Isomeria em compostos orgânicos João Augusto de M. Gouveia-Matos Florence M. Cordeiro de Farias Este documento tem nível de compartilhamento de acordo com a licença 3.0 do Creative Commons. http://creativecommons.org.br http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/br/legalcode Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos Isomeria em compostos orgânicos Imagine que um químico recebe em seu laboratório um pó amarelo para analisar e dizer o que é. Vamos imaginar também que ele é um especialista em pós amarelos e que, consequentemente, tem um grande banco de dados no computador sobre eles, além de inúmeras amostras de vários tipos de pós amarelos em seu almoxarifado. Como será, então, que ele faz isso? Bem, a primeira pergunta seria se o pó amarelo que ele recebeu é igual a um dos que tem guardado no almoxarifado. E quando um químico sabe que um composto é igual a outro? Nada diferente do que faz qualquer um para poder dizer se uma coisa qualquer é igual à outra coisa qualquer. Por exemplo, numa partida oficial de futebol, inúmeras bolas ficam do lado de fora nas laterais e nos fundos do campo, e quando a bola que está em jogo sai, imediatamente alguém (o gandula) entrega para os jogadores uma dessas bolas que estavam fora do campo. Essa bola tem que ser igual a que saiu. Ou seja, tem que ter o mesmo tamanho, a mesma cor, o mesmo peso, o mesmo material, a mesma pressão, etc. Segue-se, então, que em partidas oficiais muito importantes – Copa do Mundo, por exemplo – antes do jogo, um fiscal compara cada bola com os dados de uma tabela oficial: pesa todas elas, mede o diâmetro, a pressão, etc., e todas têm que ter o mesmo peso, o mesmo diâmetro, a mesma pressão, etc. Se qualquer uma das medidas de uma bola der diferente do valor tabelado, essa bola está fora, pois é considerada diferente das outras. Ou seja, ele compara propriedades das bolas e a partir daí diz quais são as iguais. O químico não faz diferente: compara as propriedades de um composto com as de outro e diz se são iguais ou não. Se uma propriedade for diferente, então os compostos são diferentes. Simples, não? A ideia é. Mas operacionalmente, impossível. Vejamos por quê. As propriedades de um composto são de dois tipos: as propriedades físicas e as propriedades químicas. Aí começam os problemas. Eis alguns exemplos de propriedades físicas: ponto de fusão, ponto de ebulição, pressão de vapor, densidade, índice de refração, solubilidade, coeficiente de partição, espectro de infravermelho (absorção de luz infravermelha), espectro de ultravioleta (absorção de luz ultravioleta), fragmentação iônica, massa específica, massa molecular, constante de dissociação, calor específico, calor latente de fusão, calor latente de vaporização, etc. Algumas se desdobram, por exemplo: solubilidade em água, solubilidade em clorofórmio, solubilidade em etanol, em acetona, em n-hexano, etc.; pressão de vapor a 20 oC, a 25 oC, a 100 oC, a 0 oC, etc.; densidade a 20 oC, a 25 oC, a 100 o C, a 0 oC, etc., etc., etc. As propriedades químicas que se referem às reações que um dado composto (no caso, o pó amarelo) apresenta com outro, complicam as coisas ainda mais. A ordem de grandeza dos compostos orgânicos . 1 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos conhecidos é de 106. Ou seja, para verificar as propriedades químicas de um composto, o químico teria de fazer mais de um milhão de reações! Ou seja, essa abordagem exclusivamente empírica não vai funcionar, o que, a princípio, torna a Química irrealizável. Todavia, a Química não é um campo de conhecimento exclusivamente empírico e, para resolver esse problema, os químicos recorrem a um conceito fundamental, que é o de estrutura atômica-molecular (estrutura química) e a dois postulados: que as propriedades dependem das estruturas químicas e o de que dois compostos são iguais se apresentam a mesma estrutura química. Dessa forma, determinar se dois compostos são iguais passa a ser determinar a estrutura deles e compará-las. A estrutura química de um composto é caracterizada por: 1. A natureza dos átomos (quais); 2. A proporção entre os átomos; 3. O número de átomos ligados entre si; 4. Em que ordem, e como, esses átomos estão ligados entre si; 5. O arranjo geométrico desses átomos. Vejamos, então, as diferenciações que permitem a aplicação de tais conceitos: 1. A natureza dos átomos (Quais). Ex.: Uma barra de ferro é diferente de uma barra de ouro porque são constituídas de átomos diferentes. Açúcar de mesa é diferente de sal de cozinha porque o açúcar é constituído de átomos de C, H, e O, e o sal de íons Cl – e Na +. 2. A proporção entre os átomos Todavia, dois materiais diferentes podem ser constituídos pelos mesmos átomos e serem diferentes. Ex: a água e a água oxigenada são ambas constituídas por átomos de H e O, mas em proporções diferentes: a primeira, H2O, apresenta 2 átomos de H para 1 átomo de O (2:1), já na segunda, H2O2, a proporção é de 1:1. 3. O número de átomos ligados entre si Pode acontecer de dois ou mais materiais apresentarem átomos iguais, com a mesma proporção, mas que sejam diferentes. É o caso, por exemplo, do acetileno (ou etino), e o benzeno. O primeiro é um gás utilizado em maçaricos de solda e o segundo é um líquido de ponto de ebulição de 80o C. Ambos são formados por átomos de C e H na proporção de 1:1 (dizemos que apresentam a mesma fórmula mínima CH). Porém, o número de átomos não é o mesmo: o acetileno possui apenas 2 C, e o benzeno, 6 C. Uma das representações da estrutura atômica-molecular que mostra essa diferença é a fórmula molecular: do etino é C2H2, e a do benzeno é C6H6. . 2 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos 4. Em que ordem e como esses átomos estão ligados entre si. Mas existe também a possibilidade de que dois ou mais materiais diferentes tenham os mesmos átomos, nas mesmas proporções e com o mesmo número de átomos ou, em outras palavras, tenham a mesma fórmula molecular. Nesse caso, a diferenciação se dá pela forma com que esses átomos estão ligados entre si: como estão ligados e em que ordem se conectam entre si. Exemplos: a. Grafite e diamante É um dos melhores exemplos de como a diferença de estrutura química – aqui, no caso, como os átomos estão ligados entre si – resulta em propriedades muito diferentes. Ambos são constituídos exclusivamente de átomos de carbonos, porém, no grafite, esses átomos se ligam entre si através de ligações duplas e simples alternadas formando planos separados de hexágonos regulares, enquanto, no diamante, os carbonos se ligam através de ligações simples formando uma estrutura tridimensional (veja figuras). Figura 1– Estrutura do grafite - Notar planos paralelos. Figura 2 – Estrutura do diamante – Notar estrutura tridimensional. Os planos paralelos no grafite são unidos por ligações muito fracas, daí, quando você passa a ponta do lápis no papel, ele “quebra” essas ligações e um pouco do grafite fica na superfície do papel. Já a estrutura tridimensional do diamante é constituída de ligações fortes em todas as direções a que um carbono se liga a quatro outros vizinhos. Consequentemente, o diamante é o mais duro de todos os materiais encontrados na natureza, podendo riscar todos os outros e não sendo riscado por nenhum. . 3 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos b. Éter etílico e n-Butanol O éter etílico é um líquido volátil (ponto de ebulição = 36 oC), que até há alguns anos podia ser facilmente adquirido em farmácias e drogarias com o nome de “éter”. Todavia, a possibilidade de ser utilizado na obtenção e purificação de drogas levou à proibição de sua venda. Já o n-butanol tem um ponto de ebulição (PE) = 118 oC e é o solvente responsável pelo cheiro que apresentam as pontas de pincéis atômicos. Todos os dois apresentam a fórmula molecular C4H10O e suas estruturas atômicomoleculares (1) e (2) são representadas, respectivamente, a seguir: H O (1) (2) Éter etílico O n-butanol Aqui, o que vai fornecer propriedades diferentes entre eles é que, nas estruturas, a ordem em que os mesmos átomos estão ligados entre si, isto é, suas conectividades, não são iguais: no éter temos um carbono ligado a um oxigênio, que está, por sua vez, ligado a outro carbono (ligações em negrito); já no nbutanol, tem um carbono ligado ao oxigênio também, mas esse oxigênio está ligado a um hidrogênio e não a outro carbono (ligações em negrito). Nota 1. (Se você entende perfeitamente a representação ou fórmula estrutural acima, pule a leitura). O tipo de representação que foi utilizada até agora, e será sempre ao longo deste texto, denomina-se “representação em bastão”, ou “fórmula em bastão”. Nela, aparecem representadas como letras só os heteroátomos (átomos diferentes de carbono), os hidrogênios que estiverem ligados a heteroátomos e as ligações químicas. Ou seja, não “se desenha” os carbonos e os hidrogênios ligados a eles, o que não quer dizer que não estejam lá. A vantagem desse tipo de representação é que ela facilita enormemente a compreensão dos diversos aspectos estruturais envolvidos em nossas discussões (menor “poluição visual”), como por exemplo, entre outros, os ângulos de ligações. Na figura 2 a seguir estão as etapas envolvidas na transformação da representação tradicional para a representação em bastão. . 4 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos H H H H H C C O C C H H H H H Etapa 1 Etapa 3 O C C O C C Etapa 4 C C C Etapa 2 C C O C C O C Figura 3 – Transformação gráfica da representação tradicional para a representação em bastão. Atenção! Somente a primeira e a última representação são aceitas como válidas. Compostos desse tipo, isto é, que apresentam a mesma fórmula molecular, mas estruturas/propriedades diferentes, são denominados genericamente de isômeros. Todavia, como veremos adiante, nos itens 4 e 5, existem compostos que apesar da mesma conectividade, apresentam estruturas/propriedades diferentes. Ou seja, são isômeros também. Assim, para distinguir entre esses dois tipos, os que estamos mostrando nesse item são denominados de isômeros constitucionais (alguns preferem denominar de isômeros de conectividade). O número de estruturas isoméricas (isômeros constitucionais) possibilitada por uma fórmula molecular pode ser muito grande e depende do número de átomos de carbono, da presença de heteroátomos e do número de hidrogênios. Por exemplo, o éter etílico e o n-butanol não são os únicos isômeros constitucionais possíveis para a fórmula molecular C4H10O. Existem outros cinco, dos quais 4 estão representados nas estruturas (3) a (6). O OH O OH (3) Butan-2-ol (4) 2-metilbutanol (5) (6) 1-metóxipropano 2-metóxipropano Já a partir da fórmula molecular C6H14 são possíveis de construir 5 estruturas isoméricas constitucionais; de C9H20 são possíveis 35, e de C20H42, 366.319! Esses números podem aumentar ainda mais, dependendo do índice de deficiência de hidrogênio que a fórmula molecular pode permitir. Explicando melhor: índice de deficiência de hidrogênio (IDH) – antigamente inapropriadamente denominado de grau de insaturação – é um número que indica quantas ligações múltiplas (duplas e/ou . 5 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos triplas) e/ou anéis uma estrutura deve ter. Por exemplo, em todos os esses três hidrocarbonetos o IDH é 0 (zero) e, da mesma forma, para as estruturas (1) a (6) acima. Isso significa que todas as estruturas possíveis correspondentes às suas fórmulas moleculares só podem apresentar ligações simples e sem anéis. Já para uma fórmula molecular C6H12, esse valor é 1, seguindo-se então que todas as estruturas isoméricas possíveis devem apresentar ou uma ligação dupla ou um anel. Para o C6H10, o IDH é 2 e todas as estruturas correspondentes têm que ter, necessariamente, ou duas ligações duplas, ou uma tripla, ou dois anéis, ou uma dupla e um anel. Para você ter uma ideia de como esse aumento do grau de insaturação de 0 para 1 aumenta o número possível de isômeros constitucionais: como dito acima, a fórmula molecular C6H14 permite a construção de 5 estruturas isoméricas, enquanto que o C6H12 permite de 25. Um aumento significativo, não? “E como se “acha” esse tal grau de insaturação?”, você deve estar se perguntando. Bem, se você olhar para o número de hidrogênio das fórmulas moleculares C6H14, C6H12, e C6H10 vai reparar que cada par de hidrogênios que diminui nas fórmulas moleculares respectivas corresponde a 1 IDH: de 14 para 12 diminui 1 par, logo IDH = 1; de 14 para 10 diminui 2 pares, logo IDH = 2, e assim sucessivamente. O problema passa a ser descobrir, então, qual é esse número de hidrogênios a partir do qual eu vou saber esse número de pares. Dito em outras palavras: por que se começa a diminuir de 14 no caso acima? Isso porque 14 é o número máximo de hidrogênios que 6 carbonos podem comportar. Agora, repara que 14 é igual ao dobro do número de átomos de carbono mais 2 (14 = 2x6 + 2). Ou seja, as fórmulas moleculares dos compostos em questão nos diz! Basta descobrir o número máximo de hidrogênios que os carbonos da fórmula podem comportar. Isso é feito multiplicando-se o número de Cs (lê-se “carbonos”) por 2, e somando 2 também ao resultado. Por exemplo, na fórmula molecular C4H4O2, os 4 Cs aceitariam no máximo 10 Hs (4 x 2 + 2), mas só tem 4, logo diminuiu de 3 pares, logo GI = 3. Mas, atenção! Essa forma direta de cálculo de GI só se aplica a compostos com C, H, e O. No caso de presença de halogênios e nitrogênio, a coisa muda. Se tiver halogênios, “faz-se de conta”, para as contas, que eles são hidrogênios também (por exemplo, para C4H9Cl, o IDH=0). Já caso exista nitrogênio, aplica-se a fórmula matemática IDH = n° de Cs – n°de Hs/2 + n° de Ns/2 + 1 (lê-se: “número de carbonos menos número de hidrogênios dividido por 2, etc.”.). Finalizando essa discussão sobre isomeria constitucional, convém ressaltar que não existe uma correlação direta entre o IDH de um composto e o número de estruturas isoméricas constitucionais possíveis. Dito em outras palavras: o aumento do IDH para uma série de compostos com o mesmo número de Cs não implica necessariamente que o número de isômeros aumente como no caso de C6H14 e C6H12 acima. Por exemplo, a fórmula molecular C6H6, que tem um IDH = 4, só possibilita 10 estruturas isoméricas. . 6 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos Nota 2. Há uma tradição na cultura da Química escolar de subdividir a classificação dos isômeros constitucionais em isômeros de posição, isômeros de cadeia, isômeros de função, etc. Isso não será feito neste texto, pois não ajuda em nada a explicar coisa alguma sobre o objetivo da Química, que é o de entender as transformações da matéria, em especial, as reações. Um álcool não reage com um ácido carboxílico porque seja isômero de um éter, mas porque tem determinadas características estruturais que o possibilitam a tal. Além disso, qualquer tipo de classificação é útil se os elementos classificatórios em que ela se baseia permitem a você agrupar coisas iguais, de modo que possa fazer inferências sobre todos, baseado no comportamento de alguns. Por exemplo, a classificação em funções orgânicas a partir de determinados atributos estruturais permite saber que uma cetona, por ter a subestrutura R(C=O)R’, a princípio vai reagir com 2,4-dinitrofenil-hidrazina, formando precipitados amarelos a laranjas. Já a classificação baseada na existência ou não de cadeias na estrutura, por exemplo, não vai permitir inferência alguma sobre as propriedades dos referidos isômeros constitucionais. 5. A. O arranjo geométrico dos átomos (Estereoisomeria: Diastereoisômeros) Mas, pode acontecer ainda que todos os demais itens anteriores sejam satisfeitos (mesmos átomos, mesmas proporções... e mesma conectividade) e, ainda assim, serem compostos com estruturas/propriedades diferentes. É o caso dos ácidos fumárico e maleico. Todos os dois são constituídos de 4 Cs, 4 Hs e 2 Os, apresentam o mesmo IDH e a mesma fórmula molecular C4H4O2. E com a mesma conectividade! Veja, pelas representações estruturais a seguir, que tudo que tem no C1 (lê-se “carbono 1”) de um, tem no C1 do outro e na mesma ordem. Idem para os C2, etc. O O 3 O 4 OH HO 1 2 (7) HO 1 O OH 4 3 2 (8) Ácido fumárico Ácido maleico E, em sendo as estruturas diferentes, inúmeras propriedades físicas e químicas também o serão: assim, o ácido fumárico tem um ponto de fusão de 295-300 oC, e o maleico, de 134-138 oC. O maleico é cerca de 100 vezes mais solúvel em água do que o fumárico (78 g contra 0,63 em 100 ml de água); o maleico pode ser desidratado termicamente a anidrido maleico (veja estrutura a seguir), enquanto, nas mesmas condições, nada acontece ao fumárico. O O O (9) Anidrido maleico . 7 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos Tais diferenças de propriedades indicam que as estruturas são diferentes, e a causa disso reside na geometria espacial que as ligações duplas apresentam em cada caso. Para entendermos isso melhor, vamos dar uma olhada em mais detalhes em uma ligação dupla. C=C. Ela é constituída de uma ligação π (pi) e uma ligação σ (sigma) (acompanhe pela Figura 4 a seguir). Além disso, cada átomo de carbono tem também mais duas ligações σ cada um (não assinaladas na figura). Todas as ligações σ dos dois carbonos estão num mesmo plano, e os eixos superior e inferior da ligação π são paralelos a esse plano. P C C C C Figura 4 – Ligação dupla C=C Figura 5 – Regiões do espaço geradas por P Se passarmos um plano imaginário P perpendicular ao plano das ligações σ e que contenha os dois átomos de carbono e os eixos da ligação π vamos obter duas regiões do espaço: uma região à frente desse plano, indicada na Figura 5 pelas ligações em negrito em forma de cunhas e outra região atrás do plano P e indicada pelas ligações pontilhadas em cunhas. Pois bem, as estruturas/propriedades de compostos com ligações duplas substituídas vão depender das posições relativas que os substituintes de cada carbono ocupem em relação a esse plano P. Por exemplo, no caso de dissubstituídos, como os ácidos fumárico e maleico, se as duas carboxilas (-COOH) ficarem do mesmo lado do plano P, teremos o ácido maleico (Figura 6) e, se ficarem em lados opostos, teremos o fumárico (Figura 7). P H C C HOOC P H H COOH C C HOOC COOH Figura 6 – Ácido maleico Figura 7 – Ácido fumárico . 8 . H Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos A partir dessa distribuição espacial dos grupos substituintes podemos entender alguns dos comportamentos diferentes dos dois compostos. Assim, por exemplo, o ácido maleico desidrata (perde uma molécula de água) para formar o anidrido, porque os dois grupos – COOH estão próximos, do mesmo lado do plano P (acompanhe pela estrutura (8) que é mais fácil de perceber), enquanto no fumárico as carboxilas estão mais distantes, em lados opostos do plano. Da mesma forma, o ponto de fusão: como as carboxilas no fumárico estão em lados opostos, eles podem ligar-se a outras moléculas iguais através de duas ligações de hidrogênio intermoleculares (ligações entre moléculas – Figura 8), o que resulta em ligações mais fortes entre as moléculas do cristal. Já no maleico, como ocorre a formação de uma ligação de hidrogênio intramolecular (ligação interna na mesma molécula – Figura 9), vai ocorrer apenas uma ligação entre moléculas diferentes, o que resulta numa estrutura cristalina mais fraca, logo, menor PF. H O O O H H O O O O O H H O O O H O Figura 8 – Ligações intermoleculares de hidrogênio (tracejado vermelho) no ácido fumárico O H O O O H O O H H H O H O O O O O Figura 9 – Ligações intermoleculares (tracejado vermelho) e intramoleculares (tracejado preto) de hidrogênio no ácido maleico Os compostos correspondentes às estruturas de mesma conectividade, mas que diferem devido ao arranjo espacial de seus átomos, como é o caso dos ácidos acima, são genericamente denominados de estereoisômeros. Eles podem ser subdivididos em duas classes: os diastereoisômeros e os enantiômeros (item 5 b). Os ácidos acima constituem um tipo de diastereoisômeros tradicionalmente designados no Ensino Médio por isômeros cis-trans (ou isômeros geométricos). Eles ocorrem em dois tipos de estruturas: 1) Em ligações duplas, nas quais em cada carbono tenha dois grupos diferentes entre si, como, por exemplo, nesses ácidos, onde em cada carbono tem um H e uma carboxila (-COOH); e dois em compostos cíclicos. Em ambos os casos, o composto que corresponde à estrutura com os Hs do mesmo lado do plano são designados como isômero cis, e aquele com os Hs em lados contrários, trans. Assim, o ácido maleico seria o cis; e o fumárico, o trans. E essa nomenclatura é incorporada ao nome do composto. É claro que se . 9 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos usarmos as denominações “fumárico” e “maleico” não há necessidade, mas se tivéssemos utilizado a nomenclatura IUPAC para ácidos dicarboxílicos (2 grupos –COOH), com 4 carbonos e 1 ligação dupla C=C, isto é, “ácido butenodioico”, o composto que corresponde à estrutura (7) seria nomeado ácido “transbutenodioico”, e o da estrutura (8), “ácido cis-butenodioico”. Já um exemplo de isômeros geométricos que ocorrem entre estruturas cíclicas, é o caso da decalina, um hidrocarboneto alifático saturado (só contém ligações simples), IDH = 2, formada por 2 anéis fundidos (isto é, os dois anéis apresentam uma ligação em comum). Existem duas decalinas diferentes: ambas são líquidas à temperatura ambiente, mas uma delas, nomeada de trans-decalina, tem ponto de ebulição (PE) de 187 oC, ponto de fusão (PF) de -30 oC, e pressão de vapor a 25 oC (Pv25) de 1,22 mmHg; a outra, nomeada de cisdecalina, já tem um PE de 196 oC, um PF = - 43 oC, e Pv25 de 0,79 mmHg. A representação dos anéis de cicloexano que formam a estrutura da decalina através de hexágonos regulares não se presta muito a perceber o porquê das denominações cis e trans, e muito menos as causas estruturais que as tornam compostos diferentes. Mas, se utilizarmos as representações em cadeia podemos ver isso com mais facilidade. Observe as estruturas (10), (11), e (12): H H H (10) Decalina(s) H (11) (12) cis-decalina trans-decalina Mas, diastereoisômeros não se limitam a casos de isomerias cis-trans em alquenos dissubstituídos por grupos diferentes no mesmo carbono da ligação dupla ou em sistemas cíclicos. Há outros, como, por exemplo, o da efedrina e da pseudoefedrina, que são utilizados em medicamentos para asmas (o primeiro é mais forte). Para poder visualizar melhor as diferenças estruturais provadas pelas disposições espaciais dos átomos das efedrinas, temos, antes, de conhecer um princípio absoluto de igualdade/diferença que pode facilitar muito as coisas. Na verdade é um princípio que vale para todo e qualquer objeto, não apenas entidades químicas como átomos, moléculas, cristais, etc. Diz o seguinte: “Todos e quaisquer dois objetos são iguais se, e somente se, forem superponíveis” (Princípio da Superponibilidade). Isso é uma maneira sofisticada de dizer que se ponho um objeto em cima do outro e todos os pontos coincidem, então eles são iguais. Você pode verificar isso com um par de meias lisas e de pontas retas. Pode também verificar que a mão direita é diferente da esquerda: se você colocar a palma da mão direita sobre a esquerda (ou vice versa), os “dedões” . 10 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos ficam do lado de fora, e se você colocar palma de uma contra a palma da outra, as unhas não coincidem. Essa diferença das mãos se reflete, por exemplo, quando se quer introduzir um parafuso comum numa madeira: se usar a mão direita, o movimento vai ser de dentro para fora do corpo, já se usar a esquerda, o movimento vai ser de fora para dentro. A seguir, temos as estruturas da efedrina (13) e da pseudoefedrina (14) H3C HN H H3C HN C C C C H3 C H HO H OH H (13) C H3 (14) Como já foi visto na discussão sobre ligações duplas C=C, as ligações em negrito em forma de cunha indicam que o grupamento está para fora do plano, e as ligações em cunha e tracejadas, para trás do plano. Se aplicarmos o Princípio da Superponibilidade através da sobreposição da efedrina (13) sobre a pseudoefedrina (14), vamos obter o esquema da Figura 10. MeHN H MeHN C C H HO H C C C H3C H3 OH H Figura 10 – Princípio da Superponibillidade. Aqui Me = –CH3. Conforme pode-se perceber, as estruturas são diferentes, pois as hidroxilas (-OH) das duas estruturas não coincidem. Consequentemente, os compostos correspondentes também serão diferentes e algumas propriedades também: por exemplo, o PF da efedrina situa-se na faixa de 37 – 39 oC, e o da pseudoefedrina na de 118 – 120 oC.m Além disso, a efedrina é relativamente solúvel em água, enquanto a pseudoefedrina só se dissolve com dificuldade. Porém, o Princípio da Superponibilidade deve ser aplicado com alguma atenção. Observe as estruturas (15), (16) e (17). . 11 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos H3C HN H H C H3 H (15) NH CH3 C C H3 C H HO H3 C C C C NH CH3 C OH H H HO (16) (17) Parecem que são compostos diferentes, pois se as estruturas forem colocadas diretamente umas sobre as outras, nem (16) e (17) são superponíveis em (15), nem muito menos uma na outra. Parece, mas não é. Todas as três estruturas representam a mesma molécula de efedrina (13): “Mas como? Então o princípio vale só de vez em quando!”, você deve estar pensando. O princípio vale sempre. É a mesma molécula, só que (16) é (15) girada de 180o, em torno de um eixo perpendicular à ligação C-C entre Cs substituídos, e (17) é (15) na qual se efetuou uma rotação (60o) de um dos Cs em torno dessa mesma ligação C-C, como mostrado na Figura 11. H3C HN H H C C H3 C C H3 H H HO C 180 o C NH CH3 OH (16) (15) H3 C H3C HN H C HO C 60 o C C H C H3 H HO H (17) (15) Figura 11 – Rotações da estrutura da efedrina . 12 . NH CH3 Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos Se você está com dificuldades para visualizar essas rotações, no primeiro caso, imagine o seguinte: coloque na sua frente, em cima de um pires, uma xícara com a alça do lado direito e no pires uma colherzinha, de modo que ela fique na sua frente. Depois vá até o outro lado da mesa e observe que a alça ficou do seu lado esquerdo e a colherzinha ficou atrás da xícara. Você teria o mesmo resultado se tivesse “rodado” o conjunto de 180o em torno de um eixo imaginário perpendicular ao fundo da xícara, não? Foi isso que foi feito com (15) para produzir (16), e o que estava à direita na representação passou a ficar à esquerda, e o que estava para frente, ficou atrás. Já no segundo, tem que ser considerado que as moléculas não são estáticas como pode ser pensado ao olharmos as suas representações no papel (ou na tela do computador). São dinâmicas e estão em constantes movimentos – os mais diversos, entre os quais os de rotações em torno das ligações simples. Assim, o C que tem o grupamento –CH3 pode girar em torno da ligação C-C (a que tem a flecha curva em cima dela) “parecido com um ventilador”. Se considerarmos apenas um “giro” de 60o, o grupamento – NHCH3 vai para o lugar do –H, esse –H vai para o lugar do CH3 e finalmente esse –CH3 para o lugar do – NHCH3. É claro que para perceber essas mudanças nas representações e concluir que a molécula é a mesma, apesar dessas representações serem diferentes, requer certa prática, muito treino e experiência. Mas, foi mostrado para chamar a atenção de que ver se duas moléculas são superponíveis ou não é a mesma coisa que comparar dois objetos que estão lado a lado e nos pareçam semelhantes à primeira vista: você tem que levantar um deles (tirar do plano), colocar em cima do outro, se não coincidir direito, girar, “virar de cabeça para baixo”, etc. até poder concluir alguma coisa. Ou seja, não basta simplesmente “arrastar” (manter no plano) um para cima do outro. Finalizando esse item, a ocorrência do tipo de diastereoisomeria apresentada pelas efedrinas é decorrente das distribuições espaciais dos átomos causadas pela presença na estrutura de pelo menos dois carbonos tetrassubstituídos por grupamentos diferentes. Mas atenção! A recíproca não é verdadeira! Grupamentos diferentes em carbonos tetrassubstituídos não acarretam sempre diastereoisômeros. Podem levar, também, à formação de outro tipo de estereoisômeros: os enantiômeros. 5. B. O arranjo geométrico desses átomos (Estereoisomeria: Enantiômeros) Finalmente, chegamos ao último item que nosso químico dos pós amarelos deve examinar na estrutura para poder dar seu diagnóstico. E o mais complicado desse item é que as propriedades que até agora vinham sendo citadas como diferenciadoras dos compostos isômeros correspondentes às estruturas, como PF, PE, solubilidade em água, pressão de vapor, densidade, etc. são iguais, apesar das estruturas serem diferentes (Princípio da Superponibilidade). Por exemplo, considere as estruturas (18) e (19) a seguir: . 13 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos H H * * (18) (19) (+)-Limoneno (-)-Limoneno Ambos os compostos correspondentes às estruturas apresentam propriedades físicas iguais, por exemplo, PF = -74 oC, PE = 175-176 oC e densidade = 0,84. Todavia, tem uma propriedade que é bastante diferente entre os dois: o cheiro. O (+)-Limoneno é o responsável pelo odor apresentado pela laranja e outras frutas cítricas. Já o (-)-Limoneno tem um odor parecido com o do pinho. Outra propriedade diferente, e utilizada para diferenciá-los em laboratório é o desvio da luz polarizada que apresenta valores contrários para cada um deles: um desvia para a direita e outro para a esquerda. Mas, para entendermos isso, antes temos que entender um pouco de simetria. Todo objeto pode ser simétrico ou não. Simetria é, inicialmente, um conceito intuitivo. Posteriormente, seu estudo foi muito aprofundado e hoje constitui um campo de estudo da Matemática, que utiliza uma teoria denominada de Teoria dos Grupos. A Química também recorre a esse instrumental para estudar o caso de simetrias em moléculas. Todavia, vamos passar ao largo e nos contentar com uma pequena elaboração do conceito intuitivo mesmo. Considere uma folha quadrada de papel. Intuitivamente, você a reconhece como simétrica e considera que ela é simétrica porque todos os lados são iguais. Porém, quadrados perfeitos, por uma questão de ilusão de ótica, se estão colocados horizontalmente, sempre nos parecem que o lado vertical é maior que o horizontal. Se você tem uma régua, mede, e pronto. Mas, se não tem? Aí você pode dobrar a folha exatamente ao meio, e ver se tudo coincide: “a parte de cima” com a “parte debaixo”, as “pontas” e as partes laterais. E se são superponíveis, então os lados são iguais. Agora, se você reabrir o papel vai ficar a marca da dobradura, e você pode traçar uma linha imaginária sobre ela. Essa linha imaginária constitui um dos elementos de simetria do quadrado. Foi a partir dele, isto é, “usando” essa linha, que você efetuou uma operação: a de dobrar o papel para ver se os lados eram iguais. O quadrado tem quatro desses elementos de simetria: para saber se os lados são iguais, você pode dobrar sua folha de papel de quatro jeitos diferentes. Existe também um quinto elemento de simetria na sua folha de papel, o centro do quadrado: se de qualquer ponto dos lados do quadrado você traçar uma . 14 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos linha até o outro, passando pelo centro, as duas distâncias formadas (centro –lados) são iguais. Os elementos de simetria pelos quais você pode dobrar os papéis, as linhas, são designados de “eixos de simetria”; o centro do quadrado, de “centro” ou “ponto”, “de inversão”; e a operação efetivada (dobrar o papel), de “operação de simetria”. O nome “eixo” é porque foi através dele que você girou, rodou, a metade do seu quadrado de 90o. Mas nem todo quadrado é dobrável (imagine se seu professor desenha um no quadro negro), e nem toda operação de simetria consiste em girar metades em 90o. Você pode girar em 180o mentalmente o quadrado em torno de um de seus eixos de simetria e vai ver que o novo quadrado formado após a operação coincide não só metade com metade, mas todo ele. Estruturas químicas também contém elementos de simetria. Considere, por exemplo, as estruturas correspondentes do acetileno (20), do benzeno (21), e do ciclobutano tetra-halogenado (22). Br C H C Cl H acetileno Cl (20) Br benzeno (22) (21) A ligação tripla do acetileno é formada por uma ligação σ e duas ligações π, as quais podem ser consideradas como contidas em dois planos perpendiculares entre si (veja Figura 12). Se você fizer uma rotação de 90o (operação de simetria) em torno de um eixo (elemento de simetria) situado ao longo da ligação σ C-C, vai obter o mesmo acetileno. P1 P1 90o H C C H H P2 P2 Figura 12 – Rotação de 90o da molécula de acetileno . 15 . C C H Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos Já no caso do benzeno (21), a estrutura correspondente apresenta sete eixos de simetria e o derivado halogenado do ciclobutano é exemplo de uma molécula com centro de inversão. Na Figura 13 temos a apresentação de quatro desses eixos e do centro de inversão em questão relacionado ao cloro (o bromo também apresenta). 180 o 180 o 60 o 180 o Br Cl Cl Br Figura 13 – Eixos de simetria do Benzeno e centro de inversão do derivado halogenado do ciclobutano Todavia, eixos e centros de inversão não são os únicos elementos de simetria que podem ocorrer. Existem também os planos de simetria. Vejamos um pouco mais sobre um deles, que resulta no que se denomina simetria espelhar. Consideremos duas canecas verdes cujas únicas diferenças residem em dois apliques vermelhos lado a lado, que tem em uma e não tem na outra. Em seguida, passemos em cada uma delas um plano imaginário perpendicular P às bocas das canecas e que passe em toda a extensão da alça, dividindo-a ao meio (Figura 14). Nesses casos, a primeira caneca, a toda verde, é dita simétrica. Isso porque de qualquer ponto da caneca, seja da parte externa ou da interna, se “atravessarmos” a caneca de lado a lado por uma reta perpendicular ao plano P haverá sempre dois pontos opostos na caneca equidistantes ao plano P. Ou seja, se você sai de um “ponto verde” na superfície da caneca de um lado do plano e “vai” na reta perpendicular ao plano P, vai encontrar na superfície do outro lado um outro “ponto verde” cuja distância ao plano P é igual à distância do ponto verde do qual saiu. A denominação simetria espelhar é porque as duas metades em que o plano P divide o objeto são imagens espelhares umas das outras (como se o plano fosse um espelho). . 16 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos Figura 14 – Caneca simétrica (à esquerda) e assimétrica (à direita). Já na segunda caneca isso não acontece. Se você sair de um “ponto vermelho” do aplique seguindo uma reta perpendicular ao plano P, o que você vai encontrar do outro lado é um “ponto verde”. Ou seja, a segunda caneca não é simétrica, sendo denominada de assimétrica. Suas mãos e seus pés são dois exemplos de objetos assimétricos. Doravante, vamos designar os objetos assimétricos de objetos quirais. O termo “quiral” vem do grego kiros, que significa “mãos”. Outros exemplos de objetos quirais (assimétricos): sapatos, bicicleta, automóvel, ônibus, teclado de computador, sandálias de dedo, óculos com graus diferentes em cada olho, etc. Em qualquer um deles não há possibilidade de construir um plano que permita a simetria espelhar, ou um eixo, ou um ponto de inversão. Já exemplos de objetos não quirais ou aquirais, isto é simétricos: óculos de sol (sem grau), isqueiros descartáveis, faca de mesa, cadeiras, camisa pólo lisa sem bolso, régua sem escala, etc. Estruturas moleculares também podem ser quirais ou aquirais. Por exemplo, na molécula de acetileno (Figura 11), os planos P1 e P2 são planos de simetria espelhar, e no benzeno você pode construir planos de simetria perpendiculares ao anel passando pelos eixos de rotação de 180o. Ou seja, são aquirais, assim . 17 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos como o ácido meso-tartárico (23). Repare que nessa última estrutura se você traçar uma reta perpendicular ao plano P partindo de um oxigênio, do outro lado do plano você vai encontrar um outro oxigênio igual, saindo de um hidrogênio, outro também igual; o que é para frente encontra seu par também para frente, etc. O O HO * HO H . * OH H OH (23) Ácido meso -tartárico Já as estruturas de todos os dois limonenos, do ácido (-)-tartárico (24), e da alanina (25) a seguir, são todos quirais. A alanina (representada a seguir na sua forma iônica) é um dos 20 α-aminoácidos mais comuns utilizados pelos metabolismos dos seres vivos para constituir suas proteínas. CH3 O HO O * . * H * COO H3+N OH H OH H OH (25) Alanina (24) Ácido (-) tartárico Repare que se fizermos com o ácido (-) tartárico a mesma operação de traçar uma reta perpendicular ao plano, etc., etc., uma hidroxila (-OH) vai encontrar um hidrogênio e vice- versa. Ou seja, a molécula é assimétrica. . 18 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos Todas as coisas apresentam imagens espelhares (se bem que reza a lenda que vampiros não aparecem no espelho). E esse fato permite distinguir entre objetos quirais e aquirais: em consequência da assimetria, objetos quirais não são superponíveis nas suas imagens especulares (mesma coisa que “imagens espelhares”). O exemplo clássico disso são nossas mãos: se você colocar uma ao lado da outra verá que uma é imagem especular da outra e não são superponíveis. Os pés idem. Também um par de sapatos. Já objetos aquirais são superponíveis ou, em outras palavras, pelo Princípio da Superponibilidade, são os mesmos. Com as estruturas químicas acontece a mesma coisa. Você pode facilmente perceber isso através da representação bola-vareta (alguns denominam de “pau e bola”) da alanina (25) e da sua imagem especular (25’). Nessa representação, as esferas vermelhas representam os oxigênios do grupamento carboxilato (COO-); a esfera azul, o átomo de nitrogênio do grupo -N+H3; as esferas cinzas, os átomos de carbono; e as brancas, os hidrogênios. (25) (25`) Se você arrastar direto (25’) sobre (25) não funciona: a esfera azul vai ficar em cima das esferas vermelhas. E se girar (25’) de 180º sobre um eixo perpendicular para que o que está à direita fique na esquerda – como foi feito com a efedrina (15) – lembre-se, também, que nisso, o que está atrás vai para a frente. Com isso, o hidrogênio do C tetrassubstituído por grupos diferentes vai para frente. Ou seja, tais estruturas não correspondem aos mesmos compostos. A mesma coisa acontece com o ácido (-)-tartárico (24), cuja imagem especular (24’) tem o nome de ácido (+)tartárico. . 19 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos espelho O HO O * * O O OH * HO * OH H OH H OH HO H HO H (24) (24’) Ácido (-)-tartárico Ácido (+)-tartárico Já no caso dos limonenos, o (-)-limoneno (19) é imagem especular do (+)-limoneno (18) (e vice-versa, é claro!), embora não pareça, à primeira vista. Porém, é só efetivar uma rotação de 180o em torno de um eixo apropriado, que isto pode ser percebido (lembre-se, na rotação de 180o, o que está para a frente vai para trás, o que está à direita vai para a esquerda e vice-versa). espelho H H H * * C H3 C H3 (18) 180o (18’) (+)-Limoneno * C H3 (19) (-)-Limoneno Cada um dos pares (24) e (24’), (25) e (25’), e (18) e (19), apresenta a mesma fórmula molecular, a mesma conectividade (ordem em que seus átomos estão ligados), sendo, portanto, cada par um conjunto de dois isômeros. Esse tipo de isomeria, isto é, formada por dois compostos diferentes em que a estrutura de um é a imagem especular do outro, é denominada de enantiomeria (ou isomeria ótica), e cada um deles constitui um enantiômero (ou um isômero ótico). . 20 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos Bem, se são compostos diferentes, então devem ter propriedades diferentes. Só que como a gente viu, no caso dos limonenos, os dois apresentam os mesmos PF, PE, densidade, etc. E isso vale não só para os limonenos, mas para todos eles. A única propriedade que distingue um dos componentes do par de enantiômeros do outro são as diferentes interações que cada um apresenta com uma coisa também quiral. Explicando melhor: considere seus sapatos um par quiral, e seu pé direito a coisa quiral. A interação de cada um dos pés de sapato é diferente com o seu pé direito: se você calça o sapato direito no pé direito, tudo bem, mas o resultado é diferente se você calçar o sapato esquerdo no mesmo pé. Seu pé tem a propriedade de distinguir entre os dois pés de sapato, qual o esquerdo, qual o direito (imagine acordar no meio de uma noite muito, muito escura, a lâmpada do quarto queimada, e tendo que vestir o sapato: seu pé é capaz de informar para você qual o pé de sapato certo, pois ele distingue entre os dois). Outro exemplo é o já citado caso do parafuso comum e os movimentos da mão esquerda e direita para apertá-lo. Essa diferença no tipo de movimento com as mãos se dá porque o parafuso comum é um objeto quiral. No caso dos enantiômeros, vamos ver duas dessas interações: com a luz polarizada e com o metabolismo de seres vivos (o que indica que nesse metabolismo tem alguma coisa quiral). O modelo ondulatório da luz estabelece que ela é formada a partir das oscilações de um campo elétrico e de um campo magnético, perpendiculares entre si, e que vão se propagando segundo uma linha reta. Esse modelo estabelece também que num feixe de luz monocromática (apenas um comprimento de onda) não polarizada, um corte perpendicular à propagação mostra que essas oscilações ocorrem em todas as direções. Se você não está conseguindo visualizar, o resultado desse corte vai parecer como se você estivesse olhando uma roda de bicicleta de frente para o eixo: o eixo da roda é a tal reta de propagação, e os raios da roda, as oscilações dos campos elétricos e magnéticos. Todavia, quando esse feixe de lua passa por um prisma de Nicol, ela sai do prisma vibrando num sentido só e torna-se o que é denominada de luz polarizada (veja Figuras 15 e 16), que é um objeto quiral. Agora, se você associar uma reta a cada oscilação, o conjunto dessas retas vai definir um plano: o plano da luz polarizada (veja Figura 14). Agora essa luz polarizada apresenta duas propriedades interessantes e úteis no estudo de enantiomeria. A primeira é que, em sendo ela uma coisa quiral, interage diferente com cada um dos enantiômeros e o resultado dessa interação é o desvio do plano da luz polarizada: um desvia esse plano para um lado e o outro enantiômero desvia para o outro, e ambos os desvios da mesma magnitude. A segunda propriedade é que, se essa luz polarizada encontrar um segundo prisma de Nicol, ela só vai “atravessar” o segundo prisma caso esteja com a mesma orientação do plano (Figura 14), caso contrário, não. Isso significa que se for colocado entre os dois prismas um tubo com um dos enantiômeros, esse vai desviar o plano da luz polarizado e o feixe luminoso não vai poder continuar seu percurso depois do segundo prisma (Figura 15). . 21 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos Figura 15 – Interação do plano de luz polarizada com um segundo prisma. Notar mesma orientação dos prismas e do feixe. Figura 16 – Influência enantiômero sobre plano de luz polarizada. Notar que o feixe luminoso não emerge após segundo prisma. . 22 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos Essas propriedades da luz polarizadas são utilizadas para a construção de um instrumento de laboratório denominado de polarímetro (Figura 17), que é utilizado nos estudo sobre os isômeros óticos (enantiômeros). O esquema apresentado a seguir é de modelos mais antigos, porém é mais claro para se entender o funcionamento. Figura 17 – Esquema básico de um polarímetro Se você entendeu as Figuras 15 e 16, pouco há a comentar, exceto o papel do “disco leitor”. A função dele é compensar o desvio do plano da luz polarizada provocada pelo segundo prisma das figuras anteriores, ao qual é acoplado. Girando o disco, provoca-se uma rotação nesse segundo prisma (prisma analisador), de modo que ele fique orientado adequadamente para deixar passar o feixe luminoso. Em resumo, o instrumento, quando sem amostra ou com compostos não quirais (simétricos), deixa a luz passar como sai do prisma polarizador, e a leitura do disco leitor é zero. Quando se coloca, porém, uma solução de um enantiômero no tubo, o plano da luz é desviado e o feixe não passa mais. No instrumento esquematizado acima, o detector desse feixe é o olho do pesquisador mesmo (daí o nome “isomeria ótica”), e vai ficar “tudo escuro”, já que não chega luz nenhuma. Daí, o pesquisador gira o disco analisador para a esquerda ou para a direita, até que a luz retorne. Esse giro corresponde a um ângulo representado pela letra grega “α”, denominado genericamente de “rotação ótica”. Se o pesquisador gira o disco para a direita, convencionouse que: a rotação ótica é positiva, o enantiômero que está sendo analisado é denominado dextrógero, e o símbolo (+) é antecedido ao nome e caso gire para a esquerda, que é negativo, que o enantiômero denomina-se levógero e o símbolo (-) vai diante do nome do composto. O valor da magnitude de α é igual para os dois enantiômeros, daí ter que distingui-los através dos símbolos (+) e (-). Além disso, depende de várias variáveis: comprimento de onda da luz incidente, natureza do solvente, concentração, comprimento do tubo onde vai a amostra, e temperatura. Quando α é especificado . 23 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos em termos de determinadas convenções sobre os valores assumidos pelas variáveis, por exemplo, concentração = 1g/ml, comprimento do tubo = 1 dm, comprimento de onda da luz monocromática = 586,6 – 589 nm (raia D do sódio), etc. denomina-se atividade ótica específica, e representada por [α]tλ, onde λ = comprimento de onda em nm, e t = temperatura em graus Celsius. A relação entre o valor da atividade ótica lida em um dado instrumento com um tubo de um dado comprimento, etc., e o [α]tλ é dada pela expressão matemática α = [α] 20D x c x l, onde 20 é a temperatura em graus Celsius, D é raia D do sódio, c é a concentração em g/L, e l, o comprimento do tubo em dm. Cada enantiômero tem um valor característico para a atividade ótica específica que lhe é próprio, normalmente tabelados. Assim, por exemplo, o ácido (+)-tartárico (24’) tem uma atividade ótica específica de + 12, e o ácido (-)-tartárico, de -12; já a efedrina (13) do item 4, apresenta um valor de – 6,3, enquanto a pseudoefetrina (14) de + 52 (como são diastereoisômeros e não enantiômeros, os valores não são de mesma magnitude). Polarimetria é utilizada regularmente em análises de açúcares, por exemplo (ou seja, açúcares são quirais). Há duas formas possíveis de utilização. A primeira é qualitativa, em que você mede o valor do α no seu aparelho, depois corrige usando a fórmula acima para achar a atividade ótica específica do seu açúcar, e compara esse valor com os tabelados de vários açúcares para saber qual é o seu. A segunda é quantitativa, em que você, sabendo qual o enantiômero que tem o valor da atividade ótica específica e o comprimento do tubo, mede e depois entra na fórmula para achar a concentração. Mas, pode acontecer que sabendo o enantiômero que tem na mão, saber a concentração, o comprimento do tubo, etc. e ao medir a atividade ótica, depois de corrigir para determinar a atividade específica, descobrir que o valor é menor que o tabelado. Nesse caso, você não tem o que pensa, mas sim uma mistura dos dois enantiômeros. Como cada um desvia o plano da luz polarizado para o lado oposto, um compensa o outro e o valor encontrado, dependendo das concentrações relativas de cada um, é menor do que deveria ser. Pode acontecer, inclusive, de ser igual a 0 (zero). Isso se dá quando você tem 50% de cada um dos enantiômeros e a mistura com essa constituição é denominada de mistura racêmica. Assim como para um dado objeto existem elementos de simetria, existem também elementos de assimetria, que são coisas responsáveis pela assimetria do objeto. Por exemplo, numa bicicleta, a corrente e as catracas são os elementos que tornam uma bicicleta um objeto quiral. Num automóvel, o motor, a direção e o painel; na caneca da Figura 14, os apliques vermelhos. Se você retirar tais elementos, eles passam a ser quirais (pode acontecer de não serem mais a mesma coisa, por exemplo, um automóvel sem motor, sem painel e sem direção é ainda um automóvel?). Em estruturas químicas contendo carbono substituído por 4 grupos diferentes será ele o responsável pela assimetria da molécula. Nesse caso, ele é designado como carbono assimétrico (abreviado Cassim.) e constitui o centro quiral da molécula. Em todas as representações estruturais de moléculas quirais até . 24 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos aqui elas estão indicados por um asterisco (*). Mas, atenção! Não é pelo fato de apresentar Cs.assim. que uma molécula é necessariamente quiral e apresente atividade ótica. É a assimetria que conta. Por exemplo, o ácido meso-tartárico (23) tem 2 Cassim., mas é simétrico, logo é aquiral, portanto não tem atividade ótica. Outra consequência de que os componentes de um par de enantiômeros podem ser distinguidos por uma coisa quiral consiste nas interações fisiológicas diferentes que organismos de seres vivos podem apresentar com cada um dos enantiômeros. Por exemplo, o cheiro diferente dos limonenos. O cheiro nada mais é do que uma sensação provocada pela interação de uma dada molécula com células nervosas – os neurônios olfativos – dispostas no interior de nossas cavidades nasais. Essa interação produz um pequeno sinal elétrico que é transportado ao cérebro, onde é decodificado e reconhecido. A interação entre a molécula e o neurônio não é direta, todavia. É mediada por proteínas que existem no muco nasal. A molécula, por exemplo, o (+)-limoneno, é capturado pela proteína e o agregado proteína-molécula é que vai promover a interação com o neurônio. Proteínas são macromoléculas de imensas e gigantescas cadeias formadas a partir de α−aminoácidos, como a alanina (25), por exemplo, por ligações entre o grupo carboxila -COOH de uma molécula, e o grupamento amino –NH2 de uma outra, formando o que se designa por ligação peptídica. A estrutura resultante, por sua vez, contém também um grupamento amino e um grupamento carboxila, e podem reagir com um terceiro aminoácido, e assim por diante. São 20 aminoácidos diferentes mais comumente encontrados, e quais são “usados”, e em que ordem, vai depender da especificidade da proteína (existe uma proteína específica para cada transformação química que ocorre no organismo de um ser vivo). A diferença entre eles reside, exclusivamente, em um dos grupos ligado ao Cassim. (vamos designar por Rs), sendo os demais 3 iguais (-H, -COOH, e –NH2), mas a configuração, isto é, a disposição espacial dos grupos em torno do Cassim. é a mesma em todos eles. Assim, se numa representação esferavareta como a da alanina (25) você colocar os grupos Rs para “para cima” e o hidrogênio para trás, em todos os 20 aminoácidos o grupamento amino –NH2 vai ficar à sua esquerda e o carboxila –COOH à direita. A Figura 18 mostra como seria a estrutura de resíduo hipotético de uma proteína, formada a partir de 4 aminoácidos diferentes, e onde assinalados os Cs.assim., e em negrito, as ligações peptídicas. O R2 H * 1 R N * O O N H R3 H * 3 R N * O O N H R1 H * 4 R N * O O N H * 1 R Figura 18 – Estrutura geral de um resíduo hipotético de proteína . 25 . R2 H N * O Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos Se forem usados, por exemplo, os aminoácidos alanina (24) – representada em sua forma neutra) como R1, treonina (26) como R2, cisteina (27) como R3, e valina (28) como R3, o resíduo hipotético ficaria com a estrutura representada na Figura 18. H C H3 HO * H H2N COOH SH C H3 H * COOH H2N * * H COOH H2N C H3 H3 C COOH H2N (24) (26) (27) (28) alanina treonina cisteina valina HO O C H3 O H * N C H3 * O SH H * N H N * O HS HO O H * N H H3 C N O C H3 C H3 * O C H3 H N N * H C H3 * O N H Figura 19 – Estrutura de um resíduo hipotético de proteína Acompanhe pelas Figuras 20 e 21. Para que moléculas possam ser capturadas por proteínas é necessária uma orientação espacial adequada para que aconteçam as interações pertinentes (ligações hidrogênio, e/ou interações dipolo-dipolo, e/ou interações de Van der Waals) entre grupamentos existentes nas proteínas e nas moléculas. Representando por esferas de mesma cor os grupamentos com interações adequadas, podemos perceber que só há uma interação significativa com um dos enantiômeros, o (+)-A (Figura 19). Repare também que um dos grupos dos enantiômeros, o representado pela esfera preta, não participa das interações, já que não existe o grupamento a ele adequado (outra esfera preta na proteína). Bem, com o (-)-A, a molécula excluída dessa interação: ou nada mais acontece, ou ela vai procurar outra proteína com a qual possa efetivar interações mais fortes (Figura 20), ou outro lugar da mesma proteína para se ligar. Nesses dois últimos casos, o grupamento representado pela esfera verde do enantiômero (-)-A não participa das interações, já que não tem o grupo apropriado a ela na proteína (outra esfera verde), seja em uma nova ou em um novo lugar da antiga. E acontece a mesma coisa com o outro enantiômero (+)-A: não consegue interagir com essa outra proteína, ou com o outro lugar que (-)-A foi procurar. Como no caso de odores, o mais provável é a ocorrência de outra proteína, não vamos tratar da situação em que (-)-A interage em um outro centro na mesma proteína. . 26 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos espelho (+)-A (-)-A (-)-A Proteína 2 espelho Proteína 2 Proteína 1 (+)-A Proteína 1 Figura 21 – Interações entre enantiômeros e uma mesma proteína 2. Figura 20 – Interações entre enantiômeros e uma mesma proteína 1. Esse modelo se propõe a ser válido para qualquer tipo de interação molécula-proteína, e a consequência de tais interações é a formação de 2 agregados proteínas-moléculas diferentes. Se consideramos (+)-A como o (+)-Limoneno, e o (-)-A como seu enantiômero, os agregados respectivos irão interagir diferentemente com os neurônios olfativos, gerando sinais elétricos diferentes, o que o cérebro interpreta como odores também diferentes, associando-os, ou à laranja, ou ao pinho. Coisas diferentes devem ter nomes diferentes, senão não podemos entender de que o outro está falando. Vale a mesma regra na Química. Sendo assim, cada um dos constituintes do par de enantiômeros tem que ter nomes diferentes, já que são coisas diferentes também. A princípio, poderia se supor que a incorporação dos símbolos (+) e (-) ao nome do composto já cumpriria esse papel, todavia, não é o caso. Mesmo que poucas e raríssimas, há notícias de compostos que invertem o sinal com determinados solventes. Além disso, em Química Orgânica, o nome oficial de um composto é construído a partir da estrutura, ou seja, o nome na verdade é o da estrutura, e deve refleti-la. A proposição para a nomeação de estruturas contendo Cs.assim. foi feita por 3 químicos, e é oficialmente conhecida por seus nomes, “Nomenclatura de Cram, Ingold e Prelog” (CIP), mas ficou popularizada como “Nomenclatura R e S”, e se aplica tanto a enantiômeros, quanto a diastereoisômeros. Ela se baseia inicialmente na atribuição de uma hierarquização, de acordo com os pesos atômicos, dos 4 átomos ligados ao Cassim , seguida da aplicação de determinadas regras que irão distinguir e refletir no nome os diferentes arranjos espaciais dos estereoisômeros. Vejamos como é nomeado inicialmente o Fluotano®, nome comercial registrado do 2-Bromo-2-Cloro-1,1,1-trifluoretano, composto utilizado como anestésico em cirurgias – estruturas (28) e (28’). . 27 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos espelho Br *H F F C Cl F Br Br o 180 Cl * H F C F F C H F F (28g) * Cl F (28) Br 180o H* Cl F C F F (28’) (28’g) Figura 22 – Representações para nomeação do Fluotano® As etapas são as seguintes (acompanhe pela Figura 21): 1. Estabelecemos uma ordem de hierarquia, de acordo com os pesos atômicos dos átomos ligados aos Cs* (Cassim.) das estruturas. Nesse caso: Br>Cl>C>H (lê-se: “hierarquia do Bromo maior que a do Cloro, que é maior que a do Carbono, que é maior que a do Hidrogênio). 2. Representa-se a molécula com o átomo de menor hierarquia para trás. Nesse caso, o H, e como em (28) e (28’) eles estão para a frente, temos que efetuar uma rotação de 180o para representá-los para trás. Com essa operação, obtemos respectivamente (28g) e (28’g) – “g” de “girado”. 3. Agora percorre-se os outros 3 átomos (nesse caso, Br, C, e Cl) das estruturas “giradas” (28g) e (28’g) no sentido do de maior hierarquia para o de menor. Ou seja, Br → Cl → C. Se esse percurso for feito no sentido horário, o Cassim. em questão é nomeado como “R” (de Relógio, ou de Right, direita em inglês), e caso o movimento seja no sentido anti-horário, de “S” (de Sinistra, esquerda, em latim). Tais designações são incorporadas entre parênteses ao nome do composto. Assim, (28) / (28g), já que são representações da mesma estrutura, são designadas (R)-Fluotano, e (28’)/ (28’g) de (S)-Fluotano. Repare que se um enantiômero é (S), o outro necessariamente é (R). Caso existam mais de um Cassim., entre parênteses, vão também as numerações de cada carbono correspondente a R, ou S. Vejamos, agora, como ficaria a designação do enantiômero correspondente à estrutura (25), a alanina. . 28 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos (25) Como o átomo de H já está para trás, podemos ir diretamente à atribuição das hierarquias. No de maior hierarquia, o nitrogênio, tudo bem. Porém, ao tentar estabelecer qual o segundo, a coisa complica: são dois carbonos, logo empata (representados na estrutura como “1” e “3”, e que vamos denominar aqui de C1 e C3). A solução é comparar as hierarquias dos vizinhos desses dois carbonos. Se continuar empatado, recorre-se ao vizinho do vizinho e assim por diante. Ou seja, aqui, nesse caso, comparam-se as hierarquias do que está ligado em C1 com o que está ligado em C3. Para C1 temos ligados a ele dois átomos de oxigênio, enquanto em C3 temos três hidrogênios. Como o peso atômico do oxigênio é maior, o grupo carboxilato –COO recebe uma hierarquia maior que o grupo –CH3. A hierarquia fica então: -NH3+>-COOH>CH3, e o percurso efetivado nessa ordem fornece que o Cassim. da alanina é designado como S (não há necessidade de incorporar esse S na nomenclatura, porque não existe na natureza a (R)-alanina. Finalmente, vejamos o caso do (-)-Limoneno (19): 7 H * 4 3 5 6 2 1 (19) (-)-Limoneno . 29 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos Aqui, também, o H já está para trás, logo pode-se ir direto para a hierarquização. A complicação é que não adianta apelar para o vizinho, ou para o vizinho do vizinho, ou para o vizinho do vizinho do vizinho. Todos empatam, pois são todos de mesmo peso atômico. Para contornar o problema, considera-se que no lugar da ligação dupla C=C se tem uma ligação simples C-C com dois Cs pendurados nela. Nesse caso, por exemplo, seria como se a estrutura do (-)-Limoneno tivesse hipoteticamente se transformado, por exemplo, em (30): H3 C H3 C 3 2 7 H * 4 5 1 6 H3 C H3 C (30) Agora, é repetir em (30) o que foi aplicado com a alanina e, nesse caso, a hierarquia será: C7>C3>C5 (C3 empata com C5, mas comparando seus vizinhos, C2 ganha de C6). Seguindo essa ordem, o percurso será anti-horário, e o composto correspondente à estrutura (19) será designado como (S)-Limoneno. Você pode tentar desenvolver suas destrezas em estereoisomeria nomeando agora os ácidos tartáricos meso (23), (-)(24), e (+)(24’), bem como a efedrina (13) e a pseudoefedrina (14). É claro que você vai acertar os novos nomes: ácido (2S,3R)- tartárico (23), ácido (2S,3S)-tartárico (24), ácido (2R,3R)-tartárico (24’), (1R,2S)- efedrina (13), e (1S,2S)-pseudoefedrina (14). Considerações finais Retornando, por derradeiro, ao nosso químico dos pós amarelos. A sua saga parece muito complicada: ele tem que saber quais os átomos, as proporções entre eles, a fórmula molecular (mas, para isso, antes teria que determinar a massa atômica), a ordem de conectividade e a distribuição espacial desses átomos. Parece, mas menos do que as teorias sugerem a um iniciante. Exige, é claro, um domínio de técnicas e procedimentos, mas do mesmo modo que em outros campos, exige-se domínios de outros tipos de conhecimentos de seus profissionais (um cirurgião, um dentista, um chef de cuisine, etc.). Conhecer a procedência do material, a história do seu isolamento, etc. fornece atalhos para tais determinações, . 30 . Sala de Leitura Isomeria e compostos orgânicos hipóteses para abordagem do problema, e técnicas e metodologias. É claro que se for encontrado nos destroços de um OVNI que caiu no Piauí, dificulta. Mas os químicos conseguem chegar lá. Finalizando, o estudo das configurações (relembrando: a distribuição espacial dos átomos nas moléculas) tem um papel importante e fundamental na química farmacêutica. Como discutimos no exemplo dos limonenos, as interações metabolismo-molécula são dependentes de tais configurações e se, nesse caso, o resultado é apenas que os cheiros são diferentes, em outros não. Foi o caso da “Tragédia da Talidomida”, que não vamos abordar aqui, mas vai ficar para você entrar com essa palavra-chave na Internet e completar seus conhecimentos sobre esse campo de conhecimento da Química Orgânica. . 31 .