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Fala de estar
João Pedro Mésseder
diz que
detesta algumas palavras
e sente paixão por outras
Quando era pequeno, o João Pedro Mésseder (que na verdade se chama José António
Gomes e nasceu em 1957) brincava sozinho aos piratas e aos cowboys e gostava de
subir às árvores para saber como ficavam as coisas vistas de cima, mas, de todas
as brincadeiras, ler era a preferida. Hoje em dia este escritor e poeta, que também
é professor de literatura, continua a gostar muito de ler e, embora já não brinque
como antes, escreve belos livros para crianças em que muitas vezes as personagens
principais são mesmo as árvores e os piratas.
Nasceu e cresceu no Porto; quais eram as
suas brincadeiras preferidas em pequeno
e onde é que costumava brincar?
Eu era muito um menino de casa: era
filho único e, portanto, brincava muito
sozinho. Curiosamente, brincava muito
aos índios e aos cowboys, aos piratas e a
esse tipo de coisas, um pouco inspirado
pelas coisas que lia e filmes que via nessa
época – uma brincadeira sozinha, muito
baseada no imaginário. Mas fazia também,
por exemplo, corridas de carrinhos (tinha
muitos carrinhos e adorava-os), de caricas
(as tampas das laranjadas e das cervejas),
onde colava papelinhos com os nomes
dos meus ciclistas ou corredores de
automóveis favoritos. Brincava com essas
caricas quer no meu quintal, quer na praia,
com um amigo, quer nas carpetes das salas,
fazendo delas pistas. Essas eram algumas
das minhas brincadeiras, mas considero que ler, por exemplo, era também uma brincadeira para mim.
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Tinha livros em casa, adequados à minha idade (sobretudo livros de aventuras, banda desenhada…);
essa era uma das minhas brincadeiras favoritas. Na escola, a brincadeira preferida era jogar futebol com
os companheiros.
E, dos livros, quais eram os seus preferidos?
Lembro-me de ainda não saber ler e já ter em casa muitos livros de banda desenhada (sobretudo das
produções Walt Disney: Pato Donald, Mickey, Zé Carioca…) e de ver essas imagens. Quando aprendi
a ler, foi um deslumbramento o facto de ter essas dezenas de livros para poder ler. Depois, tinha um
tio que trabalhava numa editora importante do Porto, que era a Civilização (ainda hoje é uma das mais
importantes editoras de livros para crianças). Esse tio, quando começou a perceber que eu gostava
de ler – e muito embora ele não fosse um grande leitor, era apenas funcionário da editora –, por volta
dos meus 11 ou 12 anos, começou a fazer questão em me oferecer livros da editora dele. Por isso,
li sobretudo biografias, livros de aventuras (a partir dos nove anos), e também as coisas que os meninos
da minha idade liam no campo da aventura: livros da Enid Blyton («Os Cinco», «Os Sete»,…). Mas há
um livro que eu nunca esqueço, que é de uma autora alemã, a Ursula Wölfel, que nessa altura (quando
eu tinha oito ou nove anos) teve um livro lindíssimo traduzido pela Civilização, que eu li vezes sem
conta: Sapato de Fogo e Sandália de Vento. Ainda guardo esse livro comigo, como guardo todos os livros
da minha infância, e era o meu favorito. Era a história de um filho e um pai que partiam numas férias
à aventura, numa viagem a pé, por uma determinada região da Alemanha. O filho era pobre e gordo,
o pai era pobre e sapateiro, e essa viagem era a prenda de anos do filho. Uma viagem lindíssima de
socialização, conhecimento, aventura e de escuta das parábolas sobre a vida que o pai, no final de cada
aventura, contava ao seu filho, o Tim. Esse livro, para mim, é inesquecível. Mais recentemente vi que
a Ursula Wölfel foi editada em Portugal com livros que publicou posteriormente, mas, na verdade,
já aos oito anos eu a lia através dessa tradução.
Nessa altura já queria ser poeta e escritor? Que profissões queria ter?
Não. Nessa altura gostava muito de desenhar; passava horas a desenhar barcos. Havia uma coisa
que gostava muito de fazer que era ir à praia; ia com a minha mãe e os meus primos para a praia
de Leça, que fica aqui perto. Passávamos sempre pelo porto de Leixões, que já nessa altura era grande
e importante, e eu tinha um fascínio enorme pelos navios, sobretudo pelos cargueiros, e também pelos
barcos de guerra. A partir de certa altura comecei a acalentar o sonho de ser marinheiro da Marinha
Mercante. Mas por volta dos 10 anos fiz uma pequena viagem de barco com os meus pais (a travessia
do estreito de Gibraltar – o meu pai gostava muito de ir a Ceuta), e enjoei tanto e fiquei tão doente
nessa viagem, que rapidamente percebi que ser marinheiro da Marinha Mercante não era futuro para
mim. Quando andava no liceu, já aos 12 ou 13 anos, ia sempre de elétrico (gosto muito dos elétricos
do Porto, de Lisboa e de todas as cidades que tenham os velhos elétricos). Gostava muito de ir e vir
de elétrico, e a dada altura comecei a achar que aquilo era também uma vida possível para mim, ser
condutor de elétrico: andar às voltas pela cidade, transportar as pessoas, ouvir aqueles barulhinhos
todos do elétrico, que ainda por cima não é conduzido como um autocarro, é diferente… Sonhei isso.
Depois, e durante muito tempo, não tive nenhuns sonhos concretos de futuro. Já gostava muito de
ler, mas só comecei a pensar em escrever a partir dos 13 anos ou 14. Sempre tive bons professores
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de português no liceu, e acho que fui um pouco influenciado por eles e pelo modo como eles trabalhavam
e davam a ler a literatura. Acho que me fui apaixonando aos poucos pela literatura, e fazendo também
as minhas primeiras tentativas de escrita.
E já escrevia poesia, ou era mais prosa?
Aquilo que eu tentava escrever nessa altura era poesia e, claro: estava na adolescência, tinha um natural
interesse pelas meninas, lia no livro de Português os poemas de Camões, de Bocage, etc., e aquilo que
comecei a escrever foi uma tentativa de poesia dirigida a essas meninas que andavam no liceu ao lado
do meu, o Liceu Rainha Santa Isabel, e acho que foi mais ou menos assim que tudo começou. Depois
tive um período em que tinha uma certa paixão pelos romances policiais, e tentei escrever uma história
policial a meias com um amigo que também escreve, só que um dia fomos ouvir uns discos para uma
loja e, pensando mais na música e em tudo o resto, acabámos por nos esquecer desse romance policial
inacabado na loja e nunca mais o recuperámos. Estas foram as minhas primeiras tentativas de escrita.
Gosta mais de escrever para crianças pequenas, adolescentes ou adultos?
Eu nem sei se posso dizer que escrevo para adolescentes; acho que não, que nunca escrevi nenhum
livro mesmo dirigido a adolescentes. Já escrevi alguns livros para crianças pequenas, como O Aquário,
ou Lulu ou a Hora do Lobo, que são narrativas, e vários livros de poesia, uns mais simples, outros menos.
Quero dizer: uns talvez um pouco mais fixados naquilo que é a realidade de um menino de seis, sete
ou oito anos e do seu imaginário, e outros mais numa zona de fronteira entre a literatura para crianças
e a literatura para adultos, como é o caso de Guardador de Árvores, do Breviário do Sol e do Breviário
da Água. E também escrevi alguns livros para adultos, mas menos histórias e mais poesia.
Porque é que escolheu usar o pseudónimo João Pedro Mésseder para assinar os seus livros? Que
significado tem esse pseudónimo?
Eu sou professor do ensino superior, dirijo uma revista de divulgação e crítica de livros infantis,
a Malasartes, publico artigos sobre livros que outros escreveram, publico também livros sobre obras
de outros autores e, portanto, achei que passar a assinar os meus livros de poesia ou de histórias
com um nome literário – é assim que gosto de lhe chamar – era uma forma de separar estas duas
vidas. Portanto, tenho livros assinados com o meu nome próprio (José António Gomes), mas não são
livros de criação literária, e tenho livros assinados com o nome João Pedro Mésseder, que são livros
só de poesia ou de contos. Porquê Mésseder? Porque é um nome que existe na minha família,
e João porque sempre tive um certo fascínio por esse nome, por ser curto, simples, porque os meus
dois melhores amigos, quando era pequeno, se chamavam ambos João, porque sempre vivi no Porto
e a grande festa aqui é a de São João, de que gostava muito. O nome João sempre teve para mim
essas ressonâncias. Até já publiquei uma história, que é o «Conto da travessa das musas», que é um
bocadinho autobiográfica, e cujo herói é um João. Estou para publicar uma outra história, passada
na Idade Média e cujo herói não é um João – chama-se Lourenço (um nome de que também gosto
muito) –, mas que vai passar a chamar-se João porque entra num mosteiro da Ordem de Cister, como
monge noviço (porque é um miúdo), e, entrando no mosteiro, tem de alterar o seu nome – o nome
que escolhe é, precisamente, João.
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Tem bastantes poemas em que refere ou relembra o mês de maio. Porquê? É o seu mês preferido?
É um dos meus meses preferidos. Abril, maio e junho são, talvez, os meus meses preferidos. Porque
nasci em abril, na primavera, que é uma das minhas estações favoritas (o que não tem nada de original,
pois acho que também é a estação favorita de muita gente), mas também porque, pensando na minha
história e passado, há uma data na minha vida que para mim é essencial: o 25 de abril de 1974. E logo
a seguir, o 1º de maio de 1974, dia do trabalhador, que foi o primeiro 1º de maio que foi possível
festejar em Portugal depois da reconquista da democracia. Essa ligação do mês de abril e do mês
de maio a momentos importantes da história moderna do nosso país, esse tempo que guardo bem
na memória porque na altura era jovem (estava no fim da adolescência) e, portanto, considero que foram
os melhores anos da minha vida… Todas essas aventuras cívicas, de cidadania, se passaram nos meses
que sucederam ao 25 de abril. Por todas essas razões, e por ser o tempo da luz, do desabrochar
de todas as coisas na natureza, maio é um dos meus meses favoritos. Mas também o é pelo próprio
som da palavra «maio», com o seu longo ditongo. Às vezes gosto muito de escrever sobre as palavras,
os significados que têm e que podem ter, e gosto muito de palavras como essa, da beleza musical dessa
palavra.
Já experimentou cantar os seus poemas?
Agora não, mas quando era adolescente arranhava a minha guitarra e cheguei a fazer umas canções
com poemas meus (algumas em inglês até), mas isso já foi há muitos anos; agora já não faço isso.
Antigamente gostava de pegar na guitarra, tocar umas canções, mas um dia caí numas escadas, parti
um osso na mão e deixei a guitarra nessa altura, nunca mais peguei nela porque achei que ia sentir dores
no dedo se continuasse a tocar, pelo que nunca mais fiz essa experiência. Mas alguns poemas meus
foram musicados e cantados por outros…
Porque escreveu um livro dedicado às árvores (e em particular a uma nespereira), O Guardador
de Árvores?
Porque sempre tive um fascínio muito grande pelas árvores e, quando era pequeno, embora vivesse
na cidade, quando tinha oportunidade de ir para o campo (nas férias, por exemplo) gostava imenso
de subir às árvores e de ver o mundo do cimo das árvores. Sempre me habituei a considerar as árvores
uma espécie de «mães do mundo», de tudo. Acho que as árvores são seres extraordinários, que têm
uma música própria, quando o vento dá nas folhas, que têm a música do cantar dos pássaros, dos
próprios galhos e ramos das árvores, quando se movimentam e estalam, etc. E penso sempre nisto:
a vida não era possível se não houvesse árvores. Porque é que dediquei esse livro a uma nespereira?
Porque durante muitos anos vivi numa casa, num quarto que dava para um jardim onde havia uma
nespereira. Esse jardim não era meu, mas dos meus vizinhos do lado, só que, como os jardins eram
contíguos, a nespereira, que era muito antiga (40 ou 50 anos), deixava os seus ramos inclinar-se sobre
o meu jardim e quase que batiam na janela do meu quarto. Durante anos habituei-me a acordar,
a estar, por exemplo ao fim da tarde, «sob o efeito» daquela nespereira: ouvindo o cantar dos pássaros,
de manhã, ao crepúsculo, vendo os gatos subirem pela árvore acima para aguçar as unhas ou tentar
apanhar um pássaro… Ouvindo o canto daquela árvore, toda esta música de que estou a falar. Mas um
dia cheguei a casa, fui ao quarto e a nespereira não estava lá.Tinha sido uma intervenção «sobrenatural»:
saio de casa de manhã, e quando chego pelo fim da tarde, aquela sombra, aquelas folhas, aqueles
ramos não estavam lá; aquela árvore tinha sido simplesmente decepada, cortada. Eu olhei para o chão
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e a única coisa que vi foi um coto, um restinho de tronco. De um momento para o outro, aquela
nespereira desapareceu, e eu fiquei tão zangado, triste e revoltado, porque acho que ninguém tem
o direito de cortar uma árvore, mesmo que ela esteja na sua propriedade, porque uma árvore
é propriedade de todos e não apenas de uma pessoa. Achei que era um ato tão distraído dos outros,
tão arrogante, que decidi dedicar esse meu livro, Guardador de Árvores, à nespereira – ainda por cima
porque, enquanto ela existiu, lembro-me de ter escrito vários poemas inspirado por tudo aquilo que via,
ouvia e cheirava graças àquela nespereira que estava ali no meu jardim. Foi como se, de um momento
para o outro, uma pessoa da família tivesse morrido.
E se fosse uma árvore, qual gostava de ser?
Se fosse uma árvore, gostava de ser uma oliveira, porque as oliveiras dão-se em muitas regiões,
mas sobretudo nos países do sul da Europa: Portugal, Espanha, Itália, Sul da França, Grécia, ilhas
gregas, etc. Essa é a paisagem a que eu sinto pertencer, pelo que, se não fosse português, gostava
de ser grego, ou italiano, ou francês ou espanhol do sul. Mesmo português, sou do Norte, mas preferia
ser do Alentejo ou do Algarve (talvez do Alentejo). A oliveira, para mim, é uma das árvores mais
belas que existem porque está cheia de simbolismo nas suas folhas, lindíssimas e de cor lindíssima –
cada folha de oliveira parece a ponta de uma lança, mas uma lança que não mata, que está ali apenas
à espera do nascimento das azeitonas e, na sequência disso, do azeite. Depois, o azeite é usado em tantos
rituais, religiosos e outros; a azeitona e o azeite são criações tão belas, que são uma das razões porque
gosto tanto da oliveira. Mas também porque é uma árvore humilde: às vezes é até completamente
retorcida, parece defeituosa, mas o produto que dá é de uma perfeição total – a azeitona, aquelas folhas
lindíssimas, o azeite… Fico fascinado por essa humildade de ser capaz de produzir coisas tão nobres
como as que acabo de dizer. A oliveira está em poemas, canções, os ramos de oliveira na cabeça dos
heróis do desporto (desde a Antiguidade, nos Jogos Olímpicos), dos deuses e semideuses… Por tudo
isso eu gosto da oliveira.
Porque é que escreve tantos poemas sobre as palavras? Que importância têm elas para si?
Se as palavras não fossem importantes para mim, eu não escrevia. Sou obcecado pelas palavras e sou-o
de tal maneira, que há palavras que detesto e palavras pelas quais tenho uma enorme paixão. E depois
há uma coisa que me faz ficar zangado, que é certas palavras, que de tão repetidas, de tão usadas, parece
que já não significam nada; são muito mal usadas por algumas pessoas – por exemplo as palavras «amor»,
«amizade», «democracia», «justiça». Estão na boca de tanta gente, que, na maior parte das vezes, nem
tem o direito de usar essas palavras, porque aquilo que faz, a sua prática, está em completo desacordo
com essas palavras, que, no entanto, essas pessoas tanto pronunciam. Por isso é que sou fascinado por
palavras antigas, que caíram em desuso, e às vezes gosto de as usar precisamente por isso. Depois, acho
que as palavras têm esta música, este som, esta poesia próprios, que está na pronúncia das palavras, que
é fascinante e faz sonhar. Sempre gostei de ouvir pessoas que falavam melhor do que eu, como alguns
dos meus professores, ou como o poeta David Mourão-Ferreira quando tinha na televisão, há muitos
anos, um programa sobre a poesia europeia – eu achava que ele falava de uma forma que era perfeita:
o timbre da sua voz, a pronúncia das palavras, as frases que dizia sem um único erro… Achava aquilo
uma delícia. Por tudo isso sou fascinado pelas palavras e pelas viagens que as palavras nos permitem
fazer quando lemos um livro, seja de poesia, seja de aventuras.
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