanto, numa realidade distinta do sujeito. 7. A criatura espiritual é absolutamente simples na sua essência. Resta-lhe, no entanto, uma dupla composição – essência e existência; ou substância e acidentes. 3.2. Somatologia 8. Quanto à criatura corporal, é composta, na sua mesma essência, de potência e ato; tais potência e ato na ordem da essência recebem nomes de matéria e forma. 9. Nenhuma dessas duas partes tem o ser por si nem é produzida ou se corrompe per se, nem é colocada entre os predicamentos a não ser reductive, como princípio substancial. 10. Embora a extensão em partes integrantes acompanhe a natureza corporal, não é a mesma coisa para o corpo ser substância e ser de tal quantidade (quantum). Com efeito, a substância por si mesma (ratione sui) é indivisível, não como ponto mas como algo que está fora da ordem da dimensão; a quantidade, que confere extensão à substância, difere realmente da substância e é um verdadeiro acidente. 11. A matéria marcada pela quantidade é o princípio de individuação, isto é, da distinção numérica (que não pode existir nos puros espíritos) entre dois indivíduos da mesma natureza específica. 12. É também graças à quantidade que um corpo fique circunscritivamente locado e só possa estar, desse modo, em um só lugar, qualquer que seja a potência. 13. A densão dos corpos é bipartida: viventes e não-viventes. Nos viventes, para que no mesmo sujeito existam per se parte movente e parte movida, uma força substancial chamada alma exige uma disposição orgânica ou partes heterogêneas. 14. As almas de ordem vegetal e sensitiva de forma alguma subsistem por si nem são produzidas por si, mas são tão somente por princípio graças ao qual o vivente existe e vive, e – uma vez que dependem totalmente da matéria – corrompido o composto, automaticamente se corrompem per accidens. 3.3. Psicologia 15. Diversamente às almas vegetal e sensitiva, a alma humana subsiste por ela; quando pode ser infundida num corpo suficientemente disposto, é criada por Deus e, por sua natureza, é incorruptível e imortal. 16. Essa alma racional une-se de tal modo ao corpo, que é sua forma substancial única; por ela o homem existe como homem, e animal, e vivente, e corpo, e substância e ente. Portanto ela confere ao homem todo grau essencial de perfeição, além disso comunica ao corpo o ato de ser, graças ao qual ela mesma existe. 17. Brotam da alma humana, como resultados naturais, duas espécies de faculdades: orgânicas e inorgânicas; aquelas (entre as quais estão os sentidos) radicam-se no composto (corpo e alma); estas, só na alma. Portanto, a inteligência é uma faculdade intrinsecamente inorgânica. 18. A faculdade intelectual acompanha (sequitur) necessariamente a imaterialidade, e isso de tal modo que os graus de afastamento da matéria são também os graus da faculdade intelectiva. O objeto adequado da intelecção é o ente comum; mas o objeto próprio da inteligência humana, no estado atual de união (com o corpo) é limitado às qualidades abstraídas das condições materiais, isto é, os universais. 19. Portanto, é das coisas sensíveis que recebemos o conhecimento. Uma vez, porém, que o sensível não seja inteligível em ato, além do intelecto formalmente inteligente, deve-se admitir na alma uma força ativa que abstraia dos fantasmas as espécies inteligíveis. 20. Por essas espécies inteligíveis conhecemos diretamente os universais; é com os sentidos que atingimos as coisas singulares, mas depois também com a inteligência, por analogia e um retorno aos fantasmas chegamos ao conhecimento das realidades espirituais. 21. A vontade segue o intelecto, não o precede; ela deseja necessariamente o que se lhe apresenta como bem que satisfaça o desejo, de toda parte; mas entre os bens que sejam propostos a um juízo mutável, ela escolhe livremente. Portanto a escolha segue-se ao juízo prático último; mas é a vontade que faz que seja juízo último. 3.4. Teodicéia 22. Que Deus existe, não o percebemos por intuição imediata nem o demonstramos a priori; demonstramo-lo a posteriori, isto é, pelas coisas que foram feitas levando a argumentação dos efeitos para a causa: portanto, parte-se: a) Das coisas que são movidas mas não podem ser o princípio adequado do seu movimento para o primeiro movente imovido; b) Do processo das coisas mundanas de causas subordinadas entre si, à Primeira Causa não causada; c) Das coisas corruptíveis, que indiferentemente se referem ao ser e ao não ser, ao Ser absolutamente necessário; d) Das coisas que, numa gradação do menos ao mais, segundo diminuídas perfeições de ser, viver e compreender, são, vivem e compreendem, Àquele que é o maximamente vivo, inteligente, vivente e ente; e) Finalmente, da ordem do universo a uma Inteligência que pôs ordem, dispôs e dirige ao fim as coisas. 23. A essência divina, por identificar-se com a “atualidade exercida” do próprio ser ou por ser o próprio ser subsistente, é-nos proposta, constituída como que no seu conceito (ratione) metafísico; e por isso mesmo dá-nos a razão de sua infinitude na perfeição. 24. Portanto, pela própria pureza do seu ser, Deus se distingue de tudo o que é finito. Daí se conclui: a) que o mundo não pôde provir d’Ele a não ser por criação; b) que a virtude criadora, pela qual primeiramente é atingido o ser enquanto ser, nem por milagre é comunicável a qualquer criatura finita; c) que nenhum agente criado pode influir no ser qualquer efeito que seja senão por uma noção recebida da causa primeira. 4. Conclusão Embora não tenha escrito uma obra exclusivamente antropológica, o pensamento de São Tomás de Aquino traz nas entrelinhas as bases para uma reflexão de alto teor humanístico. Como pensador medieval, o epicentro de seu pensamento é Deus, e é n’Ele que o filósofo encontra a verdade sobre o homem. Pode-se encontrar em sua filosofia, aqui apresentada em resumo (cf. teses 3 e 5), que o ser do homem (criatura) encontra o seu sentido no ser de Deus (criador, ato puro, uno e simplicíssimo); que o homem é dotado de um princípio único, substancial e incorruptível (alma imortal: cf. teses 9 e 15), dotado de uma faculdade intelectual que o diferencia dos demais seres criados (cf. teses 18 e 19). Longe de ser uma teoria reducionista do homem, o pensamento tomista afirma que o homem é dotado de uma capacidade para conhecer coisas singulares, universais e realidades espirituais (cf. tese 22), é capaz de um conhecimento de Deus (cf. teses 22 e 24), no qual encontra seu sentido último. Lamentando o humanismo reducionista contemporâneo, João Paulo II, durante a abertura da conferência do episcopado latino-americano em Puebla, em 1979, afirmou que “talvez uma das mais notáveis debilidades da civilização atual esteja numa inadequada visão do homem. A nossa é, sem dúvida, a época em que mais se tem escrito e falado sobre o homem, a época dos humanismos e do antropocentrismo. Contudo, paradoxalmente, é também a época das profundas angústias do homem com respeito a sua identidade e destino, do rebaixamento do homem a niveis antes insuspeitados, época dos valores humanos conculcados como jamais o foram antes. Como se explica esse paradoxo? Podemos dizer que é o paradoxo inexorável do humanismo ateu. É o drama do homem amputado de uma dimensão essencial de seu ser – o absoluto – e colocado deste modo diante da pior redução do próprio ser”11. A resposta para isso, segundo o Papa, é simples: “isto acontece porque se rejeitou Deus como Criador e, consequentemente, como fonte para determinação do que é bem e do que é mal. Foi rejeitada a noção daquilo que mais profundamente nos constitui seres humanos, ou seja, a noção de natureza humana como um ‘dado real’; e, em seu lugar, foi colocado um ‘produto do pensamento’ livremente formado e livremente passível de mudança segundo as circunstâncias. Considero que uma reflexão mais atenta sobre tal questão nos levará a superar esse interregno cartesiano; se quisermos falar sensatamente do bem e do mal, temos de voltar a São Tomás de Aquino”12. Eis, em breves páginas, um simples recorte do vasto pensamento do Pontífice-filósofo João Paulo II, que deseja ver a filosofia tomista retomada pelos formadores de opinião. Dentre os frutos dessa retomada, destaca-se a harmonia entre fé e razão, que proporciona ao homem contemporâneo as condições necessárias para orientar-se como pessoa dentro de um humanismo integral, sem reducionismos. Esse apelo foi ouvido e atendido por Lima Vaz e outros pensadores aqui citados. 5. 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