HUMANIDADES | ACERVO
Muito além da
bossa nova
ACERVO DEIXADO POR TOM JOBIM CONFIRMA
TALENTO MÚLTIPLO EM MÚSICA, POESIA,
ECOLOGIA E URBANISMO
processo de criação da letra de
“Corcovado" exigiu “muita calma pra pensar" do maestro Tom Jobim. “Um cigarro, um violão, este
amor, uma canção". Cigarro ou cantinho? Eis uma das questões que tiraram o sono do artista antes que
ele desse por finalizada a composição. A dúvida entre as duas palavras está registrada pela caligrafia
do autor na partitura original, que
se encontra no Instituto Antônio
Carlos Jobim, uma sala de pouco
mais de 40 metros quadrados que
abriga o acervo de um talento que
não coube em Ipanema.
Com a morte do músico, a família Jobim se viu mergulhada num mar de
IMAGENS DO ACERVO INSTITUTO ANTONIO CARLOS JOBIM
O
partituras, arranjos, estudos de letra
e música, depoimentos, fotos, textos, entrevistas, fitas cassete, fotografias, filmes, vídeos, manuscritos,
correspondências, recortes de jornal
e outros documentos que compõem
o vasto universo de Tom e a história
de toda uma vida. Para colocar em
ordem um arquivo pessoal com
tamanha riqueza e importância, foi
criado o Instituto que, com apoio da
FAPERJ e convênio com a Casa de
Rui Barbosa, está desenvolvendo a
ordenação da documentação, a conservação e a elaboração do inventário analítico do acervo.
Numa primeira etapa, em
que foi preciso examinar
e identificar o conteúdo,
já começaram a aparecer as primeiras
preciosidades, como letras e melodias inédi-
tas, poemas de Vinícius de Moraes
em latim e partituras originais. São
pelo menos 40 as composições –
acabadas ou esboçadas – ainda desconhecidas do público. Mas, infelizmente, muita coisa continuará longe de nossos ouvidos. “Não me sinto à vontade para que outra pessoa
complete o que ficou inacabado",
diz Paulo Jobim, filho do compositor. “Em outros casos, acho que ele
não gravou porque, talvez, as composições não tenham chegado ao
resultado que ele pretendia", justifica. “Mas, aos poucos, o material está saindo. Gravamos recentemente
um prelúdio inédito para piano",
exemplifica.
O prelúdio a que Paulo se refere
foi descoberto pelo pianista Evandro
Rosa e faz parte do CD Jobim Sinfônico, que chegou às lojas no final de
junho. O disco é um concerto com a
Orquestra Sinfônica do Estado de
São Paulo, regida por Roberto Minczuk. O pianista Marcos Nimrichter
ficou responsável pela execução do
prelúdio. O CD, que também vai sair
em DVD, traz outras composições
inéditas como “Lenda", peça que o
maestro dedicou ao pai em 1954 e
trechos inéditos da partitura original
de Orfeu da Conceição.
A coordenadora do projeto, Eliane Vasconcellos, aponta uma série
URBANISMO POÉTICO
de 30 cadernos de trabalho do compositor como a mais rica fonte de
consulta. “Estamos estudando e catalogando cada folha desses cadernos, que contêm informações preciosas", diz a pesquisadora. Volta e
meia, surge uma pérola. “Temos esboços e trechos da letra que ele fez
para uma melodia de Dorival Caymmi e Ari Barroso. Só que até hoje
não descobrimos que música é essa", lamenta Paulo.
Gravada pela primeira vez este
ano por Miucha, a canção “Quando
a lembrança me vem" é uma parceria de Tom com João Donato e foi
pinçada recentemente no acervo,
que também revelou a letra de “Tarde triste", composta com Vinícius de
Moraes, e de cuja melodia Paulo Jobim lembra-se vagamente. “Existe
projeto para gravar, mas preciso de
alguém que se lembre mais da melodia do que eu", confessa o herdeiro.
Tom não se limitou a compor
canções para a bossa nova, estilo
que lhe abriu as portas para conquistar o mundo e, conseqüentemente, ajudar a projetar o Brasil no
cenário da música internacional.
Dentre as partituras, há muitos registros de sambas, choros, valsas e
toadas. “Ele é muito mais que o papa da bossa nova. A gente vê um
arsenal erudito e popular surpreendente", diz a pesquisadora Patrícia
Fuentes, envolvida no projeto há
mais de um ano.
Ainda há, no entanto, muito que
fazer para colocar esse material em
ordem. A previsão da diretora do
Instituto Antônio Carlos Jobim,
Vanda Klabin, é de que dentro de
três anos todo o acervo esteja disponível na Internet. “Uma parte razoável já está catalogada. Estou
captando parceiros para a digitalização", diz. Outro projeto é oferecer a estudantes e pesquisadores o
acesso direto aos documentos. Para
isso, é preciso promover uma mudança da pequena sala localizada
no Jardim Botânico para um local
mais amplo. “Estamos em entendimentos para conseguir um lugar
público", planeja Vanda. A abertura
desse acervo será mais um presente
de Tom Jobim ao Rio de Janeiro.
MÚSICA PARA PRESERVAR A NATUREZA
O amor à natureza, mais especificamente
aos pássaros, e a preocupação com a preservação do meio ambiente estão evidenciados em alguns objetos que faziam parte
da vida do artista, como uma coleção
completa com desenhos e nomes de aves
ou uma caixa de apitos que imitam o can- OS PÁSSAROS FORAM UMA DAS
to dos passarinhos. Para Eliane Vasconcel- PAIXÕES DO ARTISTA
los, Tom Jobim está para o meio ambiente
assim como Mário de Andrade está para o folclore. A consciência ambiental
que Tom Jobim demonstrou em vida dá frutos ainda hoje e se reflete em três
projetos culturais do instituto que leva seu nome, em parceria com a Fundação
Roberto Marinho e Furnas Centrais Elétricas: Tom da Mata, Tom do Pantanal e
Tom da Amazônia. Depoimentos, poesia, escritos e a música jobiniana são a
fonte de inspiração dos trabalhos que levam educação e consciência ambiental a alunos da rede de ensino fundamental de 13 estados brasileiros. “O material é vasto. São entrevistas que ele deu no Jardim Botânico, muitos textos e
vídeos que hoje a gente usa nos projetos”, diz Paulo.
Tom chegou a cursar um ano da
faculdade de Arquitetura antes
de, felizmente, se decidir pela
música como ganha-pão. Esboços, textos e desenhos da casa
que reformou para morar no Jardim Botânico fazem parte do acervo. “São muitas pastas com
plantas da casa. Tem uma crônica
enorme e jocosa sobre o teto que
era rebaixado”, diz Patrícia Fuentes. Tom, que se incomodava com
o pé-direito baixo da casa, por
fim conseguiu fazer a modificação e colocar o teto na medida
que queria.
A poluição da Lagoa Rodrigo
de Freitas era outra preocupação do artista, que, em busca
de uma solução, aplicava seu
talento à ecologia e ao urbanismo. “Existe um texto de Tom
propondo a abertura do quebramar em forma de Y para aumentar a pressão da água”, revela
Paulo Jobim. “Há um trecho do
canal cimentado embaixo. Ele
propunha que se quebrasse o cimento para que a água entrasse
e saísse livremente e o próprio
mar aprofundasse o canal”,
lembra o filho do maestro.
Mario Nicoll
Apoio FAPERJ
Título | Catalogação e conservação do acervo
Antônio Carlos Jobim
Modalidade | Auxílio à Editoração – APQ3
Ano | 2002 Valor | R$50 mil
21
N E X O Setembro de 2003
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