A Ilha de Moçambique: memórias do património e do seu povo. Luís Frederico Dias Antunes (Investigador auxiliar do IICT) Vista aérea da Ilha de Moçambique (www.pwp.netcabo.pt) O significado e a influência cultural do património de origem portuguesa disperso pelo mundo, em grande parte resultado das grandes viagens dos Descobrimentos que proporcionaram o contacto entre diferentes povos e culturas, são hoje legitimamente reconhecidos pela comunidade internacional. Actualmente, tanto a língua portuguesa, que conta com cerca de 200 milhões de falantes em todo o mundo, como a própria lista do património Mundial instituída pela Unesco, que possui mais de duas dezenas de locais de origem portuguesa, repartidos por 15 países e 3 continentes, revelam o valor e a especificidade do conjunto de bens naturais e culturais de expressão portuguesa, que constituem alguns dos traços característicos dos espaços onde a cultura portuguesa interagiu, se transformou e deixou um legado de influências entrecruzadas. São, portanto, espaços que, ultrapassando a dimensão do tradicional espaço geográfico e os limites da lusofonia, contêm em si diferentes culturas, convivem com diversas línguas e tradições e partilham múltiplos saberes. Como se sabe, em 1991, a Ilha de Moçambique foi inscrita e aceite na referida lista do património Mundial. Merecidamente, diga-se, pois se existem lugares e monumentos que guardam uma memória política e cultural muito forte, a Fortaleza de S. Sebastião, o Palácio do Governador e o conjunto de edificações das designadas «cidade de pedra e cal» e «cidade de macúti», na Ilha de Moçambique, são certamente alguns deles. Durante séculos, o centro do poder político, militar e religioso de Moçambique esteve ligado a esses notáveis edifícios que, ainda hoje, evocam um certo estilo da presença ultramarina portuguesa. O problema é que a necessidade de preservação e de protecção deste património, e a convivência entre culturas diferentes não fazem parte, infelizmente, do código genético da natureza humana. São, antes de mais, um exigente resultado do conhecimento e da educação da sensibilidade e da inteligência. E, como se sabe, a história de Moçambique e da sua capital colonial é relativamente mal conhecida, especialmente no que respeita aos aspectos relacionados com a presença muçulmana na região, antes da chegada dos portugueses. Simultaneamente, defender a Ilha de Moçambique como parte integrante do importante património mundial é preocupar-nos com o destino e as vicissitudes dos seus habitantes, em particular com as suas condições de vida e de subsistência. Os espectaculares trabalhos de arqueologia subaquática, realizados junto à Ilha de Moçambique, e os longos e árduos anos de investigação histórica dos artefactos aí encontrados, vão brevemente ser divulgados ao grande público televisivo. Sem tanto encanto, nem tanta mestria, tentamos agora, em termos muito sucintos, renovar o interesse pela história colonial da Ilha de Moçambique. A Fortaleza de S. Sebastião (www.xirico.com) A Fortaleza de S. Sebastião Percorrendo as fortalezas portuguesas espalhadas pelos vários cantos do mundo, de Mazagão a Goa, de Ormuz ao Brasil, verificamos que um dos aspectos que quase sempre andou a par com o processo de expansão ultramarina foi a capacidade de adaptação dos portugueses ao meio. Em 1507, no início da presença portuguesa na ilha de Moçambique, os portugueses construíram, onde é hoje a capela do palácio dos Governadores, uma pequena fortificação junto à torre de S. Gabriel, «que tinha 15 homens a proteger a feitoria nela instalada»1. Passado cerca de meio século, o provisório forte de S. Gabriel encontravase naturalmente ultrapassado, dada a evolução do poder de fogo e de destruição da artilharia inimiga, não cumprindo cabalmente o papel de defesa da ilha, que, entretanto, se tinha tornado escala quase obrigatória da carreira da Índia e dos crescentes interesses comerciais privados e da Coroa2. Apesar da urgência na construção da fortaleza, as obras só principiaram em 1558. Segundo Margarida Valla, teria sido Francisco Pires - o engenheiro-militar que, em 1546, dirigiu a reformulação da fortaleza de Diu, e introduziu o «novo sistema dos baluartes em triângulo correspondendo à nova tecnologia do ‘fogo cruzado’, ensinado nos tratados de fortificação renascentista» -, o responsável pela elaboração de um projecto de forte para a Ilha de Moçambique3. No entanto, Manuel Lobato afirma, baseado em informações de frei João dos Santos, que teria sido um sobrinho do dominicano frei Bartolomeu dos Mártires o arquitecto encarregado de dar início ao projecto que Miguel de Arruda desenhou, de acordo com um plano detalhado que D. João de Castro dirigiu a D. João III, em 15454. Sem nos perdermos com estas pequenas discrepâncias históricas, importa salientar que a construção da Fortaleza de S. Sebastião foi evoluindo, lentamente, em perfeita harmonia com a topografia da ponta norte da ilha. De acordo com o meio ambiente, tal como o peixe-pedra, que se acomoda e disfarça entre as rochas para melhor se defender de um ataque iminente, também a Fortaleza de S. Sebastião - ainda antes de estar concluída, em 1620 - foi capaz de resistir aos cercos holandeses da primeira década do século XVII, e, mais tarde, aos ataques dos árabes de Mascate, em 1669 e 1704, e dos franceses, no final do século XVIII. Não há dúvida que o valor estratégico da maior fortaleza de África austral, e a segunda maior em todo o império Português, depois de Diu, foi desde sempre, um dos aspectos que mereceu uma especial atenção. No primeiro quartel do século XIX, o carmelita frei Bartolomeu dos Mártires5, observava que «os navios são obrigados a passar muito perto, e quase junto à Fortaleza de S. Sebastião, que pela sua bem escolhida posição local na entrada, e boca do porto, o põem a coberto de qualquer insulto hostil»6. Em meados do século XVI, a Fortaleza de S. Sebastião fazia parte de uma vasta rede de fortalezas estrategicamente dispostas ao longo da rota da Índia. O que é curioso é que a distribuição e a localização das fortificações quinhentistas mantiveram, pelo menos até 1 Alexandre Lobato, «Ilha de Moçambique: Notícia Histórica», in Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique, nº4, Maputo, 1988, p. 68. 2 Manuel Lobato, «A Ilha de Moçambique antes de 1800», in Oceanos, nº25, CNCDP, 1996, pp. 18-19. 3 Margarida Valla, «O Papel dos Arquitectos e Engenheiros-Militares na Transmissão das Formas Urbanas Portuguesas», disponível em http://www.urban.iscte.pt/revista/numero1/margarida.html 4 Frei João dos Santos, Etiópia Oriental e Vária História de Cousas Notáveis do Oriente, Introdução e notas de Manuel Lobato, Coordenação da fixação do texto de Maria do Carmo Guerreiro Vieira, CNCDP, Lisboa, 1999, pp. 254-255; Manuel Lobato, «Fortalezas do Estado da Índia: do centro à periferia», A arquitectura militar na expansão portuguesa, CNCDP, Porto, pp. 44-45. 5 O carmelita Bartolomeu dos Mártires, nascido em Sandomil, em 26.8.1764, foi inicialmente religioso no Rio de Janeiro. Eleito bispo de S. Tomé em 17.12.1812, confirmado em 15.3.1815 e sagrado em 26.10.1816, nunca chegou a mudar-se para a referida Ilha, por ter sido transferido para Moçambique, em 1818. Foi prelado em Moçambique na época em que a Ilha alcançou, por carta régia, o título de cidade e capital dos domínios portugueses na África oriental. Conhecedor dos assuntos políticos, Frei Bartlomeu dos Mártires pertenceu à 5ª Junta Provisional que governou Moçambique, entre Setembro de 1818 e Novembro de 1819. 6 Arquivo da Casa de Cadaval, «Memoria Chorografica da Província ou Capitania de Mossambique na Costa d’Africa Oriental conforme o estado em que se achava no anno de 1822, [de Fr. Bartolomeu dos Mártires]», Códice 826, M-VI-32, f. 1-2. Veja-se, a propósito, o estudo de Virgínia Rau, «Aspectos etnoculturais da Ilha de Moçambique», in Stvdia, nº11, 1963, que contém longos extractos do documento atrás referido. há bem pouco tempo, uma grande actualidade. Segundo Modelski, se compararmos um mapa de ca.1550 relativo à distribuição global das fortalezas portuguesas, verificaremos que ele é muito semelhante a um mapa que revela a rede de bases militares dos Estados Unidos no estrangeiro, ca.19967. Tendo em consideração o perigo que as comparações anacrónicas comportam, a verdade é que esta analogia permite reflectir sobre as estratégias desenvolvidas pelos dois impérios que, em diferentes épocas, tentaram exercer a supremacia no mundo. Passados 500 anos, a Fortaleza de S. Sebastião encontra-se, de novo, com obras de recuperação. Lentas, é certo, em parte devido a problemas idênticos aos do passado, nomeadamente os que se prendem com a falta de mão-de-obra qualificada e a gestão dos donativos e financiamentos, privados e públicos. Aconteceu o mesmo no século XVII, quando, à tradicional carência de artífices experientes, acresciam as doenças tropicais que vitimavam muitos pedreiros, quase todos indianos8. Palácio dos Governadores ou Palácio de S. Paulo (www.xirico.com) O palácio dos Governadores Se nos restringirmos aos aspectos plásticos da obra arquitectónica, o denominado palácio dos Governadores nada tem de excepcionalmente interessante, para além da sua relativa imponência e localização na Ilha. O edifício provoca, no entanto, alguma curiosidade quando se conhece um pouco da sua evolução histórica. Na verdade, o edifício construído em 1618-1620, sobre as ruínas da Torre Velha e da sua cerca fortificada, não nasceu para se tornar um palácio do poder político, mas antes para 7 George Modelski «Portuguese Seapower and the Evolution of Global Politics», palestra na Academia de Marinha, Lisboa, 15.10.1996, disponível em http://faculty.washington.edu/modelski/MARINHA.html. 8 Manuel Lobato, já cit., p. 19. albergar um colégio jesuíta. Só em 1766, sete anos após a expulsão dos jesuítas de Moçambique, o colégio de S. Francisco Xavier seria convertido em residência e sede do governo. A reutilização do edifício deveu-se, em grande parte, à enorme carência de casas de habitação que fossem compatíveis com o estatuto do mais alto cargo da colónia e que possuíssem o mínimo de dignidade para receber visitas privadas ou oficiais, nomeadamente para hospedar os Vice-Reis que seguissem para a Índia. Sabemos que o governador Pereira do Lago (1765-1779) mandou construir quatro casas de raiz junto ao convento, e procedeu à remodelação de muitas outras divisões do imóvel, que serviram de residência dos governadores e das suas famílias e para instalação das secretarias do governo. A ampliação do colégio de S. Francisco praticamente duplicou a sua fachada e foi feita à custa da demolição de casas situadas junto do edifício e que também pertenciam aos jesuítas. As obras custaram 6.500 cruzados, uma quantia que Pereira do Lago afirmava não ir sobrecarregar o erário régio, pelo facto de esta soma ser uma pequena parcela proveniente da valorização das patacas que pertenciam à Fazenda Real. Tudo o mais foi construído com a ajuda de moradores de Moçambique, que colocaram os seus escravos e mestres de ofício ao serviço da Coroa, e ainda pagaram do seu bolso as despesas com o transporte das madeiras9. Os acrescentos e as alterações realizadas no interior do primitivo colégio conservaram as formas geométricas simples e as linhas sóbrias da fachada, em conformidade com um certo espírito de austeridade e humildade monástica, mas, paradoxalmente, também tornaram o edifício mais aparatoso e imponente, como se este procurasse ganhar a dignidade e a distinção inerentes à residência da autoridade máxima em Moçambique. Palácio dos Governadores ou Palácio de S. Paulo (www.xirico.com) 9 AHU, Moç., «Carta de Baltazar Pereira do Lago, governador e capitão-general de Moçambique, para o rei D. José I, sobre o envio de mapas de Moçambique ...», 19.8.1767, cx. 27, doc. 85. O palácio dos Governadores vive paredes-meias com a igreja de S. Paulo, e fica defronte do antigo porto. O edifício de dois pisos, construído em quatro panos unidos pelas extremidades que formavam um quadrado, tinha no seu interior um pátio ajardinado que era utilizado nos momentos de lazer dos padres. O acesso à ala nordeste fazia-se por uma escadaria de dois lanços que ia dar a um amplo patamar sob o qual está uma pequena gruta artificial. Contíguo, no lado sudoeste, fica a igreja de S. Paulo, que conferiu o nome ao edifício. Do lado de nordeste, separada por um quintal que chegou a possuir árvores de fruto, existia uma Hospedaria que anteriormente servia de albergue para peregrinos10. Aparentemente, tanto a fortaleza como o palácio podem parecer mausoléus, corpos sem alma e sem capacidade de ter futuro. Nada de mais enganoso, na medida em que ambos os espaços são culturalmente fruídos, como aconteceu com o festival «Verão amarelo», ocorrido no início de Outubro passado, na fortaleza e na praia vizinha, cujo objectivo principal foi o relançamento das potencialidades culturais e turísticas da ilha, ou com a transformação do palácio em museu, a fim de preservar o seu rico património indoportuguês. A cidade branca e a cidade negra: a pedra e o macúti Os especialistas em arquitectura costumam assinalar que a notável unidade arquitectónica da Ilha deriva, em grande parte, de uma certa coerência e continuidade no uso de algumas técnicas de construção, na utilização de materiais tradicionais de edificação e na aplicação dos mesmos princípios e elementos decorativos. No entanto, essa unidade arquitectónica não significa, evidentemente, que a organização dos espaços e dos ambientes não obedeça a uma clara divisão social existente na Ilha. Isto é, a Ilha encontra-se historicamente dividida em duas zonas perfeitamente distintas, que interiormente evidenciam um grau elevado de homogeneidade. No extremo norte, fica a Fortaleza e o campo de S. Gabriel, um espaço verde que antigamente era usado como espaço de treino militar e área onde eram produzidas as «amarras, viradeiras e cordas de cairo», essenciais à vida marítima11. 10 Santana Sebastião da Cunha, Antiguidades Históricas da Ilha de Moçambique e do Litoral Fronteiro, desde os tempos da Ocupação, Lisboa, 1939, pp. 107-108. 11 ACC, «Memoria Chorografica da Provincia ou Capitania de Mossambique …», já cit., f. 3. Vista aérea da «cidade de pedra» (www.xirico.com) Na continuação do campo de S. Gabriel, entramos propriamente na chamada «cidade de pedra e cal», zona de grande concentração de edifícios administrativos e de habitação, boa parte deles de origem seiscentista e setecentista. Ao longo da costa ocidental, entre a praia que fica defronte da fortaleza e o palácio dos Governadores, encontramos uma linha de casas, construídas de forma compacta, que nos surge como uma sequência ininterrupta de fachadas, como se se tratasse de um único pano de parede que se prolonga de um extremo ao outro da rua. Muitas destas habitações teriam pertencido a comerciantes indianos, vulgarmente conhecidos por baneanes, e funcionavam como feitorias por estarem em contacto directo, de um lado, com os navios e com as manobras de carga e descarga, e, do lado oposto, com a rua e com a freguesia que procurava adquirir todo o género de fazendas. Em algumas dessas casas-feitorias, o piso térreo servia de armazém para recolha de marfim e tecidos indianos e a casa chegava mesmo a dispor «de um pequeno ancoradouro privativo por onde os escravos eram conduzidos directamente» para os navios12. Até ao Hospital e o seu parque, quarteirão que faz fronteira com a «cidade de macúti», podemos ver, entre muitos outros edifícios, o antigo porto, a alfândega, o bazar, o pelourinho, os celeiros e algumas das casas mais antigas, outrora pertencentes aos moradores mais ricos. 12 Alexandre Lobato, Evolução Administrativa, p. 159; Manuel Lobato, «Ilha de Moçambique. Escala africana da Carreira da Índia nos séculos XVI e XVII», Catálogo oficial. Pavilhão de Portugal. Exposição Mundial de Lisboa, 1998. Porta indo-portuguesa (www.travel-images.com/mozambique2.html) Muitas destas residências apresentavam portas e janelas de madeira africana, dura, algumas exuberantemente ornamentadas em talha ao estilo indiano. Nas traseiras existiam pequenas hortas e jardins com árvores de fruto e palmeiras que conferiram ao conjunto habitacional e monumental da Ilha a harmonia e a traça semelhantes às das cidades portuguesas do Estado da Índia e, mesmo, das cidades indianas do Golfo de Cambaia13. A cobertura destas casas, em forma de terraço, servia para recolher a água das chuvas, que depois eram encaminhadas para cisternas de uso doméstico14. A passagem da «cidade de pedra» para a «cidade de macúti» ocorre abruptamente, devido ao desnível do terreno e às características particulares das duas zonas. Cidade de macúti (www.xirico.com) Para Sul, ficava a povoação indígena pobre e desordenada, geralmente conhecida por cidade de macúti, pelo tipo de materiais e pelo modo como as casas eram construídas. 13 Alexandre Lobato, Evolução Administrativa, p.159; Manuel Lobato, «Ilha de Moçambique. Escala africana da Carreira da Índia nos séculos XVI e XVII», Catálogo Oficial. Pavilhão de Portugal. 1998. Exposição Mundial de Lisboa, 1998, pp. 115-129. 14 AHU, Moç., «Representação do ouvidor geral e corregedor da Câmara de Moçambique, José Costa Dias e Barros, para a raínha a solicitar um subsídio para melhoramentos públicos», 20.10.1787, Cx. 55, doc. 61 Casa de macúti (www.xirico.com) As casas de macúti eram construções de paredes feitas com uma trama de bambus rebocados com uma argamassa de cal e com tectos feitos de forma semelhante mas cobertos de folhas de coqueiro15. Estas casas de macúti para escravos, negros forros e mestiços de tez mais ou menos escura, começaram por se desenvolver de forma um pouco dispersa ao longo da contracosta. Porém, à medida que caminhamos em direcção à ponta meridional da Ilha a povoação indígena tornou-se um pouco mais compacta. Para lá dos poços da Marangonha, «de que todo Povo se serve não só para beber, mas para os mais uzos cotidianos», e dos Tanques dos Mainatos, cuja água salobra apenas servia para lavagens e para os indígenas se servirem por não terem outra que beber, tudo o mais «era logradouro privativo dos negros gentios e vedado a brancos que lá não fossem em grupos armados»16. Aos olhos europeus era um local assustador, especialmente quando caía a noite e havia lugar às festas indígenas à luz de fogueiras, com danças e cantares ao som estrepitante de batuques, com muita bebida alcoólica e muito fumo de seruma que, por vezes, davam origem a brigas e mortes17. O extremo da ilha, onde hoje fica a zona dos cemitérios e o crematório dos hindus baneanes, construídos a partir de meados do século XIX, era antigamente um local praticamente desabitado. Como facilmente se depreende, a população da Ilha de Moçambique era relativamente pequena e muito heterogénea. Fixou-se em áreas bem determinadas, de acordo com a sua riqueza, estatuto social e origem religiosa. Podemos, no entanto, afirmar que a Ilha e as aldeias que ficavam defronte, no continente, eram mestiças. Até meados do século XIX, os dados disponíveis sobre a população das povoações moçambicanas são muito incompletos. O censo elaborado pela Câmara, em 1766, sobre os ofícios e a forma viviam os habitantes da Ilha de Moçambique e das Terras Firmes, indica que cerca de 15 Ilha de Moçambique, Relatório-Report 1982-1985, Secretaria de Estado da Cultura (Moçambique), Arktektskolen i Aarhus (Dinamarca), s.l.n.d., pp. 150-154. 16 Alexandre Lobato, A Ilha (já cit.), p. 41. 17 AHU, Cod. 1325, «Registo do bando dado pelo governador de Moçambique, Pereira do Lago, sobre a proibição do uso de Bangue nos cafres desta conquista, com que bêbados de um fumo infernal, e pernicioso se alucinam para toda a qualidade de homicídios», 14.12.1767, fl. 54-54v; AHU, Cod. 1332, «Carta de Pereira do Lago, governador de Moçambique, para Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e do Ultramar», 15.8.1774, fl. 178-178v. 61% dos residentes eram goeses cristãos ou «filhos de Moçambique», os filhos de reinóis e de goeses com nativas moçambicanas. A maioria das famílias brancas originárias do Reino concentrava-se no núcleo urbano de pedra e cal da Ilha, mas muitas destas famílias também possuíam quintas rurais no Mossuril e na Cabaceira Grande, onde permaneciam com seus escravos e dependentes, durante longas temporadas de repouso18. Segundo Gerhard Liesegang, uma estimativa baseada em censos parciais de 1806 e 1831, calcula que a população da ilha de Moçambique não excedesse as 4000 almas, a maior parte escrava19. Os baneanes hindus oriundos do Guzerate viviam quase todos na Ilha, geralmente em casas alugadas aos jesuítas ou a outra ordem religiosa, de preferência junto à alfândega ou junto à costa, em contacto directo com a carga e descarga de navios. Os muçulmanos asiáticos viviam maioritariamente na contracosta, desde o terreiro de S. Gabriel onde produziam as cordas de cairo, essenciais à vida marítima. Os negros autóctones, escravos livres, mulatos e alguns muçulmanos autóctones viviam em palhotas a sul do convento-hospital de S. João de Deus e dos poços da Marangonha. A Ilha de Moçambique, lugar de encontro de diferentes culturas, povos e religiões, encontra precisamente nessa dimensão da diferença a sua marca identitária mais forte. Esta questão da pluralidade, a que acresce a necessidade de protecção, reabilitação e preservação do seu património, confere à Ilha de Moçambique um estatuto importante no panorama histórico e cultural da humanidade e convida os cientistas sociais a debruçarem-se sobre uma história que reconhece a todos os sujeitos em presença um papel activo e enriquecedor, especialmente se esses sujeitos têm origens tão distintas quanto as que se encontram no Índico africano. 18 AHU, Moç., «Mapa dos moradores e habitantes da Ilha de Moçambique e terras firmes, elaborado e enviado pelo Juiz e vereadores da Câmara ao Governador e Capitão-General de Moçambique, Baltazar Pereira do Lago», 20.8.1766, cx. 26, doc. 82. 19 Gerhard Liesegang, «Análise das estruturas urbanas em África e especialmente na África Oriental entre os séculos VII e XVIII e o impacte da Expansão portuguesa», in Actas do Colóquio Internacional Universo Urbanístico Português 1415-1822, Lisboa, CNCDP, p. 148. Festival «Verão amarelo» (www.ma-schamba.blogspot.com)