O Colecionador, a Arte, a Técnica e a História: Walter Benjamin sobre Eduard Fuchs João Felipe Lopes Rampim Mestrando em Filosofia pela UNIFESP [email protected] Palavras-chave Walter Benjamin. Eduard Fuchs. História. Colecionador. Arte. Cultura Resumo Eduard Fuchs, Colecionador e Historiador é um ensaio de Walter Benjamin no qual delineia-se, antes das teses Sobre o Conceito de História, sua concepção de materialismo histórico através de uma crítica à historiografia burguesa e ao marxismo social-democrata. Mas, diferente das teses, o ensaio sobre Fuchs tem como pivô a história da arte, pois Fuchs foi um historiador da arte, de orientação materialista, cuja investigação abordava obras de arte por ele colecionadas, obras que haviam sido desprezadas pela história da arte tradicional. Benjamin analisa a obra de Fuchs em confronto com a constelação intelectual da época deste, e extrai dela critérios para o materialismo histórico no terreno da arte e da cultura. O presente texto aborda a apreciação da obra de Fuchs por Benjamin, e, através disso, busca vislumbrar alguns motivos fundamentais da teoria materialista da história deste último. Ou seja, no ensaio sobre Fuchs temos em uma consideração centrada na arte uma via de acesso a tal teoria. Para expô-la aqui, somos levados à percepção da centralidade do colecionador no fomento de uma concepção de arte consonante, de uma perspectiva materialista, com uma sociedade altamente tecnicizada e as massas que a compõem. Por essa via, a concepção tradicional da arte perde seu valor, e abala-se sua pretensão de manutenção no presente de uma concepção consumada das obras do passado. Introdução Buscaremos aqui abordar o conceito materialista da História em Walter Benjamin a partir de seu ensaio Eduard Fuchs, historiador e colecionador.1 Trabalho encomendado por Max Horkheimer, foi publicado, em 1937, no número 6 da Revista do “Instituto de Pesquisa Social”, então sediado em Nova Iorque. A produção desse ensaio levou quase três anos para ser lavada a cabo, entre meados de 1934 e início de 1937, época em que Benjamin já se encontrava exilado em Paris. Nesse período, Benjamin, que se ocupava igualmente de seu trabalho das Passagens, encontrava-se em delicada situação financeira. Essa situação, que o levou a interromper intermitentemente o trabalho, pode ser conferida nas cartas trocadas entre Benjamin e, dentre outros, Horkheimer, Gretel Adorno, Gershom Scholem e Theodor Adorno, as quais são reproduzidas na edição brasileira na qual encontramos a até então única tradução em português do ensaio sobre Fuchs. Benjamin ficaria satisfeito com o resultado do trabalho, mas é de se notar sua relutância em levá-lo a cabo. – João Barrento chega mesmo a afirmar que “Benjamin 206 1 In. Walter Benjamin, O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. Citado doravante como “Ensaio Fuchs, página”. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 207 olhava com muitas reservas, para não dizer mesmo com grande má vontade, a encomenda da Revista de Investigação Social” .2 Seja como for, o ensaio ocupa um lugar importantíssimo dentro dos escritos tardios de Benjamin, e o fato de ele por muito tempo não ter tradução em português o tornou, como afirma Ernani Chaves, “quase totalmente desconhecido no Brasil”.3 Chama a atenção no ensaio sobre Fuchs sua relação próxima com as teses Sobre o Conceito de História; várias de suas passagens, sobretudo em sua primeira parte, seriam retomadas nas “Teses”.4 Neste último texto de Benjamin, escrito em resposta ao pacto de não agressão entre Stalin e Hitler, nos deparamos com a notável e complexa articulação entre materialismo histórico e teologia na delimitação de uma concepção de História, na qual o passado se configura em um terreno fértil para o presente. Não nos propomos aqui aprofundar nas Teses. Mas vale ressaltar que o conceito de História ali formulado tem como pano de fundo uma crítica a duas escolas historiográficas que deitavam suas influências à época de Benjamin, a saber, o Historicismo e o progresso: o primeiro configura a historiografia burguesa, e o segundo, a historiografia social-democrata. Ambos, na visão de Benjamin, encerram o passado em um significado pautado em um tempo vazio; nessa significação, o presente é neutralizado. Benjamin opõe a tais historiografias um conceito de História no qual o passado, trabalhado pelo historiador armado com a dialética materialista, é apresentado como frutífero ao presente; a História é aí um campo de tensões não resolvidas, e a tarefa do historiador será viabilizar a entrada daquele fragmento, oriundo desse campo de tensões, que se tornou atual para o presente no qual o historiador investiga o passado; nessa penetração, o passado se configura em tarefas que clamam por resolução. Em outras palavras, a “penetração do passado na textura do presente”5 configura a oportunidade de o presente ser alimentado pelas forças do passado, o que revela a dimensão política da experiência do historiador. Essa teoria da História apresentada nas “Teses”, toscamente exposta acima, é portanto esboçada no ensaio sobre Fuchs. Enquanto as “Teses” configuram um texto de difícil apreensão (não somente pela incursão em temas teológicos, mas também, e talvez devido a essa mesma incursão, pelo caráter imagético de sua apresentação), o ensaio sobre Fuchs nos permite outra via de acesso à teoria materialista benjaminiana da História, pois se configura em um comentário crítico da obra de Eduard Fuchs, na qual também o Historicismo e o progresso atuam como fortes influências. A despeito disso, Fuchs foi um pioneiro, mais precisamente, um “pioneiro da teoria marxista da arte”.6 Ou seja, Benjamin identifica em Fuchs os 2 Idem, p. 225. 3 Cf. Ernani Chaves, É possível uma história materialista da cultura? Walter Benjamin (re)lê Friedrich Engels. In. No Limiar do Moderno. Belém: Paka-Tatu, 2003, p. 35. 4 Em carta de 22 de fevereiro de 1940, escreve Benjamin a Horkheimer: “Acabo de redigir algumas teses sobre o conceito da História. Essas teses ligam-se, por um lado, aos pontos de vista esboçados no capítulo I do 'Fuchs' e servirão, por outro lado, de armadura teórica para o segundo ensaio sobre Baudelaire” (W. Benjamin, op. cit., p. 256). 5 Ensaio Fuchs, p. 139. 6 Idem, p. 126. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 208 motivos problemáticos das historiografias burguesa e social-democrata, mas identifica também motivos, ou melhor, intuições que se destacam dessa constelação problemática e apontam para um horizonte dialético-materialista de abordagem do passado. Eduard Fuchs inicia sua carreira como jornalista, por volta de 1890, atuando no jornal Münchener Post, o qual era ligado ao Partido Social-democrata da Alemanha (SPD: Sozialdemokratische Partei Deutschlands). Em seguida, começou a atuar na revista de sátira política publicada pela mesma editora do Münchener Post (o Süddeutscher Postillon), onde obteria grande sucesso e se tornaria redator. Dessa ocupação profissional com sátira política, Fuchs passa a se interessar pela caricatura e sua história. Esse interesse pela caricatura não se limitou à curiosidade, mas engendrou uma prática – Fuchs passou a colecionar as obras de caricatura; foi a partir dessa acumulação que ele posteriormente pôde veiculá-las em reproduções, através da investigação histórica. Surge assim, paralelamente à sua atividade, “os estudos ilustrados sobre o ano revolucionário de 1848 na caricatura e o caso político de Lola Montez.7 Eram as primeiras obras de um historiador ilustradas com material documental, diferentes dos livros de história ilustrados por desenhadores vivos”.8 Tal investigação iconográfica foi viabilizada pelo uso da técnica de reprodução de imagens, e o material documental ilustrado – a caricatura – configurava uma manifestação artística desprezada pelo então conceito convencional de arte, a qual se fundamenta, para Fuchs e Benjamin, na própria técnica de sua reprodução, indicando assim uma concepção da produção artística que não perde de vista o nível técnico que a condiciona – viés pelo qual pode-se colocar em questão uma visão idealista sobre a arte, pois a mostra como assentada, embora não imediatamente, nas forças produtivas. No que se segue, buscaremos então percorrer o ensaio sobre Fuchs, orientando-se pela articulação entre o colecionador de arte Fuchs e a técnica, e esperando que nosso empreendimento fomente a compreensão da concepção materialista de História em Benjamin. Num primeiro momento, caracterizarei Fuchs como colecionador de arte desprezada face à concepção classicista da arte, denotando sua recusa dos valores desta escola e sua busca pela salvação das obras do passado desprezadas por tais valores, bem como a implicação desse procedimento para o método materialista de Benjamin; em seguida, abordarei a constelação intelectual na qual Fuchs se viu inserido, a saber, o contexto social-democrata, no qual uma confiança no “progresso histórico” colocou em segundo plano um trabalho de orientação materialista no terreno da cultura. Esses dois momentos devem culminar no terceiro, no qual os motivos abordados serão articulados no intuito de delinear nossa proposta. 7 Dançarina e aventureira irlandesa, cortesã e amante de Luís I da Baviera. 8 Idem, p. 131. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 209 O colecionador Fuchs e a arte: sobre o valor histórico das obras de arte Fuchs foi um historiador da arte que, segundo Benjamin, não se orientou pelo “gosto da beleza”; seu interesse se dirigiu àquelas obras que, na tradição burguesa, se tornaram obras apócrifas. Benjamin entende que foi a paixão de colecionador que levou Fuchs a essas obras; foi ela que o impediu de compactuar com a celebração (Würdigung) idealista que remete à visão classicista da arte: “a escala de valores que antes determinara a relação com a obra de arte, no tempo de Winckelmann ou Goethe, perdeu toda a sua influência no caso de Fuchs”.9 Como ilustração, gostaria de abordar brevemente esse conceito clássico de arte do qual desvia o colecionador Fuchs. Para tanto, nos servirá uma obra de um dos fundadores da visão do Classicismo alemão sobre a arte: Johann Joachim Winckelmann.10 Segundo Gerd Bornheim, Winckelmann remonta à Grécia antiga para estabelecer o ideal estético de uma cultura alemã que buscava a superação do Protestantismo11 (por esse ideal passaria mais tarde Goethe). Nesse sentido, Winckelmann concebia ser possível tornar presente a beleza da arte grega, imitando-a. As obras de arte gregas, para Winckelmann, se configuravam como formas que remetiam à esfera do divino. Porém, ainda de acordo com Bornheim, desde Xenófanes o divino se alia “ao imóvel, ao simples, ao calmo, ao repouso”12, a significação da arte no divino implica a depuração do mundano. Para Winckelmann, na Grécia antiga, sobretudo Atenas, repousariam as fontes mais puras da arte – sobretudo na figura da escultura, a arte teria ali alcançado a perfeição de sua expressão. O alçar-se ao divino significa a realização, pela sensibilidade, de uma beleza que só pode ser captada pelo intelecto. Pois, segundo Winckelmann, o artista grego, quando grande, é também um sábio, cujas obras não realizam somente a mais bela natureza, mas igualmente “certas belezas ideais... produzidas por imagens que somente a inteligência desenha”13, realização possibilitada pela observação de uma “natureza perfeita”. Esta se configurava como morada do divino, da imanência do suprassensível – daí a oportunidade de observação e imitação da perfeição. A natureza moderna, por outro lado, é uma natureza abandonada pelos deuses, na qual a perfeição divina deixa de ser imanente, o que resulta em sua fragmentação. Para o artista moderno, conclui Winckelmann, imitar a natureza moderna não o levará à realização da perfeição que marca a arte grega, pois esta alcançara um estado de transcendência através do sensível devido à oportunidade cotidiana de contemplação da bela natureza e identificação, para além de sua multiplicidade, de proporções e harmonias captadas pelo intelecto; portanto, a imitação da arte grega configura o caminho para o artista moderno se tornar grandioso, pois as- 9 Ensaio Fuchs, p. 139. 10 J. J. Winckelmann, Reflexões sobre a arte antiga. Estudo introdutório de Gerd Bornheim. Porto Alegre: Movimento, 1975. 11 Cf. o estudo introdutório de Gern Bornheim, op. cit. p. 7. 12 Idem, p. 21. 13 Idem, p. 40. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 210 sim seria possível acessar aquela natureza espiritual que, em forma ideal, repousa em cada grande obra grega. Em seu caráter geral, as obras de arte da Antiguidade grega são para Winckelmann distintas por expressarem “uma nobre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude quanto na expressão”.14 Tal caráter remete a uma natureza profunda, uma alma que permanece serena mesmo diante dos maiores tormentos: “Assim como as profundezas do mar permanecem sempre calmas, por mais furiosa que esteja a superfície, da mesma forma a expressão nas figuras dos gregos mostra, mesmo nas maiores paixões, uma alma magnânima e ponderada.”15 Em suma, na visão de Winckelmann, tal “natureza espiritual” fornecia aos artistas gregos os traços sublimes que informavam o caráter divino de sua arte. As figuras gregas, a seu ver, compunham maior unidade harmônica, se comparadas às obras modernas. Nesse sentido, a visão de Winckelmann expressa a ideia de que a transcendência da natureza, a partir de sua contemplação, torna-se na modernidade problemática, sobretudo após a Reforma Protestante, devendo ser portanto conquistada. Pois a natureza jaz abandonada, em sua fragmentaridade, pela substância divina que lhe conferia um sentido imanente. Voltando a Fuchs, podemos afirmar, em consonância com a caracterização de Benjamin, que seu interesse não era regulado pelo Classicismo; as obras de arte de sua coleção não compunham obras “harmônicas”, de traços “nobres” e “sublimes”, nas quais as figuras aparecem “serenas” e expressando uma “alma magnânima e ponderada”; antes, podemos afirmar que tais obras se opõem radicalmente aos valores classicistas. Porém, central em Fuchs é, para Benjamin, seu interesse no valor histórico das obras esquecidas por aqueles que se formaram no Classicismo. Nesse escopo, o grotesco surge a Fuchs como manifestação positiva da arte. Mais ainda, segundo Fuchs, o grotesco seria a “a mais elevada potenciação da imaginação sensível […] Nesse sentido, as formas grotescas são também expressão da exuberante saúde de uma época”.16 Ou seja, perscrutando as zonas periféricas da arte, Fuchs traz à tona imagens de manifestações artísticas que haviam sido relegadas pela história da arte, digamos, oficial. Esta havia buscado compor o inventário das obras dignas de apreciação, deixando de lado para tanto as obras “grotescas”. Nesse escopo, o inventário pretendeu-se definitivo, e as obras desprezadas foram mantidas no esquecimento. O método historicista que norteia esse empreendimento procede numa identificação empática com a época investigada, consumando o significado das obras do outrora. A produção 14 Reflexões sobre a arte antiga, p. 53. 15 Idem, ibidem. Expressão privilegiada dessa “alma magnânima e ponderada” é, para Winckelmann, a fisionomia de Laocoonte. O conjunto escultural, no qual representa-se o sofrimento, mostra Laocoonte recebendo o castigo divino na figura de cobras que o atacam e a seus filhos. Em meio à mais terrível dor no corpo, Laocoonte mostra-se, aos olhos de Winckelmann, como que a suportando: sua fisionomia não é a de desespero, mas de angústia e opressão. Nessa perspectiva, a grandeza de alma alia-se à dor corporal, e, enquanto profundeza sob os traços do sofrimento no corpo, se equilibra com este. Mesmo na dor, a obra compõe, aos olhos de Winckelmann, um todo harmônico e revela uma alma serena que suporta o castigo infringido. 16 Ensaio Fuchs, p. 143, citação de uma obra de Fuchs intitulada Tang-Plastik. Chinesische Grabkeramik des 7. bis 10. Jahrhunderts. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 da obra de arte se afirma como obra de um “gênio” criador e a recepção idealista fornece seu significado definitivo. O conceito de “cultura” que configura o pano de fundo dessa concepção tem a pretensão de fundar-se para além da produção social, e, da perspectiva materialista benjaminiana, configura um contrassenso. Enquanto quinta-essência de configurações encaradas como independentes, se não do processo de produção que as viu nascer, pelo menos daqueles em que sobrevivem, o conceito de cultura apresenta-se-lhe [ao materialismo histórico] com traços fetichistas, reificada.17 Aqui, a crítica materialista desempenhará sua força destrutiva. Uma vez que o “historiador escolado em Marx”, como Benjamin afirma nas Teses, nunca perde de vista a luta de classes, o conceito de cultura que ali se delineia é por ele identificado em sua afinidade com a dominação burguesa. Seu interesse de saída é se afastar da transmissão dos bens culturais. Esse afastamento corresponde a um distanciamento crítico com relação à cultura burguesa tradicional. A abertura à dimensão histórica dos bens culturais é uma abertura em direção ao conhecimento do processo de produção que lhes é basilar, conjuntamente com a “barbárie” que o perpassa. A compreensão histórica materialista dos bens culturais, para Benjamin, não os desatrela do processo de produção, pois na produção de tais bens atua, em menor ou maior grau, o trabalho escravo e anônimo daqueles que, contemporaneamente à produção da obra, compõem o processo de produção. Mais ainda – e isso é o decisivo –: o processo de produção se estende para a transmissão de tais bens, e assim também aquele trabalho escravo e anônimo que o compõe. A face “bárbara” dos documentos da cultura não marca apenas sua produção, mas igualmente sua transmissão. Nas “Teses”, Benjamin afirmará que se coloca como tarefa do historiador materialista “escovar a história a contrapelo” (tese 7). A meu ver, isso conota sua recusa em participar da transmissão dos bens culturais e sua busca, ao conhecimento do presente, dos momentos em que foi abalada a continuidade histórica, momentos que são encobertos pela apologia. Nas Passagens, lemos a esse respeito: A celebração ou apologia está empenhada em encobrir os momentos revolucionários do curso da história. Ela almeja intensamente a produção de uma continuidade, e dá importância apenas àqueles elementos da obra que já fazem parte da influência que ela exerceu. Escapam a ela os pontos nos quais a tradição se interrompe e, com isso, escapam-lhe as asperezas e as saliências que oferecem um apoio àquele que pretende ir além.18 Não escapa ao colecionador Fuchs o momento em que se interrompe a tradição burguesa no terreno da arte. Seu interesse se dirige àquelas obras que, não transmitidas como apologia da dominação burguesa, configuram um conteúdo para o qual outro método de abordagem se faz necessário. Foi a paixão de colecionador que permitiu o encontro de Fuchs com tais obras. Sua iniciativa a partir 211 17 Ensaio Fuchs, p. 137. 18 W. Benjamin, Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG & São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007, p. 516. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 daí foi investigar essa história, porém nem todas as dimensões dessa investigação são aceitas por Benjamin. É como se Fuchs tivesse sido capaz de acessar aquelas asperezas e saliências, não conseguindo, porém, força suficiente para através delas ir mais além do que efetivamente foi. “Progresso” e cultura na social-democracia: sobre o contexto de Fuchs Contemporaneamente ao início da carreira de Fuchs, o SPD crescia vigorosamente, o que, no reverso, significava a necessidade de um amplo trabalho de formação cultural (Bildungsarbeit) das massas que a ele fluíam. Tanto em suas palestras quanto nos suplementos de sua imprensa, colocou-se a questão sobre a matéria (Stoff) histórica daquela formação. Essa matéria fora tomada de empréstimo, segundo Benjamin, da história da cultura (Kulturgeschichte) talhada nos moldes historicistas, e, enquanto tal, configurava um saber com afinidades à dominação burguesa. Esse tipo de saber concebia a cultura como um excedente, uma dimensão do conhecimento que se fundamenta no âmbito do “espírito” e se apresenta como distante do processo de produção. Por essa via, se mantém encobertas as tensões do passado que se revelariam àquele que não perde de vista o processo de produção social que se encontra na base da cultura. Em outras palavras, os trabalhadores que aderiam ao SPD foram “educados” com um saber distante de sua realidade cotidiana. Buscou-se formar, em lugar de uma classe, um público espectador da história, alimentado por curiosidades oriundas de um passado apresentado como consumado. Para Benjamin, não seria possível, a despeito do que se poderia acreditar, livrar-se da dominação burguesa orientando-se pelo mesmo saber que a auxiliara no estabelecimento de sua dominação. O reverso dessa negligência no trato materialista histórico das áreas do pensamento tem em uma crença no “progresso” sua figura. Mais especificamente, uma crença em um rumo do devir histórico que se configuraria em um melhoramento constante e fortalecimento da classe trabalhadora e que culminaria, enfim, na revolução. Esse rumo seria ditado pelo desenvolvimento industrial alimentado pelo desenvolvimento técnico. Tal concepção seria alimentada pelo darwinismo, de modo que o devir histórico passa a ser concebido como evolução, uma marcha inevitável que traria a vitória dos trabalhadores. Podemos vislumbrar essa crença, por exemplo, nas seguintes palavras do dirigente Karl Kautsky: […] tão inevitável, tão irresistível como o desenvolvimento incessante do capitalismo, é também a reação final contra esse desenvolvimento, isto é, a revolução proletária. É irresistível porque é inevitável que o proletariado, fortalecido, ponha-se em guarda contra a exploração capitalista, organize-se em seus sindicatos, cooperativas e grupos políticos, que procure conquistar melhores condições de trabalho e de existência, e uma influência mais considerável.19 212 19 Karl Kautsky, O caminho do Poder, tradução Moniz Bandeira – Editora Hucitec; São Paulo, 1979, p. 2. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 213 Esse prognóstico nos remete ao que Benjamin diz no início do ensaio sobre Fuchs acerca dos pensadores marxistas, a saber, que eles “aproveitaram mais à vertente política do que à científica do marxismo”.20 Embora reconhecesse que não poderia falar positivamente sobre o formato que tomaria a revolução proletária, “é inevitável” para Kautsky que o caminho trilhado leve a ela – caminho configurado num fortalecimento orgânico que engendra a organização política dos trabalhadores e a consequente tomada de poder. Implicitamente, Kautsky afirma aí que o desenvolvimento industrial configura o fluxo natural para a revolução política, concepção que ele deriva de sua leitura do Manifesto Comunista de Marx e Engels. Porém sua leitura procede numa presentificação das análises desenvolvidas no Manifesto, de acordo com a qual estas são adaptadas às condições de sua época, a qual era marcada por um forte desenvolvimento técnico e industrial. Na tese 11 de Sobre o Conceito de História, Benjamin afirma que o “progresso” era concebido na social-democracia, do ponto de vista econômico, nas vestes do trabalho fabril, de modo que, para os dirigentes social-democratas, o procedimento deveria constituir-se na conformação dos trabalhadores às fábricas.21 Isso expressa a Benjamin uma ilusão, que se configura na intelecção de que o trabalho fabril talhado no molde do progresso técnico constituiria um feito político. Escapa a Kautsky, naquela caracterização, a dimensão fundamental que a formação cultural desempenha na construção desse caminho, o que nos remete de volta ao trabalho de formação do SPD, o qual, ao que me parece, aparecia aos dirigentes desse partido como um trabalho secundário. Nesse contexto se deu a carreira de Fuchs. Também Fuchs acreditava no “progresso” histórico, crença que ele estende à sua visão da história da arte quando afirma: “A arte de hoje trouxe-nos a concretização de centenas de sonhos que, nos mais diversos sentidos, vão muito além do que o Renascimento alcançou, e a arte do futuro terá necessariamente de ser superior”.22 Mas, por outro lado, Fuchs foi o que mais se aproximou, na visão de Benjamin, de uma concepção materialista histórica no terreno da cultura. Isso se revela a partir de sua atividade de colecionador. Foi ela que o fez desviar da história da arte tradicional e adentrar em zonas por ela desprezadas, de modo que nestas zonas os conceitos e chavões tradicionais perdem sua validade. Ou seja, ao invés de determinar o significado de tais obras a partir da escala de valores estéticos que configurava a história da arte convencional, Fuchs coloca a primazia nas obras desprezadas e, à luz destas, problematiza tal escala. Dessa forma, problematiza a concepção tradicional sobre a arte na medida em que se orienta por obras que não se enquadram nos critérios valorativos de tal concepção e que clamam por outro modelo interpretativo – as obras que lhe ocupam são as obras “vencidas” em um terreno onde ainda imperava o conceito de arte que lhes havia determinado a derrota.23 20 Ensaio Fuchs, p. 126. 21 W. Benjamin, Sobre o Conceito de História. In. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 246-247. 22 Ensaio Fuchs, p. 149. 23 Vale ressaltar aqui que Fuchs não se ocupava somente com a caricatura, mas igual- Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 Sobre os traços de um materialismo histórico Benjamin busca pensar um conceito de materialismo histórico pleno de forças, o qual ele opõe ao estéril “materialismo histórico” da social-democracia. Expressão deste “materialismo histórico”, Benjamin encontra nas palavras que Engels em carta dirige a Mehring na mesma época em que se iniciava a carreira jornalística de Fuchs (1893). Diz Engels: Aquilo que mais contribui para a cegueira da maior parte das pessoas é essa aparência de uma história autônoma das formas de organização política, dos sistemas do Direito, das concepções ideológicas nos seus respectivos domínios específicos. Quando acontece a “superação” da religião católica oficial por Lutero e Calvino, quando Hegel supera Fichte e Kant, ou Rousseau, indiretamente, com o seu Contrato Social, o constitucionalista Montesquieu, trata-se de um processo que permanece adentro dos limites da teologia, da filosofia, da teoria política, que representa uma etapa na história dessas áreas de pensamento e não sai delas. E desde que a ilusão burguesa da natureza eterna e em absoluto definitiva da produção capitalista chegou a essa conclusão, até a superação dos mercantilistas pelos fisiocratas e Adam Smith é vista como mera vitória do pensamento, não como o reflexo, no pensamento, da transformação de fatos econômicos, mas como a visão correta e finalmente alcançada de condições reais eterna e universalmente vigentes.24 Benjamin concorda com Engels na medida em que não entende a história das áreas do pensamento como autônomas e percorrendo processos lineares de desenvolvimento; antes, elas são, para ambos, inalienáveis do terreno material da sociedade.25 Mas Benjamin identifica em Engels um potencial crítico mais profundo, o qual ele ilustra através da arte: Mas a força explosiva dessa ideia, que Engels não abandona durante meio século, alcança mais fundo. Questiona o caráter fechado das várias áreas do saber e da sua produção – por exemplo, no que se refere à arte, o seu próprio e o das obras que se propõe englobar. Para aquele que delas se ocupa usando os instrumentos da dialética histórica, essas obras integram a sua pré- e a sua pós-história – uma pós-história dada a qual também a sua pré-história se torna reconhecível como um processo de transformação permanente. Elas ensinam-lhe como a sua função é capaz de sobreviver ao seu criador e de fazê-lo deixar para trás as suas intenções; e como a recepção pelos contemporâneos é parte integrante do efeito que a obra de arte exerce hoje sobre nós próprios, e como este último assenta no encontro não apenas com a obra, mas também com a história, que permitiu que ela chegasse aos nossos dias.26 214 mente com a arte erótica (que em grande medida é subsumida pela caricatura), quadros de costumes, litografias, esculturas chinesas antigas e cerâmica. Todas elas porém compartilham a característica de terem sido relegadas pela abordagem da historiografia burguesa tradicional, fortemente influenciada pelo Classicismo. 24 Apud. Ensaio Fuchs, p. 127. 25 Ernani Chaves nos chama a atenção para a peculiaridade dessa concordância; pois, segundo ele, a teoria engelsiana do reflexo configura o pano de fundo da crítica identificada por Benjamin, sendo tal teoria inarticulável com as reflexões desenvolvidas por Benjamin no ensaio. Assim, questiona: “de que modo Benjamin se vê uma espécie de herdeiro de Engels sem concordar, de maneira nenhuma, com a teoria do reflexo?”. A resposta a esta questão, e aqui seguimos sua leitura, leva Benjamin a abordar a arte. Cf. Ernani Chaves, op. cit., p. 41. 26 Ensaio Fuchs, p. 127-128. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 215 Benjamin nos indica assim que o essencial para a apresentação histórica materialista das obras de arte se configura a partir de sua pós-história, a qual revela o inacabamento de sua função. Mas é somente através do presente do historiador que se pode divisar a polarização da obra em pré- e pós-história. A partir do presente, o historiador materialista se coloca em condições de perscrutar, à contrapelo, o caminho que transmitiu a obra ao seu presente. Da perspectiva marxista de Benjamin, a pós-história das obras, enquanto “processo de transformação permanente”, atrela-se, assim como sua pré-história, às relações de produção social que lhes perpassam – essa visão contraria a pretensão de estabelecer um conceito autônomo de arte, pois assim pode-se revelar a função que as obras celebradas por tal conceito exercem em última instância: elas são instrumentos de afirmação da tradição dos dominadores no terreno da cultura. O inacabamento identificado remete à base econômica que subjaz a história das obras, base que lhe revela o trabalho anônimo e escravo de gerações; a pós-história revela a ele a irredutibilidade da obra ao significado que outrora lhe foi atribuído – o sentido e o efeito que ela pode portar não se restringe à sua existência única enquanto obra, mas remete ao devir histórico que a carrega, o qual se configura, da perspectiva materialista, a partir das relações de produção que sustentam a organização social. Benjamin identifica em Fuchs esse questionamento do processo histórico que subjaz a pré- e pós-história das obras. Em primeiro lugar, Fuchs tem a intuição da importância de uma pós-história das obras, mais especificamente de uma história da recepção, a qual aparece ali como um questionamento acerca do sucesso das obras de arte, uma questão que indica o processo pelo qual um artista torna-se bem ou mal sucedido, e sua obra lembrada ou esquecida.27 Em segundo lugar, Benjamin detecta em Fuchs um questionamento acerca da produção de tais obras “fracassadas”, mais especificamente a arte de massas, chamando a atenção para a influência das forças produtivas na execução das obras. Por fim, o próprio Fuchs, como autor, compõe sua obra a partir das técnicas de reprodução de imagens, não levando às massas somente o conhecimento de uma arte que lhes diz respeito, mas igualmente as imagens ali produzidas. O primeiro ponto acima referido remonta ao colecionador Fuchs e sua orientação por obras desprezadas pela historiografia tradicional, cujo “fracasso” transformado em questionamento pelo investigador prepara o terreno para o conhecimento histórico das obras de arte. Essas obras desprezadas resguardam em seu próprio caráter de “desprezadas” as características que não se articulam com a celebração classicista da arte. Além disso, Benjamin vê em Fuchs um grande colecionador na medida em que ele se orientava pelos objetos artísticos mais desprezados, como a caricatura; ao refletir sobre esse caráter de sua coleção, Fuchs, segundo Benjamin, chegou à concepção de que na produção de uma obra, para aquém da intenção do criador, atua igualmente o nível técnico que se articula com as necessidades da época na qual nasce a obra. Em terceiro lugar, 27 Idem, p. 129. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 216 Benjamin equipara Fuchs à figura do colecionador orgulhoso de uma obra de Honoré de Balzac, O Primo Pons, de modo que nele o orgulho é tão forte que se torna expansivo: Fuchs busca expor suas coleções, “apresentá-las ao mercado em reproduções”.28 Com isso, segundo Benjamin, Fuchs, além de combater o fetiche mercadológico do mestre criador, traz à tona imagens do passado que haviam sido mantidas no anonimato por detrás do véu idealista da história da arte convencional – imagens que informam sobre uma arte de massas e as forças produtivas que configuram o trabalho social. Benjamin parece nos indicar que as imagens de um passado desprezado são fundamentais na formação da consciência de classe dos trabalhadores; no mínimo, podemos afirmar que, para ele, tais imagens são mais condizentes com um trabalho de formação cultural (Bildungsarbeit) socialista do que os conteúdos da história da cultura historicista, a qual serviu à burguesia no estabelecimento de sua dominação. Em suma, o pioneirismo de Fuchs se expressa, aos olhos de Benjamin, na confluência em sua obra de três dimensões principais: interpretação de material iconográfico, consideração sobre arte de massa e estudo das técnicas de reprodução.29 Essas três dimensões delineiam o conceito de História do materialismo histórico benjaminiano que gostaríamos de apresentar aqui. Aí, se esboça um novo método de abordagem para um material até então desprezado. O método materialista se orienta pelas brechas na aparente continuidade histórica apresentada pelo historicismo e nelas investe no sentido de desmantelar tal continuidade. O saber que daí emana indica algo verdadeiramente novo no tempo histórico. Por fim, esse saber mostra sua força quando direcionado às massas. Nesse sentido, a técnica de reprodução pode servir como o viés de sua atualização para as massas, como um fomento político de uma formação cultural que se oriente num sentido socialista. 28 Idem, p. 151. 29 Ensaio Fuchs, p. 140. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 217 Bibliografia CHAVES, Ernani. No limiar do Moderno: estudos sobre Friedrich Nietzsche e Walter Benjamin. Belém: Paka-Tatu, 2003. WINCKELMANN, Johann Joachim. Reflexões sobre a arte antiga. Tradução de Hebert Caro e Leonardo Tochtrop. Porto Alegre: Movimento: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1975. 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