Jovens, Sexualidade e o VIH/SIDA no Bairro da Mafalala, Maputo, Moçambique1 Margarida Paulo2 1. Introdução O presente artigo tem por objectivo explorar as percepções sobre a sexualidade no seio dos jovens residentes no bairro da Mafalala, cidade de Maputo, em Moçambique. Com esta contribuição não só esperamos contribuir para melhorar a compreensão dos jovens urbanos sobre a sexualidade, como também encontrar meios para auxiliar os programas de prevenção do Vírus de Imunodeficiência Humana (VIH)/Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (SIDA) a atingir resultados efectivos. Os programas educacionais de VIH/SIDA em Moçambique argumentam que prover aos jovens com informação correcta sobre a prevenção e infecção do VIH/SIDA, irá ajudá-los a tomar decisões sensíveis e responsáveis sobre a sua saúde. Com essa informação espera-se que se reduza a propagação do VIH/SIDA entre os jovens de Moçambique (Inquérito Nacional de Estatísticas, INE, 2001,2002). Dados recentes sobre a prevenção do VIH mostram que a pandemia está a se alastrar, principalmente, na cidade de Maputo. A prevalência do VIH/SIDA em Moçambique é de 13.1% para mulheres e 9.7% para homens. Maputo tem uma prevalência de VIH/SIDA superior ao do resto do país 20.5% para mulheres e 12.3% para homens (INSIDA 2009: 11). O aumento de jovens infectados pelo vírus do VIH/SIDA em cada ano fazer-nos reflectir sobre os métodos até então usados, nos programas de prevenção do VIH/SIDA, e questionar sua eficiência (Paulo 2004, 2003). Na tentativa de entender a percepção dos jovens sobre a sexualidade, ou seja, as razões que os levam a não aceitar as mensagens dos programas de prevenção do VIH/SIDA de praticar “sexo seguro”, de abster-se ou de iniciar actividades sexuais mais tarde damos enfoque a factores socio-culturais que se influenciam aos jovens a não tomar nenhuma das decisões propaladas nos programas de prevenção do VIH/SIDA. Pensamos que que a 1 Este trabalho faz parte de um Capítulo da minha tese de Mestrado em Antropologia Social, obtido em 2004, na Universidade de Cape Town, Departamento de Antropologia Social, África do Sul. O trabalho foi apresentado em dois workshops. A primeira apresentação foi realizada no 1º workshop sobre “African Youth and Global Transformation”, em Dakar entre 15 a 20 de Outubro de 2003. E a segunda apresentação foi feita no 2º workshop sobre “African Youth and Global Transformation” em Pretotia entre 10 a 13 de Junho de 2004. 2 Assistente na Faculdade de Letras e Ciências Sociais, Departamento de Antropologia e Arqueologia, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique. Também sou membro fundadora e Investigadora no Cruzeiro do Sul – Instituto de Investigação para o Desenvolvimento José Negrão desde 1998. Endereço Electrónico: [email protected] 1 desestruturação das famílias em Moçambique pós a guerra civil em 1994, tenha influenciado negativamente para a deterioração das praticas socio culturais que contribuem para a prevenção de Doenças de Sexualmente Infecciosas (DSI) . As perguntas de partida baseiam-se no entendimento de que medidas os jovens tomam para prevenir o VIH e que percepções sobre a sexualidade orientam os jovens. Esperamos ao longo deste artigo responder a estas perguntas. Após uma breve introdução que problematizou os programas do VIH/SIDA com base em dados estatísticos recentes apresentados pelo INSIDA (2009). Cabe-nos em seguida discutir o conceito de família e linhagem em Moçambique. Estes conceitos servirão de base para explicação da aparente resistência dos jovens aos programas do VIH/SIDA em Moçambique e em particular no bairro de Mafalala. 2. Revisitando os conceitos de família e agregado familiar Em Ciências Sociais o conceito de “família” tem se revelado controverso. Este conceito tem resistido às tentativas para uniformizar ou para descrever qualquer outro tipo de família normativa em qualquer sociedade como Hareven (1977), Mvududu e MacFadden (2001) e Ximena et al. (1998) argumentam com discussões interessantes que se distanciam da idéia segundo a qual a família é nuclear e universal. O conceito de família deve ser entendido de maneira diferente de acordo com os vários contextos. Ficou evidente para nos deste o inicio desta pesquisa que o conceito de família é limitante para ser útil excepto na economia política. Como forma de tentar ultrapassar as limitações que o conceito de família trás consigo. Ross (2003) sugeriu falar de “agregado familiar” em vez de ‘família’. Porque percebeu que a família não só é a consanguínea mas também pode ser alargada. Neste trabalho, o termo “agregado familiar” é mais prometedor como uma ferramenta linguística presente na discussão sobre a sexualidade com os jovens de Mafalala. O conceito de agregado familiar traz uma percepção da diversidade de práticas sociais e dos sentidos que as pessoas dão e esperam uns dos outros (como Fox 1967 e Goody 1973 demonstraram). Com base na discussão teórica sobre família e agregado familiar oferecida nesta secção, é importante mencionar e descrever as linhagens identificadas, em Moçambique porque tem relevância para a interpretação dos dados recolhidos neste estudo. Existem duas linhagens em Moçambique. O sistema de linhagem matrilinear que caracteriza as famílias do norte de Moçambique e o sistema de linhagem patrilinear característico das famílias no centro e sul de Moçambique. É claro que estas linhagens não esgotam a multiplicidade e complexidade das famílias moçambicanas. Existem 2 famílias em Moçambique que vivem o seu dia a dia inspirando-se em outras formas de estar que não se adequam as linhagens aqui referidas. No sistema de linhagem matrilinear espera-se que os casais permaneçam na terra da mulher. Assim, o homem tende a trabalhar na terra dos seus sogros não tendo exigência em relação aos direitos de posse da terra até ter filhos, em particular as filhas. As filhas são muito estimadas neste sistema, porque se forem bem sucedidas no casamento podem trazer homens para dentro da família que depois podem ajudar a família da mulher na lavoura ou com valores monetários (Geffray 2000). Em contraste, o sistema de linhagem patrilinear no centro e sul de Moçambique, funciona da seguinte maneira. Quando os noivos se casam, o marido paga lobolo ou preço de noiva à família da mulher e por conseguinte vivem na terra da família do homem. Neste sistema, os casamentos tendem a ser menos estáveis e a fertilidade é muito mais que uma questão física e um aspecto socio cultural forte (ver Mariano 2009). Como resultado os divórcios podem ocorrer devido à infertilidade ou a suspeita de infertilidade da mulher. Para provar que o homem é fértil a família, muitas vezes, aceita que este engravide uma mulher diferente da sua por ela ser suspeita de ser infértil. Mas só em situações de casamento permite-se que as mulheres provem fertilidade. Para que a mulher prove que pode gerar filhos, a família do homem tem de provar primeiro que há algum problema com o seu homem. O que tem poucas probabilidades de ser aceite a menos que a família do homem tenha tido algum problema de infertilidade masculina (Junod 1996 [1926]). De acordo com os jovens entrevistados, as práticas socio-culturais associadas a linhagem estão mais acentuadas nas zonas rurais e pouco acentuadas nas zonas urbanas. A nossa percepção sobre esse argumento e que algumas práticas socioculturais que os jovens mencionaram existir na zona rural também pode ser encontrada na zona urbana, como por exemplo: o lobolo, a poligamia (apesar de na zona urbana a poligamia não seguir as regras da poligamia no estrito senso). O importante é que as práticas socio-culturais existem e são usadas ou re-usadas pelas pessoas para defenderem interesses particulares ou colectivos. Após a independência de Moçambique em 1975, o governo seguiu a perspectiva marxista leninista que veio então conduzir quase todos os aspectos da vida social. Nos termos desta perspectiva, o governo tinha em vista transformar o cidadão em “homem novo”. Em termos práticos, isto implicou a necessidade de recusa das práticas locais tais como: os ritos de iniciação, lobolo entre muitos outros. Contudo, através destas práticas a linhagem forneceu instrumentos que orientavam ou orientam membros de muitas famílias moçambicanas. Não nos interessa aqui julgar se o marxismo leninismo foi bom ou mau para as famílias moçambicanas. O que ficou claro para nós foi que Moçambique estava a sair de um período colonial e que por isso tinha que encontrar, rapidamente, 3 formas de recomeçar a vida que convencesse aos moçambicanos que teriam vida melhor do que a que tinham antes da Independência em 1975. Apesar da importância das práticas socio-culturais locais, para as famílias, o governo não as permitiu. Mesmo assim, as famílias continuaram a praticá-las em segredo. Em 1987, finalmente, o governo, em parte, devido à pressão das famílias e da necessidade de refrescar a roupagem política, mudou claramente a sua maneira de pensar em relação às práticas locais (como descreve Arnfred 2001). Desde a deliberação das práticas socio-culturais locais, ainda que não muito anunciada se compararmos ao que se fez com as ideias sobre a construção do “homem novo”, actualmente, tem se verificado na mídia, distintos membros do governo a orientarem cerimónias de inauguração de edifícios ou de entrega de carros, tractores, bicicletas a instituições do Estado ou a outros beneficiários acompanhados de uma cerimónia tradicional que no sul de Moçambique é conhecida por kupatha. Uma das cerimónias muito concorridas na província de Maputo, o guaza muthini mostra, claramente, como as práticas socio-culturais são importantes para as famílias moçambicanas (Paulo 1998). Esta cerimónia realiza-se todos os anos com o objectivo, agora simbólico e político, de pedir bênção para a chuva cair e lembrar os guerrilheiros que tombaram na batalha contra o colonialismo português. Para além da proibição e deliberação das práticas socio-culturais locais, que na nossa opinião, contribuiu para o enfraquecimento da estrutura da família moçambicana, a guerra civil também fragmentou dramaticamente a estrutura da família. No entanto estes dois factores não foram bem sucedidos porque quebraram mas não conseguiram acabar com as ideias de linhagem que em certa medida influenciam, fortemente, na maneira como as famílias pensam sobre a vida em geral e a sexualidade, em particular. Nos dias actuais com preocupações que o mundo inteiro tem em relação a altas percentagens de infecções por VIH/SIDA INSIDA (2009), grande parte dos jovens orientam-se através das percepções de família e sexualidade aprendidas no seu agregado familiar. Neste contexto pensamos que as tentativas dos programas de VIH/SIDA não tem surtido resultados positivos porque estão longe de interpretar as práticas socio-culturais que podem contribuir para a redução de infecções por DSI e VIH/SIDA. A secção anterior apresentou uma breve discussão sobre os conceitos de família e de agregado familiar. A secção que se segue irá apresentar discussões teóricas em torno da sexualidade. 4 3. Discussões sobre a sexualidade Os debates sobre a sexualidade tendem a ser polarizados a volta de duas perspectivas. A primeira perspectiva é a da visão pós-estruturalista que sustenta que não há algo “que se compare com” à sexualidade. A segunda perspectiva argumenta que as práticas sexuais não podem ser universais. Por isso devem ser entendidas e interpretadas dentro de um determinado contexto. No entanto, existe uma multiplicidade de discursos sobre a sexualidade vindas de diferentes áreas: psicologia, biologia, cultura popular, arte, religião dentre outras. Debates sobre a sexualidade associados a prevenção de DSI e VIH têm igualmente realçado a idéia de sexo “para prazer” ou associada com o desejo individual de encontrar o prazer, em vez de sexo para a procriação. Estudos como de: Arnfred (2204), Bourdieu (1977), Caplan (1987), Connell (1993), Douglas (1984 [1966]), Foucault (1992 [1979]), Gagnon (1995, 1973), Lambek (1998), Larmour et al. (1997), Parker e Easton (1998), Parker (2001), Vance (1996, 1991), Weeks (1991 [1986]) debatem questões sobre a sexualidade realçando que tais discussões precisam ser entendidas de acordo com contextos específicos. Estes estudos também oferecem uma abordagem teórica que validam as opiniões das pessoas em processo de interacção social. Na preparação deste estudo existiam poucos estudos em Moçambique que focalizavam sobre os aspectos socio-culturais que impedem os jovens a terem “sexo seguro” (ver Manuel 2005 para uma abordagem actual). Todavia, existiam estudos sobre conhecimento, atitude, práticas e comportamento dos jovens que pouco exploravam aspectos socio-culturais. 3.1. Revisitando estudos sobre a sexualidade em Moçambique Existem vários estudos sobre sexualidade, em Moçambique, associados ao problema do VIH. No entanto poucos estudos compreendem a sexualidade sob ponto de vista da família. Um estudo, etnográfico, conduzido por Manuel (2002), analisa as barreiras em relação ao uso do preservativo entre os alunos da Escola Secundária Josina Machel, em Maputo. A pesquisa mostrou que os alunos [jovens] iniciavam-se sexualmente muito cedo. O estudo também demonstrou que os jovens tinham tido namorados e/ou namoradas com os quais haviam mantidos relações sexuais sem terem usado o preservativo. De acordo com Manuel, os jovens agiram assim por pressão de colegas que os queriam ver sexualmente activos. O estudo demonstrou ainda que os jovens, as vezes, descobriam que o uso do preservativo, em algumas situações, era meramente uma questão a reflectir depois de consumado o acto. O estudo de Manuel é importante 5 nesta discussão porque fala sobre alunos (jovens, vivendo na cidade de Maputo) assunto que também nos propomos a falar. No entanto, o estudo tem alguns constrangimentos na aplicação do método de grupos focais, que poderia ter influenciado os alunos a compartilhar as suas experiências sexuais, com alguma performance, com a pesquisadora. Ao focalizar nos adolescentes e a saúde reprodutiva, Bilale e Pale (1999) argumentou que a taxa de abortos entre os jovens na cidade de Maputo, era alta. E que o problema dos jovens não residia apenas na sua saúde, mas também afectava a sociedade moçambicana como um todo. Este estudo colocou a possibilidade dos jovens serem “vítimas” das regras impostas pela sociedade tirando a possibilidade dos jovens manipularem as regras em seu benefício. Um outro estudo conduzido por Da Cunha e Luisa (1997:10) examinou a “mobilização visando a protecção de adolescentes e mães solteiras de rua em Maputo”. Estes autores argumentaram que a educação sexual foi útil para proteger os adolescentes de rua contra as doenças de transmissão sexual. Contudo, a lacuna deste estudo reside no facto de Da Cunha e Luisa não terem indicado as mudanças que ocorreram nos adolescentes de rua depois de terem recebido a educação sexual. Explorando a reacção dos jovens em realção a epidemia do VIH/SIDA, Arthur e Santos (1993) mostraram que os jovens estavam envolvidos em comportamentos de alto risco, porque ocupavam-se em actividades sexuais na puberdade, como por exemplo: aos 12 anos de idade em diante. Arthur e Santos argumentaram que os pais não forneciam educação sexual aos filhos por isso que estes não eram orientados para entenderem questões sobre a sexualidade. Arthur e Santos sugeriram que as mudanças de opinião das famílias quanto aos seus filhos e a sexualidade mudariam a maneira como os jovens reagiam em relação a pandemia. E porque o conceito de sexualidade é debatido pelos diversos autores apresentados, usando várias perspectivas optamos por perguntar aos jovens o que eles entendem por sexualidade? E o que os jovens pensam em relação ao namoro e o aborto? Uma vez apresentado o debate teórico sobre a sexualidade, a secção que se segue irá apresentará os métodos usados e as considerações éticas encontradas neste estudo. 4. Metodologia e considerações éticas Conheci o bairro da Mafalala, em 1998, no âmbito de uma cadeira que leccionei, denominada “Seminário de Pesquisa” oferecida na Ex-Unidade de Formação e 6 Investigação em Ciências Sociais (UFICS)3. Um dos objectivos da cadeira era de dar oportunidade aos estudantes a testarem os instrumentos teóricos leccionados na sala de aula na prática. Depois da primeira visita ao bairro da Mafalala não resisti com a diversidade e complexidade da vida que os residentes vivem e, assim, nunca mais parei de visitar Mafalala. O trabalho de campo para este estudo foi conduzido em duas fases. A primeira fase realizou-se entre 12 a 22 de Novembro de 2003. Por ser mulher, fluente em Português, língua falada pela maioria dos meus entrevistados, foi possível ter informações sobre a vida diária dos jovens, principalmente, raparigas. Mas a conversa com os rapazes aconteceram com o apoio de José Bambo4. Bambo, meu assistente de campo, por um lado colheu informações inerentes às experiências sexuais dos rapazes, porque teria sido mais fácil para ele interagir com e assim os exageros seriam minimizados. Por outro lado por ser fluente em changana ajudou em alguns momentos a decifrar expressões e metáforas relativas a sexualidade. A segunda fase da pesquisa de campo realizou-se entre 5 de Janeiro e 22 de Fevereiro de 2004. Nestas duas fases recolhi 25 histórias de vida sobre o namoro e sexualidade. Quando me preparava para realizar o trabalho de campo não estava claro com que grupo iria trabalhar. Wyn e White (1995:11) ajudou-me a perceber que a “juventude é um conceito relacional, porque existe e tem um sentido largamente relacionado com o conceito vida adulta”. Esta afirmação foi importante para delimitar o grupo alvo sobre o qual iriamos focalizar. No entanto, o argumento de Wyn e White sugere também que não há definição de “juventude” que se ajuste a todos os contextos. Para efeitos da pesquisa, consideramos jovem a pessoas com idade compreendida entre 20 e 24 anos. O nível de escolaridade dos jovens variava entre 5a a 10a classes. Estes entrevistados desenvolviam actividades como: estudantes, empregados domésticos, comerciantes informais do mercado Adelina5 e outros mercados informais que um pouco se vêm em várias esquinas da cidade de Maputo. No entanto, dois jovens não aceitaram revelar suas actividades. Para a recolha e análise dos dados, recorremos aos métodos qualitativos, tais como: histórias de vida testados por Goodson (2001), Queiroz et al. (1988), Thomas e Znaniecki (1958 [1863-1947]). A história de vida sobre a sexualidade dos jovens mostrou ser um método útil porque surgiram questões que os preocupavam e que muitas vezes não 3 A UFICS foi fundida com a Faculdade de Letras e Ciências Sociais e deu lugar a uma nova instituição com as mesmas pessoas denominada Faculdade de Letra e Ciências Sociais (FLCS) da Universidade Eduardo Mondlane. 4 Na altura estudante, actualmente, Licenciado em Sociologia pela Universidade Eduardo Mondlane, Maputo – Moçambique. A avó de Bambo vivia em Mafalala. 5 Mercado oficial localizado no do bairro. 7 encontravam resposta. Por ser um método com perguntas abertas, a história de vida permitiu aos jovens falaram espontaneamente. Aliado a este método foi feita a observação participante dos momentos de convívio dos jovens no bairro, dos aspectos que os jovens considerava importante fazer no dia a dia e da maneira como abordavam a questão da prevenção do VIH/SIDA, através do grupo Machaca6 (para mais ideias a cerca da observação participante ver Bernard (1995) e Silverman 1993). Mesmo sabendo que a observação participante pode ser inefectiva por si só porque não capta tudo, como por exemplo: o cheiro, as cores, as vontades entre outros aspectos que podem ajudar os jovens a interpretar o que não verbalizavam (Angrosimo e Pérez 2000). O foco de observação estava no grupo “Machaca”7 um grupo juvenil de Mafalala criado em 1996 para intervir nas campanhas de prevenção do VIH/SIDA. Os jovens do grupo Machaca desenvolviam actividades culturais, particularmente, a dança, o canto e o teatro mostrando aos outros jovens o perigo de não se prevenirem contra o VIH. Os jovens usavam panfletos e linguagem biomédica na abordagem sobre a sexualidade e VIH/SIDA. Não usamos o gravador durante as entrevistas, porque achamos que não seria conveniente gravar as experiências dos jovens quando estes lavavam a roupas, tocavam timbila8, iam ao mercado e circulavam nas imediações. Embora teoricamente o gravador seja uma das melhores formas de registar e armazenar a informação. O seu uso requer especial atenção devido a questões éticas. Os informantes devem ser informados sobre o seu uso e a gravação deve ser efectuada abertamente o que poderia induzir à distracção se olharmos para os ambientes onde poderíamos encontrar os jovens. Como alternativa, José Bambo e Eu efectuávamos as entrevistas tomando notas e mais tarde discutíamos as notas que cada um recolher no fim de cada dia, durante o todo o trabalho de campo. Existem fortes debates a volta de questões éticas em Ciência Sociais, particularmente quando se conduz uma pesquisa com humanos. Por exemplo Caplan (2003) e Nymojoh (2003) contribuem para esse debate sobre a ética nos trabalhos de campo, em África. Embora haja pouco consenso sobre a aplicação de aspectos éticos, entre os antropólogos. A ética na Antropologia realça a relevância de proteger os informantes de 6 Machaca significa família, em língua ronga, uma das línguas faladas na cidade de Maputo. O grupo Machaca apresenta uma sérias de programas para jovens. Tem um grupo de danca tradicional (xigubo) e teatro onde criam condições para que os jovens discutam aspectos ligados a sexualidade e a prevenção do VIH/SIDA. 7 Machaca significa „família‟ na língua local Ronga, mais falada na cidade de Maputo. Na altura do trabalho de campo, o grupo Machaca era composta de 27 jovens e está junto ao Centro Comunitário do bairro da Mafalala. 8 Timbila é um instrumento musical semelhante ao piano que produz sons através de duas varas. Timbila é um instrumento moçambicano originário de Zavala, província de Inhambane. Timbila faz parte dos instrumentos musicais mundialmente preferidos. 8 possíveis represálias, especialmente com o tema sobre jovens e sexualidade, mantivenos anonimato dos nossos entrevistados conforme sugere a (Ética das Associações dos Antropológicas Americanos, AAA 1971)9. Os nomes dos entrevistados que aparecem nas transcrições são pseudónimos. O presente estudo não pretende incentivar a descriminação contra os jovens, muito menos aumentar a descriminação entre os jovens residentes no bairro da Mafalala. Antes, este estudo procura melhorar o nosso entendimento das percepções da sexualidade no seio dos jovens de Mafalala com o objectivo de apoiar os programas educacionais da VIH/SIDA a alcançar melhores resultados em Moçambique. A secção anterior focalizou a metodologia e as considerações éticas relevantes para este estudo. A próxima secção apresentará Mafalala. 5. Mafalala Geograficamente o bairro da Mafalala localiza-se no Distrito Municipal Número Três da cidade de Maputo. O bairro tem 250 km2. A população total até ao momento do estudo era de 21,189 habitantes dos quais 10.375 homens e 10.814 mulheres (INE 1998b). O bairro é limitado ao Norte pelo mercado Adelina, ao Sul pela Avenida Marion Ngoabi, a Oeste pela Avenida Acordos de Lusaka, e a Este pela Avenida de Angola. Existe uma percepção local de que o bairro é composto de três células – A, B, e C, e que está subdividido em cinquenta e sete blocos. Embora os residentes do bairro da Mafalala vivam em células separadas. Estes encontram-se em diferentes ocasiões como: mesquitas, mercado, escolas, ruas, posto administrativo (onde vão tratar documentos e resolver conflitos) entre outros espaços. A parte sudoeste do bairro está bem servida de infrastruturas. Há acesso fácil para cidade incluindo as áreas baixas da cidade, o centro comercial de serviços e as áreas industriais. O bairro possui água canalizada, electricidade e a rede telefonia fixa e móvel, apesar de nem todos residentes possuírem telemóveis. Antes de ser designado Mafalala, o bairro era conhecido por Munhuana, que significa “água salgada” nas línguas Ronga e Changana, faladas no sul de Moçambique, porque a área já esteve debaixo do nível do mar. A terra não é boa para a agricultura, porque o solo ainda contém água salgada. Aquele nome mudou para Mafalala na altura em que marinheiros vindos da Ilha de Moçambique, Província de Nampula, Norte de Moçambique, se estabeleceram nesta região. Os residentes de Mafalala mais antigos entrevistados afirmaram que o nome Mafalala surgiu das canções dos marinheiros, cantadas aos fins de semana e durante as cerimónias de circuncisão. Rituais de 9 No período em que realizamos esta pesquisa o Departamento de Antropologia Social da Universidade de Cape Town estava a usar a ética da AAA. 9 tatuagem e muitos sacrifícios eram considerados como actos de muita coragem. Os residentes também afirmaram que o ritual era conhecido como nífalala ou áfalala, significando música e dança na língua Emakwa. Segundo Tivane (2002:15-16) originalmente, três grupos se estabeleceram em Mafalala. O primeiro dos quais são os “Laurentinos”. Este grupo é oriundo de Lourenço Marques, actual Maputo. A este grupo seguiu-se os marinheiros vindos da Ilha de Moçambique e das Ilhas Comores (estes últimos passaram por Mafalala na sua viagem de negócios a Índia). Os ilhéus de Comores que se estabeleceram no bairro estiveram também envolvidos no tráfico de escravos para às Américas. O terceiro grupo, os “Madjodojos” que era composto de profissionais de saúde e músicos. Algumas pessoas deste grupo viviam em casas feitas de madeira e zinco, que os diferenciava das outras pessoas do bairro. A descrição de Tivane é significativa porque fornece diversidade e complexidade das pessoas que vivem no bairro. O bairro de Mafalala é também conhecido como um bairro de madeira e zinco. Após a independência de Moçambique em 1975, as casas de madeira e zinco foram nacionalizadas. A Administração do Parque Imobiliário do Estado (APIE) arrendou as casas pelo valor de dois mil meticais da antiga família por mês. Durante o trabalho de campo os residentes afirmaram que não podiam mudar a estrutura das casas, porque o governo estava a planear transformar o bairro num museu vivo. Todavia, numa conversa informal com os oficiais do bairro não foi possível confirmar tal informação. No que tange a infra-estrutura educacional, o bairro tem duas escolas públicas nas quais se leccionam de 1a a 4a classes. Depois da 4a classe, os alunos vão para Escola Primária Completa 25 de Setembro, Escola Primária da Munhuana, Escola Primária Estrela Vermelha e Escola Primária Noroeste 2. Estas escolas localizam-se a dois quilómetros do bairro. Além disso, crianças dos bairros próximos tais como: Xipamanine, Micadjuíne e Alto-Maé também frequentam as escolas primárias públicas do bairro de Mafalala. Há um mercado oficial chamado Adelina e várias garagens na célula A bem como pequenos serviços, tais como: lojas, barracas, cabeleireiros e oficinas. Existe uma pequena esquadra policial junto ao Posto Administrativo que resolve os conflitos sociais que emergem no bairro. A esquadra também está reservada para prisão de indivíduos que cometem “delitos menores”, tais como: roubo de galinhas e de carteiras. O bairro tem também a vantagem de se localizar junto do Distrito Municipal Número Um, particularmente, em termos de serviços públicos e acesso ao Hospital Central de Maputo. Apesar disso, quando os residentes adoecem raramente vão ao hospital, porque afirmam não terem dinheiro para transporte e medicamentos; outros recorrem ao curandeiro quando estão doentes. Existe uma forte aderência à religião na Mafalala. Além da religião Católica há outras religiões cristãs representadas, entre as quais, a Igreja Metodista Wesleyana em 10 Moçambique; a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja dos Doze Apóstolos. Há também quatro mesquitas nomeadamente: Braza, Chadria, Chadulia, Camararia10. A maior mesquita no bairro é a Chadulia, originalmente construída por muçulmanos provenientes da Ilha de Moçambique, Distrito da província de Nampula. No entanto, os muçulmanos vindos de Zanzibar, das Ilhas Comores e da Tanzânia fundaram as mesquitas Braza, Cadria e Camararia (Lemos 1988). Embora Mafalala tenha um número significativo de igrejas parece que a religião muçulmana desempenha um papel preponderante na vida de grande parte dos residentes. Durante o trabalho de campo, foi notável que os residentes usavam as mesquitas para diversão, para casamentos e realizar cerimónias fúnebres. A maioria dos residentes que solicitavam os serviços das mesquitas vinha de várias partes da cidade de Maputo. As mesquitas passaram a ser locais não só apropriados mas também férteis para o reencontro entre os residentes e seus conterrâneos. Depois do fim da guerra civil houve mudanças no bairro. As pessoas começaram a procurar os seus familiares com os quais tinham perdido contacto durante a guerra. Algumas pessoas entrevistadas aperceberam-se que haviam perdido a sua família ou membros da sua família. Outros trouxeram as suas famílias ou mesmo famílias inteiras para viver em Mafalala, ao passo que, algumas pessoas que nunca tinham tido nenhum vínculo com a Mafalala tiraram vantagem da situação para também se instalarem no bairro. Consequentemente, o bairro está agora superpovoado. As vias de acesso tornaram-se estreitas e algumas pessoas acomodam mais de oito pessoas nas suas casas, mesmo que estas sejam pequenas e outras tenham apenas dois aposentos. A acomodação de novos residentes (pessoas deslocadas internamente) realizou-se de forma irregular e espontânea. Por exemplo: novos residentes constrõem casas em locais, inicialmente, destinadas ao uso público, tais como: campos de futebol, ocupando qualquer lugar livre que encontram sem o controlo das autoridades governamentais. O bairro ainda não está oficialmente parcelado facto que também contribuiu para a construção emergente e desordenada de casas. As novas residências são, qualitativamente, diferentes das mais antigas. Enquanto algumas residências novas são construídas a base de materiais convencionais, tais como: blocos, cimento, zinco e pintadas com cores vivas. As outras casas são construídas a base de materiais não convencionais, como: papelões, estacas e contraplacado. A segunda categoria de casas pertence a famílias, economicamente, desfavorecidas. 10 “Braza” significa o “lugar da diversão”. Chadria recebeu o nome do profeta Maomé, e significa o “caminho para o poder”. A terceira mesquita é chamada de Chadulia que foi o nome de outro profeta. Camararia que significa “pedra”. Esta mesquita também é designada de Itifaque que significa “acordo”. 11 Ainda em consequência da super povoação e das construções irregulares, o bairro da Mafalala apresenta pequenas picadas estreitas para a circulação de pessoas, principalmente, de viaturas. Existem pelo menos duas estradas principais que até ao fim do trabalho de campo já estavam a ser reabilitadas. Para além de ruas deficientemente iluminadas, não só devido a falta de electricidade, mas por causa do vandalismo. Na altura do trabalho de campo, alguns residentes queixaram-se da existência de pessoas estranhas ao bairro que quebravam lâmpadas e roubavam materiais eléctricos nas ruas. Todavia, o maior problema ambiental é a impermeabilidade do solo. Durante a época chuvosa há sempre cheias que inundam as latrinas e destroem poços. Na época chuvosa muitas famílias ficam desalojadas porque a água chega a invadir suas casas. É durante a época chuvosa que doenças como: malária e a cólera eclodem. Os moradores estão cientes deste problema facto que se organizam para limpar as valas de drenagem, mas só quando há sinais de chuva. A falta de organização dos residentes para manter o sistema de drenagem limpo também contribui significativamente para as valas se manterem sujas, como Guimarães (de 32 anos de idade) afirma: “Não estamos preparados para limpar a drenagem. Algumas pessoas não são sérias...elas começam a limpar a drenagem quando está prestes para chover”. A solução para o problema de inundações no bairro não só passa pela limpeza das drenagens mas por um trabalho mais profundo no solo que é impermeável. Existe um Centro da Comunidade do bairro da Mafalala que ajuda na limpeza da drenagem. No entanto essa limpeza parou de ser feita devido a falta de material, como: pás, baldes e vassouras, para limpeza. O coordenador do Centro da Comunidade de Mafalala explicou que, inicialmente, o centro tinha apoios em material para a limpeza, mas agora dependem das contribuições dos residentes. Que muitas vezes depende da boa vontade de cada dos mesmos. Tendo apresentado o bairro da Mafalala, a próxima secção apresentará os resultados da pesquisa. 6. Resultados da pesquisa: Percepções sobre sexualidade Segundo o Dicionário de Psicologia Penguin (1987) o termo “sexualidade” significa “todos os aspectos da nossa constituição e o nosso comportamento que estão relacionados com o sexo...a qualidade de ser sexual”. Em outras palavras, sexualidade refere-se a como uma pessoa expressa atitudes e crenças relacionadas ao sexo. O que inclui componentes cognitivas, biológicas e emocionais tratadas como algo pertencendo a um indivíduo e a um grupo. Contudo, as reacções dos jovens residentes no bairro da Mafalala não só sugerem que têm em mente o conceito acima; antes, eles descrevem as “relações sexuais” ou “crenças sobre o sexo”, conforme César afirma: 12 Sexualidade é normal, porque todos a praticam. Sexualidade é a relação sexual entre o homem e a mulher. Para César, a sexualidade é algo que é óbvio. Em outras palavras, não há realmente nenhuma necessidade de fazer perguntas sobre a sexualidade pois todos sabem o que significa. César, ademais, ratifica uma definição da sexualidade que é normativa; para ele, a sexualidade se confina na actividade sexual entre um homem e uma mulher. É algo “natural”, mas também tem limites sociais. Como Fernando (de 21 anos de idade) afirmou: Sexualidade é a relação sexual com raparigas da minha idade. Não apoio a ideia dos adultos dormirem com jovens. Isto se deve ao facto de os homens não assumirem a responsabilidade das suas acções para com as raparigas com as quais se envolvem. Sob o ponto de vista de Fernando, sexo deve acontecer com as raparigas da sua idade. Por isso que critica os homens adultos, e não a mulheres adultas que se relacionam com rapazes mais novos do que elas, por fazerem o mesmo (ver Bagnol 2003). Isto se deve, na sua opinião, ao facto dos homens adultos não assumirem as consequências das suas acções em relação as práticas sexuais com raparigas menores. O comentário de Fernando chama a atenção a existência, no bairro, de um fenómeno que podemos considerar novo. Homens e mulheres de idade avançada que se relacionam amorosamente com raparigas novas. Fernando se considera em desvantagem em relação aos homens adultos que se relacionam com raparigas jovens porque não possui rendimentos suficientes para tchunar11 sua namorada. A definição de Fernando é menos simplista do que a de César. Se a sexualidade se restringisse apenas ao que é “natural” então os mais jovens teriam presumivelmente vantagem, mas a opulência dos mais velhos impede-os de a usufruir. Para Fernando, a sexualidade é aparentemente muito mais do que um concurso e prémio de lotaria. Ele tenta mostrar que o “campo de jogo” é desigual lamentando o facto dos homens mais velhos terem falta de responsabilidade e as raparigas serem irresponsáveis. Contudo, Bento (de 22 anos de idade) argumenta: A sexualidade é um ciclo biológico que começa aos dezassete anos. É um acto que deve acontecer entre um homem e uma mulher. Bento argumenta que a actividade sexual deve começar aos 17 anos porque e a referencia que tem sobre esse aspecto que aprendeu na família, com os amigos ou na escola. Bento associa a sexualidade com a mudança biológica. A sua justificação 11 Oferecer roupas, sapatos e acessórios da moda a namorada. 13 privilegia a apropriação como objectivo da sexualidade e não menciona o prazer. Bento também se posiciona como heterossexual afirmando que o acto sexual deve acontecer “entre um homem e uma mulher”. Porque tem conhecimento de relacionamentos homossexuais. As justificações de Bento estão para além da perspectiva médica na qual os indivíduos são vistos, primariamente, como entidades biológicas negligenciando desse modo “o campo social” em que vivem. Os discursos médicos tendem a universalizar as práticas sexuais que moldam os pontos de vista das pessoas. Estes discursos, algumas vezes, também exploram os sintomas dos indivíduos duma forma que facilita a estigmatização das pessoas portadoras do VIH/SIDA. Nesta pesquisa, preocupamo-nos com as percepções que os jovens têm sobre a sexualidade, precisamente, porque, essas percepções mostram uma perspectiva não só do indivíduo mas também a perspectiva da família ou grupo onde os jovens se sentem inseridos. Tendo discutido as ideias dos rapazes sobre a sexualidade irei agora debruçar-me sobre as percepções das raparigas sobre a sexualidade. Começando com Maria (de 21 anos de idade): A sexualidade é a união de duas pessoas, um homem e uma mulher. A definição de Maria mostra que a sexualidade é entendida como relações sexuais entre parceiros heterossexuais. No entanto notamos que Maria usou o termo “união” para significar o acto sexual. O que leva-nos a acreditar que existem expressões sobre a sexualidade usadas pelos jovens em público e que não ferem. Talvez o uso do termo “união” também servisse para reduzir o embaraço entre Maria e a pesquisadora. Continuando com as percepções das raparigas sobre sexualidade, Amélia (de 20 anos de idade) explica: [A sexualidade] é uma necessidade humana. Outrora, as pessoas diziam que sexo tem idade. Por exemplo, os meus avós educaramme a não fazer sexo antes de atingir os 18 anos, mas conheço moças que começaram a manter relações sexuais aos 13 anos de idade. Amélia acredita que a finalidade do sexo sirva para a procriação não podendo ser reprimido dependendo da idade. Sua definição da sexualidade associa as aspectos biológicos e sócio-culturais. O que pode significar que nas situações em que os jovens não conseguem arranjar um parceiro para casar, que é a expectativa da família, talvez sintam-se com menos alternativas para sentimentos individuais. Apesar de Amélia não mencionar as razões da afirmação da sua avó sobre as relações sexuais. O que fica claro é a passagem de testemunho da avó para a neta que acontece de uma forma suave. Desde que Amélia recebeu a orientações sobre a sexualidade da avó lamenta pelas 14 raparigas que começam a vida sexual muito cedo. Ao passo que as duas primeiras raparigas falaram superficialmente sobre a sexualidade, Eva (de 22 anos de idade) elabora muito mais: Não sei o que dizer...A sexualidade está associada com sexo e prazer. Deve ser feita entre o homem e a mulher. Há muitas maneiras de fazer sexo. [Acho] que sexo deve ser praticado com o seu próprio namorado. As raparigas que fazem sexo com mais de um parceiro são prostitutas. A percepção de Eva sobre sexualidade relaciona a biologia com aspectos sócio-culturais. Desta forma, ela associa a sexualidade com os órgãos sexuais e o uso que dele pode ser feito para o prazer. Eva realça, igualmente, o facto do acto sexual acontecer entre parceiros heterossexuais, demonstrando assim a legitimização dos discursos sobre a sexualidade também existentes na sociedade onde esta vive. Eva mostra que a actividade sexual deve ser feita com um único parceiro, o que provavelmente, mostra a influencia das campanhas de prevenção do VIH/SIDA sobre ela. De um modo similar, Bertina (de 20 anos de idade) afirma: A sexualidade tem a ver com sexo depois dos 18 anos [sexo deve ser feito] com o teu próprio namorado. Quando tenho um novo namorado, primeiro procuro estudá-lo para saber se realmente gosta de mim. Então faço sexo com ele, porque o amo e o confio. Mas, acho que os jovens devem fazer sexo quando tiverem 28 anos, porque saberão como cuidar de si próprios. Nessa altura, poderão trabalhar ou ter os seus próprios negócios para melhorar a sua vida. Bertina defende que o amor, a confiança e a idade são aspectos centrais da sexualidade. Parece que Bertina encara a actividade sexual como normal e aceitável, desde que tenha um namorado a quem pode amar e confiar. A atitude mais individualista da Bertina torna-se evidente quando fala sobre, primeiro, “estudar” o namorado antes de fazer sexo. É interessante que ela toma a responsabilidade de decidir se o homem é conveniente, embora o seu comentário sobre esperar até aos 28 anos – algo que ela claramente não fez – sugira que talvez haja também alguma insegurança ou preocupação acerca da capacidade das mulheres mais jovens de “cuidarem de si mesmas”. Suponho que Bertina entenda que a relação, entre um homem e uma mulher aconteça como forma de adquirir benefícios pessoais. Outra rapariga, Mariana (de 21 anos de idade) explica: A sexualidade é um acto praticado por duas pessoas; quero dizer um homem e uma mulher. Não pode acontecer entre crianças, 15 mas, principalmente, entre nós jovens… Existem jovens do mesmo sexo que praticam relações sexuais, mas isso é errado. Mariana mostrou que o seu ponto de vista em relação a sexualidade: é uma prática que se verifica mais entre a juventude. Pode ser que o posicionamento de Mariana esteja influenciado pelo silêncio que tem acontecido dos aspectos ligados a sexualidade na família e na sociedade. Embora a tendência ser dos pais não aceitarem que os jovens sejam sexualmente activos como indica a expressão cu kundzana na língua Ronga. Aprendi que o termo cu kundzana refere a actividade sexual entre casados e não entre jovens que aparentemente não tem responsabilidade pelos seus actos. Isto sugere que não se espera que os jovens solteiros sejam sexualmente activos. Em relação a esse ponto a secção seguinte mostrará que os jovens são sexualmente activos. Os argumentos apresentados pelas raparigas sugerem que a sexualidade é, principalmente, associada com o contacto físico e a função biológica do sexo. A sexualidade é vista como algo inerente (neste caso, ao ser humano), e espera-se que aconteça com a finalidade da procriação. A questão é: podem os jovens (como indivíduos) controlar sua sexualidade? As campanhas de prevenção do VIH/SIDA estabelecem como premissas a mudança do comportamento sexual na medida que as pessoas estejam suficientemente informados sobre a saúde do seu corpo. Essa premissa apresenta lacunas no contexto de Mafalala porque as percepções dos jovens sobre a sexualidade estão fortemente associadas com aquilo que aprendem nos seus agregados familiares e na sociedade. Em poucas palavras, as campanhas de prevenção de VIH/SIDA não estão a ser bem sucedidas porque não conseguem captar os aspectos socio-culturais sobre a sexualidade que orientam os jovens no seu dia a dia. Um ponto que claramente emerge das conversas com as raparigas é o facto da idade desempenhar um papel significativo na decisão que tomam para o início da relação sexual. Actividade sexual para os rapazes e para as raparigas significa penetração. Não encontramos sinais de percepções entre os jovens entrevistados a sexualidade associada a comunicação, a forma de vestir ou outras formas que podem ser consideradas como tendo relação com a sexualidade. Assim pensamos que significa que as campanhas de prevenção do VIH/SIDA devem encontrar formas de sensibilizar os jovens a se prevenirem de DSI usando linguagem própria dos jovens que se diferencia dependendo de onde o jovem se encontra, na zona rural ou urbana em Moçambique. No contexto de Mafalala, por exemplo, as práticas socio-culturais não deve ser visto como um constrangimento a prevenção do VIH/SIDA, mas também um recurso para perceber porque e como os jovens tomam decisões relativas a sexualidade. Por 16 exemplo: os avós são em grande medida uma fonte útil de aconselhamento sobre o comportamento sexual. Muitas jovens sentem mais facilidade de falar com os avós sobre os problemas íntimos do que com seus pais. Deste modo, os idosos podem ser uma fonte útil para apoiar na prevenção do VIH/SIDA. Tendo apresentado a percepção dos rapazes e raparigas sobre a sexualidade a secção seguinte discutirá os aspectos relacionados com o namoro temporário (rider) e o namoro sério e sua implicação para a prevenção do VIH. 6.2. Rider12 e namoro De acordo com os jovens entrevistados em Mafalala, o termo rider refere-se a relação sexual casual ou temporária, isto é, uma relação sem compromisso. Há muitas razões que levam os jovens a se envolverem em relações temporárias. Essas razões podem ser de cariz financeira ou emocional. Vamos ouvir Fernando (de 24 anos de idade): Não trabalho, mas isso não significa que não posso sentir o prazer da vida. Se encontrasse uma rapariga, necessitaria da minha atenção...não é bom ter uma namorada e não tchunar13... é prático e barato manter [uma relação rider]. Fernando usa o termo rider como relação ocasional, temporária sem compromisso, que não implica muitos esforços e gastos financeiros. Ter uma namorada para Fernando significa almejar a uma relação a longo prazo. O que significa também sustentar económica e emocionalmente a relação. Para a maioria dos jovens em Moçambique e em particular em Maputo que se deparam com a falta de emprego torna-se difícil manter uma relação seria (Paulo et al. 2007, 2010). Uma relação rider não é a mais desejada entre pessoas serias na sociedade nem para prevenção do VIH/SIDA mas é a relação que os jovens podem. A opinião de Fernando sobre ter uma namorada e a maneira como gostaria de lhe dar atenção indica que ele gostaria de ter uma relação a longo prazo, mas que por algum motivo não seria possível uma relação durável. Sejam quais forem os motivos, Fernando não estava ainda preparado para manter uma relação a longo prazo. Mas também não estava com planos de ficar sem parceiras sexuais. Diria que Fernando não está apenas preocupado com a sua capacidade financeira de tchunar a sua namorada, porque isto é algo que gostaria de fazer. É provável que a pressão de amigos e colegas seja a razão central para entender as inquietações de Fernando em relação ao relacionamento. 12 De acordo com dicionário Inglês „rider‟ quer dizer conduzir algo. „Rider‟ usado no contexto dos jovens entrevistados, em Mafalala, também significa passear a procura de namorado (a). 13 Tchunar é um calão que os jovens usam para se referirem alguém que está/ou pretende estar lindo (a). Pelas roupas, sapatos e acessórios „modernas‟. 17 Partindo da perspectiva de Fernando, não foi difícil perceber a preocupação de vários jovens em grupos ou sozinhos a desfilarem exibindo: roupas, sapatos, óculos, pulsos, tissagens de várias cores e tamanhos sendo assim motivo de humilhação para os jovens que não tem condições de exibir esses bens. Ao se exibirem com roupas da moda vao mostrando partes íntimas do corpo deixando espaço para imaginação e para posterior teste. No contexto da exibição pública das roupas e da possibilidade de encontrar um parceiro, Amélia (de 20 anos de idade) conta: Não é difícil achar rider. Vê-se a sua aparência pelas roupas que usa e pela forma como anda na estrada. Anda como se procurasse alguma coisa...anda e faz perguntas sobre o endereço de qualquer casa, articula uma e outra palavra. Se estivermos interessadas podemos nos deixar levar. Amélia explica que para identificar um(a) rider. Vê-se pelo movimento do corpo no estilo das roupas, como sinais da disponibilidade dos jovens que podem ter nesta situação. Amélia associa rider com a linguagem corporal, com a moda em suma com a sexualidade, aspectos que não foram ressaltados na definição dos jovens sobrea sexualidade. Os jovens, principalmente os rapazes, reivindicaram que usam frequentemente preservativo nas “relações sexuais ocasionais”. Porem três jovens afirmaram que algumas vezes “pedem emprestado” preservativos não usados a amigos próximos nas ocasiões em que não têm dinheiro para comprar um preservativo ou quando se acham na eminência de encontrar rider. Em relação ao preservativo, todos os rapazes entrevistados disseram que preferem usar jeito14 uma marca de preservativo tida como fina e leve em relação ao preservativo distribuído pelo Ministério da Saúde que os jovens mencionaram, apesar de ser grossa, não criar comichão. Sobre o uso do preservativo Riquito (de 21 anos de idade) diz: Quando tenho rider sei que preciso do jeito... Algumas vezes, é difícil lidar com a situação. Convido a moça para ficar comigo, em minha casa, durante a noite e precisamos de fazer as cenas15·, mas nem sempre tenho a certeza de que havemos de usar jeito’ todas as vezes que fazemos ‘as cenas’. A explicação de Riquito mostra que este já terá se iniciado sexualmente. No entanto, este reconhece que já devia estar a usar preservativos. Mas não os usa sempre o que os programas de prevenção de VIH/SIDA poderiam categorizar como falta de 14 A PSI (Population Service International) escreveu JeitO com maiúscula „J‟ a „O‟. Neste artigo emprego a palavra pequena para Jeito para referenciar uma marca de preservativo anunciada pela PSI. 15 Expressão usada pelos jovens para mencionar relações sexuais. 18 responsabilidade por ignorarem aspectos socio-culturais que permitem os jovens a tomarem certas decisões. Em Moçambique, não é surpreendente que os rapazes tivessem falado mais do preservativos do que as raparigas. Parece que as raparigas são menos permitidas de se expor sexualmente sob pena de serem consideradas levianas. Isso e contraditório porque biologicamente as raparigas tem mais probabilidade de se infectarem por DSI e VIH do que os homens. Conforme deixaram claro as raparigas, confiar em alguém, só acontece nas relações a longo prazo. Podemos inferir disso que nas situações de rider em que a confiança está menos ausente, as raparigas prefeririam que os seus parceiros sexuais usassem preservativos, mas nem sempre estariam em posição de tomar e impor tal decisão ao parceiro por receio de perderem apoio deste. Rider não é a única forma de relacionamento sexual menos sério disponível para os jovens. Admite-se também que os jovens possam ‘marcar encontros’; uma forma casual de relacionamento que pode ser preliminar para firmar um namoro a longo prazo. Todos os jovens entrevistados gostaria de ter relações serias, casar-se e ter filhos ou vice versa. O objectivo de rider é para conhecer-se mutuamente, visando o um relacionamento mais duradoiro. Rider também significa diversão e compartilhar a vida social entre pessoas de sexos diferentes. Riquito e os outros jovens tiveram conhecimento de como se transmite as DSI, principalmente, a sífilis e a gonorreia no grupo Machaca. Contudo, vieram a saber das infecções por VIH através da rádio, da Televisão e mediante iniciativas públicas de organismos da saúde. Por isso que decidiram criar uma associação de jovens que fala sobre a prevenção por VIH para jovens da cidade de Maputo. Isso sugere que há muita propaganda sobre as formas de infecção e prevenção do VIH/SIDA e pouco conhecimento local sobre as praticas socio-culturais que impedem aos jovens a optarem pelo sexo seguro. Quando infectados por alguma DSI, os jovens sabem onde se dirigir para receber ajuda e tratamento; o que fazer, inclusive, das consequências que poderão advir na falta de tratamento adequado dessas doenças. O grupo Machaca desempenha um papel muito importante na disseminação de informações úteis sobre a sexualidade, DSI e VIH/SIDA. No bairro de Mafalala. Para alem do grupo Machaca que é uma entidade do bairro, este respeito, os jovens mencionaram que têm apoio da Associação Juvenil de Amigos e Adolescentes (AJAD). Apesar da sociedade não aceitar que os jovens são sexualmente activos, os jovens afirmam que, uma vez infectados, preferem ir ao hospital do que informar aos pais como, Tito (de 22 anos de idade) conta: 19 Quando me apercebi de que o martelo16 não estava bom, já estava a expelir um líquido branco. Contei ao meu irmão. [Ele ] aconselhou-me a contar aos nossos país. Depois de os ter contado mandaram-me ao hospital, mas quando curei troçaram a respeito disso. Tito mostra a experiência que teve no tratamento de DSI com o apoio da família. No entanto, Tito também mostra quão embaraçoso se sentiu confortável com a atitude trocista dos familiares. Talvez Tito esperasse que os seus pais tivessem mantido o incidente em segredo. O facto de Tito ter usado o termo martelo para se referir ao seu pénis, indica que já se considera homem. O seu embaraço também sugere que Tito entende que o problema que teve no martelo deveu-se aos poucos cuidados que teve com a sua saúde. Ainda acerca da DSI, três raparigas mencionaram que tiveram amigos que tinham sido infectados pela sífilis e gonorreia, mas a sua percepção ou sua desculpa foi que a causa das infecções tinha sido porque estava muito calor e o suor provocou irritação no órgão genital. Pode ser que os jovens não sabiam como se infecta por DSI mas também pode ser que as jovens encontraram uma desculpa para falar para as suas amigas. É interessante notar que, ainda que, o conhecimento sobre a prevenção e tratamento de DSI tenha sido largamente disseminada, parece que o problema de comunicação ser relevante para compreender os constrangimentos socio-culturais que os jovens encontram para prevenirem o VIH/SIDA prevaleça. Para Eva, existe muita informação sobre o VIH/SIDA e não há acções suficientes para ajudar os infectados: Precisamos de medicamentos para ajudar os infectados por Hiv17. Não basta informar as pessoas sobre a doença. Quero com isso dizer que as pessoas estão a morrer e é importante achar soluções para este problema. Eva argumenta que prover meras informações às pessoas não é o suficiente. Ela está apelando também a informação sobre o tratamento. Os programas de prevenção de VIH/SIDA em Moçambique lamentam a ausência de informação argumentando que as pessoas não mudam o seu comportamento sexual porque não têm informação [adequada]. Ter informação é importante mas isso não é tudo para influenciar aos jovens na mudança do seu comportamento sexual, se os jovens não se reconhecem nessa perspectiva. 16 Martelo sinónimo usado para referir o pénis; é contrastado com o termo ‘periquito’ usado para referir o pénis dum petiz. 17 HIV em inglês Human Immunodificiency Virus. Em Moçambique usa-se mais esta terminologia. 20 Eva é uma das jovens que teve oportunidade de saber como as DSI se dissemina. Quando entrevistada, Eva estava, emocionalmente, deprimida por causa da morte duma vizinha, vítima do VIH, em Dezembro de 2003. Mas também porque perdeu amigos e membros da família vítimas da pandemia. Eva e suas amigas não estão capacitadas para se prevenirem contras a infecções. Como estas jovens outras jovens poderão estar nas mesmas condições e constituir um problema social. É verdade que em muitos casos, as raparigas não são capazes de convencer seus parceiros a usarem preservativos. Mas também porque não deve ser uma tarefa fácil absorver informação sobre prevenção e os riscos de não prevenir DSI e ao mesmo tempo cumprir com as obrigações da família. Que é se sentir homem e mulher e poder mostrar a virilidade ou fertilidade procriando. As campanhas que focalizam o uso do preservativo masculino separam a actividade sexual em procriação e prazer. Notamos que existe preservativo feminino mas a aderência e menor talvez porque as jovens não ensinadas a terem conhecimentos sobre a sua sexualidade desde cedo. Existe venda de preservativo em quase todos os estabelecimentos comerciais no bairro de Mafalala. Como Eva, Mariana (de 21 anos de idade) está preocupada com as pessoas vivendo com o VIH/SIDA. Todavia, Mariana relaciona as infecções de VIH/SIDS com a pobreza. Pode ter uma parte de sua razão. Acreditamos que pessoas pobres podem ser também saudáveis desde que percebam os mecanismos que as levam a sê-lo. Mariana acredita que as pessoas morrem, porque “não têm dinheiro para comprar os medicamentos”. Mariana entende que o VIH existe, mas não percebe que doutores (ou medicamentos) não ajudar os pacientes da Sida. Ela não entende que as pessoas ricas podem também morrer de Sida. Eva e Mariana são o exemplo de jovens urbanas que têm uma percepção parcial dos desafios colocados às comunidades vivendo com VIH/SIDA. Para alguns jovens a menos que parece que as campanhas de prevenção do VIH/SIDA tenham sido bem sucedidas ao ligar o VIH, informação e saúde usando a mídia. Mas, quando os jovens apresentam soluções para as lacunas do conhecimento que têm sobre a doença tornam-se evidentes: ambos acham que o real problema é a ausência de apoio e de tratamento. Depois de ter apresentado às percepções dos jovens sobre rider e namoros apresentaremos de seguida as percepções dos jovens sobre o aborto. 6.3. Percepções dos jovens sobre o Aborto18 De acordo com os comentários com as observações sobre as conversas sobre a sexualidade entre os jovens, pareceu-nos que as raparigas estavam mais preocupadas com o aborto do que os rapazes. Talvez porque o aborto e um acto praticado só por 18 O aborto é ilegal em Moçambique (Artigo 358 do Código Penal). 21 raparigas (mulheres) e os rapazes (homens) mal informados sentem-se desconfortáveis de abordar o assunto. Numa situação em que existe uma gravidez indesejada, às raparigas são obrigadas a interromper a gravidez porque o rapaz não está, mental e financeiramente preparado para sustentar a rapariga e a criança que vai nascer. Ou porque a família do rapaz não aprecia a rapariga para fazer parte de sua família. Ou então a família do rapaz assume a gravidez porque de lá vai sair um “produto” que ajudara a mostrar as outras famílias em Mafalala que o rapaz é fértil, e não assumem a rapariga. Assim acontece em grande parte de famílias em Mafalala em que os rapazes têm cobertura total dos familiares para engravidar raparigas e decidirem não assumir a criança e a rapariga. Sendo assim a família da raparia aceita a criança e a rapariga porque a rapariga aumentou a família e não fica bem que uma família deite fora o seu membro, mesmo que não tenha comida suficiente para partilhar. Embora a gravidez seja também a via que permite as raparigas de se tornarem mulheres férteis e aceites na sociedade, no que se refere ao aborto, Bertina e Maria revelaram que as raparigas, de facto, preferem optar pelo aborto voluntário devido a decepção que têm tido dos seus namorados em aceitar a ideia de ter filho e em providenciar bens para o sustento da rapariga e da criança que vai nascer. Quase todas as raparigas afirmaram terem tido mais de dois abortos voluntários. Estes abortos foram feitos em casa com a ajuda de amigas “de verdade”. As raparigas teriam ido ao hospital apenas para tratamento nos casos em que houvesse complicações. As raparigas falaram sobre dois tipos de abortos. O primeiro tipo de aborto é aparentemente feito com a ajuda de uma amiga “de verdade”, como Maria (de 22 anos de idade) explica: Quando estou certa de que já estou grávida, por exemplo, nas duas primeiras semanas antes do fim do mês, conto a uma amiga chegada. Ela espera até que eu esteja relaxada e então me bate nas costas. No dia seguinte a menstruação começa. Maria acredita que os golpes que a amiga “de verdade” lhe dá nas costas em conecção com o medo danificam o embrião. Embora a descrição de Maria levante algumas dúvidas de quão sério é o facto de pretender o aborto. Isso mostra a importância de ter uma amiga “de verdade” na sua vida. Alguém que esteja disposto a compartilhar o fardo e até mesmo a responsabilidade de dividir as consequências negativas desse acto. O segundo tipo de aborto é suposto ser feito, individualmente, ingerindo coca quente misturada com aspirina, como Bertina (de 20 anos de idade) descreve aborto: Elas [as raparigas] põem uma garrafa de coca ao sol para aquecêla e quando estiver quente bebem-na. Algumas vezes é necessário 22 beber mais do que duas cocas para causar o aborto. Este tipo de aborto funciona quando a gravidez tem duas semanas. Amélia, Bertina e Mariana acreditam que os rapazes (homens) não estão preocupados com a gravidez porque encaram-na como um problema das raparias (mulheres). Tanto as raparigas como os rapazes acreditam que se as raparigas se deixam engravidar para prender os rapazes. Contudo, está claro que a situação é muito mais complexa do que a explicação aparenta dos jovens em relação ao aborto. Embora as raparigas tenham falado sobre o aborto, em geral, este tópico, é encarado como tabu, em Mafalala e em Moçambique no geral. As raparigas querem ser sexualmente livres, mas elas parecem não ter conhecimentos básicos sobre a sexualidade. Algumas raparigas são encorajadas a aprender sobre a sexualidade dentro da família e da comunidade mas as outras não. O que nos surpreende em relação as raparigas, no meio urbano, como e o caso de Mafalala, é a existência de vários canais de informação, em Maputo, que veiculam informação sobre a prevenção do HIV/SIDA mas que o seu impacto parece não ser visível. Tendo apresentado os resultados do estudo sobre “Jovens, Sexualidade e o VIH/SIDA no Bairro da Mafalala”, a próxima secção vai discutir e tecer considerações finais do estudo. 7. Considerações finais Este artigo providenciou uma abordagem etnográfica em relação às percepções sobre a sexualidade entre os jovens residentes no bairro de Mafalala. Todavia, os resultados deste estudo não devem ser generalizados à comunidade juvenil da cidade de Maputo devido a complexa diversidade do perfil destes jovens, mesmo no bairro da Mafalala, o estudo e relevante como contribuição da Antropologia para compreender os constrangimentos que se encontram em relação a prevenção do VIH/SIDA em Moçambique. De facto o agregado familiar representa a protecção e esperança para os jovens. O que contrasta com a ideia de prevenção individual, sob ponto de vista da saúde. Por isso os jovens tendem a encontrar situações em que é difícil implementar a ideia de “sexo seguro”, em parte devido a pressão de colegas. Mas também por causa da pressão da família para iniciar e construir a sua própria família. Por falta de emprego para os jovens em Moçambique, permite que estes firmem relacionamentos temporários (rider) virados para a busca do prazer. Essa situação revelasse constrangedora porque as experiências dos jovens sobre a sexualidade estão 23 alicerçadas no agregado familiar com a ideia de sexo para procriação que pressupõe relacionamentos duradoiros. Para finalizar, pensamos que os programas de prevenção de VIH/SIDA parecem ser ineficientes devidas as incertezas da família sobre as campanhas educacionais. Como aconteceu depois da independência com a proibição das práticas locais e o seu reconhecimento posteriormente. O que deixa algumas lacunas na confiança que as famílias depositam nos grandes programas. Grande parte das famílias, no Norte de Moçambique, ainda usam os ritos de iniciação ou conselhos das tias, no sul de Moçambique como forma de transmitir ensinamentos sobre a sexualidade e a vida no geral. Para minimizar as lacunas da fraca articulação dos conhecimentos locais com os conhecimentos biomédicos os estudos etnográficos devem ser levados a cabo no sentido de aprofundar o conhecimento das práticas socio-culturais que permitem os jovens, e as pessoas, no geral, a terem uma vida livre de infecções de DSI e VIH/SIDA. Agradecimentos Agradeço ao CODESRIA (Council for the Development of Social Science Research in Africa)/SSRC (Social Science Research Council) por terem financiado a pesquisa. A Dra. Lesley Fordred Green por me ter supervisado. Ao secretário do bairro da Mafalala pelo apoio constante sempre que me encontrava no bairro. A todos os jovens entrevistados residentes em Mafalala por aceitarem compartilharam suas experiências para este trabalho. Agradeço ao José Bambo, pelo apoio nas entrevistas com os rapazes e pelas conversas informais que ajudaram a perceber um pouco mais do mundo dos rapazes. Ao Cardoso Tondolo pela tradução do texto, do Inglês para o Português. À Pérola da Graça, Ofélia Simbine e Sandra Manuel pelas discussões informais em torno da juventude e sexualidade em Moçambique contemporâneo. Os pontos de vista e as opiniões expressas neste artigo são da inteira responsabilidade da autora e não são necessariamente compartilhadas pela agência financiadora. Referências bibliográficas: Angrosimo e Pérez, K. 2000. “Rethinking observation: From method to context” in: Handbook of Qualitative Research, pp. 673-701. Thousand Oaks: Sage Publications, Inc. Arnfred, S. 2004. “African sexuality/sexuality in Africa: Tales and silences” In: Rethinking Sexualities in Africa, pp. 59-76. Sweden: Almqvist & Wiksell Tryckeri. Arnfred, S. 2001. 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