Matita Perê
Por Kiko Continentino
O nome de um pássaro matreiro e meio misterioso que habita o território brasileiro serve de mote para um dos
melhores álbuns de música produzidos no século XX, seguramente. Matita Perê é um trabalho conceitual e muito
bem acabado, onde a presença dos elementos fundamentais da música – ritmo, melodia, harmonia (e letra) – são
processados e lapidados com maestria. Envolto numa orquestração moderna, de alto nível, Matita é um
experimento do qual resulta uma síntese brilhante. Sofisticado e ao mesmo tempo popular, no seu “lado A”; ainda
mais sofisticado e profundo, no “lado B”.
É um mergulho do compositor no interior do Brasil. Nos seus sertões, veredas e vastos recantos; paisagem
observada por um prisma absolutamente pessoal. Referências literárias e geográficas dão o tom de uma saga
musical e poética, que se transforma a cada audição do disco. Arranjos inteligentes e uma orquestração “de
primeiro mundo” conferem ao álbum caráter universal. Dedicada aos escritores mineiros Guimarães Rosa, Carlos
Drummond de Andrade e Mário Palmério, a música que intitula o álbum tem cheiro de aventura. Nesse trabalho, o
maestro carioca conhecido por imortalizar a beleza das suas praias, parte em busca de novos ares: a atmosfera
das montanhas do vizinho estado das Minas Gerais.
Nos anos 70, Antônio Carlos Jobim vivia um momento de plenitude na carreira. Passado o “boom mundial” da
bossa-nova, um dos seus principais articuladores sentia necessidade de abranger um espectro musical maior. Sua
verve criativa estava à flor da pele. Daquela mente inquieta jorrava um turbilhão de idéias inovadoras, originais e
revolucionárias. Mas a “revolução” era no campo da música, naturalmente. Para melhor contextualizar essa época
é importante mencionar que havia uma “forte” patrulha ideológica, que preconizava o uso da composição musical
como forma de protesto contra o golpe militar de 1964 e suas conseqüências no país. Mesmo franco opositor da
ditadura, Tom optou por não dispor sua obra a favor desse expediente, largamente utilizado por compositores
deste período, assim como os demais artistas, músicos, o público e os intelectuais de plantão. Limitava-se seguir o
instinto natural de um grande compositor, que expressa o que há de mais puro em sua alma. Jobim traduziu
musicalmente o amor, a sagacidade, a beleza das pessoas e do lugar onde viveu; além de toda a sua paixão pelo
meio-ambiente e a preocupação com a destruição do mesmo - o que fez de forma inspirada e inteligente. Elegante
na música e na vida pessoal, o maestro jamais soou panfletário. Nem se quisesse, conseguiria. Talvez exatamente
por isso não tenha sido amplamente compreendido e reconhecido, entre seus próprios conterrâneos, como um dos
maiores e mais fecundos compositores que o mundo tem notícia.
Matita Perê fala da natureza, da imensidão e diversidade da mata e fauna brasileira, bem como a relação desse
universo com o ser humano. Poeticamente, o disco enaltece belezas e recantos naturais do Brasil, tesouro
depredado e saqueado pelo homem de maneira tão estúpida. Essa percepção jobineana é singular. Na década de
60, Tom já falava de ecologia, muito antes de a palavra virar moda – e se tornar obrigatória em qualquer discussão
sobre o futuro da espécie. O músico denunciava a destruição da mata pela ganância humana. E também alertava
sobre o prejuízo que isso poderá nos causar, num futuro breve. Entretanto, poucos entenderam essa preocupação
no Brasil. Predominava na época o conflito ideológico que dividia o mundo politicamente. Além disso, a riqueza da
música brasileira e seus fabulosos autores nunca foram bens devidamente valorizados por aqui (assim como sua
mata). Vivemos num país estranho e surpreendente, sobre o qual Vinícius de Moraes afirmou ser “uma nação onde
pouco ou nada se faz pela música, que é o melhor que temos”. A frase consta num artigo que o poeta escreveu em
novembro de 1964, dedicado ao amigo Tom Jobim, que partia para o exterior com a missão de divulgar e defender
suas músicas das versões que caricaturavam o Brasil para o resto do mundo como terra de bananas, abacaxis e
macacos. Infelizmente, pouca coisa mudou depois do desabafo do Vinícius.
Jobim sempre foi um homem em busca de um conhecimento mais amplo, aberto a todas as direções. Um artista
que demonstrou imenso preparo musical e literário, raramente visto em outros compositores. Além do músico
criativo que era, mostrou ser também um pensador nato – e muito bem embasado. Portanto, pronto para ousar. E
foi exatamente o que fez em Matita Perê. Dir-se-ia que Antônio encontrou o caminho que libertava sua “pena” e lhe
oferecia o tom exato para traduzir em poesia todas aquelas idéias loucas, geniais e complexas que inundavam sua
mente. Idéias que fluíam agora espontaneamente, quebrando estruturas convencionais da canção, ao mesmo
tempo em que Tom invocava seus mestres na literatura. Seu talento para “letrar” atingia o mesmo nível alcançado
na música. Enfim, os fios se conectavam.
Gravado em Nova York no ano de 1973, o long play Matita Perê consolidou essa fase. O período fértil do
compositor nessa década se iniciou com “Tide” (disco cem por cento instrumental) e “Stone Flower” – ou “Quebrapedra” (em português), planta da qual se faz o famoso chá, excelente para os rins. Gravado em 1970, Stone
antecedeu Matita Perê. Com esse trabalho, Tom Jobim inaugura uma trilogia de álbuns conceituais, talvez o que
de mais apurado e significativo se produziu na vasta discografia do maestro – irretocável, por sinal. Matita é o
segundo da série. Três anos mais tarde, o ciclo se concluiu com o brilhante e surreal “Urubu” (1976). Os três
álbuns mostram também sintonia e equilíbrio perfeito no uso dos formatos instrumental e cantado – marca
registrada do compositor, instrumentista, arranjador e vocalista.
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No livro O Cancioneiro Jobim – obras escolhidas, o mais fiel registro de partituras e documentos do maestro, há
um depoimento do Tom falando de suas impressões sobre o Matita:
“É um negócio engraçado. Estou realmente entusiasmado com esse disco. É um material novo, enxuto, que revela
muitas coisas que estavam dentro de mim há muito tempo. Coisas que foram amadurecidas e curtidas lá dentro,
que eu queria dizer, mas não tinha os meios. É um problema conseguir botar na pauta algo que já está lá dentro da
alma da gente. Como dizer, por exemplo, Matita Perê? Estou fazendo letras, coisa que nunca fiz com essa força.
Fiz letras, sim, mas falando de Corcovado, etc. ‘Matita’ fala outra linguagem, não é música romântica, não tem
amor nem mulher. Também foi importante fazer a letra de ‘Águas de Março’. Aí falo de um troço que estou vendo,
que é mesmo, sem mentira. Claro que esta linguagem eu devo a muitas pessoas que admiro, a Guimarães Rosa, a
Drummond, a Mário Palmério. Mas só se pode roubar a quem se ama”.
O pássaro Matita Perê talvez seja mais do que um mote inteligente. Há algo de místico no seu nome. De alcunha
científica Tapera Naevia, o bicho tem inúmeros apelidos, entre eles Mati-taperê ou Matinta-Perera. No Amazonas
recebe o pseudônimo de “Fem-Fem” e no Nordeste, “Vem-Vem”. Sua lenda se confunde com a do Saci Pererê,
figura do pequeno duende negro com a carapuça vermelha, de uma perna só – tão conhecida no nosso imaginário.
É identificado por alguns estudiosos como “Saci-ave”. Medindo aproximadamente 30 centímetros, o pássaro está
presente em todo o território brasileiro – é encontrado também nas Américas Central e do Sul, do México à Bolívia
(e na Argentina). Mundialmente conhecido como striped cuckoo (cuco-listrado), o Matita é uma espécie comum em
campos, clareiras e cipoais nas margens dos rios. Vive solitário e apesar de famoso por seu canto (que lembra a
palavra "saci", o que lhe valeu o nome popular), é difícil vê-lo. Suas penas são de cor pardo-amarelada, com
manchas escuras na parte superior das asas. O topete é avermelhado e manchado em tons claros e escuros –
talvez querendo se assemelhar à carapuça do seu “amigo perneta”; no peito, abdome e sobre os olhos, a cor é
branca.
Segundo o site Histórias de Saci, “Tapera Naevia é também chamado Sem-Fim. Etimologicamente, h-ã (h-ang) cy
= o que é mãe das almas (segundo relatos, chupa a alma dos defuntos). Para alguns, esse mito é onomatopaico. A
superstição popular faz da ave uma espécie de demônio, que pratica malefícios pelas estradas, enganando os
viandantes com as notas de seu canto e fazendo-os perder o rumo”.
Seria o Matita responsável pela confusão épica que se transforma a fuga roseana do viajante (na música em que
empresta seu nome), perdido nas matas e sertões brasileiros?
Segundo o site Brasil – 500 pássaros, “com relação à reprodução, o Tapera é um parasita, isto é, põe seus ovos
em ninhos de outras espécies para que estas os choquem e criem os filhotes. No Brasil, seus ovos são
encontrados em ninhos de João-teneném, João-teneném-becuá e João-de-pau, entre outros. Põe de um a dois
ovos, de cor azul-clara, em cada ninho parasitado. A incubação é mais curta do que a do hospedeiro e o filhote
pode usar seu bico para eliminar a concorrência dos seus falsos-irmãos”.
Coisas da natureza, que tantas vezes pode nos surpreender – e chocar.
Seu Pio - O Matita canta pousado nos galhos mais baixos de uma árvore ou em arbustos, ocasião em que pode
ser observado melhor, se detectado a tempo. A qualquer sinal de perigo, voa para o interior da mata ou escondese nos arbustos. O padrão rajado das costas, cabeça e cauda, mistura linhas negras com faixas marrom-escuras,
dificultando sua localização. Talvez o mais interessante nessa história seja exatamente a peculiaridade dos seus
hábitos, que torna a ave bastante arredia para as pessoas. Seu pio é ouvido com freqüência (existem muitos, por
todo Brasil), mas é sempre difícil encontrá-lo, por que o som pode causar um efeito similar ao eco, fazendo pensar
que o bicho está em outro lugar – mas não está. É mais ou menos como o dito popular “ouviu o galo cantar, mas
não sabe onde”. Seria intencional a escolha de um passarinho tão arisco e misterioso para nomear um dos
melhores discos da história? Infelizmente, a pessoa certa para responder a pergunta não está mais entre nós.
Portanto, a interrogação fica para a posteridade.
Matita Perê foi o bicho escolhido para representar um novo universo musical proposto pelo compositor. Profundo
conhecedor e amante da mata brasileira e seus animais, Tom era muito ligado aos pássaros – livres, de
preferência. Seu próximo disco teria inclusive um urubu como carro-chefe. O músico tinha mania de pesquisar os
sons e características gerais de cada ave. A introdução de “Sabiá” (gravada no Stone Flower) é toda baseada no
canto do pássaro. Já o pio do Matita é introduzido logo no início do disco em outra faixa, “Águas de Março”. O pio
aparece novamente (dessa vez com uma variação cromática) no interlúdio da orquestra em “Matita Perê”,
executado com o inconfundível naipe piano+assovio – recurso sonoro utilizado com freqüência por Jobim em seus
arranjos.
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A era do Long Play durou mais ou menos 50 anos. Foi um tempo importante, longo período que abrigou
transformações definitivas na cena musical do planeta. Consolidado pela tecnologia fonográfica do acetato, o LP
esquematizava uma divisão que, involuntariamente, acabou se tornando interessante para a música registrada nos
discos: os seus dois lados, geralmente 1 e 2 – ou “A” e “B”. Músicos e produtores se aproveitaram deste “formato
de armazenamento stereofônico”, tão fundamental quanto inevitável, para conceituar melhor suas idéias e agrupálas de maneira mais organizada. Com Matita Perê, Tom Jobim “abusa” do recurso aplicando em cada lado do disco
uma idéia distinta. Portanto, duas mensagens para os ouvintes. Entretanto, ao mesmo tempo os lados se
completam formando um todo, deveras abrangente.
Arranjos e orquestrações
Apesar da associação imediata, são coisas absolutamente distintas. Segundo o compositor Edu Lobo (que transita
nas duas áreas), “o arranjador re-harmoniza, cria contrapontos, refaz introduções, dá forma à canção. Agora, quem
a veste é o orquestrador, que vai acrescentando os instrumentos da orquestra a esta canção. Você pode ter um
arranjador genial que não sabe escrever para orquestra”. Além disso, há também a regência, que cumpre um papel
imprescindível nessa história. Sem uma fiel execução, os arranjos correm o risco de perder o brilho e deixam de
cumprir seu objetivo na música.
Existe uma polêmica que envolve os créditos dos arranjos do Matita. Se tratando de um trabalho de importância
imensurável para a música da sua época, é natural o interesse em precisar todas as informações que o cercam.
Considerado um dos mais brilhantes tratados de arranjo e orquestração da história na música dita “não-erudita”,
Matita Perê promove o encontro de uma nova música popular, com arranjos de entonação sinfônica.
Na ficha técnica do LP consta: “arranjos e regência por Claus Ogerman”. Entretanto, logo abaixo aparece
(enigmaticamente) um agradecimento especial a Dori Caymmi, em caixa alta, pela “elaboração dos arranjos”.
Talvez essas informações contraditórias tenham deixado um sopro de mistério no ar, assim como a localização
exata do Matita – o pássaro. Quem concebeu os arranjos, afinal? E as orquestrações?
É consenso geral que o processo criativo jobineano nunca foi lá muito ortodoxo – talvez, mais um indício da sua
genialidade. Na época de suas parcerias com Vinícius de Moraes, o trabalho era de fato realizado em conjunto –
plenamente. O poeta dava palpite na melodia e Tom dava palpite nas letras. Obviamente, ambos tinham talento
nas duas áreas. Tom escreveu letras belíssimas sozinho. Assim como Vinícius compôs, também sozinho,
maravilhas como “Medo de Amar”. Com Newton Mendonça, a fusão se aprofundou ainda mais, pois o companheiro
também era pianista. Durante a “metástase criativa” os dois disputavam o instrumento, às vezes, até na base de
ligeiras cotoveladas. No final, fica difícil saber o que é de um e o que é de outro. Mas assim era o jobim modus
operante. Intensidade e fusão total. Por isso o compositor escolhia (ou era escolhido por) seus colaboradores a
dedo. Talvez aplicasse o mesmo procedimento ao processo de elaboração dos arranjos e orquestrações. E
sempre que fazia algo em parceria, preferia o bate-bola ao vivo. Sem essa de gravar uma fita e levar para trabalhar
“tranquilamente” em casa.
O próprio Dori Caymmi pode descrever melhor esses encontros:
“Fomos trabalhar na trilha do Matita, e sobre esse tipo de trabalho a gente não deve se enganar: coopera-se com
o Tom. Eu cooperei com ele várias vezes e até criei algumas coisas dentro de sua música, mas a essência do
trabalho é dele. Nem eu, nem o Claus (Ogerman), nem o Eumir (Deodato), nem ninguém mudou nada, porque
aquilo é a cabeça dele. É muito a genialidade dele. A gente cooperou, a gente ajudou. Por exemplo, no Matita Perê
ele faz uma frase e eu faço uma variação, terminando em notas mais agudas. É o oposto, porque ele diz que
enquanto a polícia está aqui o João está fugindo lá em cima. Então eu pegava a orquestra e invertia. Ele adorava,
mas adaptava, já incorporava ao trabalho dele. Não queria saber se era meu ou se não era – ficava sendo dele,
entendeu? E aí o Paulinho (Jobim, filho de Tom) dizia: ‘Mas essa frase foi o Dori que fez’. E ele ‘Não, não
interessa. É da minha música! ’ No meio tem um trecho em que a música descansa (esse é de minha autoria).
Quer dizer, nós fomos fazendo o arranjo juntos, aí as trompas ele fazia. Depois mudava de tom, tudo elaborado
junto”. A entrevista inteira é muito interessante e está disponível no site jobim.org.
O depoimento do Dori ajuda a explicar o motivo de informações nem sempre tão precisas. Quando se reunia para
trabalhar nos arranjos, muitas das idéias já estavam na cabeça do compositor. Mas se essas idéias ainda não
estivessem concluídas, Tom necessitava de auxílio para finalizá-las. Basicamente, esse auxílio sempre foi mais do
que luxuoso, como os supracitados casos de Claus, Dori, Eumir (e Nelson Riddle). Eram “novas mentes” que
colaboravam também com material novo, fresco. Idéias que Tom “interceptava” e incorporava com maestria à sua
obra. Os arranjos do disco começaram a ser elaborados com Dori Caymmi, mas Tom pretendia gravar nos Estados
Unidos – que oferecia uma estrutura infinitamente superior, além “daquele som”, como Vinícius costumava dizer.
Também havia um detalhe muito importante, que não pode ser esquecido: Jobim queria Claus Ogerman nesse
trabalho. O alemão foi o seu mais profícuo colaborador na área dos arranjos e orquestrações, desde o primeiro LP,
“The Composer of Desafinado Plays” – lançado em 1963 pelo selo Verve, com produção de Creed Taylor. Essa
associação não foi por acaso. Claus se identificou perfeitamente com a obra jobineana no primeiro momento e é
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reconhecido mundo afora como um profissional completo, por dominar os ambientes de orquestração, arranjo,
regência, composição, além de ser um exímio pianista. O músico participou de projetos antológicos com o pianista
Bill Evans, um dos gigantes do jazz moderno. É um gênio da orquestração, que também concebe arranjos
primorosos como em “Amoroso”, álbum fundamental de João Gilberto (1976) – João dedica um lado inteiro às
canções do Tom. Sobre Ogerman, Jobim comentou certa vez, em carta para o seu filho Paulo:
“Só você vendo, não dá pra acreditar! Claus toca jazz no piano paca, tem bossa paca, (ele) acha a orquestra
pesada. Claus é o rei do swing, é um Donato alemão!”
Lado A – O Jobim cantor
Mesmo com orquestrações fabulosas e inúmeras idéias instrumentadas, o primeiro lado do álbum Matita Perê é
inteiramente conduzido pela voz do autor. É notório que em sua juventude, Jobim se preparou para ser compositor
e instrumentista. Mas seu “lado cantor” também começou a despontar, já na década de 50. Poderia dizer que,
como cantor, Tom foi um intérprete excepcional. Para muitos, um dos melhores que cantaram suas músicas. Há
um momento em que o conhecimento musical estabelece uma diferença sensível na interpretação. Jobim sabia
como poucos utilizar esse plus, vencendo com propriedade suas limitações técnicas no terreno vocal, e,
afortunadamente, pondo a voz a serviço das suas canções. Com isso, o compositor se tornou também um dos
mais importantes cantores da música popular brasileira.
Mas essa é uma opinião no mínimo controversa. Muitos tentam desqualificar Tom Jobim cantando, renegando a
qualidade das suas performances e desviando a discussão para a subjetiva zona do gosto pessoal. Da parte do
ensaísta que vos escreve, tento contribuir com o debate trazendo um testemunho do cantor e compositor Milton
Nascimento – este, reconhecido como unanimidade como uma das maiores vozes do Brasil. Segundo famoso
depoimento da cantora Elis Regina, “Se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento”.
Anos atrás, conversava com Milton sobre as músicas do Tom na sala de espera de algum aeroporto da vida.
Lembrando suas preferências no repertório jobineano (“A Felicidade” e “Olha Maria”, por exemplo), o cantor me
disse que adoraria gravar Matita Perê. Fiquei curioso. “Por que você não grava, então?” – perguntei. Sua resposta
me surpreendeu: “Depois que o Tom cantou aquilo, fica difícil”...
Tal afirmação, vinda de uma voz deste quilate, me chamou a atenção para o “lado cantor” do Tom e sua
capacidade de interpretar tão bem uma música. Teoricamente, Milton Nascimento pode cantar o que desejar, mas
não foi essa sensação que tive naquele momento. Percebi a simplicidade, respeito e consciência de um grande
cantor ao demonstrar sua admiração por outro, mesmo de estilo diametralmente oposto. Mais tarde, uma
primorosa versão de Matita Perê por foi registrada por Milton – encima do arranjo original, mas em outra
tonalidade. O intérprete acabou aceitando o convite para participar do belo e importante projeto em DVD, Jobim
Sinfônico – produzido por Mário Adnet e Paulo Jobim (filho do compositor).
Águas de Março foi o tema escolhido para “abrir os trabalhos”, não por acaso, a faixa “mais pop” (leia-se
comercial) do LP. É também um marco na história da canção brasileira – e universal. Aparentemente, sua
construção melódica é simples, brincando com duas ou três notas no máximo. Mas algo espantoso se esconde por
trás da brincadeira. Os acordes se movimentam circularmente, criando um looping harmônico que se repete –
assim como um mantra. O baixo desce continuamente, mas a tradicional seqüência é reinventada com ricas
inversões jobineanas. O compositor emprega um jogo de palavras na letra e cria algo diferente de tudo o que se
convencionou chamar de canção – até então. Poesia concreta? Crônica minimalista? Certo é que o efeito
letra+música soa lúdico, simples, natural – e genial. O título da canção foi extraído de um poema de Olavo Bilac.
A estrofe “é um belo horizonte” anuncia a direção mineira que o disco vai tomar nas próximas faixas. O relato de
Jobim sobre o resultado da sua criação foi entusiástico:
“Águas de Março foi ‘aquela’ iluminação. Eu estava no sítio de minha mãe, que é uma pirambeira danada à beira
de um regato de água esperta e, de repente, me veio aquele troço, direto: ‘é pau, é pedra’. Saí correndo, peguei
um pedaço de papel pardo e um toco de lápis e fui escrevendo na maior velocidade, senão esquecia, vendo uma
realidade que transcende o raciocínio comparativo. É uma forma sem adjetivos, no presente, sem subjuntivos ou
gerúndios. Não tem nada de ‘se eu pudesse esquecer viveria a cantar’, como tanto já se escreveu na música
popular brasileira. E também não é o ‘mulher bela tarde triste noite escura’. O engraçado é que, sendo uma música
profundamente brasileira, todo mundo quis logo traduzir. Georges Moustakis quando esteve aqui veio logo me
procurar para gravar ‘Águas de Março’ em francês, por que entendeu que aquilo não era uma lista de objetos, uma
enumeração de materiais.
Tom “dobrou” a voz gravando duas vezes, em canais diferentes. Isso criou um efeito interessante. O recurso se
chama over dubbing. O andamento é médio-lento, sem pressa. Não é um ritmo exatamente bossa-nova, apesar de
ser essa a definição mais próxima. Talvez esteja mais para samba, em andamento cadenciado. Há uma versão da
letra em inglês, lançada no mercado norte-americano e europeu. Tom se encarregou dela pessoalmente.
Insatisfeito com o resultado das versões para suas canções (que nem sempre traduziam o que a letra queria dizer),
o compositor, já com certa fluência no idioma, não quis delegar a tarefa para ninguém. E encarou o desafio. Foi
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uma decisão acertada, o resultado não poderia ter sido melhor. A versão em inglês foi reconhecida como uma das
maravilhas da canção por renomados críticos estrangeiros. É de fato uma proeza conseguir traduzir algo tão
brasileiro para um idioma que não é o seu. Além disso, na versão que foi incluída no álbum comercializado no
exterior, Tom estava cantando melhor, mais solto.
O Jobim letrista – As Águas de Março foram um divisor de águas na carreira do artista, tamanho o respeito
conquistado por Tom – agora um letrista de mão-cheia. Chegou a ter com Drummond o seguinte diálogo: "Meu
poeta, estou querendo um dicionário de rimas, você me recomenda algum?" E o mestre respondeu prontamente:
"Ora essa, Tom, quem fez ‘Águas de Março’ lá precisa de dicionário de rimas?"
Caetano Veloso, compositor e poeta venerado por muitos ídolos da MPB, afirmou sobre o Jobim letrista: “Ele
próprio, quando fazia letras, fazia muito bem. E fez coisas lindas e brilhantes como ‘Águas de Março’. Aquela
sucessão de coisas que ele vai enumerando, vêm com uma beleza literária muito grande. Ele é na verdade, um
homem de muitas palavras. E fez uma letra em inglês, igualmente brilhante para esta canção“.
Sobre a simplicidade melódica do tema, Tom comentou certa vez: “Quando escrevi essa letra no papel de
embrulho, foi surgindo uma musiquinha junto com ela, que eu considerei provisória. Pretendia fazer depois algo
mais complicado, mas acabei me rendendo a evidencia de que a música era aquela mesma. Seria um erro
complicar a melodia. Meu sobrinho-neto, toda vez que me vê, pede pra eu cantar ‘é pau, é pedra’... é que ‘Águas
de Março’ não é a metáfora em forma de arco-íris. É o chão, são as coisas como as pessoas entendem.
Edu Lobo, talvez o melhor discípulo de Tom Jobim, afirmou certa vez que “cuidada e muito bem trabalhada, ‘Águas
de Março’ é uma das músicas mais simples, jamais feitas – e absolutamente genial. Não é o número de acordes
que define se a música é mais importante. ‘Águas de Março’ tem poucos acordes, mas tem modulações precisas,
tem aquela exatidão do Tom... estamos falando de um gênio”.
Um ano depois, Águas de Março seria regravada no célebre álbum “Elis & Tom” – na voz de Elis Regina, com
Jobim contraponteando. Essa gravação imortalizou definitivamente a música, tornado-a muito mais conhecida. E
proporcionou “um dos mais formidáveis duetos já registrados na música popular”, palavras do velho Dorival
Caymmi. Realmente o disco marcou época e alavancou a popularidade da obra de Tom Jobim (principalmente
dentro do Brasil). Gravado num ambiente descontraído e cheio de graça, o LP desperta paixões mundo afora, até
hoje. Entretanto, pessoalmente, ainda prefiro a versão do Matita, pela riqueza da orquestração e dos arranjos tão
bem elaborados.
Curiosamente, não é do Matita a primeira gravação de “Águas”. Em 1972, ela debutou num compacto simples, do
qual participou meu colega Paulo Guimarães, flautista. Um projeto chamado “Disco de Bolso”. Havia uma música
do Tom de um lado e o então estreante João Bosco, no outro. É curioso ouvir a “versão original” nos tempos
atuais, porque era na época uma “Águas de Março” ainda embrionária. Que permanece desconhecida por um bom
tempo. O andamento é sensivelmente mais rápido. A impressão que se tem é que o compositor ainda não havia
encontrado o time exato da interpretação. Ali se percebe um Jobim ofegante, meio que atropelando as palavras.
Alguns trechos da melodia (que depois se tornaram marcantes) ainda não existiam – a parte que fala do “projeto
da casa”, por exemplo. Também não havia o brilho do arranjo de Claus Ogerman, seus contracantos e blochchords. Mesmo assim, a gravação é um documento importante. Essa enorme diferença entre as duas versões só
reforça o valor do “trabalho de formiga” do compositor, que buscava incansavelmente extrair o melhor resultado
para toda e qualquer música que caía em suas mãos. O maestro nunca estava totalmente satisfeito, sempre havia
algo a ser feito.
Ana Luiza é uma canção romântica, apaixonada – e também surreal. Uma balada com cheiro de samba-canção.
Algo como um devaneio de amor, uma alucinação musicada em forma de belas e sensuais curvas. Provocante e
suave ao mesmo tempo. Mais uma da extensa lista das “musas jobineanas”. Anos mais tarde, Tom afirmaria que
foi uma canção “premonitória, por que anos depois me casei com uma Ana e tive uma filha Luiza”.
Arranjos e orquestrações espetaculares à parte, um dos mais saborosos exercícios nessa faixa é interpretar sua
letra, de forte conotação sexual – o que lhe confere ares de poema erótico. "Se a guarda cochila, eu posso
penetrar no castelo" parece explicitar o desejo de possuir a mulher dos sonhos, na primeira oportunidade que
surgir; "e galgar a muralha de onde se divisa" – uma vez em seus braços, um amante maravilhado contempla a
paisagem que se descortina sob seus olhos: "o vale, os prados, os matos, os montes, as flores, as fontes"... Tudo
isso seria uma referência à anatomia privilegiada da musa? “Por que me negas tanto assim a primavera”, clama o
pretendente que corteja Ana Luiza e jamais desistirá de suas intenções: seduzir a cobiçada dama.
Algo que sempre me intrigou foi o trecho que menciona a “última quimera”. Seria uma flor? Quimera pode ser um
peixe de águas profundas, mas, mitologicamente, trata-se de um monstro fabuloso com cabeça de leão, corpo de
cabra e cauda de dragão. Segundo interpretação de Jan Costa, um colega musical e sonhador, quimera é
“fantasia; utopia; produto da imaginação; absurdo. Sexualmente, a quimera é representada pela cabeça do leão, o
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rei das selvas. Exemplo de bravura, de predador, de conquistador de várias fêmeas e de proliferação; na época de
reprodução, ejacula em média setenta vezes em sua fêmea. O corpo de cabra, na quimera, é a presença do corpo
feminino, do toque feminino. A cauda de serpente nos lembra poder, veneno, que lembra a serpente do Paraíso,
que lembra sexo. É puro sexo. ’Se sabes que a última quimera existe no mundo de Ana Luiza’... Ana Luiza tornase privilegiada por conviver com devaneios, sonhos e desejos de a última quimera. Produto da sua imaginação.
Sonhadora como toda mulher que deseja amar. A quimera, representando o puro sexo em Ana Luíza, lhe torna
poderosa e ávida de prazer em seu mundo de fantasia”.
Transportando a viagem para o universo (não menos etéreo) dos sons, no interlúdio instrumental, o baterista João
Palma “esquenta” um pouco mais a levada. No ápice do movimento orquestral, após um tema belíssimo, Tom
canta somente “Luiza”, como que num desabafo poético, um suspiro de amor...
Isso me transmite duas impressões, bem distintas. A primeira, mais feliz, de que a almejada conquista se deu
naquele exato momento. A segunda, melancólica, porém mais poética, de que o amante ainda não foi contemplado
com os tesouros de Ana Luiza. E o conto erótico segue em reticências...
Matita Perê
No jardim das rosas
De sonho e medo
Pelos canteiros de espinhos e flores
Lá, quero ver você
Olerê, Olará, você me pegar
Madrugada fria de estranho sonho
Acordou João, cachorro latia
João abriu a porta
O sonho existia
Que João fugisse
Que João partisse
Que João sumisse do mundo
De nem Deus achar, Ierê
Manhã noiteira de força viagem
Leva em dianteira um dia de vantagem
Folha de palmeira apaga a passagem
O chão, na palma da mão, o chão, o chão
E manhã redonda de pedras altas
Cruzou fronteira de servidão
Olerê, quero ver
Olerê
E por maus caminhos de toda sorte
Buscando a vida, encontrando a morte
Pela meia rosa do quadrante Norte
João, João
Um tal de Chico chamado Antônio
Num cavalo baio que era um burro velho
Que na barra fria já cruzado o rio
Lá vinha Matias cujo o nome é Pedro
Aliás Horácio, vulgo Simão
Lá um chamado Tião
Chamado João
Recebendo aviso entortou caminho
De Nor-Nordeste pra Norte-Norte
Na meia vida de adiadas mortes
Um estranho chamado João
No clarão das águas
No deserto negro
A perder mais nada
Corajoso medo
Lá quero ver você
Por sete caminhos de setenta sortes
Setecentas vidas e sete mil mortes
Esse um, João, João
E deu dia claro
E deu noite escura
E deu meia-noite no coração
Olerê, quero ver
Olerê
Passa sete serras
Passa cana brava
No brejo das almas
Tudo terminava
No caminho velho onde a lama trava
Lá no todo-fim-é-bom
Se acabou João
No Jardim das rosas
De sonho e medo
No clarão das águas
No deserto negro
Lá, quero ver você
Lerê, lará
Você me pegar
A faixa-título é fruto da persistência de um compositor obstinado. É uma música que propõe um novo formato de
composição. Um universo desconhecido, uma faceta extraordinária da obra de um Jobim fascinado por literatura e
entusiasmado com o poder das palavras que, quando bem empregadas, podem se fundir aos sons, traduzindo
cores e emoções indescritíveis. Nas palavras do Tom, “Matita deu um trabalho incrível. Campear o gado nesses
grotões, nessas ravinas, é mais difícil que no campo, por que essas grotas são todas iguais, com os mesmos paus,
a mesma aguinha, a mesma laje de pedra. Então, você pensa que está num lugar e está n’outro. E aí é preciso ser
um pombo para não se perder. Por que o negócio está mais ou menos baseado na mania de perseguição, por que
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todo ser humano tem mania de perseguição. Em Matita, se revela a monotonia vária do sertão. Cada lugar é o
mesmo, em um diferente lugar. Como toda chuva é chuva, mas cada uma delas é diferente. Assim como nas
florestas você nunca encontra a mesma arrumação de árvores, e não se encontra um nhambu de pio igual ao
outro; como as Marias também não são as mesmas, embora todas sejam mulheres da espécie humana. Matita usa
todos os doze tons da música. Sendo extremamente tonal, usa uma técnica atonalista e aí aparecem as cores,
simples e compostas, por que sempre que o João anda, está numa grota diferente. Houve em Matita um trabalho
de pesquisa muito grande e eu me envolvi muito na composição.
Um trabalho que fez Jobim procurar um colaborador à altura de sua paixão por Guimarães Rosa, alguém que já
campeava o universo roseano há anos: o letrista Paulo César Pinheiro. Paulo foi seu parceiro na letra, ajudando a
consolidar as idéias que remexiam sua mente. Mais tarde, PCP declarou que “a divisão entre o Tom da bossanova e o posterior, talvez se deva à leitura dele. Sua música estava agora mais voltada para a literatura. O papo
era o sertão, as cores, os rios. Ele tinha conhecimento das folhas, das flores, dos pássaros. Em Matita, ele faz no
piano o canto do pássaro. Entrou nesse mundo mágico dos escritores e a música se voltou para isso. Tom era um
descobridor, um inventor. O sentido do seu trabalho havia mudado. Uma espécie de traço de união entre os dois
trabalhos foi Matita Perê, uma história, uma espécie de filme – um curta. É uma música meio sinfônica, com um
tempo muito grande para o rádio – quase dez minutos de gravação. Quando disse pra ele que ‘essa música não
vai ser tocada no rádio’, ele me respondeu: ‘Mas essa música não é para agora. É para adiante’.
O arranjo moderno expõe o tema principal nos doze tons – sugestão de Dori Caymmi, modulações que enriquecem
a música e oferecem inúmeras possibilidades de orquestração para um inspirado Claus. As frases marcantes do
contrabaixo, flautas, os agudíssimos das cordas e as repentinas mudanças de registro dos violinos, em lugares
onde não se espera (assinatura de Claus Ogerman), o tema instrumental com ecos de Ravel, o baião implícito na
pulsação rítmica... Tudo isso dá uma característica única ao trabalho. Jobim tinha razão quando dizia que a música
é para a posteridade.
O lado orquestral da obra do Tom ganha forma
Nos anos 60, Frank Sinatra gravou um disco com canções de Antônio Carlos Jobim. Para se ter uma idéia do que
isso representava na época, Sinatra era “a voz”, simplesmente. O cantor mais prestigiado e cultuado do planeta.
Respeitado pela crítica e venerado por um público fiel. E também odiado por seus opositores. Diz a lenda que
numa tarde qualquer de Ipanema, no (bar) Veloso, Tom foi convocado (via telefone) “pela voz”, em pessoa. E
partiu rumo a América do Norte. Lá, ficou à espera do astro para a gravação de um LP reunindo os dois, encontro
que se tornou um disco histórico – e muito bem sucedido nas vendas. Durante esse tempo na terra do Tio Sam,
Jobim desfrutava o prestígio de um compositor recém-descoberto, que dividiria brevemente um disco com Sinatra.
E assim recebeu convites para escrever trilha de cinema nos Estados Unidos – um mercado altamente promissor.
Um “outro” pretendente aos contratos era Henri Mancini. Mas isso não despertou muito o interesse do brasileiro,
que pretendia seguir por caminhos distintos. E, às vezes, cruzados.
Paradoxalmente, Tom aceitou escrever para filmes obscuros, com orçamento muito menor do que aqueles de
Hollywood. Eram filmes de diretores menos badalados. Fez alguns por amizade, outros por simpatizar com o
roteiro. Foi assim que concebeu algumas obras-primas, que mais tarde pôde reproduzir no lado B de Matita Perê.
Mas isso só foi possível trabalhando de forma independente, sem interferência de produtores e diretores com
excessivas preocupações comerciais. Talvez essa opção tenha se transformado num laboratório, permitindo
experimentar padrões de composição mais amplos, que reunia idéias desenvolvidas na música popular, ao mesmo
tempo em que se aproximava de uma música mais erudita, em caráter sinfônico.
Treze anos antes, Jobim e Vinícius receberam uma encomenda importante do presidente Juscelino Kubitscheck:
compor uma peça musical que seria a trilha sonora da inauguração de Brasília, a nova capital. Batizada “Sinfonia
da Alvorada”, essa peça já anunciava a nova direção que sua obra poderia tomar. Infelizmente, a sinfonia de
Brasília foi um retumbante fracasso comercial. Problemas financeiros de um governo tumultuado marcaram o fim
da era JK. Todo esse trabalho, em parceria com o poeta Vinícius de Moraes (que escreveu e declamou poemas
entre cada movimento), não foi remunerado. Aliás, só havia dinheiro para pagar a orquestra ou o compositor. E o
compositor se decidiu pela orquestra, por que da próxima vez a orquestra poderia não vir – escolha que traduzia
bem os propósitos de um compositor cada vez mais orquestral.
Anos depois, com o prestígio em alta na cena norte-americana, uma situação financeira mais segura e a confiança
na concretização de uma música sem fronteiras, Tom se sentiu apto para realizar seu maior vôo musical – nas
asas do Matita Perê. E assim, retomou suas intenções em produzir um trabalho sem maiores “pretensões
comerciais”. Mas com total preocupação quanto à sua qualidade e fidelidade. Esse era um desejo antigo do
maestro: compor livre da vigilância dos produtores fonográficos, sempre tão preocupados com a vendagem dos
seus discos.
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Lado B – Tempo do Mar é uma peça que, de alguma forma, inaugura essa nova fase. Talvez por abrir o Lado B
do disco – noventa por cento, instrumental. Foi escrita para trilha sonora do filme homônimo de Pedro de Moraes.
É uma suíte com densidade harmônica que se inicia em rica sucessão de arppegios, um estilo de harmonizar muito
bem trabalhado por Tom. Conhecimentos básicos e avançados nessa área foram extraídos dos mestres europeus,
incorporado ao que havia de mais moderno na época, sintetizado e lapidado pelo toque característico jobineano.
Através de pesquisas a exaustão, Tom inaugurou novos caminhos, um novo sentido, uma nova forma de harmonia
– clara limpa e sucinta. Muito bem explicada e consistente. Aqui em “Tempo do Mar” se percebe o motivo melódico
de “Retrato em Branco e Preto” (ou “Zíngaro”), porém de outra forma, em outro contexto – o que mostra ter valido a
pena, pois a célula melódica é riquíssima. Fagotes, oboés, contrabaixos, flautas e os demais instrumentos, dão
uma coloração única, talvez sugerindo um passeio por recantos secretos da mata atlântica, tão cultuada pelo
compositor. Há um certo toque de Ravel e Villa na concepção do tema. De Debussy, também. A voz grave dos
contrabaixos executando frases de sonoridade modal são uma constante no disco inteiro. Após o tema melancólico
dos contrabaixos, surge um aparente desfecho, que é na verdade uma preparação para o clima que sucederá. E o
piano toca uma linha de baixo contínua e arppegiada, recurso utilizado com freqüência por Tom. Essa linha de
acompanhamento se torna uma espécie de “motor”, que conduz o ritmo e estabelece a direção da música. Em
torno do “piano-motor” se descortina um tema belíssimo, em primeiro com as flautas, depois com as cordas. Mais
adiante, uma resposta dos oboés e madeiras. Curiosamente, a ordem das músicas no lado B me dá a impressão
de ter sido cuidadosamente pensada, disposta como uma sinfonia em vários movimentos. “Tempo do Mar” seria a
abertura, a introdução dessa obra que oferece gradativamente novos elementos, novas (e ricas) informações.
Novos temas, novas melodias e contracantos, tudo muito bem envolvido em arranjos e orquestrações primordiais.
Mas tudo se mantém dentro de um mesmo contexto, uma mesma ordem. Não sei se foi intencional, mas é essa a
impressão que me passa.
The Mantiqueira Range foi composta pelo filho de Tom – o arquiteto e músico Paulo Jobim.
O “motor” agora é um incisivo motivo melódico que sugere toda a construção da música. Motivo que se repete “ad
infinitum”, criando uma atmosfera que lembra os discos da ECM – gravadora norueguesa de jazz contemporâneo.
A percussão de Airto Moreira cumpre um papel importante. O clima avant garde é escancarado no final, quando o
baterista João Palma “se desprende do conjunto” e dobra o andamento com extrema liberdade, improvisando
“sobre” a orquestra. Isso é algo surpreendente, oposto ao que seria o convencional. Tom se apropriou com
conhecimento de causa das possibilidades do jazz, sugerindo que uma orquestra inteira faça base para o solo de
um baterista. Mas sua obra jamais se rendeu ao gênero jazzístico – o que é muito importante afirmar aqui. Uma
bela composição do Paulo, belos arranjos do Claus, um contrabaixo firme e preciso de Ron Carter (âncora que
apóia toda a estrutura rítmica do tema), além da inspirada bateria do talentoso músico João Palma, são elementos
que se tornam poderosos nas mãos de Tom Jobim. Uma melodia de construção aparentemente simples, apoiada
no ritmo do baião, foi oportunamente incorporada ao conceito moderno do disco.
Crônica da Casa Assassinada
É uma suíte de quatro movimentos que, a meu ver, une de forma primorosa a canção brasileira, representada aqui
por “Chora Coração” (Tom e Vinícius), a toda tradição secular da música erudita sinfônica européia. Poucas vezes
na história se viu um resultado tão belo e consistente.
Trem para Cordisburgo
O Trem é o veículo condutor da peça. O destino não poderia ser outro: a terra natal de Guimarães Rosa, localizada
no interior de Minas Gerais. Interessante como um escritor pode influir tanto na concepção de um disco. Jobim
toma emprestado de Villa-lobos (por quem foi também muito influenciado) seu “Trenzinho do Caipira”, utilizando
com maestria o arsenal de efeitos que uma orquestra dispõe para ambientar musicalmente a sensação física de
um Trem em movimento. É o ponto de partida para mais uma viagem.
Chora Coração é uma moda – uma canção lenta. Típica da família dos poemas musicados, geralmente por Tom e
Vinícius, com forte entonação villa-lobeana. No disco “Canção do Amor Demais”, a dupla esbanja modinhas assim
(interpretadas por Elizeth Cardoso) e acaba se especializando no gênero, produzindo outras tantas, como “Canção
em Modo Menor”, “Modinha”, “Falando de Amor” e “Canta Mais”. Algumas possuem também a característica de
chôro-canção, mas todas são basicamente poemas para ser recitados musicalmente.
Contudo, “Chora Coração” é também uma melodia que oferece possibilidades espetaculares. A breve introdução
dá uma amostra do “piano-motor” que vai retornar tantas vezes e conduzir a suíte. A canção serve aqui como
pretexto para as múltiplas variações que se verão a seguir. Ainda na parte cantada que alterna o piano e voz com
precisas pontuações da orquestra, brilhantemente pilotada por Claus, Tom canta com certa dificuldade nos
agudos, e extremo conforto nos graves. Mas sempre com absoluta profundidade e clareza. Sua interpretação vocal
não ostenta vibratos e ornamentos, totalmente desnecessários nesse caso. Interessante que os versos parecem
sugerir a dificuldade e o sofrimento de um intérprete solitário e angustiado: Tem pena de mim; Ouve só meus ais;
Eu não posso mais; Tem pena de mim. Um “grande cantor” poderia facilmente estragar esse momento delicado.
A exposição do tema e as respostas da orquestra são tratadas de forma extremamente econômica. Em seguida, a
peça se desdobra em inventivas intervenções instrumentais baseadas no “piano-motor”, fazendo a desconstrução
da idéia harmônica e rítmica do tema.
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O Jardim Abandonado é a continuação instrumental de “Chora Coração” que, assim como em “Tempo do Mar”,
se inicia com uma singular combinação de arppegios jobineanos no piano – dessa vez, em outra célula rítmica,
mas novamente com um tema marcante que se descortina por trás. Contrabaixos que pontuam o disco inteiro com
frases graves e definidas sugerem dessa vez a passagem para um movimento onde se esmiúça ainda mais a
melodia de “Chora Coração”. O piano-motor volta a tona, mostrando o lado erudito de um Tom Jobim romântico e
inventivo. É uma peça de compasso ternário, mas aqui o ritmo se distancia das valsas austríacas.
“Milagre e Palhaços”, última parte da suíte, inicia-se em um trecho de trinados e trêmulos das flautas, que
remetem a pássaros cantando em harmonia, num ambiente eufórico, porém pacífico. Tranqüilidade e esperança
também são sensações claras que este movimento transmite. O velho romantismo europeu se renova aqui, com
um sopro de natureza que o maestro confere à sua obra. A idéia se conclui afinal com um novo retorno da melodia
de “Chora Coração” (sempre instrumental) em andamento dobrado e o famoso “piano-motor” que pontuou toda a
peça. E é esse desenho de piano que vai encerrar a suíte.
Rancho das Nuvens é difícil de ser classificado – como a maioria das coisas inventivas, frente ao seu tempo. Há
um toque celestial em sua melodia. O título é mesmo apropriado, por que a composição consegue sugerir
tranqüilidade, inquietação, paz, apreensão, mistério, melancolia... Tudo ao mesmo tempo, num misto de emoções
que se completam e elevam a alma. Pode ser uma balada, ou samba-canção, que vira um baiãozinho bem lento e
delicado, no final. A música sustenta na primeira parte um tema marcante, construído com base na escala de blues
– seqüência de seis notas, de origem na música negra norte-americana. Assim como Gershwin, Tom utilizou essa
escala largamente em sua obra. “Wave”, “A Felicidade”, “O Morro Não Tem Vez”, “Mojave” e “Bonita” são apenas
alguns dos exemplos mais notáveis. O trombone de Urbie Green e seu timbre é algo de magistral. O músico já
havia aparecido muito bem nas gravações de “Tereza My Love” e “Andorinha”, no LP anterior – Stone Flower. Em
Matita, Tom convida novamente o trombonista com seu timbre marcante, vinculando essa bela sonoridade à sua
obra. É uma escolha consciente, que muito enriquece o disco.
A segunda parte da música é construída com arppegios sinuosos, que se transformam em uma linha melódica
instigante, até meio perturbadora – grife do autor. E a terceira brinca com uma nota apenas (como no “Samba de
Uma nota Só”) e depois, com duas. É aí que aparece o baião. Segundo Jobim, “Rancho das nuvens é um rancho
ideal que escapa à poluição”.
Nuvens Douradas fecha o disco com chave de ouro. Na verdade, uma chave celestial. Os acordes deste sambacanção lento, conduzidos na ambiência dos pratos de uma inventiva bateria, transmitem de fato a sensação de
uma viagem ao paraíso – na garupa de um cavalo-alado. Sua melodia brinca com sétimas e sextas do acorde
maior, se renovando depois em outra tonalidade. É uma atmosfera de paz, mas que também valoriza o trabalho, a
realização, a construção. Trabalho de mestre. Definitivamente, Jobim é genial quando trabalha com duas vozes em
movimento. Esse é um dos talentos que ajudou a definir sua marca, seu estilo. Convidado para escrever a letra da
música, anos mais tarde, Caetano Veloso se esquivou. Considerou não estar preparado para o processo mais
“rudimentar” de composição do maestro: trabalhar juntos e ao vivo; um estimulando as idéias do outro.
Infelizmente, com isso Caetano deixou de integrar o seleto rol de parceiros jobineanos, que, entre outros, inclui
Vinícius de Moraes, Newton Mendonça, Aloysio de Oliveira, Billy Blanco e Dolores Duran. Mas acredito que a
parceria segue em aberto.
O desenho do encarte – por Paulo Jobim
Convidando seu filho para fazer a ilustração no encarte do álbum Matita, Tom inicia uma parceria familiar, repetida
em “Urubu” e “Terra Brasilis”, anos mais tarde. E Talvez Paulo Jobim fosse mesmo a pessoa indicada para traduzir
visualmente a revolução que seu pai fez na música, abrangendo a mata, a fauna e uma brasilidade cada vez mais
urgente. Seu traço e sua idéia do enredo de “Matita” mostraram estar em perfeita sintonia com a música.
É interessante observar que o disco oferece vários prismas, um deles bem lúdico. “Águas de Março” é uma música
assimilável por qualquer criança. Ela desperta um universo de sonhos, ao mesmo tempo de fácil associação com a
realidade do dia-a-dia. Foi assim comigo, um guri de quatro anos que cantava a letra inteira. Quase toda sem errar
(pelo menos, foi o que meus pais me atestaram). Aparentemente complexa na estrutura, a canção se torna muito
natural, quando mergulharmos de cabeça nela. Algo curioso me aconteceu trinta anos depois, quando fui
convidado para participar do Quarteto Jobim Morelenbaum, substituindo Daniel – neto de Tom Jobim, ao piano. Fiz
alguns ensaios com o Paulinho (o mesmo que desenhou “Matita”) e a cantora Paula Morelenbaum. Às vezes eles
se confundiam em certos trechos dos versos de “Águas”. É realmente uma letra grande, cheia de “armadilhas”. E
eu tentava ajudar, “soprando” pros dois o que me lembrava da letra. Eram aqueles mesmos versos,
milimetricamente registrados na memória de uma criança, três décadas antes.
Meu pai repetia o disco na vitrola o dia inteiro. Lembro-me de ouvir muito o lado A, observando com bastante
interesse aquele desenho, limpo, algo inocente, meio surreal, que parecia traduzir tão bem, pra gente de qualquer
idade, a idéia da música que estava tocando. Talvez essa combinação de sensações tenha facilitado a minha
compreensão do que estava ouvindo. O desenho ajudou, entre outras coisas, a decorar a letra. Um resultado
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áudio-visual perfeito. Na era do Long Play, as dimensões do encarte, bem maiores do que as de um CD nos dias
de hoje, ofereciam possibilidades de um trabalho visual muito forte e conceitual. Infelizmente, a tecnologia digital
acabou restringindo o espaço. Um bom artista gráfico da época, um fotógrafo, desenhista ou designer que
soubesse usufruir essa liberdade, poderia imprimir resultados fantásticos, muito mais do que a simples
complementação da música do disco. Muitos LPs foram associados às imagens que traziam em suas capas e
encartes. Matita Perê não poderia ser diferente.
Produção, músicos e gravação
O álbum foi gravado em janeiro de 1973 no estúdio da Columbia, em Nova York. O engenheiro de som Frank Laico
fez um belo trabalho, digno do “padrão” Van Gelder, austríaco que gravou inúmeros discos, em parceria com o
produtor Creed Taylor, nos anos 60 e 70. Van Gelder estabeleceu critérios de qualidade de gravação cultuados até
hoje. Há uma reserva em relação ao fato de Tom ter gravado seus melhores discos no exterior. Naturalmente ele
foi muito criticado por isso. E se defendeu da seguinte forma: “Eu gravo nos EUA, mas gravo música brasileira. É
melhor do que ficar no Brasil e gravar rock”.
Pensando com praticidade, lucidez e realismo, seria impossível obter o resultado de Matita nos estúdios
brasileiros.
Além de reger, Claus Ogerman orquestrou e trabalhou encima dos arranjos iniciados por Tom e Dori no Brasil –
como já foi visto antes nesse ensaio. Alguns músicos que Tom muito estimava foram convidados: João Palma na
bateria, Airto Moreira na percussão e Ron Carter no contrabaixo – a seção rítmica fundamental dos álbuns
jobineanos dos anos 70. Foram eles os músicos que predominaram em Matita Perê, Stone Flower e Urubu, talvez
os três discos que melhor traduzem a imensidão da obra do maestro. Tom usou o violão apenas em “Águas de
Março” e “Matita Perê” – menos do que no seu disco anterior. No restante do LP (e também nessas faixas), tocou
piano, seu instrumento principal. Outro sinal dos tempos, da independência e da maturidade profissional de um
Jobim, que agora não precisava mais se preocupar em empunhar o violão (que, aliás, tocava muito bem) para
manter a imagem de “latin lover”, tão cultuada nos EUA. O contrabaixista Richard Davis também foi convocado,
assim como o trombonista Urbie Green e os flautistas Jerry Dodgion, Romeo Penque, Phil Bodner, Don Hammond
e Ray Backenstein. Uma orquestra com os melhores profissionais de gravação em estúdio disponíveis foi
arregimentada por Claus. Seu spalla era Harry Lookousky.
É importante mencionar que o disco foi inteiramente financiado por Tom Jobim, que só depois conseguiu negociar
uma parte com a Philips (no Brasil) e outra com a M.C.A., no mercado exterior. Mas não houve lucro financeiro.
Talvez o compositor tenha conseguido empatar seus custos, o que já pode ser considerado uma façanha. Matita
não era nem de longe um álbum comercial. O formato não-convencional e o tempo mais longo da maioria das
faixas inviabilizava sua execução nas rádios. Mas Tom não estava preocupado com isso. E costumava dizer que
se não tivesse feito esse LP ia “acabar velho, cantando Garota de Ipanema num circo vestido de palhaço”. Desta
feita, estava muito satisfeito com o trabalho, que, como Paulo César Pinheiro lembrou bem, representa um divisor
de águas. Um marco na sua carreira. Esse arrojo, essa coragem em produzir – e bancar – um disco tão caro,
confere ares de heroísmo ao compositor.
O disco foi lançado em Maio de 1973, em recepção no Clube dos Caiçaras (Lagoa Rodrigo de Freitas – Rio de
Janeiro), com a presença de Drummond, Palmério e Austregésilo de Athayde – presidente da Academia Brasileira
de Letras. A noite de lançamento do Matita não causou exatamente um frisson na mídia, mas nos círculos mais
especializados, o álbum chegou com grande força. A escritora Rachel de Queiroz dedicou uma crônica a “Águas
de Março”, onde entende ser a música “uma mistura de memórias de infância e angústias da força do homem”.
Para o compositor Chico Buarque, “é o samba mais bonito do mundo”.
Considerações finais
Análises e estudos sobre o Matita estão longe de ser concluídos. Sabemos hoje que se trata de um disco
imprescindível em qualquer pesquisa sobre música moderna – pós 1950. Ali se promove o encontro de
praticamente tudo que de melhor se produziu na música européia, de Ravel a Chopin, Debussy e outros mestres
seculares. Villa Lobos, o mestre brasileiro, também está aparece embutido em suas entranhas. Outros grandes
nomes brasileiros que influenciaram Tom na área erudito-popular, como Radamés Gnattalli, Cláudio Santoro,
Guerra Peixe, Lírio Panicalli, entre tantos, também devem ser citados. É uma obra original que reúne
conhecimentos musicais, literários, poéticos, filosóficos, enfim... Muita informação e conteúdo em torno de um
conceito personalíssimo. Presentes estão o samba, a bossa-nova, o baião – ritmos autenticamente brasileiros. Do
blues norte-americano, Tom extraiu sua escala, dando-lhe entonação sinfônica, assim como Gershwin fez (com
grande sucesso) na década de trinta. A beleza das composições, arranjos e interpretações faz com que o disco
soe atemporal.
É possível que esse álbum tenha ajudado (um pouco) a consolidar do nome de Jobim no seu país. Mas a verdade
é que Tom sempre sofreu muitos ataques, o que o incomodava bastante. Isso nunca foi novidade. Em meados dos
anos 50, época em que despontou na música popular, Tom já era um compositor com grande conhecimento da
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“música formal”. Um músico popular com “ares de erudito”, coisa rara no Brasil. Talvez exatamente por isso, tenha
sido estigmatizado e até hostilizado pela crítica purista e alguns pesquisadores xenófobos, que lhe conferiram o
rótulo de “americanizado”. Muita gente “comprou” essa idéia, não se sabe direito por que. Isso retrata o
pensamento típico de uma intelectualidade conservadora, retrógrada e nacionalista ao extremo. Uma gente que
não compreende como um compositor com características inovadoras e uma necessidade urgente de aprender e
se aperfeiçoar cada vez mais, possa ser um “produto nacional”. Entretanto, Antônio Carlos Brasileiro de Almeida
Jobim era, de fato, brasileiro – inclusive no nome.
Anos mais tarde, um preocupado Jobim fala sobre Matita Perê, a música-título do disco:
“Enquanto o progresso vai resolvendo certos problemas, cria a cidade neurótica, a São Paulo, a Nova Iorque. O
Rio tem tráfego, o assalto, a metralhadora, o apartamento, o confinado, o refrigerado. Aí eu faço uma música como
‘Matita Pereira’ e fica um negócio assim da pessoa ter que ir ao dicionário procurar o significado. O matita perê é
um passarinho do sertão, ele não vai nos auxiliar a comprar o detergente, a ir ao supermercado, a comprar a
máquina de lavar. Assim ele começa a virar uma figura, como direi underground? Uma figura folclórica, um ente,
um Saci. Ora, o que é que o barulho do Rio tem a ver com o Saci? Saci não dá em apartamento!”
Alguma coisa nesse trabalho me soa épico. Não parece a história de uma vida, apenas. Encontra-se ali a essência
de um povo, de uma civilização cercada por belezas naturais. A narrativa se desenvolve em um mundo dos
sonhos, fantástico. Mas que na realidade sempre esteve ali, muito vivo. O conflito está presente. As incertezas, a
insegurança, a “mania de perseguição”. Tudo traduzido em notas musicais – as mais belas o possível. A paisagem
social, geográfica e comportamental é observada sob a grande angular poética de um sonhador. Um músico meio
louco e misterioso, um compositor matreiro, talentoso e estudioso ao extremo, teimoso e persistente; mas, acima
de tudo, com um apego incomum por sua terra, sua gente. Esse amor infindo e todo um trabalho árduo de
pesquisa, construção e acabamento possibilitaram a existência de Matita Perê, assim como é: Fundamental; muito
bem arquitetado. Um disco que entra pela porta da frente da história.
“Uma música que não é para agora”. Mas fica para a eternidade.
Sobre a penúltima faixa do álbum (minha favorita entre tantas e tão lindas do Tom), este dublê de músico e
ensaísta já se arriscou a filosofar também, certa vez:
Rancho das Nuvens
Tudo o que sei
É que nada sei
Mas uma coisa eu sei,
Talvez
Quando chegar minha vez
Quero partir tranqüilo
Rumo a um fabuloso lugar
Que ouço desde pequeno
Não sei onde fica
Não sei como chegar
Deve ser perto de nuvens douradas
Talvez saiba, mais tarde
Como encontrar o
Rancho das nuvens
Kiko Continentino,
Março de 2008
Pianista, compositor, arranjador e produtor musical. Com três discos solos gravados – todos instrumentais Kiko trabalha com alguns dos
principais nomes da música brasileira, entre eles Milton Nascimento, com quem toca há mais de onze anos, elaborando também arranjos, além
de ter algumas parcerias com o cantor. Com o passar dos anos e sua profunda admiração pelo universo jobineano, Kiko vem se tornando um
especialista na obra do compositor Antonio Carlos Jobim. No ano 2000, foi convidado a compor o Quarteto Jobim Morelenbaum (substituindo
Daniel Jobim, neto do Tom), participando de shows por todo o país e recebendo convite para se apresentar no exterior. No dia 25 de Janeiro de
2007, Kiko idealizou e liderou um show antológico, em comemoração aos 80 anos que Jobim completaria nessa data. O músico tocou 80
músicas do maestro soberano em uma mesma noite, contando ainda com o auxilio luxuoso de mais de vinte convidados, entre eles: Os
Cariocas, Pery Ribeiro, Nelson Ângelo e Muiza Adnet.
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Matita Pere - Kiko Continentino