Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul UNIJUÍ
Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências
Curso de Mestrado
Democracia e Instrução Pública em Alexis de Tocqueville
Ricardo Corrêa
Ijuí
2010
2
Ricardo Corrêa
Democracia e Instrução Pública em Alexis de Tocqueville
Dissertação apresentada à banca de
qualificação como etapa preliminar
para a obtenção do título de Mestre
em Educação nas Ciências
Orientador: Prof. Dr. Claudio Boeira Garcia
Ijuí
2010
3
Ficha Catalográfica
4
Ata de defesa da dissertação
5
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul UNIJUÍ
Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências
Curso de Mestrado
A Banca Examinadora, abaixo-assinada, aprova a dissertação
Democracia e Instrução Pública em Alexis de Tocqueville
Elaborada por
RICARDO CORRÊA
Como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação nas
Ciências
Banca Examinadora
_______________________________
Dr. Claudio Boeira Garcia
(Orientador – UNIJUÍ)
______________________________
Dr. Dejalma Cremonese
(UFPel)
_______________________________
Paulo Afonso Zarth
(UNIJUÍ)
_______________________________
Paulo Evaldo Fensterseifer
(UNIJUÍ)
6
Dedico esta dissertação a
Geraldo Ribas Corrêa e a Ângela Maria Corrêa, meus pais.
7
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, ao meu orientador e amigo Claudio Boeira Garcia, pelos
conselhos e pela atenta orientação. Sem sua ajuda, esta dissertação não se
concretizaria.
A Helena Esser dos Reis, pelas dicas, leitura do projeto de dissertação e pelo envio
de livros e artigos imprescindíveis para o tema tratado nesta dissertação.
A Dejalma Cremonese, amigo e orientador de pesquisa na graduação. O primeiro a
me alertar para a leitura da Democracia na América, de Tocqueville.
A Débora Auguste Botega, por compreender minha ausência, minha reclusão.
A Luciano de Almeida, que, desde 2005, me cobrava a inscrição em um curso de
pós-graduação. Obrigado pelos conselhos e pela amizade.
A Paulo Afonso Zarth e Paulo Evaldo Fensterseifer, pela leitura e análise crítica
desta dissertação.
À turma do churrasco, Américo Piovesan, Pedro Dilkin, Celso Eidt, Júlio Burdzinski e
Carlos Silveira. Mesmo em momentos de descontração, conversamos assuntos ditos
filosóficos. A Carlos Silveira agradeço também pela correção ortográfica e de
redação.
A Marcelo Giovano da Silva, Giovane Corrêa, Eder Rodrigo Rodrigues, Ivonei
Freitas e aos colegas de mestrado.
À CAPES, por financiar um ano de bolsa no mestrado, a qual tive que abandonar por
motivos profissionais.
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RESUMO
O objetivo desta dissertação é verificar o que Alexis de Tocqueville compreende por
democracia, por que caracteriza o mundo moderno como democrático, o que
significa um estado social democrático, por que a democracia deve ser caracterizada
pela igualdade de condições, além dos perigos que o estado social democrático traz
consigo, como o individualismo e o despotismo democrático. Para Tocqueville, um
estado social democrático pode conciliar igualdade de condições com liberdade,
desde que os cidadãos participem da esfera pública e aprendam que só haverá
liberdade se interessarem-se pelos assuntos públicos. Nesse sentido, para o
pensador francês, não basta apenas instruir um povo, a educação vai além da
instrução, apesar desta se fazer necessária no mundo moderno.
Palavras-chave: Tocqueville, Democracia, Liberdade, Instrução, Educação
9
ABSTRACT
The aim of this dissertation is to check what Alexis de Tocqueville understands for
democracy, why he characterizes the modern world as democratic, what a
democratic social state means, why democracy should be characterized by the
equality of conditions, besides the dangers the democratic social state brings along,
as individualism and democratic despotism. To Tocqueville a democratic social state
may conciliate condition equality with liberty, as long as citizens participate in the
public realm and learn that there will only be freedom if they are interested in public
affairs. In this sense, for the French thinker, only instructing the people is not enough,
education goes beyond instruction although this is necessary in the modern world.
Keywords: Tocqueville, Democracy, Liberty, Instruction, Education.
10
“O que, em todos os tempos, tão fortemente
agarrou os corações de certos homens à
liberdade é a sua própria atração, seu encanto,
independentemente de suas dádivas; é o prazer
de poder falar, agir, respirar sem
constrangimento sob o único governo de Deus e
de suas leis. Quem procura na liberdade outra
coisa que ela própria foi feito para servir”.
(Tocqueville, 1982, p. 160)
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................................................12
1.
DEMOCRACIA: OS PROBLEMAS DA IGUALDADE DE CONDIÇÕES ........................................18
1.2 O INDIVIDUALISMO ..................................................................................................................................... 25
1.3 O DESPOTISMO DEMOCRÁTICO ................................................................................................................. 27
2. AS POSSIBILIDADES DA LIBERDADE EM UM ESTADO DEMOCRÁTICO ....................................30
2.1 A DOUTRINA DO INTERESSE BEM COMPREENDIDO .................................................................................. 35
2.2 LIBERDADE E CRENÇAS RELIGIOSAS NAS ERAS DEMOCRÁTICAS .............................................................. 38
3. O PAPEL DA EDUCAÇÃO NOS TEMPOS DEMOCRÁTICOS ..............................................................43
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................................................52
REFERÊNCIAS...................................................................................................................................................56
12
INTRODUÇÃO
“Não há erro maior do que o de acreditar que
a última palavra dita é sempre a mais correta, que
algo escrito mais recentemente constitui um
aprimoramento do que foi escrito antes, que toda
mudança é um progresso. (...). A regra, em toda parte
do mundo, é a corja de pessoas infames que estão
sempre dispostas, com todo empenho, a piorar o que
foi dito por alguém após o amadurecimento de uma
reflexão, dando a essa piora um aspecto de melhora”.
(Schopenhauer, 2009, p. 59)
Esta dissertação busca compreender o entendimento de Tocqueville sobre
democracia, tão caro ao pensador francês, além de relacioná-la aos temas da
educação e da instrução pública. Sabendo que Tocqueville é um filósofo político ou,
como querem alguns, um dos pais da sociologia, por abordar assuntos como “estado
social democrático” ou por sua compreensão de que era preciso uma nova ciência
para compreender o mundo social, destaca-se que, mesmo não sendo um
pedagogo, mesmo não tendo um texto específico sobre educação, Alexis de
Tocqueville traz boas indagações, relacionadas à modernidade e à educação.
O método utilizado para atingir os objetivos desta dissertação, como não
poderia deixar de ser, foi o da revisão bibliográfica. Além dos livros publicados por
Tocqueville, que devem estar em primeiro plano, procurou-se estudar seus discursos
públicos e suas correspondências. Textos de comentadores da obra de Tocqueville
também foram de muita valia para a elaboração desta dissertação.
Talvez, um dos motivos de Alexis de Tocqueville ter-se dedicado tanto à
compreensão do mundo moderno, suas revoluções e suas transformações, seja a
13
sua história e da sua família. Conhecendo um pouco esta história, compreende-se
melhor seus escritos.
Pierre Manent (1990, p. 157), ao comentar a obra de Alexis de Tocqueville,
afirma que o pensador francês não teve liberdade de escolher seu tema, pois, na
França do século XIX, ainda se fazia necessário compreender a Revolução de 1789.
Suas causas, suas conseqüências. Talvez a afirmação de Manent, tomada em
sentido literal, soe demasiada. A priori, porém, é possível estudar qualquer assunto,
desde que não se esteja num Estado totalitário, o que não era o caso da França de
Tocqueville. Mas, recordando um pouco sua vida, a afirmação de Manent pode ser
melhor compreendida.
Tocqueville provém de uma família de aristocratas, remontando a um período
anterior à Revolução de 89. O pai de Tocqueville, no ano da revolução, contava com
16 anos. Segundo Jardin (1988, p. 12), Tocqueville pai até se emocionara com a
nascente revolução, pois aspirava a um regime de maior liberdade, como a maioria
dos jovens de sua época. Mas, com a execução de Luís XVI, vê-se obrigado a
abandonar a capital francesa. Nesses tempos conturbados, onde por poucos
motivos os defensores do rei podiam ser guilhotinados, Tocqueville pai se vê em
situação difícil, não é guilhotinado mas tem seus bens embargados pelos
revolucionários.
É nessa atmosfera revolucionária que nasce e cresce Alexis de Tocqueville.
Certamente Tocqueville tivera liberdade para escrever (ou mesmo para não
escrever), mas o tema da Revolução quase se impôs à sua geração. Compreender a
Revolução ou, mais precisamente, as revoluções, era empresa comum entre os
intelectuais franceses da geração de Tocqueville. Assim, o pensador francês tentou
compreender as revoluções modernas como fenômenos associados à grande
revolução democrática, que transformou o mundo ocidental cristão.
Esta dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro deles,
investigam-se as considerações de Tocqueville acerca da democracia e quais os
problemas que esse “estado social” apresenta. É pelo teor e pela originalidade das
abordagens aos diferentes assuntos da democracia que Alexis de Tocqueville figura
entre os autores referenciais que se ocuparam do tema. Para Gaspar (2005, p.1), a
sua originalidade foi ter identificado o movimento democrático como a mudança
14
decisiva ocorrida no plano da vida política moderna. “Na sociologia política de
Tocqueville1, a modernidade não se caracteriza essencialmente nem pela indústria,
como quer Comte, nem pelo capitalismo e pela luta de classes, como quer Marx,
mas pela ‘igualdade social das condições’”.
Tocqueville, ao interpretar a realidade social, apresenta-a, muitas vezes,
como um processo universal, consistindo num movimento quase irrefreável: para o
pensador francês, os homens entram “na era da igualdade”. Isso pode levar a uma
interpretação de Tocqueville como um fatalista ou um historiador generalista,
obcecado em buscar ou estabelecer causas gerais para os acontecimentos
históricos. Mas, se Tocqueville muitas vezes escreveu passagens que permitem aos
intérpretes exacerbar a relação causa/efeito em sua obra, também manteve uma
postura teórico-especulativa que prestava atenção a um conjunto amplo de
elementos, os quais apenas em um sentido lato ele designa como causas. Tais são
os casos da ação, das circunstâncias, das iniciativas, da liberdade e dos processos,
etc. Esse foi um dos temas importantes tratados pelo pensador. Jasmin (2005, p.
29), por exemplo, distingue dois períodos nos quais Tocqueville se ocupa com a
relação entre a ação humana e tudo aquilo que se vincula à liberdade e à
responsabilidade ética das ações e causas gerais dos acontecimentos históricos.
No primeiro deles, que grosso modo se estende de 1828 a 1840, prevalece
uma tensão não resolvida entre uma perspectiva da história como processo
de longo curso que conforma a moderna democracia e que escapa à
interferência humana, e uma necessidade existencial, ética e política, de
afirmar a eficácia da ação individual e coletiva sobre os destinos da nação e
da história. A partir do trabalho de leitura dos textos sobre a história da
Inglaterra, sobre o pauperismo e sobre o desenvolvimento providencial da
democracia na obra “americana”, evidencia-se a construção de três soluções
distintas com as quais Tocqueville tentou resolver a tensão entre
determinação e vontade. O segundo momento de sua produção intelectual
relevante, que se inicia com a escrita das lembranças sobre os anos de 18481851 e se prolonga até a sua morte em 1859, constitui uma quarta solução
historiográfica cuja melhor expressão se encontra em seu trabalho sobre o
antigo Regime. Nos Souvenirs, que podem ser lidos como um marco da
transição da vida parlamentar e ministerial de Tocqueville para a retomada de
suas atividades intelectuais sistemáticas, a crônica dos eventos e a análise
da conjuntura do período revolucionário de meados do século XIX acentuam
a concepção da eficácia da ação e da responsabilidade ética dos indivíduos
perante a história, deixando entrever o início de uma nova tentativa de
resolução da tensão entre processo e ator. Em L’ancien Regime et la
Révolution, que é obra propriamente historiográfica, Tocqueville apresenta
1
Muitos comentadores consideram Tocqueville como um dos pais da sociologia. Mas, para Pierre
Manent (2007), Tocqueville é um filósofo político, por excelência.
15
uma arquitetura de temporalidades que, combinando longa e curta durações
com causas gerais e particulares, tenta garantir um lugar privilegiado à
vontade política de grupos e indivíduos, sem abandonar a concepção
“trágica” de uma história multissecular.
Nesta dissertação, procura-se dar mais ênfase à última tentativa de resposta
de Tocqueville para o problema da história ou, nas palavras de Jasmin, do problema
tocquevilleano entre processo e ator.
Para o pensador francês, a democracia configura-se num processo igualitário
que pode levar tanto à servidão como à liberdade2. Mas isso não quer dizer que a
ação humana (principalmente a ação política) não tenha papel importante nas “eras
democráticas”. É através da ação dos indivíduos que se pode tornar possível a
liberdade na igualdade. Para Tocqueville, “a história”, seu “movimento” traz à tona
novas circunstâncias; assim, os homens devem estar preparados para estas, ou
seja, devem ser educados para se adaptarem às mesmas. O grande problema da
não preparação para a democracia é que, quando esta aparecer, crescerá
abandonada, “feito criança de rua” e, quando tomar o poder, os seus vícios
aparecerão. Então, os homens tentarão destruir a democracia, não compreendendo
que neste novo estado social é possível corrigir os seus defeitos.
O segundo capítulo trata das possibilidades de liberdade em um estado social
democrático. Um Estado democrático e livre, para Tocqueville, deve ser construído
levando em conta a participação dos cidadãos na gestão dos negócios públicos.
Para Tocqueville, as comunas são responsáveis por dar aos anglo-americanos o
hábito da participação na república.
Os costumes são fundamentais para que um povo democrático permaneça
livre: um dos objetivos de Tocqueville foi mostrar que as leis e, sobretudo, os
costumes são imprescindíveis para um povo democrático permanecer livre (1987,
p.242). Um dos temores do pensador francês é de que se estabeleçam instituições
democráticas sem que os cidadãos estejam preparados para as mesmas. São
certas idéias e sentimentos que preparam um povo para a liberdade. Da mesma
forma, se os governos democráticos não permitirem que os cidadãos usem sua
2
Escreve Tocqueville: “(...) A igualdade produz, com efeito, duas tendências: uma conduz os homens
diretamente à independência e os pode impelir de repente para a anarquia; a outra os conduz por um
caminho mais longo, mais secreto, mais seguro, para a servidão” (1987, p. 512).
16
liberdade política, não haverá independência para ninguém, independente de classe
social ou status. Haverá, apenas, o poder ilimitado de um só (1987, p. 242).
O grande empreendimento dos americanos está em vincular a democracia, a
igualdade social de condições, com a liberdade. Para isso se esforçam para manter
a coisa pública e a ajuda mútua: os americanos compreendem, desde cedo, que é
preciso ajudar o outro, sacrificar seus interesses pessoais imediatos, muitas vezes,
em nome da coisa pública. O espírito público dos americanos é ressaltado.
É esse espírito cívico que fez dos Estados Unidos uma democracia a ser
seguida. Certamente, para Tocqueville, há problemas na democracia angloamericana. Um dos grandes problemas em relação a ela, constatado por
Tocqueville, é a escravidão. Tocqueville não vê uma saída fácil para esse problema,
chegando até mesmo a temer uma guerra civil. A escravidão configura-se no
problema que a democracia norte-americana terá de resolver. Esse ponto é
importante para ressaltar que não é a intenção de Tocqueville copiar, ipsis litteris, o
exemplo americano. Há muitos bons exemplos na América, mas não é uma
democracia perfeita.
Segundo Tocqueville, a América não cai no despotismo da maioria, grande
perigo das eras democráticas, também por causa da religião. São os costumes,
embasados em convicções e na ética, que fazem com que o anglo-americano não
se deixe dominar por um déspota. O cristianismo, para o pensador francês, torna os
homens iguais perante Deus, por que não haveriam de ser iguais na lei? Então, os
conteúdos das crenças e dos costumes devem estar em acordo com a liberdade. É
preciso crenças e costumes que facilitem um estado social livre.
O terceiro e último capítulo ocupa-se com considerações de Tocqueville
relativas ao papel da educação e da instrução pública nos tempos democráticos.
Para o pensador francês, a educação e a liberdade, nos Estados Unidos, conciliamse bem com os valores morais e os preceitos religiosos. As religiões, segundo
Tocqueville, têm a função de preparar o povo para que aja com segurança nas suas
tarefas diárias. E é a partir do fundamento religioso que o povo cria idéias e
sentimentos que beneficiam a manutenção da liberdade (Tocqueville, 1987, p. 242).
A experiência é um fator importante para a teoria de Tocqueville; o povo deve
participar da esfera pública para aprender a governar-se. Só quando se une a
17
experiência dos negócios públicos aos conhecimentos literários e científicos é que
se cria a possibilidade de formar cidadãos.
Tocqueville é cauteloso sobre a educação. “A educação, tanto quanto a
caridade, tornou-se, na maior parte dos povos de hoje, um assunto nacional. O
Estado recebe e muitas vezes toma a criança dos braços de sua mãe, para confiá-la
a seus agentes; é ele que se encarrega de inspirar sentimentos a cada geração e de
fornece-lhes idéias. A uniformidade reina nos estudos como em todo o resto; a
diversidade, como a liberdade, desaparecem dele a cada dia” (1987, p. 522). Dessa
forma, o poder central se apodera da educação, na medida em que aumentam suas
atribuições. O número de funcionários públicos aumenta conforme aumenta o poder
do Estado. Esses funcionários formam uma nação dentro de cada nação. “Em quase
toda parte [...], o soberano domina de duas maneiras: conduz uma parte dos
cidadãos pelo temor que experimentam pelos seus agentes, e outra pela esperança
que concebem de se tornar seus agentes” (Tocqueville, 1987, nota 5, p. 523). Assim,
ao mesmo tempo em que Tocqueville vê na associação dos indivíduos um poder
educativo, capaz de impedir que os indivíduos “caminhem” para a servidão, é
relutante em relação à instrução pública, pois vê no domínio do Estado sobre a
educação a uniformidade de idéias e a crescente burocratização do ensino.
18
1. Democracia: os problemas da igualdade de condições
Se Tocqueville afirma-se como uma referência para pensar a democracia, por
outro
lado, esse
termo, em
suas obras,
apresenta
várias
significações.
Comentadores, como José Guilherme Merquior, Raymond Aron e Marcelo Gantus
Jasmin, mesmo reconhecendo a polissemia3 que o termo democracia apresenta nas
obras de Tocqueville, reconhecem que prevaleceu em seu sistema conceitual a
conotação associada a uma maneira de ser da sociedade4. Para Zúñiga (1984, p.
17 e 18), antes de falar em democracia na obra de Tocqueville, é preciso esclarecer
alguns pontos:
La primera se refiere a la dificultad que plantea la multiplicidad de contextos
em que Tocqueville habla de democracia y la variedad de situacionés a que
aplica el término. Se ha podido decir así, que se bien aparece el concepto
constantemente en su obra, nunca es definido con rigor. Y es que, en efecto,
democracia es vista en algunos pasajes como forma de organización del
poder político, pensada en otros como tipo de sociedad, aqui se esboça una
3
Sobre este assunto, também ver: Schleifer, James. Como Nació la democracia en América de
Tocqueville. México: Fondo de Cultura Económica, 1984. Há, também, outro artigo do autor: Un
Modelo de Democracia: Lo que Tocqueville Aprendió em América (2005), onde o autor também trata
do problema do conceito de democracia na obra de Tocqueville.
4
Uma análise aprofundada desse problema encontra-se em Jasmin (2005, p. 41): “Quando
Tocqueville tentou formalizar conceitualmente esta intuição, recorreu à palavra democracia, corrente
na tradição política para referir-se a uma forma de governo e significar governo do povo. Mas a
empregou com sentido não tão usual para referir-se a uma forma de sociedade. A rigor, o conceito
permaneceu sem uma definição satisfatória e, apesar das inúmeras tentativas de Tocqueville,
manteve uma inequívoca polissemia. Entretanto, é forçoso reconhecer que, em meio à pluralidade de
significados, predominou no sistema conceitual a conotação associada ao que chamou certa vez
‘uma maneira de ser da sociedade’, por oposição à definição mais estreita que se referia à soberania
do povo, ao direito político e à forma de governo”. “Analiticamente, o conceito foi utilizado em dois
níveis distintos, nem sempre suficientemente diferenciados: um histórico-empírico e outro teórico” (p.
41) .
19
sociologia de la produción intelectual y estética en un contexto democrático,
allí se aborda un retrato psicológico de la mujer y el hombre demócratas. Las
leyes; la opinión pública y los partidos políticos; la distribuición del poder, de
la riqueza y del prestigio; la vida cotidiana, bien abierta a la participacion de
todos en actividades colectivas o bien practicada replegándose cada cual
sobre si mismo; la envidia como sentimiento especialmente democratico,
acompañada de la convicción de que todos los miembros de la comunidad
deben ser iguales y de que todos los trabajos y ocupaciones (siempre que no
violen la ley) son igualmente honrables y respetables; un alto nível médio de
instrucción pública junto a una notable pobreza de grandes obras culturales, e
incluso un escassísimo interés por producirlas; apetito inextinguible por
mejorar el bienestar económico individual mezclandose con la desaparición
progresiva de ambiciones profundas; se desea la paz, se aprecia bien poco al
ejército y la vida militar, se detesta la guerra, pero cuando se abandona ese
estado, cuando la sociedad democrática decide guerrear, se acomoda en su
tonalidad a esa situación, concentra todas sus energias en la lucha y es
dificilíssima de vencer; tales son algunos de los temas desde los que
Tocqueville intenta precisar qué es democracia, cuáles son los componentes
y direcciones del movimiento democrático (Zuñiga, 1984, p. 17-18).
Em uma célebre passagem, Raymond Aron (1986, p. 209) sintetiza muito bem
o entendimento de Tocqueville sobre a democracia:
A seus olhos, a democracia consiste na igualização das condições.
Democrática é uma sociedade onde não existem distinções de ordens e de
classes; em que todos os indivíduos que compõem a coletividade são
socialmente iguais, o que não significa que sejam intelectualmente iguais, o
que é absurdo, ou economicamente iguais, o que, para Tocqueville, é
impossível. A igualdade social significa a inexistência de diferenças
hereditárias de condições; quer dizer que todas as ocupações, todas as
profissões, dignidades e honrarias são acessíveis a todos. Estão, portanto,
implicadas na idéia de democracia a igualdade social e, também, a tendência
para a uniformidade dos modos e dos níveis de vida.
Para Célia Galvão Quirino (s/d, p. 12):
O olhar de Tocqueville, ao apresentar a democracia americana como uma
sociedade de homens iguais, parece ter se fixado em três aspectos
importantes e os ter eleitos como aqueles que são significativos para que se
pudesse compreender o fenômeno da democracia. O primeiro foi definido e
classificado como o de “igualdade de condições”. O segundo diz respeito à
igualdade de oportunidades. O terceiro, não menos importante, é aquele que
faz com que a sociedade americana não possua, ou pelo menos não
aparente possuir, estratificação social rígida, nem permita haver qualquer
impedimento social, legal ou político à ascensão social. Isto é, os americanos
se encaram como iguais não apenas perante a lei, mas também ao exercer
5
qualquer atividade social
5
“Essa idéia de democracia como uma sociedade igualitária é muito bem definida por Tocqueville a
partir, tanto da existência real de uma situação de igualdade de costumes, quanto da perspectiva de
que a sociedade, como um todo, possuía dela própria. Assim, embora Tocqueville considerasse,
como um dado importante, as diferenças de classe social que a riqueza confere, certamente, não
20
Outro problema reconhecido entre comentadores e leitores de Tocqueville,
quando se trata de democracia, é saber que o pensador francês se “move” em dois
níveis distintos. Por vezes, suas análises são empírico-descritivas, e por outras são
“modelos sociais” que não correspondem a nenhuma sociedade específica6.
Leer La Democracia en América o El Antiguo Régimen y la Revolución
buscando solo un análisis de la sociedad americana de la época o de la
monarquia absoluta y el proceso revolucionario, es retener una parte de lo
que ambos textos ofrecen. Hay, sin duda, momentos, en que Tocqueville
busca tal objectivo, pero hay otros, y además entremezclados con los
anteriores, en los que la intención es otra (Zúñiga, 1984, p. 19).
Mas, se há um ponto concordante nas interpretações dos comentadores, é
que Tocqueville reconhece na democracia um movimento arrebatador, onde lhe
parece que a vontade dos homens não pode mais conter movimento tão forte. Os
homens podem e devem dirigir a democracia, mas não há como contê-la.
Se a observação atenta e a meditação sincera levassem os homens de nosso
tempo a reconhecer que o desenvolvimento gradual e progressivo da
igualdade constitui, a um só tempo, o passado e o futuro da sua história,
bastaria essa descoberta para dar àquele desenvolvimento o caráter sagrado
7
da vontade de Deus soberano . Neste caso, querer deter a democracia seria
como lutar contra o próprio Deus, e só restaria às nações acomodar-se ao
estado social que lhes impõe a Providência.
Os povos cristãos parecem-me oferecer hoje em dia um espetáculo aterrador;
o movimento que os impele é já demasiado rápido para que ainda o
seria na igualdade econômica que a democracia buscaria seus alicerces. Portanto, mesmo que a
riqueza pudesse ser vista como um fator gerador de desigualdade, outros fatores e valores mais
significativos, para o povo americano, podem impedir que essa desigualdade venha a afetar, no seu
âmago, as igualitárias e determinantes relações sociais da sociedade democrática. Também seria
preciso considerar que, nessa democracia jacksoniana, a riqueza é vista como algo que pode ser
adquirido e, nesse momento pelo menos, não é a única forma de se obter o poder. O exemplo do
presidente do país, como um autêntico “self-made man” e de seus partidários é para ser observado e
seguido. Tudo parece ser possível a qualquer um e a todos” (Galvão Quirino, s/d, p. 14).
6
“Mi premisa de trabajo es, por supuesto, que Tocqueville llegó al Nuevo Mundo con ciertas ideas y
preocupaciones ya en mente. Alcanzó las costas americanas llevando mucho del bagage histórico y
cultural francés de principios del siglo XIX. Llegó con ideas preconcebidas sobre las características
fundamentales y la orientación de la sociedad moderna. Ya estaba pensando en la revolución, en la
centralización, en la marcha de la democracia, en conseguir la igualdad, en el republicanismo, en el
tema de la soberania, en los posibiles abusos de um poder incontestado, y en el futuro de la liberdad.
Pero el proprio lenguage de Tocqueville indica que América le dio lecciones que él no esperaba y que
cambiaram su manera de pensar de forma importante” (Schleifer, 2005, p. 18). Talvez, possa-se
pensar conforme a citação acima, que esses modelos “ideais” também mudaram conforme a
experiência vivida por Tocqueville na América.
7
Sobre esse tema, ver Marcelo Gantus Jasmin: Tocqueville, a Providência e a História. Disponível
em <www.casaruibarbosa.gov.br>. Acesso em: 28/12/2009.
21
possamos conter; não é ainda bastante rápido para que percamos a
esperança de dirigi-lo: a sua sorte acha-se em suas próprias mãos, mas pode
escapar-lhes bem depressa (Tocqueville, 1987, p. 14).
Ao interpretar a crescente igualização de condições dos povos ocidentais,
Tocqueville apresenta-a como um processo universal, consistindo num movimento
quase irrefreável: os homens entram na era da igualdade. E mais, essa igualdade se
torna o fato decisivo, é ela responsável por toda sorte de mudanças na sociedade,
desde a opinião pública e os hábitos, às leis e aos governos.
E foi justamente esse novo estado social que destruiu tudo o que
representava o Antigo Regime, as instituições aristocráticas. Desde o primeiro
volume da Democracia até o Antigo Regime, Tocqueville permanece com essa idéia.
Nem mesmo a Revolução de 1789, para o pensador francês, escapa desse
pensamento.
Por mais radical que tenha sido a Revolução, inovou muito menos de que se
supõe geralmente (...). A verdade é que destruiu inteiramente ou está
destruindo (porque ela continua) tudo que, na antiga sociedade, deriva das
instituições aristocráticas e feudais, tudo o que a elas se ligava de uma ou de
outra maneira, tudo o que delas trazia, uma marca por menos que fosse. A
Revolução não foi de maneira alguma um acontecimento fortuito. Realmente
pegou o mundo de improviso embora nada mais fosse que o complemento do
trabalho mais longo e do término repentino e violento de uma obra à qual dez
gerações tenham trabalhado. Mesmo que não tivesse surgido a Revolução
Francesa, o velho edifício social teria ruído por toda parte, aqui mais cedo,
acolá mais tarde, mas teria caído peça por peça, em vez de desmoronar-se
de uma só vez. A Revolução resolveu repentinamente, por um esforço
convulsivo e doloroso, sem transição, sem precauções, sem deferências, o
que ter-se-ia realizado sozinho, pouco a pouco, com o tempo. Esta foi,
portanto, a obra da Revolução (Tocqueville, 1982, p. 67-68).
É claro, como comenta Barbu (1982, p.17), que, mesmo Tocqueville
“tratando” a democracia como um fait total8, ela se manifesta de várias formas,
dependendo do contexto histórico. Assim, o movimento democrático na Inglaterra
guarda diferenças com o movimento democrático na França e nos Estados Unidos,
por exemplo. “Enquanto a democracia inglesa é a democracia da liberdade, a
francesa é a democracia da igualdade”, comenta Barbu (idem, p. 18).
8
Fato total ou Fenômeno total é a expressão cunhada por Marcel Mauss, sociólogo e antropólogo
francês, sobrinho de Émile Durkheim. São fenômenos complexos que abrangem vários níveis da
realidade. Ver, sobre isso, Marcel Mauss, 1974, p. 41.
22
Cada tipo de sociedade possui suas qualidades e seus defeitos,
conseqüentemente a transição da aristocracia para a democracia implica ao
mesmo tempo ganho e perdas. A história é uma figura de Janos, e a
mensagem final de L’Ancien Régime é a de se atentar para os bons e maus
aspectos da democracia, e aceitá-la sem alegria exuberante e sem desespero
– ou melhor, nem esperar muito de um futuro democrático, nem chorar
demais por um passado aristocrático (Barbu, 1982, p. 24).
Nesse aspecto, é a ação humana, a ação de cada povo, com seus costumes,
hábitos e crenças, que irá determinar o rumo da democracia. Tocqueville, em muitas
passagens, expressa-se tragicamente, dando a entender um destino inexorável para
o mundo ocidental9. Mas isso é apenas em aparência. Uma análise mais
aprofundada da obra do pensador francês reconhecerá a intenção deste de alterar
os rumos da democracia; para melhor. Tocqueville está, em todos seus escritos,
preocupado com a liberdade no mundo moderno. Assim, é preciso ultrapassar essas
contradições superficiais para compreender sua obra. O próprio Tocqueville, no livro
II da Democracia, reconhece e adverte para o seu tom trágico.
Causas diferentes, mas igualmente independentes do princípio da igualdade,
poderiam ser encontradas na Europa e explicariam grande parte do que nela
se passa.
Reconheço a existência de todas essas diferentes causas e o seu poder, mas
meu assunto em nada me obriga a falar delas. Não me entreguei à tarefa de
mostrar a razão de todos os nossos pendores e de todas as nossas idéias;
desejei simplesmente fazer ver em que parte a igualdade modifica uns e
outras. Talvez cause admiração o fato de, adotando firmemente a opinião de
que a revolução democrática de que somos testemunhas é um fato irresistível
contra a qual não seria nem desejável nem prudente lutar, muitas vezes me
9
Reproduz-se aqui um famoso escrito “profético” de Tocqueville, que se tornou muito famoso
durante a divisão do mundo entre os capitalistas e os comunistas, pelo menos nos paises capitalistas.
“Existem hoje, sobre a terra, dois grandes povos que, tendo partido de pontos diferentes, parece
adiantar-se para o mesmo fim: são os russos e os anglo-americanos. Ambos cresceram na
obscuridade; e, enquanto os olhares dos homens estavam ocupados noutras partes, colocaram-se de
improviso na primeira fila entre as nações e o mundo se deu conta, quase ao mesmo tempo, do seu
nascimento e da sua grandeza. Todos os outros povos parecem ter chegado mais ou menos aos
limites traçados pela natureza, nada mais lhes restando senão manter-se onde se acham; mas
aqueles estão em crescimento; todos os outros se detiveram, ou só avançam a poder de mil esforços;
apenas eles marcham a passo fácil e rápido, numa carreira cujos limites o olhar não poderia perceber
ainda. O americano luta contra os obstáculos que a natureza lhe impõe; o russo está em luta com os
homens. Um combate o deserto e a barbárie, o outro, a civilização com todas as suas armas; por
isso, as conquistas do americano se firmam com o arado do lavrador, as do russo com a espada do
soldado.
Para atingir a sua meta, o primeiro apóia-se no interesse pessoal e deixa agir, sem dirigi-las, a força e
a razão dos indivíduos. O segundo concentra num homem, de certa forma, todo o poder da
sociedade. Um tem por principal meio de ação a liberdade; o outro, a servidão. O seu ponto de
partida é diferente, os seus caminhos são diversos; não obstante, cada um deles parece convocado,
por um desígnio secreto da Providência, a deter nas mãos, um dia, os destinos da metade do
mundo”. (1987, p. 315-316).
23
tenha ocorrido, neste livro, dirigir tão severas palavras às sociedades
democráticas que essa revolução criou. Responderei simplesmente que é por
não ser, de maneira alguma, adversário da democracia, que desejei ser
sincero para com ela. Os homens nunca recebem a verdade de seus inimigos
e seus amigos quase nunca a oferecem; foi por isso que a enunciei (1987, p.
319).
Por isso, é preciso reconhecer e distinguir os hábitos democráticos dos
hábitos de cada povo. Por exemplo, a religião puritana é um hábito do povo norteamericano, não é, por sua vez, um hábito democrático. Já o hábito de não
reconhecer nenhuma autoridade intelectual é um hábito democrático.
Por sua vez, a igualdade social de condições, característica imprescindível da
democracia, ao contrário do estado social aristocrático, desenvolve em cada homem
o desejo de julgar tudo por si mesmo (1987, p. 345). A igualdade faz surgir, no
espírito humano, “[...] muitas idéias que não lhe teriam vindo sem ela, e modifica
quase todas as que já possuía” (1987, p. 340).
O homem democrático, então, para Tocqueville, é um homem que não
reconhece mais nenhuma autoridade no mundo terreno. A igualdade faz, cada vez
mais, os homens tornarem-se parecidos. “A primeira e mais viva das paixões que a
igualdade de condições faz nascer é, não é preciso que o diga, o amor a essa
mesma igualdade” (1987, p. 383)10.
Mas os que experimentam a igualdade de condições não vêem perto de si
senão semelhantes e, não reconhecendo em qualquer parte do corpo social
os “sinais [permanentes] de uma grandeza e de uma superioridade
incontestáveis”, não podem apoiar suas opiniões na inteligência alheia. Por
isso, “são constantemente levados de volta à sua própria razão como a fonte
mais visível e mais próxima da verdade [... de modo que] cada um se encerra
estreitamente em si mesmo e dali pretende julgar o mundo. O indivíduo
democrático é então juiz de si e de todas as coisas, repudiando as antigas
tradições de classe, profissão e família que orientam seus antepassados
através da autoridade do exemplo. Teoricamente, o método filosófico que
preside a consciência individualista democrática é, segundo Tocqueville,
cartesiano – cada um só apela para o esforço individual da sua própria razão
– e, independentemente do conhecimento das obras de Descartes, os
homens seguem suas máximas, pois o “estado social dispõe naturalmente
11
seu espírito a adotá-las ” (Jasmin, 2005, p. 84).
10
“A igualdade de condições, característica dos tempos democráticos, invade todos os domínios da
vida humana dando origem a uma paixão a que os homens aderem irrefletidamente. Ou seja, a
igualdade de condições aparece como o valor dominante da sociedade igualitária. Enquanto
dominante, a igualdade de condições faz nascer entre os homens um ‘pensamento-mãe ou paixão
principal’ pela igualdade, que pode preencher completamente o coração humano” (Reis, 2002, p. 65).
11
Para esclarecer melhor o sentido em que Tocqueville considera o povo norte-americano cartesiano,
reproduz-se aqui uma passagem da Democracia (1987, p. 321-322): “Creio não existir, no mundo
24
E por repudiar as antigas tradições, principalmente as de classe, é que
Tocqueville caracteriza a sociedade democrática, ao contrário da sociedade
aristocrática12, como uma sociedade que se “move” de maneira rápida. Nada mais
prende o homem democrático. Tudo pode estar ao seu alcance. “A igualdade
desenvolve em cada homem o desejo de julgar tudo por si mesmo; dá-lhe, em todas
as coisas, o gosto pelo tangível e pelo real, o desdém pelas tradições e pelas
formas” (Tocqueville, 1987, p. 345). O homem volta-se para si mesmo, para si
próprio, não estima a erudição, não lhe interessa o passado, o que se passava em
Roma ou Atenas, só o que exige é o quadro do presente (1987, p. 372).
[...] Tocqueville advertiu que a lógica igualitária da democracia universalizava
uma inédita mescla de oportunidades e ameaças. Por um lado, a difusão da
riqueza, da educação, do conforto e do bem-estar social superaria os velhos
extremos de opulência e pobreza, de aristocracia e servidão e abriria caminho
a uma numerosa classe média, titular de amplos direitos civis e políticos. Por
outro, a dissolução dos tradicionais grupos intermediários fundados no
civilizado, país onde menos se preste atenção à filosofia que os Estados Unidos. Os americanos não
têm nenhuma escola filosófica própria e muito pouco se incomodam com todas aquelas que dividem
a Europa; e mal sabem-lhes os nomes. No entanto, é fácil perceber que todos os habitantes dos
Estado Unidos dirigem o espírito da mesma maneira e o conduzem segundo as mesmas regras; isto
é, possuem sem que jamais tenham se dado ao trabalho de definir as suas regras, certo método
filosófico que é comum a todos eles.
Fugir ao espírito de sistema, ao jugo dos hábitos, às máximas de família e, até certo ponto, aos
preceitos da nação, só aceitar a tradição como uma informação e os fatos presentes como uma útil
lição para fazer de outra e melhor forma; procurar sozinho em si mesmo a razão das coisas; tender
para o resultado sem se deixar pretender aos meios e visar o fundo através da forma – tais são os
principais traços característicos do que eu chamei o método filosófico dos americanos. [...] Por isso, é
a América um dos países do mundo onde se estudam menos e onde melhor se seguem os preceitos
de Descartes. Isso não é razão de surpresa. Os americanos de modo nenhum lêem as obras de
Descartes, pois seu estado social os desvia de seus assuntos especulativos; mas seguem as suas
máximas porque aquele mesmo estado social naturalmente dispõe o seu espírito a adotá-las”.
12
Segundo Zúñiga (1984, p. 21-22), há três pontos importantes no que Tocqueville compreende por
sociedade aristocrática:
a) Desigualdad entre las distintas clases y estados: el lugar de nacimiento (en la doble
dimensión de território geográfico y familia concreta) diferenciaba rigurosa y definitivamente a
unos de otros: cada grupo social tenia funciones e normas específicas que delimitaban desde
el nacimiento de cada cual el abanico de sus posibles opciones. Se es noble, como se es
villano, por razón de nacimiento: no es, pues, necesario componer a cada instante un
escenario que permite evidenciar que se posee una u otra calidad porque el escenario y la
trama están construidos desde que cada cual viene al mundo.
b) El poder ideológico, el político y el económico se concentran en unas manos, el resto se ven
confinados al trabajo. Es decir, el poderoso puede olvidar lo cotidiano y concentrar un esforzo
en lo extraordinario: la tensión y la energia social serán enderezadas por los grupos
preeminentes más en esa dirección que hacia la moderación doméstica.
c) Cada grupo social se articula con los restantes grupos sociales a partir de un juego recíproco
de derechos y obligaciones: el nobre se ve descargado de trabajar, pero viene obligado a la
protección del vasallo.
25
respeito às hierarquias, a paixão incontrolável por sempre mais igualdade, a
desconfiança instintiva das massas contra qualquer manifestação de
superioridade intelectual, a “tirania da maioria”, a exclusiva concentração das
pessoas em seus interesses privados e o conseqüente relaxamento das
virtudes cívicas [...] (Kramer, 2000, p. 165).
E essas ameaças que a igualdade, o princípio unificador da democracia (cf.
Jasmin, 2005, p.47), traz consigo, faz surgir dois novos problemas sociais: o
individualismo e o despotismo democrático.
1.2 O Individualismo
O individualismo, segundo Tocqueville, é um fenômeno novo, decorrente do
processo de igualdade de condições. Ao contrário do egoísmo13, que é intrínseco ao
ser humano14,
o
individualismo
só
surge
nos
séculos
democráticos.
“O
individualismo é um sentimento refletido e pacífico, que dispõe cada cidadão a
isolar-se da massa de seus semelhantes e a retirar-se para um lado com sua família
e seus amigos, de tal sorte que, após ter criado para si, desta forma, uma pequena
sociedade para seu uso, abandona de bom grado a própria grande sociedade”
(1987, p. 386).
Diferentemente das sociedades aristocráticas, onde existia uma cadeia de
proteção entre os súditos, na democracia cada um depende única e exclusivamente
de seus esforços pessoais. Não há mais laços entre os indivíduos de uma mesma
classe. Nas sociedades aristocráticas, a riqueza é um privilégio hereditário, os ricos
não precisam se preocupar em obtê-la, é como que natural a condição econômica
das classes. Por isso, os aristocratas podem se preocupar com outros assuntos,
13
“O egoísmo esteriliza os germes de todas as virtudes, o individualismo, de início, só faz secar a
fonte das virtudes públicas; mas, depois de algum tempo, ataca e destrói todas as outras e vai, afinal,
absorver-se no egoísmo.
O egoísmo é um vício tão antigo quanto o mundo. Praticamente, não pertence mais a uma que a
outra forma de sociedade. O individualismo é de origem democrática e ameaça desenvolver-se à
medida que se igualam as condições” (Tocqueville, 1987, p. 386).
14
Tocqueville acredita numa natureza humana. “Quando certa maneira de pensar ou de sentir é
produto de um estado social particular da humanidade, nada resta ao modificar-se esse estado. [...]
Não se dá, porém, a mesma coisa, quanto aos sentimentos naturais à espécie humana. É raro que a
lei, esforçando-se por fazer com que estes se dobrem de certa maneira, não os enfraqueça; que,
desejando ajuntar, não lhes chegue a tirar alguma coisa, e que não sejam sempre muito fortes,
quando entregues a si mesmos” (1987, p. 450). Nesse sentido, a democracia, como um estado social
determinado, apenas altera de maneira superficial alguns sentimentos inerentes ao ser humano.
26
como, por exemplo, a vida pública. Com a “revolução” democrática, cai a barreira
social que separava ricos e pobres15. E, por não haver mais laços, os homens se
esforçam, cada vez mais, por buscar, pelos seus próprios esforços individuais, um
maior bem-estar. “Dessa forma, a democracia seria incentivadora desse isolamento
pelo fato de, nela, o indivíduo só contar consigo mesmo e acreditar que é o seu
trabalho, bem como os seus esforços e suas capacidades, que irá conceder-lhe
tranqüilidade e bem-estar” (Quirino, 2001, p.75).
Os homens dos tempos democráticos só desejam tranqüilidade e bem-estar.
Sobre o bem-estar, assim se refere Tocqueville (1987, p. 412):
Existe, na realidade, uma passagem muito perigosa na vida dos povos
democráticos. Quando o gosto pelos prazeres materiais se desenvolve num
desses povos mais rapidamente que as luzes e os hábitos da liberdade,
chega um momento em que os homens se acham enleados e como que fora
de si mesmos, em vista desses bens novos que estão prontos a colher.
Preocupados apenas com o cuidado de fazer fortuna, não mais percebem o
estreito laço que une a fortuna particular de cada um deles à prosperidade de
todos. Não é necessário tirar de tais cidadãos os direitos que possuem; eles
mesmos os deixam voluntariamente escapar. O exercício de seus deveres
políticos parece-lhes um contratempo desagradável que os distrai da sua
indústria.
Para o homem moderno, então, constitui perda de tempo o envolvimento com
a coisa pública. Isso lhe tira o foco do “essencial” – ganhar dinheiro e viver
seguramente. O homem democrático acha inútil a vida pública. “Como os cidadãos
que trabalham não desejam pensar na coisa pública e não existe mais a classe que
poderia encarregar-se desse cuidado para encher os seus vagares, o lugar do
governo fica como que vazio” (Tocqueville, 1987, p. 413).
Mesmo vivendo em sociedade, o homem torna-se uma “ilha”. Seu círculo de
relações familiares forma “toda a humanidade”. O restante dos homens, mesmo
estando a seu lado, “[...] ele não os vê, toca-os e não os sente; existe apenas em si
e para si mesmo, e, se ainda lhe resta uma família, pode-se ao menos dizer que não
tem mais pátria” (1987, p. 531).
15
“Num povo aristocrático, cada casta tem as suas opiniões, os seus sentimentos, os seus direitos,
os seus costumes, a sua existência à parte. Assim, os homens que a compõem nunca se parecem a
todos os outros; nunca têm a mesma maneira de pensar ou de sentir, e mal chegam a crer que fazem
parte da mesma humanidade” (Tocqueville, 1987, p. 427).
27
Ao se preocupar apenas com sua vida privada, com os bens privados, o
homem retira-se do “palco da vida política”. Então, mesmo todos tendo os mesmos
direitos, podendo gozar das mesmas profissões, podem perder a liberdade política.
E perderão de bom grado se lhes garantirem o bem-estar. Esse é o perigo do
individualismo: uma sociedade em que só o conforto e a segurança são valorizados.
A igualdade pode estabelecer-se na sociedade civil e não reinar no mundo
político. Pode-se ter o direito de se entregar aos mesmos prazeres, de entrar
para as mesmas profissões, de encontrar-se nos mesmos lugares [...]. Podese estabelecer-se mesmo uma espécie de igualdade no mundo político,
embora não haja a liberdade política. Somos iguais a todos os nossos
semelhantes, menos um, que é, sem discussão, o senhor de todos, e que
toma igualmente, entre todos, os agentes do seu poder (Tocqueville, 1987, p.
383-384).
Então, através da apatia social, decorrente do individualismo, pode surgir um
governo despótico.
1.3 O despotismo democrático
Mas o que Tocqueville compreende por despotismo democrático não se
encontra na história: é uma nova forma de poder. Para esse novo fenômeno, o
pensador chama a atenção para o fato de que este poder não se fixará contra a
vontade dos homens. Ao contrário, ocupará o lugar vago da política, deixado pelos
indivíduos. Então, esse poder, absoluto e brando ao mesmo tempo, irá se impor com
o apoio dos homens, desde que se garanta, é bom lembrar, o bem-estar e a
segurança.
Sobre a base social individualista, um poder imenso, absoluto e brando, cuida
de todos os detalhes da vida social dos súditos que se mantêm ocupados na
busca dos “pequenos e vulgares prazeres”. Zeloso, age como pai, mas obriga
seus “filhos” à eterna menoridade. “Animais tímidos e diligentes”,
dependentes do “pastor para todas as coisas”, têm sua vontade inutilizada e o
uso do seu livre-arbítrio é raro. O poder não é tirânico, é tutelar; a nova
opressão é regulada e pacífica e, em sua forma mais avançada, combina a
centralização administrativa com a soberania do povo pela incorporação das
“formas exteriores da liberdade” que dão aos súditos a sensação de
comandarem a si mesmos. Apesar de tutelados, elegem seus tutores
(Jasmin, 2005, p. 66-67).
28
O estado social democrático gera, nos indivíduos, dois tipos de paixões, que
se contradizem de certa forma: o desejo de independência e a necessidade de ser
conduzido16. De um lado, o homem democrático não se submete a nenhuma
autoridade, quer conduzir sua vida particular, seus negócios, da maneira como lhe
aprouver. De outro, na vida pública, deseja apenas que esta não tome seu tempo,
que não atravanque sua vida privada. Se alguém se dedicar a esta atividade, o
homem democrático “agradecerá”, pois ele só quer a paz pública. E, “[uma] nação
que não pede a seu governo senão a manutenção da ordem já é escrava no fundo
do coração; é escrava do seu bem-estar, e o homem que deve acorrentá-la pode
aparecer” (Tocqueville, 1987 p. 413).
O homem democrático não percebe que, inclusive a sua vida privada, seu
bem-estar, depende da coisa pública. Ele crê que comparecer às urnas basta para
garantir sua liberdade política17. “A vida privada é tão ativa nos tempos
democráticos, tão agitada, tão cheia de desejos, de trabalhos, que quase não resta
mais energia nem vagar a cada homem para a vida política” (1987, p. 515).
O homem democrático é, ao mesmo tempo, independente e frágil. Não lhe
ocorre se unir com seu semelhante. E como nenhum deve obediência a outro, a um
senhor, como nos tempos aristocráticos, o poder de associação é quase nulo. Os
séculos democráticos desenvolvem nos homens idéias simples e gerais. Vêem-se
como iguais, crêem que as regras devem ser iguais a todos. Essas idéias também
têm seu lado negativo, principalmente em política, pois “[...] a uniformidade
legislativa parece-lhe ser a condição primeira de um bom governo” (1987, p. 513). E
em qual governo reina uma uniformidade maior que no despótico?
À medida que as condições se tornam iguais num povo, os indivíduos
parecem menores e a sociedade, maior; ou melhor, cada cidadão, tendo se
tornado semelhante a todos os demais, perde-se na multidão, e não se
parece mais senão a imagem vasta e magnífica do próprio povo. Isso dá
naturalmente aos homens dos tempos democráticos uma opinião muito
elevada dos privilégios da sociedade e uma idéia muito humilde dos direitos
do indivíduo. Admitem eles facilmente que o interesse de um é tudo e o de
outro é nada. Com grande boa vontade, concordam que o poder que
representa a sociedade possui muito mais luzes e sabedoria que qualquer
16
Ver, sobre esse tema, Jasmin, 2005, p. 67.
“A imagem tocquevilleana do despotismo democrático, ao mesmo tempo que mantém os
pressupostos tradicionais de uma natureza servil, rompe com a tradição ao assumir a viabilidade de
um despotismo ocidental (Vollrath), uma degeneração do político em não-político, considerada legal
e legítima porque apoiada no consentimento” (Jasmin, 2005, p. 73).
17
29
dos homens que a compõem, e que o seu dever, tanto quanto o seu direito, é
tomar cada cidadão pela mão e conduzi-lo” (Tocqueville, 1987, p. 513).
Os homens admitem e se convencem de que, como o poder emana do povo,
o Estado tem o poder de tudo fazer. Deve pôr a mão em tudo, como menciona
Tocqueville. Assim, cria-se um poder central onipotente. “A unidade, a ubiqüidade, a
onipotência do poder social, a uniformidade de suas regras, constituem o traço de
realce que caracteriza todos os sistemas políticos nascidos hoje em dia”
(Tocqueville, 1987, p. 514). Mesmo que haja eleições e que os homens as desejem,
os programas políticos e as idéias dos governos não mudam. “Todos concebem o
governo sob a imagem de um poder único, simples, providencial e criador” (idem, p.
514).
Os homens, nos tempos democráticos, não se importam em perder a
liberdade política, desde que todos a percam. Preferem a igualdade acima de tudo e,
mais, os bens que um estado social democrático pode proporcionar.
Esses são os maiores problemas das eras democráticas, segundo
Tocqueville. Mas isso não quer dizer que todos os povos democráticos cairão sob o
jugo de um Estado onipotente, devido às suas respectivas apatias políticas. E,
nesses termos, o maior exemplo de que se pode combinar igualdade e liberdade
está no povo dos Estados Unidos da América.
30
2. As possibilidades da liberdade em um Estado democrático
Tocqueville inscreve-se como um defensor irredutível da liberdade. Era um
apaixonado pela liberdade. Mas o que, realmente, o pensador francês compreendia
por liberdade?
Ao interpretar a crescente igualização de condições como um estado social
que pode levar tanto à servidão quanto à liberdade, Tocqueville vê na ação humana
(principalmente na ação política) as possibilidades da liberdade num estado
democrático. É através da ação dos indivíduos que se pode tornar possível a
liberdade na igualdade. Tocqueville, porém, não é um generalista. Admite que não é
possível haver uma só causa para os fenômenos históricos. Por isso, o rumo incerto
das eras democráticas.
Odeio, de minha parte, estes sistemas absolutos, que fazem depender todos
os acontecimentos da história de grandes causas primeiras, ligando-se umas
às outras por uma cadeia fatal, e que suprimem, por assim dizer, os homens
da história do gênero humano. Eu os acho limitados em sua pretensa
grandeza, e falsos sob seu ar de verdade matemática. Creio, ainda que isso
desagrade aos escritores que inventaram estas teorias sublimes para
alimentar sua vaidade e facilitar seu trabalho, que muitos fatos históricos só
poderiam ser explicados por circunstâncias acidentais, e que muitos outros
permanecem inexplicáveis; que enfim o acaso, ou antes este emaranhado de
causas segundas que assim chamamos por não sabê-lo desembaraçar,
interfere, e muito, em tudo que nós vemos sobre o teatro do mundo [...]
(Tocqueville apud Jasmin, 2005, p. 185).
Para Tocqueville, essa busca por fatos gerais também ocorre por causa dos
valores democráticos. É por isso que critica os historiadores dos séculos
democráticos. Não que Tocqueville fosse invariavelmente contrário a esse tipo de
31
explicação, mas não podia deixar de notar a ação de indivíduos18. É por isso que
distingue os historiadores dos séculos aristocráticos dos historiadores dos séculos
democráticos. Para ele, os historiadores dos séculos aristocráticos tentaram explicar
os acontecimentos pela ação dos indivíduos, já que era fácil perceber um grupo
reduzido de indivíduos que comandavam a sociedade. Nos séculos democráticos, os
historiadores tentam explicar os acontecimentos pelas causas gerais, pois só
enxergam a massa. Mas esse tipo de explicação de mundo tem um fato muito
negativo para Tocqueville, pois, ao atribuírem só causas gerais a certos eventos e,
ainda, criarem, a partir dessas causas gerais, um sistema, eliminam a liberdade dos
indivíduos. Só vêem o movimento do povo por uma força superior.
Os historiadores que vivem nos tempos democráticos não recusam, pois,
apenas atribuir a alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino do povo;
ainda tiram aos próprios povos a faculdade de modificar a sua própria sorte e
os submetem ora a uma providência inflexível, ora a uma espécie de cega
fatalidade. Segundo eles, cada nação é invencivelmente ligada, pela sua
posição, sua origem, seus antecedentes, sua natureza, a certo destino, que
nem todos os esforços poderiam modificar (1987, p. 377).
Tocqueville, até mesmo por sua ação política como parlamentar, aposta na
liberdade humana, principalmente na liberdade política, para “sanar” os problemas
da igualdade. Crê que uma democracia perfeita só é possível de acontecer onde
ninguém exerça um poder tirânico e os homens sejam inteiramente livres porque
iguais e iguais porque inteiramente livres19. Mas existem mil outras formas de
democracia e o medo de Tocqueville é de que se estabeleça nas nações uma
igualdade civil sem que seja mantida a liberdade política. A liberdade20, para o
18
“Quanto a mim, creio que não há época em que seja necessário atribuir uma parte dos
acontecimentos deste mundo a fatos muito gerais e outra a influências muito particulares. Essas duas
causas se encontram sempre; só difere a sua relação” (Tocqueville, 1987, p. 376).
19
Ver Tocqueville, Segunda Parte, Cap. I, p. 383.
20
Segundo Helena Esser dos Reis (2002), a noção de liberdade, para Tocqueville, tem duas
características importantes: 1ª a independência individual; 2ª a participação política. “Veremos que,
apesar das peculiaridades, sua concepção de liberdade reúne sempre a independência individual,
entendida como não submissão ao arbítrio de outrem, e a participação, ou seja, o direito de todos os
cidadãos tomarem parte nas decisões das questões relativas à sua comunidade. A liberdade,
concebida como independência e participação, pode apresentar-se tanto em um estado aristocrático,
quanto em um estado democrático, e realiza-se no espaço público de convívio dos cidadãos” (2002,
p. 10). Conforme Jasmin (2001, p. 206), “para Tocqueville, a liberdade democrática moderna depende
do fato político da existência pública dos indivíduos livres como cidadãos, da mobilização da vontade
de cada um na formação da vontade soberana, o que introduz um elemento de atividade cívica como
condição para a legitimidade do poder político igualitário livre”.
32
pensador francês, não é uma característica das épocas democráticas, aliás, não é
característica de nenhum estado social21.
A liberdade manifestou-se aos homens em diferentes ocasiões e sob
diferentes formas; nunca se ligou exclusivamente a um estado social e
podemos encontrá-la também fora das democracias. Por isso, não poderia
formar o caráter distintivo dos séculos democráticos. O fato particular e
dominante que singulariza estes séculos é a igualdade de condições; a
paixão principal que agita os homens em tais ocasiões é o amor por essa
igualdade (Tocqueville, 1987, p. 384).
Outro problema é que a liberdade pode, em seus excessos, acabar com a
tranqüilidade social; além disso, seus benefícios não são fáceis de reconhecer. “Os
bens que a liberdade proporciona só se mostram ao cabo de algum tempo, e é
sempre fácil enganarmo-nos quanto à causa que os faz nascer22” (1987, p. 385).
Mas, diante dos males que a igualdade pode introduzir no seio da sociedade, como
a apatia política, a tirania e o despotismo, só há um remédio: a liberdade política.
Muitas pessoas, na França, consideram a igualdade de condições como um
mal, e a liberdade política como outro. Quando são obrigadas a sofrer uma,
esforçam-se, ao menos, por escapar à outra. Eu, por mim, digo que, para
combater os males que a igualdade pode produzir, só existe um remédio
eficiente: é a liberdade política (Tocqueville, 1987, p. 391).
Para Tocqueville, a liberdade humana não é algo inerente ao homem. Existem
homens, segundo ele, incapazes de sentir apreço a tal valor. “O que, em todos os
tempos, tão fortemente agarrou os corações de certos homens à liberdade é sua
própria atração, seu encanto, independentemente de suas dádivas; é o prazer de
poder falar, agir, respirar sem constrangimento sob o único governo de Deus e de
21
Mas Tocqueville, no artigo “O estado social da França antes e depois de 1789”, admite que a
liberdade no estado social democrático é a forma mais justa. “Segundo a noção moderna de
democracia – e eu me atreveria a dizer que é a noção justa da liberdade –, todo homem,
pressupondo-se que recebeu da natureza as luzes necessárias para conduzir-se por si mesmo, tem
de nascimento um direito natural e imprescritível de viver com independência de seus semelhantes
em tudo o que se relaciona com sua pessoa, e a ordenar segundo lhe convém seu próprio destino”
(1988, p. 94).
22
No Antigo Regime, escreve Tocqueville (1982, p. 160): “É verdade que com o tempo a liberdade
sempre traz, a quem sabe retê-la, uma vida remediada, o bem-estar muita vezes, a riqueza. Existem
porém tempos onde ela perturba momentaneamente o uso de tais bens e outros onde só o
despotismo permite seu gozo transitório. Os homens que nela só apreciam estes bens nunca a
conservam por muito tempo”.
33
suas leis. Quem procura na liberdade outra coisa que ela própria foi feito para a
servidão” (Tocqueville, 1982, p. 160).
Mas a democracia faz surgir condições que podem ser favoráveis à liberdade
humana, pois, como já exposto, não existem mais hierarquias rígidas entre as
classes. Dessa forma:
[uma] vez que a cadeia hierárquica é rompida tornando os homens iguais
entre si, a liberdade estende-se a todos os membros do corpo social: a cada
um é reconhecido o direito de pensar, julgar e agir por si mesmo. É preciso
observar que, segundo Tocqueville, o igual direito à liberdade, não sendo
inerente à natureza humana, advém historicamente. É o vir-a-ser da
igualdade de condições que faculta a todos os homens o exercício da
liberdade (Reis, 2002, p. 30)
E porque o “movimento da história” produz circunstâncias novas, é que os
homens devem se preparar para estas, ou seja, devem ser educados para
adaptarem-se às novas circunstâncias. Se os homens não se prepararem para a
democracia, a fim de dirigi-la, esta crescerá abandonada, “feito criança de rua” e,
quando tomar o poder, os seus vícios aparecerão. Então os homens tentarão
destruir a democracia e, não, corrigir os seus defeitos.
Um Estado democrático livre só é possível de ser construído se houver a
participação direta do conjunto dos cidadãos na gestão da coisa pública. “É
incontestável, na realidade, que, nos Estados Unidos, o gosto e o costume do
governo republicano nasceram nas comunas e no seio das assembléias provinciais
[...]. Cada cidadão nos Estados Unidos transporta, por assim dizer, o interesse que
lhe inspira sua pequena república ao amor da pátria comum” (Tocqueville, 1987, p.
127).
A arte de se associar, segundo Tocqueville, deve crescer na medida em que
cresce a igualdade de condições. É o cálculo tocquevilleano para a liberdade. Sem
associação, sem a participação dos homens nos negócios públicos, não haverá
liberdade23.
23
“El espirito de associación es multiforme en Norteamérica, y Tocqueville se limita aqui a estudar su
intrusión en la vida política. Va de la simple petición colectiva a la elección de una asamblea cuyos
delegados han sido escogidos para la defensa de um principio o un interés. En este caso, llega a una
especie de rivalidad en las asambleas legales (...). El ejemplo de Norteamérica convence a
Tocqueville de que el derecho de associación constytue una libertad esencial” (Jardin, 1988, p. 173).
34
Tocqueville teme que se estabeleçam instituições democráticas sem que os
cidadãos tenham idéias e sentimentos que os preparem para a liberdade. Os
costumes são fundamentais para que um povo democrático permaneça livre: “A
minha finalidade foi mostrar, pelo exemplo da América, que as leis e, sobretudo os
costumes, podiam permitir a um povo democrático permanecer livre” (1987, p. 242).
Da mesma forma, se os governos democráticos não permitirem que os cidadãos
usem sua liberdade política, não haverá independência para ninguém: “[...] nem para
o burguês, nem para o nobre, nem para o rico, mas uma tirania igual para todos; [...]
se não se chegar mesmo com o tempo a fundar entre nós o império pacífico da
maioria, chegaremos [...] ao poder ilimitado de um só” (1987, p. 242).
Todo o empreendimento dos americanos está em manter a democracia
através de uma cada vez maior igualdade e liberdade; por isso, se esforçam para
manter a coisa pública e a ajuda mútua: “Devo dizer que muitas vezes vi americanos
fazerem grandes e verdadeiros sacrifícios à coisa pública, e observei cem vezes
que, quando necessário, quase nunca se furtam de prestar fiel apoio uns aos outros”
(1987, p. 391). O espírito público dos americanos se sobressai. Em outra passagem,
fica ainda mais explícito o caráter associativo da vida civil dos americanos:
Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os
espíritos, estão constantemente a se unir. Não só possuem associações
comerciais e industriais, nas quais tomam parte, como ainda existem mil
outras espécies: religiosas, morais, graves, fúteis, muito gerais e muito
pequenas. Os americanos associam-se para dar festas, fundar seminários,
construir hotéis, edifícios, igrejas, distribuir livros, enviar missionários aos
antípodas; assim também criam hospitais, prisões, escolas” (Tocqueville,
1987, p. 391-392).
É esse espírito cívico que fez dos Estados Unidos uma democracia a ser
seguida24. “Os sentimentos e as idéias não se renovam, o coração não cresce e o
espírito não se desenvolve a não ser pela ação recíproca dos homens uns sobre os
24
É preciso mencionar aqui que Tocqueville jamais pensou que a França deveria seguir ou copiar os
passos da democracia norte-americana. O pensador francês cita o caso do México, que transportou
para seu território a legislação americana e nem por isso se tornou uma nação próspera. Tocqueville
não vai aos Estados Unidos para trazer ensinamentos à França, no sentido de copiar o povo
americano, mas tenta comparar os Estados Unidos com os outros países a fim de que estes
encontrem soluções para os males da democracia. Uma interpretação contrária a essa pode ser
encontrada em Luis Werneck Vianna. Lições da América: o problema do americanismo em
Tocqueville (1993).
35
outros”. Da mesma forma, “para que os homens permaneçam civilizados ou assim
se tornem, é preciso que entre eles a arte de se associar se desenvolva e aperfeiçoe
na medida em que cresce a igualdade de condições” (Tocqueville, 1987, p. 394).
2.1 A Doutrina do Interesse Bem Compreendido
Quando o homem democrático admite apenas o seu interesse, quando uma
sociedade perde qualquer referência das virtudes públicas, quando a apatia aos
negócios públicos toma conta do corpo social, não é somente o individualismo a
causa do desinteresse pelos assuntos públicos. Há, entre outras causas, uma muito
relevante nas sociedades democráticas: a falta de tempo. O homem democrático
[não] só não possui o gosto natural de se ocupar com o público, mas muitas
vezes não tem tempo para fazê-lo. A vida privada é tão ativa nos tempos
democráticos, tão agitada, tão cheia de desejos, de trabalhos, que quase não
resta mais energia nem vagar a cada homem para a vida política. Não serei
eu que negarei que tais inclinações não sejam invencíveis, já que minha
finalidade principal, ao escrever este livro, foi combatê-las. Afirmo apenas
que, em nossos dias, uma força secreta os desenvolve constantemente no
coração humano, e se não forem detidos, acabarão por enchê-lo (Tocqueville,
1987, p. 515).
Para superar esses males que afastam os indivíduos da vida pública25, é
preciso criar-se ou recuperar as virtudes públicas26. Para Tocqueville, as virtudes
25
Segundo Goldstein, interpretando Tocqueville (1964, p. 41), o individualismo é a principal ameaça
ao espírito público. “The chief threat to the existence of this new type of public spirit, Tocqueville
balieved, was individualism. According to definition, it will be remembered, individualism – one of the
baneful results of democratization – leads men to think of themselves as isolated atoms, without ties
to society at large”.
26
Para Goldstein (1964, p. 39), Tocqueville parece distinguir a virtude privada e individual das
virtudes públicas. Nas repúblicas antigas, os homens virtuosos estavam sempre prontos à sacrificar
seus interesses em nome do bem público. Essa era a definição clássica de virtude. Nesse sentido,
Tocqueville está de acordo com a tradição de Montesquieu, de Maquiavel e da teoria política grega.
Levando em conta o sentido clássico, para Tocqueville a América não era virtuosa mas iluminada,
pois conciliava interesses públicos e privados. Mas, então, a definição clássica não era mais válida?
As repúblicas não precisavam mais ser virtuosas?
“An entry in one of the American journals indicates an implicit distinction between ‘virtue’ in the sense
of the private individual´s adherence to the Cristian virtues, and what Tocqueville calls ‘la vertu
publique’. The ancient republics Tocqueville placed himself squarely in the tradition of Montesquieu,
Machiavelli and ultimately, of Greek political theory. But, he asked himself, did the classical
formulation hold good for modern republics? More specifically, as America animated by ‘virtue’ in the
sense of desinterestd love of country? He decided that America was not virtuous but was, however,
enlightened since it attempetd to reconcile public and private interests. Did this mean, then, that the
36
públicas devem estar embasadas em outros princípios do que estavam durante a
aristocracia. Se, nos séculos aristocráticos, o homem se elevava acima do seu
interesse pessoal, crendo em valores como o sublime, a glória ou no próprio Deus,
nos séculos democráticos, “em que a imaginação voa menos alto” e os homens se
preocupam muito mais com o bem-estar, as virtudes públicas não devem contrariar
os interesses privados dos indivíduos. A idéia do sacrifício pessoal, em virtude de
algo maior, parece não conseguir conquistar mais os homens democráticos27. A
questão central passa a ser: qual a vantagem pessoal em ter virtudes públicas? Por
que é importante e vantajoso sacrificar-se pelo bem de todos?
Nos Estados Unidos da América, a conciliação do interesse privado com o
interesse de todos tornou-se uma doutrina.
Nos Estados Unidos, quase nunca se diz que a virtude é bela. Afirma-se que
é útil e todos os dias prova-se isso. Os moralistas americanos não pretendem
que seja necessário sacrificar-se aos semelhantes porque é grandioso fazêlo, mas dizem ousadamente que tais sacrifícios são tão necessários àquele
que os impõe como àquele que dele se aproveita. Percebem que, no seu país
e no seu tempo, o homem era levado para si mesmo por uma força irresistível
e, perdendo a esperança de detê-la, não mais pensaram senão em orientá-la.
Por isso, de modo algum negaram que cada homem poderia seguir o seu
interesse, mas se esforçaram por provar que o interesse de cada um é ser
honesto (Tocqueville, 1987, p. 401).
Essa doutrina, que pode ser encontrada tanto na classe rica quanto nas
camadas mais pobres, perpassa todos os atos da vida dos americanos. Cada ação
humana que leva em consideração o outro pode ser “encaixada” na doutrina do
interesse bem compreendido. A base da doutrina, que está de acordo com os
tempos democráticos, é o amor próprio, o interesse pessoal. Mas esse amor não
pode ser um amor egoísta ou individualista. Deve ser um amor esclarecido: “[o] amor
esclarecido por si mesmos leva-os incessantemente a ajudar-se entre si e os dispõe
a sacrificar, de boa vontade, ao bem do Estado, uma parte de seu tempo e das suas
riquezas” (Tocqueville, 1987, p. 401).
classical definition was no longer valid, that virtue was not nesessarily the principle of all republics?”
(Goldstein, 1964, p. 39).
27
Isso não quer dizer que os séculos aristocráticos fossem mais virtuosos, apenas que o apelo às
virtudes mudou.
37
A doutrina do interesse bem compreendido, admite Tocqueville, é uma
doutrina pouco elevada28, no sentido de sua simplicidade. E, por ser de fácil
assimilação, não dependendo de grandes esforços intelectuais, está ao alcance de
todos29. É uma doutrina que não torna os homens virtuosos, no sentido antigo do
termo, pois não requer grandes sacrifícios, grandes obras30.
A doutrina do interesse bem compreendido não produz grandes dedicações,
mas sugere a cada dia pequenos sacrifícios; por si mesma não seria capaz
de tornar um homem virtuoso; mas forma uma multidão de cidadãos corretos,
temperantes, moderados, previdentes, senhores de si mesmos; e, se é
verdade que não conduz diretamente à virtude, pela vontade, aproxima-se
dela insensivelmente pelos hábitos. Se a doutrina do interesse bem
compreendido viesse a dominar inteiramente o mundo moral, as virtudes
extraordinárias seriam, sem dúvida, mais raras. Mas também penso que,
então, as grosseiras depravações seriam menos comuns. A doutrina do
interesse individual talvez impeça alguns homens de mostrar-se acima do
nível ordinário da humanidade; mas grande número de outros que ficam
abaixo a encontram e se conservam nele. Quando consideramos alguns
indivíduos, ela os abaixa. Quando encaramos a espécie, ela a eleva
(Tocqueville, 1987, p. 402).
28
“Se o olhar aristocrático de Tocqueville já desistira de encontrar no mundo igualitário das massas
qualquer saliência significativa das doutrinas morais que considerava mais elevadas – especialmente
aquelas do interesse de si segundo as quais ‘a base das ações é o dever’ –, a doutrina do interesse
bem compreendido, ou da ‘utilidade da virtude’, cumpria o papel de reduzir o caráter predatório do
auto-interesse ao obrigar os indivíduos à participação no público. De algum modo acreditava o então
jovem Tocqueville, a prática criaria o gosto e o que era inicialmente cálculo da ambição poderia
tornar-se resultado virtuoso. Nesses termos poderíamos falar de uma terapêutica comunitária no
jovem Tocqueville, aquela fundada na esperança de que, ‘à força de trabalhar para o bem de seus
concidadãos, ganha-se enfim o hábito e o gosto de servi-los’” (Jasmin, 2001, p. 211).
29
“[...] De modo geral, somente as concepções simples se apoderam do espírito do povo. Uma idéia
falsa, mas clara e precisa, terá sempre mais poder no mundo do que uma idéia verdadeira, mas
complexa. Daí vêm os partidos, que são como pequenas nações dentro de uma grande, a se
apressarem sempre por adotar por símbolo um nome ou princípio que, muitas vezes, só
incompletamente representa a finalidade que se propõem e os meios que empregam, mas sem o qual
não poderiam subsistir nem se mover. Os governos que só repousam sobre uma única idéia ou sobre
um único sentimento fácil de existir talvez não sejam os melhores; mas são, com toda a certeza, os
mais fortes e os mais duráveis’” (Tocqueville, 1987, p. 128).
30
“Trata-se, portanto, de uma doutrina moralmente fraca, de um ‘ponto de vista pouco elevado do
qual os americanos vêem as ações humanas’. Ela é o resultado de duas idéias arraigadas nas
sociedades democráticas: 1º sobretudo do egoísmo que faz com que só se pense em si, 2º da
concentração da alma nas coisas materiais’. Mas essa impureza originária importava pouco ao
pensador sempre mais preocupado com as conseqüências políticas das idéias: ‘As grandes almas às
quais a doutrina [moralmente pouco elevada] não poderia satisfazer passam indiferentes por ela e a
ultrapassam, enquanto as almas ordinárias aí permanecem’, produzindo-se como resultado geral
fazer ‘marchar comodamente a sociedade, ainda que sem grandeza’. Não sendo a grandeza um valor
agregativo nas sociedades igualitárias, a doutrina do interesse bem compreendido, se útil a toda a
sociedade, é ‘ainda mais útil naquelas onde os homens não podem retirar-se para a fruição platônica
do bem fazer e vêem o outro mundo prestes a escapar-lhes” (Jasmin, 2002, p. 81-82).
38
A utilidade e a honestidade, para Tocqueville, podem ser relacionadas. Quem
procura o útil certamente o faz pensando no interesse próprio. Mas é a maneira
como o homem concebe seu próprio interesse o que importa. O interesse pessoal
pode ser o mote para uma ação honesta.
Até mesmo a religião, nos Estados Unidos, segundo Tocqueville, coincide
com a doutrina do interesse bem compreendido. Mesmo que a religião professe a
“solução” para fora deste mundo, exige do povo americano outros sacrifícios
terrenos.
Os americanos não só seguem a sua religião por interesse, mas muitas vezes
situam neste mundo o interesse que se pode ter depois. Na Idade Média, os
padres só falavam da outra vida; quase não se davam de provar que um
cristão sincero pode ser aqui embaixo um homem feliz. Mas os pregadores
americanos voltam constantemente à terra e só a grandes penas podem
desligar dela os seus olhares. Para melhor tocar os seus ouvintes, fazem-nos
ver todos os dias como as crenças religiosas favorecem a liberdade e a
ordem pública, e é muitas vezes difícil saber, ouvindo-os, se o objeto principal
é proporcionar a felicidade eterna no outro mundo ou o bem-estar neste
(Tocqueville, 1987, p. 404).
Certamente, os homens religiosos não seguem sua religião apenas por
interesse, nos Estados Unidos, mas Tocqueville destaca o interesse como o
principal motivo de os americanos seguirem sua religião. Logo, o interesse pessoal,
desde que esclarecido, não afasta os homens das crenças religiosas, e até pode os
aproximar.
2.2 Liberdade e crenças religiosas nas eras democráticas
Pelo fato de Tocqueville deixar uma margem à ação humana, mesmo
acreditando piamente no triunfo da igualdade, é que se pode “deslocar” o seu
pensamento dos temas modernos, ou melhor, verificar que a religião ainda tem
papel importante na construção de seu fundamento teórico da democracia. Ademais,
se o moderno também se caracteriza pela oposição à tradição, é aí que Tocqueville
vai se deter. Segundo o autor, a América não cai no despotismo da maioria, maior
perigo nas eras democráticas, por causa da religião. São as convicções e os
costumes religiosos do povo dos Estados Unidos que freiam esse despotismo. “O
39
cristianismo, que tornou os homens iguais perante Deus, não se mostrará
repugnado em crer todos os cidadãos iguais perante a lei” (1987, p. 17). E continua:
“[...] não se pode estabelecer o reino da liberdade sem o dos costumes, nem fundar
os costumes sem possuir as crenças [...]” (1987, p. 18).
Mas é preciso lembrar que Tocqueville não vai a América para estudar os
costumes e hábitos do povo dos Estados Unidos, vai para estudar a democracia, no
país onde esse movimento “irrefreável” se encontra em estágio adiantado, para
poder tirar desses estudos ensinamentos para a sua França31. Portanto, mesmo que
o pensador francês fale estritamente do povo anglo-americano, encontram-se idéias
relativas à era democrática. Por isso, Tocqueville assim se refere aos colonizadores
do território estadunidense:
Os fundadores da Nova Inglaterra eram, ao mesmo tempo, ardentes sectários
e exaltados inovadores. Cerceados dentro dos limites mais estreitos de certas
crenças religiosas, eram livres de todo preconceito político.
[...] Assim, no mundo moral, tudo é classificado, coordenado, previsto,
decidido de antemão. No mundo político, tudo é agitado, contestado, incerto;
num, a obediência passiva, ainda que voluntária; noutro, a independência que
32
desdenha a experiência e inveja toda autoridade (Tocqueville, 1987, 42).
Mas, dessa passagem sobre o povo anglo-americano, Tocqueville conclui o
seu pensamento com uma idéia geral: “A liberdade vê na religião a companheira de
suas lutas e seus triunfos, o berço de sua infância, a fonte divina de seus direitos.
Considera a religião como a salvaguarda dos costumes; os costumes, como a
garantia das leis e penhor de sua própria preservação” (1987, p. 42)33.
31
Como é possível perceber neste trecho (1987, p. 152): “E para quem este estudo será interessante
e proveitoso, senão para nós, que somos cotidianamente arrastados por um movimento irresistível e
que caminhamos como cegos, talvez para o despotismo, talvez para a república, mas, com toda a
certeza, para um estado social democrático?”.
32
“Outro argumento central desenvolvido por Tocqueville na abertura da Democracia apresenta a
idéia de um ‘ponto de partida’ fundador do ‘caráter da civilização anglo-americana’ e que reunia, pela
primeira vez de modo íntimo e harmonioso, o espírito de liberdade e o espírito de religião, ambos
originários da antiga Inglaterra, onde se encontravam em conflito. Simbolicamente, Tocqueville afirma
que o futuro daquela jovem nação podia ser discernido na alma e nas atividades do primeiro puritano
a pisar a América do Norte” (Jasmin, 2001, p. 202).
33
Conforme Gibert (1972, p. 1098), a religião é a melhor maneira de ensinar o homem a ser livre,
pois funda um projeto, ao mesmo tempo, político, econômico e social. É a garantia dos costumes
frente à imoralidade da igualdade. “Mais quoi qu’il en soit de ce fait, Tocqueville a suffisamment étudié
la société américaine pour se rendre compte que c’est la religion qui lui ‘enseigne le mieux... l’art
d’etre libre’ (I, p. 304). En fondant lês moeurs, en justifian l’elan d’un projet à la fois politique,
économique et social, la religion est la meilleure garantie de la liberté politique. [...] Mais qu’elle
40
Mas se Tocqueville vê com bons olhos a religião católica34, também não é
desatento às idéias antirreligiosas do século XVIII, ou seja, aos pensadores
modernos e suas críticas à religião: “Os filósofos do século dezoito explicavam de
uma forma extremamente simples o enfraquecimento gradual das crenças. O zelo
religioso, diziam, deve [enfraquecer-se] à medida que aumentam a liberdade e as
luzes” (1987, p. 227). E acrescenta ironicamente: “Pena é que os fatos não estejam
de acordo com esta teoria. Existem populações européias cuja incredulidade só é
igualada pelo embrutecimento e pela ignorância, ao passo que, na América, vê-se
um dos povos mais livres e esclarecidos do mundo cumprir com ardor todos os
deveres exteriores da religião” (1987, p. 227).
Tocqueville tem consciência de que, no seu tempo, a religião perde espaço
para a racionalização da vida, entendendo por racionalização a secularização do
mundo. Sabe que a noção de direitos fundamentada em princípios divinos está se
enfraquecendo:
Não vê o leitor que as religiões se enfraquecem e que a noção divina dos
direitos desaparece? Não percebe então que os costumes se alteram e que
se apaga com eles a noção moral dos direitos? Não se dão conta de que em
toda parte as crenças substituem-se pelo raciocínio e os sentimentos pelo
cálculo? Se, em meio a esse abalo universal, o leitor não conseguiu ligar a
idéia de direitos ao interesse pessoal que se oferece como único ponto imóvel
no coração humano, que lhe restará então para governar o mundo, a não ser
o medo? (Tocqueville, 1987, p. 185).
Se os intelectuais se animaram com o movimento de racionalização da vida
moderna, “associando aos progressos da ciência a crítica das instituições e das
crenças passadas35”, Tocqueville, como político que era, também soube perceber o
perigo que a modernidade, calcada na racionalização da vida, trouxe. É nesse
sentido que ele ataca com freqüência os intelectuais, críticos das idéias religiosas.
apprenne aux hommes à être libres, elle est alors le plus sür dês moeurs dans cette société à
l’immoralité de la seule égalité.
34
“Creio que se erra em considerar a religião católica como inimiga natural da democracia. Entre as
diferentes doutrinas cristãs, o catolicismo parece-me, pelo contrário, uma das mais favoráveis à
igualdade de condições. Entre os católicos, a sociedade religiosa compõe-se apenas de dois
elementos: o sacerdote e o povo. O sacerdote eleva-se acima dos fiéis; abaixo dele, tudo é igual”
(Tocqueville, 1987, p. 222).
35
Ver cap. IV, Segunda Parte, da obra de Touraine (1994, p. 159-185): Os intelectuais contra a
modernidade.
41
Na França, atacam com uma espécie de furor a religião cristã sem mesmo
tentar colocar outra em seu lugar. Trabalharam com ardor e continuidade
para tirar às almas a fé que as enchia e deixaram-nas vazias. Esse
empreendimento ingrato inflamou uma multidão de homens. A absoluta
incredulidade em matéria de religião [...] pareceu atraente à multidão (1982,
p. 149).
A religião freia o despotismo da maioria pelo seguinte fato: os homens
sentem-se iguais. A máxima cristã é que todos são iguais perante Deus; logo, por
que não podem ser iguais no mundo terreno? E por não existir sociedades sem
costumes e estes serem fundados por vezes nas crenças religiosas, a liberdade
deve estabelecer-se na sociedade como que em comunhão com tais costumes. Para
Helena Esser dos Reis (2002, p. 166-167):
Tocqueville parte do suposto que todas as ações humanas têm origem “numa
idéia muito geral que os homens conceberam de Deus, das suas relações
com o gênero humano, da natureza de sua alma e dos seus deveres para
com os seus semelhantes”. É, então, nas crenças religiosas, acredita
Tocqueville, que a multidão de indivíduos dos tempos democráticos encontra,
com segurança, o fundamento último, para além da mera concordância entre
julgamentos privados, de todas as suas ações neste mundo. O sentimento de
unidade e pertencimento ao gênero humano nos povos democráticos advém
da noção de um único Deus criador que determina a todos os homens os
mesmos direitos e deveres morais. A fé religiosa dirige os corações dos
homens em direção aos seus semelhantes e leva os cidadãos de uma
sociedade democrática à realização de ações que o façam sair de dentro de
si mesmo e a relacionar-se com seus semelhantes fortalecendo a liberdade
36
entre os homens .
Como se pode notar, o pensamento tocquevilleano é muito influenciado pelo
espiritualismo cristão. Em sua obra mais famosa, o próprio pensador se declarou
católico37. É um intelectual muito preocupado com os rumos do mundo, com a
violência da multidão, e um amante da liberdade. Não que a igualdade produza
36
“Os homens têm, pois, um interesse imenso em formular idéias bem firmadas de Deus, da alma,
dos seus deveres gerais para com seu Criador e seus semelhantes, pois a dúvida sobre esses pontos
capitais levaria todas as suas ações ao acaso e os condenaria, de certo modo, à desordem e à
impotência. É essa, pois, a matéria sobre a qual é mais importante que cada um de nós tenha idéias
firmadas; infelizmente, é também aquela na qual é mais difícil que cada um, entregue a si mesmo, e
pelo esforço exclusivo da sua razão, venha a firmar as suas idéias [...].
Somente os espíritos muito livres das preocupações costumeiras da vida, muito penetrantes, muito
desprendidos, muito exercitados, podem, com a ajuda de muito tempo e de cuidados, penetrar até
essas verdades tão necessárias” (Tocqueville, 1987, p. 332). Acrescenta Tocqueville que até mesmo
os filósofos têm dificuldades sobre esses assuntos, quanto mais o povo.
37
Ver A Democracia na América (1987, p. 227).
42
homens imorais. É a equação entre imoralidade, irreligiosidade e igualdade que
atormenta o pensador francês.
Não é, de modo algum, a igualdade que torna os homens imorais ou
irreligiosos. Mas, quando os homens são imorais e irreligiosos, ao mesmo
tempo que iguais, os efeitos da imoralidade e da irreligião se produzem
facilmente porque os homens têm pouca ação uns sobre os outros e porque
não existe classe que possa se encarregar de fazer a polícia da sociedade. A
igualdade de condições jamais cria a corrupção de costumes, mas deixa, às
vezes, que esta apareça (Tocqueville, 1987, nota V, p. 564).
A igualdade cria o amor ao mundano, aos bens materiais. Faz os homens
prenderem-se ao mundo das necessidades materiais. A religião, ao contrário, cria
valores bem distintos. “Não há religião que não situe o objeto dos desejos do homem
além e acima dos bens da terra, e que não eleve naturalmente a sua alma para
regiões muito superiores à dos sentidos” (Tocqueville, 1987, p. 334).
43
3. O papel da educação nos tempos democráticos
Como já foi exposto no primeiro capítulo, Tocqueville é, par excellence, o
pensador da democracia. Não é um pedagogo ou um teórico da educação38. Mas,
apesar disso, empreendeu boas reflexões sobre o tema da educação e da instrução
pública. O capítulo presente aborda a relação entre democracia, moral,
educação/instrução e liberdade estabelecidas pelo autor.
Segundo Tocqueville, as eras democráticas influenciam também, como não
poderia deixar de ser, a instrução dos povos. Como um fato total, a democracia
influencia inclusive a literatura.
Nas democracias, é muito necessário, pois, que todos os homens que se
ocupam da literatura tenham recebido uma educação literária e, entre aqueles
que têm algumas tintas de belas-artes, a maior parte siga uma carreira
política ou abrace uma profissão da qual não se podem desviar senão
temporariamente, para gozar furtivamente dos prazeres do espírito. Por isso,
não fazem de tais prazeres o encanto principal da sua existência, mas os
consideram como um descanso passageiro e necessário, no meio dos
trabalhos sérios da vida: tais homens jamais poderiam adquirir o
conhecimento bastante profundo da arte literária, para sentir as suas
delicadezas; as pequenas nuanças lhes escapam. Tendo apenas um tempo
demasiado curto para dedicar às letras, desejam aproveitá-lo por inteiro.
Amam os livros que se obtêm sem dificuldade, que se lêem depressa, que
não cheguem a exigir pesquisas doutas para serem compreendidos. Pedem
belezas fáceis, que se entregam espontaneamente e das quais se possa
gozar no momento; precisam, antes de tudo, do inesperado e do novo.
Habituados a uma existência prática, cheia de lutas, monótona, precisam de
emoções vivas e rápidas, de claridades súbitas, de verdades ou de erros
brilhantes, que os tirem momentaneamente de si mesmos e os introduzam de
39
repente, como que violentamente, no meio do tema (1987, p. 358) .
38
“Tout ce qui se raporte à l’instrution publique n’a, à primière vue, qu’une importance minuere dans
l’oevre d’Alex de Tocqueville. L’auteur de La Démocratie em Amérique ne fut, Il est vrai, ni un
pédagogue ni un théoricien de l’enseignement [...]” (Chabot, 1996, p. 211).
39
“Passaria eu além do meu pensamento, se dissesse que a literatura de uma nação é sempre
subordinada ao seu estado social e à sua constituição política. Sei que, independente dessas causas,
há várias outras que dão certo caráter às obras literárias; estas, porém, parecem-me as principais”
(Tocqueville, 1987, p. 359).
44
A instrução dos homens democráticos é diferente da dos homens dos séculos
aristocráticos. Quando muda o estado social, mudam os objetivos e interesses da
educação. Assim,
[é] isto que se faz entender bem. Um estudo pode ser útil à literatura de um
povo e em nada ser apropriado às suas necessidades sociais e políticas. Se
nos obstinássemos a ensinar apenas as belas-letras, numa sociedade onde
cada qual fosse habitualmente levado a fazer violentos esforços para
aumentar a sua fortuna ou para mantê-la, ter-se-iam cidadãos muito
educados e muito perigosos, pois, dando-lhes o estado social e político, todos
os dias, necessidades que a educação nunca os ensinaria a satisfazer,
perturbariam o Estado, em nome dos gregos e dos romanos, em vez de
40
fecundá-los para a sua indústria (Tocqueville, 1987, p. 360) .
Então, para a segurança relativa do Estado, se faz necessária uma instrução,
para a massa da sociedade, é claro – pois Tocqueville acha que aqueles indivíduos
“destinados” às belas-letras devem ter seu espaço garantido em qualquer sociedade
–, mais adequada ao mundo moderno. O que seria essa instrução?
É evidente que, nas sociedades democráticas, o interesse dos indivíduos, tal
como a segurança do Estado, exige que a educação do maior número seja
41
científica, comercial e industrial, antes que literária . O grego e o latim não
devem ser ensinados em todas as escolas; mas é importante que aqueles
que, por natureza ou por fortuna, são destinados a cultivar as letras ou
predispostos a apreciá-las, encontrem escolas onde possam se tornar
perfeitamente senhores da literatura antiga e imbuir-se inteiramente do seu
espírito. Algumas excelentes universidades valeriam mais, para alcançar esse
objetivo, que uma infinidade de maus colégios, onde mal feitos estudos
superficiais impedem fazer bons estudos necessários (Tocqueville, 1987, p.
360-361).
40
Em um artigo para a Revista Brasileira de História da Educação, Josefa Eliana Souza mostra que
as idéias do pensador francês sobre educação repercutiram aqui no Brasil. A historiadora mostra
como o deputado alagoano Tavares Bastos as assimilou.
41
“Não seria possível que essa visão [a visão aristocrática da ciência] fosse a mesma nas nações
democráticas. A maior parte dos homens que compõem tais nações é muito ávida de prazeres
materiais e presentes, assim como está sempre descontente com a posição que ocupa, e sempre em
liberdade para deixá-la, só pensa nos meios de modificar a sua fortuna e fazê-la crescer. Para os
espíritos movidos por uma tal disposição, todo método novo que conduz por um caminho mais curto à
riqueza, toda máquina que abrevia o trabalho, todo instrumento que abrevia o custo da produção,
toda descoberta que facilita os prazeres e os aumenta, parece o mais magnífico esforço da
inteligência humana. É principalmente por esse lado que os povos democráticos se apegam à
ciência, as compreendem e honram. Nos séculos aristocráticos pedem-se às ciências os prazeres do
espírito; nas democracias, os do corpo” (Tocqueville, 1987, p. 348).
45
É possível notar, na passagem acima, que Tocqueville não acredita que todos
devam ter uma educação uniforme. O autor chega a ser pragmático nessa questão.
A instrução deve estar voltada para as questões práticas do mundo. O pensador
francês teme, e por isso une segurança do Estado com instrução, que ocorram fatos
como os da Revolução Francesa, quando o povo foi instigado por intelectuais
através de algumas obras de filósofos42. Nem todos os indivíduos estão preparados
para as belas-letras43. Reconhece que, no mundo moderno, a agitação dos
indivíduos é tão grande que sobra pouco tempo para a meditação. Esse fato
desfavorece, é claro, os estudos aprofundados.
Nada é mais necessário à cultura das altas ciências ou da porção elevada
das ciências do que a meditação, e nada há de menos próprio à meditação
que o interior de uma sociedade democrática. Numa tal sociedade não se
encontram, como os povos aristocráticos, uma classe numerosa que se
mantenha em repouso, porque se acha bem, e outra que não se abale porque
não espera ser melhor. Todos se agitam: uns porque desejam atingir o poder,
outros, apoderar-se da riqueza. No meio daquele tumulto universal, daquele
choque repetido de interesses contrários, daquela marcha contínua dos
homens para a fortuna, onde encontrar a calma necessária às profundas
combinações da inteligência? Como deter o pensamento sobre dado ponto,
quando ao redor tudo se movimenta, e quando se é pessoalmente arrastado
e agitado dia a dia na corrente impetuosa que desloca todas as coisas?
(Tocqueville, 1987, p. 346).
42
“Não foram tão-somente suas idéias que os escritores forneceram ao povo que fez a Revolução:
deram-lhe também seu temperamento e seu humor. Sob sua longa disciplina, na ausência de outros
condutores, no meio da profunda ignorância da prática na qual se vivia, toda a nação, ao lê-los,
acabou contratando os instintos, o tipo de espírito, os gostos e até os defeitos naturais daqueles que
escrevem, de tal maneira que, quando teve que agir, transportou para a política todos os hábitos da
literatura” (Tocqueville, 1982, p. 147). Também, em uma carta a Guizot, escreve Tocqueville:
“¿Cómo, Señor, ha podido usted poner en duda en una frase mi simpatía por el pueblo, cuando una
gran parte de mi obra está precisamente consagrada a mostrar bajo nuevas luces, más verdaderas y
vivas, el género particular de opresión que sufría y sus miserias, y a hacer comprender cómo la mala
educación que el poder real y las clases altas le han dado explicaba esas violencias?... [soy] un
amigo no sólo sincero sino también ardiente de lo que usted mismo considera las principales
conquistas de la Revolución, la libertad política y todas las libertades particulares que esa palabra
contiene, la abolición de todos los privilegios de casta, la igualdad ante la ley, la libertad total de culto,
la simplicidad em la legislación” (Ver Nolla, 1992, p.15-16).
43
Para Tocqueville, o problema de se encontrar uma sociedade de homens esclarecidos é o fato de
haver povo ou, em outras palavras, indivíduos que trabalhem. O tempo para o ócio parece
fundamental para o pensador francês. Como se pode notar nesta passagem: “A facilidade maior ou
menor que o povo encontra para viver sem trabalhar constitui pois o limite necessário dos seus
progressos intelectuais. Esse limite acha-se situado mais longe em certos países, mais perto em
outros; mas, para que de modo algum existissem, seria que o povo de modo algum tivesse que
ocupar-se dos cuidados materiais da vida, vale dizer, que não fosse o povo. Por isso, é tão difícil
conceber uma sociedade onde todos os homens sejam esclarecidos [...] (1987, p. 153).
46
Mas Tocqueville sabe que, nas eras democráticas, é cada vez maior o
número de instruídos. Sabe que o interesse mudou. Da mesma forma que as
virtudes públicas podem nascer de interesses materiais nos tempos democráticos,
como explicou o pensador em sua doutrina do interesse bem compreendido, o
apego às ciências terá um número cada vez maior de indivíduos. “Aliás, eu creio nas
altas vocações. Se é fato que a democracia não leva os homens a cultivar a ciência
pela ciência, por outro lado, aumenta imensamente o número daqueles que as
cultivam [...]” (1987, p. 349). E, tendo uma multidão de homens disponíveis para a
ciência, não é impossível de acreditar que “[...] não venha nunca a nascer, de
tempos em tempos, algum gênio especulativo inflamado apenas pelo amor à
verdade” (idem, p. 349).
Para Helena Esser dos Reis (2004, p. 7-8), Tocqueville tem consciência de
que a instrução pode superar preconceitos e costumes opostos à liberdade, pois a
ignorância facilita o caminho para a servidão44.
Tocqueville afirma que “a concentração dos poderes e a servidão individual
crescerão nas nações democráticas não somente em proporção à igualdade
mas em razão da ignorância”. Eis porque considera a instrução escolar uma
condição necessária para a formação de cidadãos: à medida que as
condições sociais se nivelam e cada um torna-se tão forte e capaz quanto
qualquer outro, para pensar e julgar por si mesmo acerca de todas as
questões que lhe concernem, mais vale que todos possam dispor de luzes e
45
costumes que os auxiliem a bem julgar e bem agir (idem, p. 8) .
Mas não se pode esquecer que apenas a instrução pública não é capaz de
impedir os abusos de um poder tirânico. Tocqueville mesmo se revolta contra esse
44
“Quando os homens que vivem no seio de uma sociedade democrática são esclarecidos,
descobrem sem dificuldades que nada os limita, nem os fixa, nem os força a contentar-se com a sua
sorte atual. Por isso, todos concebem a idéia de aumentá-la e, se são livres, procuram todos fazê-lo,
mas nem todos conseguem da mesma maneira. A legislatura não mais concede privilégios, é
verdade, mas a natureza os dá. A desigualdade natural é muito grande e as fortunas se tornam
desiguais, desde o momento em que cada qual faz uso de todas as suas faculdades para enriquecer”
(Tocqueville, 1987, p. 343).
45
“Os partidários da centralização, na Europa, afirmam que o poder governamental administra melhor
as localidades do que elas próprias o poderiam fazer: talvez seja isso verdadeiro, quando o poder
central é esclarecido e as localidades não têm o mesmo saber, quando ele é ativo e elas inertes,
quando tem o hábito de agir e elas o de obedecer. Compreende-se mesmo que quanto mais aumenta
a centralização, mais cresce essa dupla tendência, mais se tornam evidentes a capacidade de uma
parte e a incapacidade da outra. Nego, porém, que tal se dê quando o povo é esclarecido,
despertado para os seus interesses e habituado a meditar, como se faz na América. Estou
convencido, pelo contrário, que neste caso a força coletiva dos cidadãos terá sempre mais poderes
para prodizir o bem-estar social do que a autoridade do governo” (Tocqueville, 1987, p. 76, grifos
nossos).
47
“pensamento mágico” que vê na educação pública o único caminho para o mundo
livre.
A educação pública era a única garantia que inventaram contra o abuso do
poder porque, como diz ainda Quesnay, “o despotismo é impossível numa
nação esclarecida”. Diz um outro dos seus discípulos: “Atingidos pelos males
que o abuso da autoridade traz, os homens inventaram mil meios totalmente
inúteis e deixaram de lado o único verdadeiramente eficaz, que é o ensino
público geral e contínuo da justiça por essência e da ordem natural”. É com a
ajuda dessa embrulhada literária que querem suprir todas as garantias
políticas (Tocqueville, 1982, p. 156).
Para Tocqueville, além de não ser suficiente a instrução pública, ela também
pode ser contrária à liberdade humana. Pode criar uma uniformidade entre os
homens. Moldar o espírito dos cidadãos.
Segundo os economistas, o Estado não deve unicamente comandar uma
nação, também deve formá-la de uma certa maneira; cabe-lhe moldar o
espírito dos cidadãos em acordo com um determinado modelo que se propôs
de antemão; é seu dever enchê-lo com certas idéias e fornecer ao seu
coração certos sentimentos que julga necessário. Na realidade não existem
limites aos seus direitos nem ao que pode fazer; não forma simplesmente os
homens, quer transformá-los; talvez, se o quisesse, poderia fabricar outros!
“O Estado faz dos homens tudo o que quer”, diz Bodeau. Esta frase resume
todas as suas teorias (Tocqueville, 1982, p. 157).
Nesse sentido, a “democracia”, o mundo democrático, também deve ser
“educado”, para que os “bons costumes” democráticos reinem. E esse foi um dos
objetivos de Tocqueville ao escrever A Democracia.
Educar a democracia, reanimar, se possível, as suas crenças, purificar seus
costumes, regular os seus movimentos, pouco a pouco substituir a sua
inexperiência pelo conhecimento dos negócios de Estado, os seus instintos
cegos pela consciência dos seus verdadeiros interesses; adaptar o seu
governo às condições de tempo e de lugar, modificá-lo conforme as
circunstâncias e os homens – tal é o primeiro dos deveres impostos hoje em
dia àqueles que dirigem a sociedade (Tocqueville, 1987, p. 14).
Para o pensador francês, a educação e a liberdade, nos Estados Unidos,
adequaram-se bem à moral e à religião. De um lado, porque as religiões fornecem à
multidão soluções para as questões do dia a dia. De outro, porque a multidão
encontra segurança e um fundamento último para as suas ações. E este fundamento
é importante, pois dá aos indivíduos hábitos, idéias e sentimentos que os preparam
48
para viver em liberdade (1987, p. 242)46. Mas a liberdade entra nos corações
humanos. Se Tocqueville, no Ancièn Regime, se nega a explicar o que é a liberdade
– apenas afirma que quem a experimenta sabe o que significa –, também não
acredita que seja possível ensinar os homens a tornarem-se livres.
A liberdade não pode ser ensinada, mas Tocqueville não nega que possa
haver certos hábitos, e mesmo uma instrução, que ajudam a preparar os corações a
ela. Se não fosse assim, por que Tocqueville acreditaria tanto na participação dos
indivíduos na vida pública? Afinal, é participando também da legislação que o
americano aprende a conhecer as leis e é governando que se instrui na forma de
governo. Não basta apenas ensinar os homens a ler e escrever para fazer deles
cidadãos.
Os verdadeiros conhecimentos nascem da experiência e, se os americanos
não tivessem sido habituados a governar-se, os conhecimentos literários de muito
pouco serviriam47 (1987, p. 234). Contudo, adverte Tocqueville (1987, p. 234): “Não
se poderia ter dúvidas de que a instrução do povo, nos Estados Unidos, serve
poderosamente à manutenção da república democrática. Creio eu que assim há de
ser em toda parte onde não se separe a instrução que esclarece o espírito, da
educação que regula os costumes”.
Então, conforme Helena Esser dos Reis (2002, p. 52),
46
“Mas é nas prescrições relativas à educação pública que, desde o princípio, se vê surgir à mais
pura luz o caráter original da civilização americana. ‘Visto – diz a lei – que um dos principais projetos
desse antigo instigador Satanás é manter os homens privados do conhecimento das escrituras...
persuadindo-os a não usar as línguas, e a fim de que a sabedoria não fique enterrada nos túmulos de
nossos pais, na igreja e na comunidade, e tendo o Senhor a assistir os nossos cometimentos...’.
seguem-se disposições que criam escolas em todas as comunas e obrigam os habitantes, sob pena
de pesadas multas, a encarregar-se do seu sustento. Nos distritos mais populosos, são, pela mesma
forma, fundadas escolas superiores. Os magistrados municipais devem cuidar para que os pais
enviem seus filhos às escolas; têm o direito de impor multas àqueles que se recusam a fazê-lo; e
caso continue a resistência, a sociedade, substituindo à família, lança mão da criança e arrebata aos
pais o direito que a Natureza lhes havia concedido mas do qual faziam tão mau uso. O leitor terá
observado, sem dúvida, o preâmbulo dessas determinações: na América é a religião que conduz ao
saber; é a observância das leis divinas que conduz o homem à liberdade” (Tocqueville, 1987, p. 4041).
47
“Aquí, tenemos que llamar la atención sobre el entusiasmo que Tocqueville sentía por el
autogobierno local del que fue testigo de primera mano en las poblaciones de Nueva Inglaterra. Las
instituciones municipales, creía Tocqueville, constituían la fuerza de las naciones libres. Las
reuniones de los ayuntamientos eran a la libertad lo que las escuelas a la educación. El autogobierno
local era una escuela de democracia. Se permitia que los individuos practicasen el arte del
autogobierno y, a través de él, que trascendiesen la estrechez de sus propios intereses y llegasen a
valorar las exigencias del bien común. Lo que sorprendía a Tocqueville era que todos los aspectos de
la vida local contribuían a esta democracia local llena de vitalidad” (Jennings, 2007, p. 61).
49
[a] tarefa pedagógica impõem-se. Faz-se necessário educar o indivíduo
independente da sociedade igualitária para a vida política; isso supõe mais
que a prática cega (ou mecânica) de seus deveres cívicos, supõe
desenvolver o entendimento e os costumes a fim de orientar o seu
julgamento. [...] A instrução propriamente dita, por meio da qual os Homens
adquirem conhecimentos, ao mesmo tempo que informa sobre situações
vividas, relações econômicas, avanços científicos, os esclarece e lhes
possibilita superar idéias e preconceitos opostos à democracia. Há uma
correlação direta entre a instrução dos indivíduos e sua capacidade de fazer
escolhas políticas esclarecidas.
Parece que Tocqueville reconhece, ou melhor, crê em uma correlação entre a
educação/instrução dos indivíduos e suas capacidades de fazer escolhas políticas
esclarecidas48.
Para Tocqueville, há uma diferença entre educação e instrução. Tocqueville
utiliza o conceito de educação de uma forma bem mais ampla, relacionando este à
conduta moral. A instrução é a aquisição de um tipo específico de conhecimento.
“Nos collèges donnent l’instruction, [...], mais quoi qu’on fasse, ils ne peuvent donner
l’éducation. L’éducation, la culture de l’âme, l’enseigment du devoir, la préparation
aux difficultés et aux chagrins de la vie, tout cela est audessus dês leçons dês
collèges” (Tocqueville apud Chabot, 1997, p. 238).
A instrução, por outro lado, é condição necessária, mas não suficiente. É
preciso que a instrução caminhe junto com os bons costumes de um povo. No caso
do povo dos Estados Unidos da América, a instrução se adequou bem ao espírito de
participação política. Além de não tentar sobrepor-se à moral religiosa.
A importância que Tocqueville atribui à moral e à religião faz com que veja
com bons olhos a sobreposição destas à liberdade e à educação:
Na Nova Inglaterra, onde a educação e a liberdade são filhas da moral e da
religião, onde a sociedade, já antiga e acomodada desde muito tempo, pôde
formar para si máximas e hábitos, o povo, ao mesmo tempo que escapa a
todas as superioridades [...], habituou-se a respeitar as superioridades
intelectuais e morais e a submeter-se a elas sem desagrado: por isso, vê-se
que a democracia na Nova Inglaterra faz melhores escolhas que em qualquer
outra parte. Pelo contrário, à medida que se desce para o sul, para os
Estados onde o laço social é menos antigo e menos forte, onde a instrução se
acha menos difundida, e onde os princípios da moral, da religião e da
liberdade combinaram-se menos feliz, percebe-se que os talentos e as
48
“Dans la démocratie en Amérique, Tocqueville avait reconnu l'existence de corrélations entre
l'instruction que reçoivent les individus et leur capacité de faire des choix politiques éclairés” (Chabot,
1997, p. 240)
50
virtudes se tornaram cada vez mais raros entre os governantes (1987, p.
155).
Tocqueville é, porém, cauteloso sobre a instrução pública. “A educação, tanto
quanto a caridade, tornou-se, na maior parte dos povos de hoje, um assunto
nacional. O Estado recebe e muitas vezes toma a criança dos braços de sua mãe,
para confiá-la a seus agentes; é ele que se encarrega de inspirar sentimentos a
cada geração e de fornecer-lhes idéias. A uniformidade reina nos estudos como em
todo o resto; a diversidade, como a liberdade, desaparecem dele a cada dia” (1987,
p. 522). Dessa forma, o poder central se apodera da educação, à medida que
aumentam suas atribuições.
O número de funcionários públicos aumenta conforme aumenta o poder do
Estado. Esses funcionários formam uma nação dentro de cada nação. “Em quase
toda parte [...] o soberano domina de duas maneiras: conduz uma parte dos
cidadãos pelo temor que experimentam pelos seus agentes, e outra pela esperança
que concebem de se tornar seus agentes” (Tocqueville, 1987, nota 5, p. 523). Assim,
ao mesmo tempo em que Tocqueville vê na associação dos indivíduos um poder
educativo, capaz de impedir que os indivíduos “caminhem” para a servidão, é
relutante em relação à instrução pública, pois vê no domínio do Estado sobre a
educação a uniformidade de idéias e a crescente burocratização do ensino. Isso não
quer dizer que Tocqueville seja contrário à interferência do Estado na educação,
pois escreve: “Tenho por certo que a educação laica é a garantia da liberdade de
pensar. Creio firmemente que a Universidade deve ser o lugar principal dos estudos
e que o Estado deve conservar direitos bem amplos de vigilância, inclusive sobre as
escolas que não dirige...” (carta a Bouchitté, fev/1844 apud Gibert, 1988, p. 144,
grifos nossos).
Mas, para Tocqueville, o maior perigo é a apatia geral, fruto do individualismo,
“estado de espírito” próprio das democracias modernas:
Não se pode dizer de uma maneira absoluta e geral que o maior perigo de
nossos dias é a licença ou a tirania, a anarquia ou o despotismo. Uma coisa e
outra são igualmente temíveis, e pode sair de uma só e mesma causa, que é
a apatia geral, fruto do individualismo; é essa apatia que faz com que, no dia
em que o poder executivo reúne algumas forças, fica em condições de
oprimir, e que, um dia depois, quando um partido pode levar trinta homens ao
combate, este está igualmente em condições de oprimir. Nem um nem outro
51
podendo fundar nada de durável, o que os faz lograr êxito facilmente impedeos de lográ-lo por muito tempo. Caem porque nada os sustenta (Tocqueville,
1987, nota BB, p. 566).
O que é importante combater é, pois, muito menos a anarquia ou o
despotismo que a apatia, que pode criar esses estados sociais. A apatia é
combatida através do espírito cívico dos cidadãos, o qual só é possível de se
efetivar nos indivíduos se estes tiverem liberdade política e participarem ativamente
da coisa pública. E, como vimos, a escola, como instituição, serve para “formar
cidadãos” apenas na medida em que esteja inserida num contexto maior, mais geral,
de cultura cívica.
Outro problema, que é possível expor a partir das reflexões de Tocqueville
sobre democracia, educação e instrução pública, é a relação entre professores e
alunos. Se Tocqueville afirma que nas eras democráticas o espírito de igualdade
invade todas as instâncias da vida, modificando também as relações sociais,
levando os indivíduos a não reconhecerem autoridade alguma, esse nivelamento
entre professores e alunos, onde o professor perde sua autoridade em sala de aula,
pode ser concebido, acompanhando o raciocínio tocquevilleano, como um mal dos
tempos modernos democráticos. Coloca-se essa relação entre professor e aluno
como um mal porque, em sala de aula, não é possível que o professor se ponha em
pé de igualdade com o aluno. Deve haver uma certa autoridade por parte do
professor. A igualdade deve ser resguardada para o campo da política e, se
lembrarmos Hannah Arendt (2005, p. 160), a política, o direito de participar dos
negócios públicos, começa onde termina o direito à educação. O “mundo” da política
é o mundo dos adultos, o contrário do “mundo” da educação. Infelizmente, como já
exposto, a democracia, como um fato total, invade as instituições e as relações
educacionais.
52
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Tocqueville, a liberdade da maior parte do povo deve ser o fim de
qualquer estado social, porém, ela não deve ser meio para nada. Porque a liberdade
não pode caracterizar nenhuma forma de governo, mas ela deve estar contida em
qualquer construção social. A diferença entre um estado social aristocrático e um
estado social democrático é que neste último a liberdade pode ser garantida a todos,
e não apenas a uma classe ou casta.
A esperança de Tocqueville na democracia assenta-se na convicção de que
este estado social pode “espalhar” a liberdade para todos. É possível, então, não
apenas uma igualdade social para todos, como liberdade para todos. Como se pode
perceber no capítulo II, Tocqueville se nega a dar uma definição de liberdade, mas
supõe que, para que esta possa coexistir em um estado social, é necessário que
exista o direito à associação, participação nos assuntos públicos, imprensa que não
seja controlada pelo Estado, etc., sejam condições para a liberdade. Neste sentido,
a noção de liberdade em Tocqueville não difere muito das noções de liberdade de
muitos pensadores dos séculos XVIII e XIX. Por exemplo, seu amigo Stuart Mill tinha
uma noção de liberdade muito próxima49. A liberdade, para Tocqueville, é um fim em
si mesmo, não pode ser meio para algo, “os que buscam na liberdade algo mais que
a liberdade, foram feitos para servir”. Se Tocqueville, em alguns assuntos – como a
instrução nos tempos modernos –, se aproxima do pensamento utilitarista, para a
liberdade, ao contrário, não admite fins utilitários.
Tocqueville desvincula a noção de liberdade do indivíduo isolado. Não é
fazendo o que se deseja, mas apenas respeitando o outro, que se garantirá a
liberdade. O individualismo pode levar a um estado despótico. Lembrando que o
49
Para João Carlos Espada (2007, p. 218), a noção de liberdade de Tocqueville é um pouco mais
complexa que a de Mill, pois Tocqueville não tem apenas um conceito negativo de liberdade. Há
também a questão da participação na esfera pública.
53
individualismo é uma recusa do indivíduo a tomar parte nos assuntos públicos para
cuidar apenas do seu interesse. A liberdade depende também das associações, as
quais são instituições, ou podem se tornar, intermediárias entre os indivíduos e o
Estado. Logo, para que possa existir liberdade, não se pode apenas levar em conta
os indivíduos isolados. As associações têm o poder de forçar a descentralização do
Estado, garantindo também a liberdade. Assim, liberdade, para Tocqueville, é
sempre liberdade política. Os indivíduos devem participar dos assuntos públicos. A
não participação implica a perda da liberdade.
Para que os indivíduos participem dos assuntos políticos, porém, é necessária
uma preparação dos mesmos. Uma espécie de educação política, que, no entanto,
não deve conter nenhum aspecto ideológico. O que essa educação deve incumbir
nos indivíduos, isso sim, é apenas o interesse nos assuntos públicos. Não há e não
deve haver nenhum conteúdo nessa educação política.
Se é preciso educar para a democracia, essa educação passa mais pelas
associações livres do que pela escola. Talvez fosse esse exemplo, para Tocqueville,
a maior contribuição do povo dos Estados Unidos da América. O americano aprende
a se interessar pelos assuntos públicos porque participa da política. É claro que, se
nos E.U.A há uma participação política, é porque há uma legislação que permite aos
americanos participarem dos assuntos públicos. Faz-se imprescindível um Estado
Republicano também.
O que surpreende Tocqueville na participação política dos anglo-americanos
refere-se aos assuntos e tomadas de decisões do dia a dia. Não são as questões
abstratas da política de Estado. É decidindo se deve ou não construir uma estrada
ou uma ponte que o povo anglo-americano cria interesse pela política.
A servidão começa quando um povo abandona a esfera pública para cuidar
apenas de seus assuntos privados. Se o indivíduo tem a liberdade de negligenciar
os assuntos públicos para se dedicar apenas aos assuntos privados, essa mesma
“liberdade” se transformará em individualismo e abrirá caminho para um governo
despótico.
Quanto à instrução pública, Tocqueville é cauteloso. Tem receio da
centralização administrativa. Pensa que, se o Estado dominar a instrução, não
haverá mais pluralidade de ensino e assevera que o Estado deve fiscalizar todas as
54
escolas, na intenção de saber o que ensinam, porém, sem monopolizar e, muito
menos, padronizar o ensino.
Tocqueville mantém a noção de uma aristocracia de espírito. Se a revolução
democrática faz com que todos se concebam como iguais, não admitindo
autoridades intelectuais (pois até mesmo a autoridade do professor em relação ao
aluno é abalada nas eras democráticas), nem a idéia de superioridade intelectual –
e, de fato, os homens se tornam mais iguais –, é preciso que continuem existindo
instituições que eduquem para as belas-artes e para as faculdades superiores do
espírito. Se a maioria deve ter uma educação adequada aos tempos modernos, que
seja industrial e técnica, é preciso haver também instituições que garantam aos
espíritos mais atentos uma educação diferenciada. Essa aristocracia de espírito,
certamente, para Tocqueville, não pode ser definida de antemão. Deve ser mais
uma constatação de fato do que uma definição prévia de direito. Os espíritos
superiores podem ser encontrados em todas as classes sociais.
É correto afirmar que Tocqueville relega a instrução a um papel secundário na
manutenção da liberdade em um estado social democrático. Mas a instrução tem
valor nas épocas democráticas. Tocqueville reconhece que, nos Estados Unidos, a
instrução ajuda a ordenar a república. No entanto, se um povo não for esclarecido,
não terá luzes para decidir sobre seus rumos, abrindo caminho, assim, para a
centralização administrativa.
Um povo democrático, adverte Tocqueville, não pode amar apenas a
igualdade social de condições. A igualdade pode levar à uniformidade e à servidão.
Claro, a igualdade social de condições não leva à corrupção dos costumes, apenas
favorece seu aparecimento. É por isso que Tocqueville insiste tanto na conciliação
dos costumes, hábitos religiosos e espírito esclarecido com o desejo de igualdade.
Tocqueville foi um aristocrata de coração, sua formação e convívio familiar o
inclinaram a ser assim. Talvez por isso temesse tanto a massa, a multidão de
homens uniformes. Mas há de se reconhecer que anteviu muitos dos problemas que
assombraram e assombram o mundo moderno e pós-moderno (se é verdade que já
não somos modernos. Ou, nunca fomos modernos?). A nova forma de despotismo,
a fúria das massas em busca de uma cada vez maior igualdade, o individualismo. A
participação política está cada vez mais calcada no sufrágio universal que, se é
55
necessário, não é suficiente. A participação dos cidadãos se faz necessária em
instâncias menores de decisão. Claro que, da forma que estão organizados os
Estados-nações, a representação política é imprescindível, sendo que um Estado se
tornaria ingovernável se apostasse na democracia direta. O povo deve participar,
mas em órgãos locais de decisão política, por exemplo.
Parece que os temores e as esperanças de Tocqueville ainda fazem sentido.
Comumente se reconhece imprescindível a participação do povo nos assuntos
públicos, o temor de um Estado centralizador e supressor das liberdades. Por isso
Tocqueville é um clássico, pois encontramos em suas obras reflexões e proposições
para os problemas da nossa democracia.
56
REFERÊNCIAS
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2005.
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Ricardo Corrêa - Biblioteca Digital da UNIJUÍ