Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul UNIJUÍ Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências Curso de Mestrado Democracia e Instrução Pública em Alexis de Tocqueville Ricardo Corrêa Ijuí 2010 2 Ricardo Corrêa Democracia e Instrução Pública em Alexis de Tocqueville Dissertação apresentada à banca de qualificação como etapa preliminar para a obtenção do título de Mestre em Educação nas Ciências Orientador: Prof. Dr. Claudio Boeira Garcia Ijuí 2010 3 Ficha Catalográfica 4 Ata de defesa da dissertação 5 Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul UNIJUÍ Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências Curso de Mestrado A Banca Examinadora, abaixo-assinada, aprova a dissertação Democracia e Instrução Pública em Alexis de Tocqueville Elaborada por RICARDO CORRÊA Como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação nas Ciências Banca Examinadora _______________________________ Dr. Claudio Boeira Garcia (Orientador – UNIJUÍ) ______________________________ Dr. Dejalma Cremonese (UFPel) _______________________________ Paulo Afonso Zarth (UNIJUÍ) _______________________________ Paulo Evaldo Fensterseifer (UNIJUÍ) 6 Dedico esta dissertação a Geraldo Ribas Corrêa e a Ângela Maria Corrêa, meus pais. 7 AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, ao meu orientador e amigo Claudio Boeira Garcia, pelos conselhos e pela atenta orientação. Sem sua ajuda, esta dissertação não se concretizaria. A Helena Esser dos Reis, pelas dicas, leitura do projeto de dissertação e pelo envio de livros e artigos imprescindíveis para o tema tratado nesta dissertação. A Dejalma Cremonese, amigo e orientador de pesquisa na graduação. O primeiro a me alertar para a leitura da Democracia na América, de Tocqueville. A Débora Auguste Botega, por compreender minha ausência, minha reclusão. A Luciano de Almeida, que, desde 2005, me cobrava a inscrição em um curso de pós-graduação. Obrigado pelos conselhos e pela amizade. A Paulo Afonso Zarth e Paulo Evaldo Fensterseifer, pela leitura e análise crítica desta dissertação. À turma do churrasco, Américo Piovesan, Pedro Dilkin, Celso Eidt, Júlio Burdzinski e Carlos Silveira. Mesmo em momentos de descontração, conversamos assuntos ditos filosóficos. A Carlos Silveira agradeço também pela correção ortográfica e de redação. A Marcelo Giovano da Silva, Giovane Corrêa, Eder Rodrigo Rodrigues, Ivonei Freitas e aos colegas de mestrado. À CAPES, por financiar um ano de bolsa no mestrado, a qual tive que abandonar por motivos profissionais. 8 RESUMO O objetivo desta dissertação é verificar o que Alexis de Tocqueville compreende por democracia, por que caracteriza o mundo moderno como democrático, o que significa um estado social democrático, por que a democracia deve ser caracterizada pela igualdade de condições, além dos perigos que o estado social democrático traz consigo, como o individualismo e o despotismo democrático. Para Tocqueville, um estado social democrático pode conciliar igualdade de condições com liberdade, desde que os cidadãos participem da esfera pública e aprendam que só haverá liberdade se interessarem-se pelos assuntos públicos. Nesse sentido, para o pensador francês, não basta apenas instruir um povo, a educação vai além da instrução, apesar desta se fazer necessária no mundo moderno. Palavras-chave: Tocqueville, Democracia, Liberdade, Instrução, Educação 9 ABSTRACT The aim of this dissertation is to check what Alexis de Tocqueville understands for democracy, why he characterizes the modern world as democratic, what a democratic social state means, why democracy should be characterized by the equality of conditions, besides the dangers the democratic social state brings along, as individualism and democratic despotism. To Tocqueville a democratic social state may conciliate condition equality with liberty, as long as citizens participate in the public realm and learn that there will only be freedom if they are interested in public affairs. In this sense, for the French thinker, only instructing the people is not enough, education goes beyond instruction although this is necessary in the modern world. Keywords: Tocqueville, Democracy, Liberty, Instruction, Education. 10 “O que, em todos os tempos, tão fortemente agarrou os corações de certos homens à liberdade é a sua própria atração, seu encanto, independentemente de suas dádivas; é o prazer de poder falar, agir, respirar sem constrangimento sob o único governo de Deus e de suas leis. Quem procura na liberdade outra coisa que ela própria foi feito para servir”. (Tocqueville, 1982, p. 160) 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................................................................12 1. DEMOCRACIA: OS PROBLEMAS DA IGUALDADE DE CONDIÇÕES ........................................18 1.2 O INDIVIDUALISMO ..................................................................................................................................... 25 1.3 O DESPOTISMO DEMOCRÁTICO ................................................................................................................. 27 2. AS POSSIBILIDADES DA LIBERDADE EM UM ESTADO DEMOCRÁTICO ....................................30 2.1 A DOUTRINA DO INTERESSE BEM COMPREENDIDO .................................................................................. 35 2.2 LIBERDADE E CRENÇAS RELIGIOSAS NAS ERAS DEMOCRÁTICAS .............................................................. 38 3. O PAPEL DA EDUCAÇÃO NOS TEMPOS DEMOCRÁTICOS ..............................................................43 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................................................52 REFERÊNCIAS...................................................................................................................................................56 12 INTRODUÇÃO “Não há erro maior do que o de acreditar que a última palavra dita é sempre a mais correta, que algo escrito mais recentemente constitui um aprimoramento do que foi escrito antes, que toda mudança é um progresso. (...). A regra, em toda parte do mundo, é a corja de pessoas infames que estão sempre dispostas, com todo empenho, a piorar o que foi dito por alguém após o amadurecimento de uma reflexão, dando a essa piora um aspecto de melhora”. (Schopenhauer, 2009, p. 59) Esta dissertação busca compreender o entendimento de Tocqueville sobre democracia, tão caro ao pensador francês, além de relacioná-la aos temas da educação e da instrução pública. Sabendo que Tocqueville é um filósofo político ou, como querem alguns, um dos pais da sociologia, por abordar assuntos como “estado social democrático” ou por sua compreensão de que era preciso uma nova ciência para compreender o mundo social, destaca-se que, mesmo não sendo um pedagogo, mesmo não tendo um texto específico sobre educação, Alexis de Tocqueville traz boas indagações, relacionadas à modernidade e à educação. O método utilizado para atingir os objetivos desta dissertação, como não poderia deixar de ser, foi o da revisão bibliográfica. Além dos livros publicados por Tocqueville, que devem estar em primeiro plano, procurou-se estudar seus discursos públicos e suas correspondências. Textos de comentadores da obra de Tocqueville também foram de muita valia para a elaboração desta dissertação. Talvez, um dos motivos de Alexis de Tocqueville ter-se dedicado tanto à compreensão do mundo moderno, suas revoluções e suas transformações, seja a 13 sua história e da sua família. Conhecendo um pouco esta história, compreende-se melhor seus escritos. Pierre Manent (1990, p. 157), ao comentar a obra de Alexis de Tocqueville, afirma que o pensador francês não teve liberdade de escolher seu tema, pois, na França do século XIX, ainda se fazia necessário compreender a Revolução de 1789. Suas causas, suas conseqüências. Talvez a afirmação de Manent, tomada em sentido literal, soe demasiada. A priori, porém, é possível estudar qualquer assunto, desde que não se esteja num Estado totalitário, o que não era o caso da França de Tocqueville. Mas, recordando um pouco sua vida, a afirmação de Manent pode ser melhor compreendida. Tocqueville provém de uma família de aristocratas, remontando a um período anterior à Revolução de 89. O pai de Tocqueville, no ano da revolução, contava com 16 anos. Segundo Jardin (1988, p. 12), Tocqueville pai até se emocionara com a nascente revolução, pois aspirava a um regime de maior liberdade, como a maioria dos jovens de sua época. Mas, com a execução de Luís XVI, vê-se obrigado a abandonar a capital francesa. Nesses tempos conturbados, onde por poucos motivos os defensores do rei podiam ser guilhotinados, Tocqueville pai se vê em situação difícil, não é guilhotinado mas tem seus bens embargados pelos revolucionários. É nessa atmosfera revolucionária que nasce e cresce Alexis de Tocqueville. Certamente Tocqueville tivera liberdade para escrever (ou mesmo para não escrever), mas o tema da Revolução quase se impôs à sua geração. Compreender a Revolução ou, mais precisamente, as revoluções, era empresa comum entre os intelectuais franceses da geração de Tocqueville. Assim, o pensador francês tentou compreender as revoluções modernas como fenômenos associados à grande revolução democrática, que transformou o mundo ocidental cristão. Esta dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro deles, investigam-se as considerações de Tocqueville acerca da democracia e quais os problemas que esse “estado social” apresenta. É pelo teor e pela originalidade das abordagens aos diferentes assuntos da democracia que Alexis de Tocqueville figura entre os autores referenciais que se ocuparam do tema. Para Gaspar (2005, p.1), a sua originalidade foi ter identificado o movimento democrático como a mudança 14 decisiva ocorrida no plano da vida política moderna. “Na sociologia política de Tocqueville1, a modernidade não se caracteriza essencialmente nem pela indústria, como quer Comte, nem pelo capitalismo e pela luta de classes, como quer Marx, mas pela ‘igualdade social das condições’”. Tocqueville, ao interpretar a realidade social, apresenta-a, muitas vezes, como um processo universal, consistindo num movimento quase irrefreável: para o pensador francês, os homens entram “na era da igualdade”. Isso pode levar a uma interpretação de Tocqueville como um fatalista ou um historiador generalista, obcecado em buscar ou estabelecer causas gerais para os acontecimentos históricos. Mas, se Tocqueville muitas vezes escreveu passagens que permitem aos intérpretes exacerbar a relação causa/efeito em sua obra, também manteve uma postura teórico-especulativa que prestava atenção a um conjunto amplo de elementos, os quais apenas em um sentido lato ele designa como causas. Tais são os casos da ação, das circunstâncias, das iniciativas, da liberdade e dos processos, etc. Esse foi um dos temas importantes tratados pelo pensador. Jasmin (2005, p. 29), por exemplo, distingue dois períodos nos quais Tocqueville se ocupa com a relação entre a ação humana e tudo aquilo que se vincula à liberdade e à responsabilidade ética das ações e causas gerais dos acontecimentos históricos. No primeiro deles, que grosso modo se estende de 1828 a 1840, prevalece uma tensão não resolvida entre uma perspectiva da história como processo de longo curso que conforma a moderna democracia e que escapa à interferência humana, e uma necessidade existencial, ética e política, de afirmar a eficácia da ação individual e coletiva sobre os destinos da nação e da história. A partir do trabalho de leitura dos textos sobre a história da Inglaterra, sobre o pauperismo e sobre o desenvolvimento providencial da democracia na obra “americana”, evidencia-se a construção de três soluções distintas com as quais Tocqueville tentou resolver a tensão entre determinação e vontade. O segundo momento de sua produção intelectual relevante, que se inicia com a escrita das lembranças sobre os anos de 18481851 e se prolonga até a sua morte em 1859, constitui uma quarta solução historiográfica cuja melhor expressão se encontra em seu trabalho sobre o antigo Regime. Nos Souvenirs, que podem ser lidos como um marco da transição da vida parlamentar e ministerial de Tocqueville para a retomada de suas atividades intelectuais sistemáticas, a crônica dos eventos e a análise da conjuntura do período revolucionário de meados do século XIX acentuam a concepção da eficácia da ação e da responsabilidade ética dos indivíduos perante a história, deixando entrever o início de uma nova tentativa de resolução da tensão entre processo e ator. Em L’ancien Regime et la Révolution, que é obra propriamente historiográfica, Tocqueville apresenta 1 Muitos comentadores consideram Tocqueville como um dos pais da sociologia. Mas, para Pierre Manent (2007), Tocqueville é um filósofo político, por excelência. 15 uma arquitetura de temporalidades que, combinando longa e curta durações com causas gerais e particulares, tenta garantir um lugar privilegiado à vontade política de grupos e indivíduos, sem abandonar a concepção “trágica” de uma história multissecular. Nesta dissertação, procura-se dar mais ênfase à última tentativa de resposta de Tocqueville para o problema da história ou, nas palavras de Jasmin, do problema tocquevilleano entre processo e ator. Para o pensador francês, a democracia configura-se num processo igualitário que pode levar tanto à servidão como à liberdade2. Mas isso não quer dizer que a ação humana (principalmente a ação política) não tenha papel importante nas “eras democráticas”. É através da ação dos indivíduos que se pode tornar possível a liberdade na igualdade. Para Tocqueville, “a história”, seu “movimento” traz à tona novas circunstâncias; assim, os homens devem estar preparados para estas, ou seja, devem ser educados para se adaptarem às mesmas. O grande problema da não preparação para a democracia é que, quando esta aparecer, crescerá abandonada, “feito criança de rua” e, quando tomar o poder, os seus vícios aparecerão. Então, os homens tentarão destruir a democracia, não compreendendo que neste novo estado social é possível corrigir os seus defeitos. O segundo capítulo trata das possibilidades de liberdade em um estado social democrático. Um Estado democrático e livre, para Tocqueville, deve ser construído levando em conta a participação dos cidadãos na gestão dos negócios públicos. Para Tocqueville, as comunas são responsáveis por dar aos anglo-americanos o hábito da participação na república. Os costumes são fundamentais para que um povo democrático permaneça livre: um dos objetivos de Tocqueville foi mostrar que as leis e, sobretudo, os costumes são imprescindíveis para um povo democrático permanecer livre (1987, p.242). Um dos temores do pensador francês é de que se estabeleçam instituições democráticas sem que os cidadãos estejam preparados para as mesmas. São certas idéias e sentimentos que preparam um povo para a liberdade. Da mesma forma, se os governos democráticos não permitirem que os cidadãos usem sua 2 Escreve Tocqueville: “(...) A igualdade produz, com efeito, duas tendências: uma conduz os homens diretamente à independência e os pode impelir de repente para a anarquia; a outra os conduz por um caminho mais longo, mais secreto, mais seguro, para a servidão” (1987, p. 512). 16 liberdade política, não haverá independência para ninguém, independente de classe social ou status. Haverá, apenas, o poder ilimitado de um só (1987, p. 242). O grande empreendimento dos americanos está em vincular a democracia, a igualdade social de condições, com a liberdade. Para isso se esforçam para manter a coisa pública e a ajuda mútua: os americanos compreendem, desde cedo, que é preciso ajudar o outro, sacrificar seus interesses pessoais imediatos, muitas vezes, em nome da coisa pública. O espírito público dos americanos é ressaltado. É esse espírito cívico que fez dos Estados Unidos uma democracia a ser seguida. Certamente, para Tocqueville, há problemas na democracia angloamericana. Um dos grandes problemas em relação a ela, constatado por Tocqueville, é a escravidão. Tocqueville não vê uma saída fácil para esse problema, chegando até mesmo a temer uma guerra civil. A escravidão configura-se no problema que a democracia norte-americana terá de resolver. Esse ponto é importante para ressaltar que não é a intenção de Tocqueville copiar, ipsis litteris, o exemplo americano. Há muitos bons exemplos na América, mas não é uma democracia perfeita. Segundo Tocqueville, a América não cai no despotismo da maioria, grande perigo das eras democráticas, também por causa da religião. São os costumes, embasados em convicções e na ética, que fazem com que o anglo-americano não se deixe dominar por um déspota. O cristianismo, para o pensador francês, torna os homens iguais perante Deus, por que não haveriam de ser iguais na lei? Então, os conteúdos das crenças e dos costumes devem estar em acordo com a liberdade. É preciso crenças e costumes que facilitem um estado social livre. O terceiro e último capítulo ocupa-se com considerações de Tocqueville relativas ao papel da educação e da instrução pública nos tempos democráticos. Para o pensador francês, a educação e a liberdade, nos Estados Unidos, conciliamse bem com os valores morais e os preceitos religiosos. As religiões, segundo Tocqueville, têm a função de preparar o povo para que aja com segurança nas suas tarefas diárias. E é a partir do fundamento religioso que o povo cria idéias e sentimentos que beneficiam a manutenção da liberdade (Tocqueville, 1987, p. 242). A experiência é um fator importante para a teoria de Tocqueville; o povo deve participar da esfera pública para aprender a governar-se. Só quando se une a 17 experiência dos negócios públicos aos conhecimentos literários e científicos é que se cria a possibilidade de formar cidadãos. Tocqueville é cauteloso sobre a educação. “A educação, tanto quanto a caridade, tornou-se, na maior parte dos povos de hoje, um assunto nacional. O Estado recebe e muitas vezes toma a criança dos braços de sua mãe, para confiá-la a seus agentes; é ele que se encarrega de inspirar sentimentos a cada geração e de fornece-lhes idéias. A uniformidade reina nos estudos como em todo o resto; a diversidade, como a liberdade, desaparecem dele a cada dia” (1987, p. 522). Dessa forma, o poder central se apodera da educação, na medida em que aumentam suas atribuições. O número de funcionários públicos aumenta conforme aumenta o poder do Estado. Esses funcionários formam uma nação dentro de cada nação. “Em quase toda parte [...], o soberano domina de duas maneiras: conduz uma parte dos cidadãos pelo temor que experimentam pelos seus agentes, e outra pela esperança que concebem de se tornar seus agentes” (Tocqueville, 1987, nota 5, p. 523). Assim, ao mesmo tempo em que Tocqueville vê na associação dos indivíduos um poder educativo, capaz de impedir que os indivíduos “caminhem” para a servidão, é relutante em relação à instrução pública, pois vê no domínio do Estado sobre a educação a uniformidade de idéias e a crescente burocratização do ensino. 18 1. Democracia: os problemas da igualdade de condições Se Tocqueville afirma-se como uma referência para pensar a democracia, por outro lado, esse termo, em suas obras, apresenta várias significações. Comentadores, como José Guilherme Merquior, Raymond Aron e Marcelo Gantus Jasmin, mesmo reconhecendo a polissemia3 que o termo democracia apresenta nas obras de Tocqueville, reconhecem que prevaleceu em seu sistema conceitual a conotação associada a uma maneira de ser da sociedade4. Para Zúñiga (1984, p. 17 e 18), antes de falar em democracia na obra de Tocqueville, é preciso esclarecer alguns pontos: La primera se refiere a la dificultad que plantea la multiplicidad de contextos em que Tocqueville habla de democracia y la variedad de situacionés a que aplica el término. Se ha podido decir así, que se bien aparece el concepto constantemente en su obra, nunca es definido con rigor. Y es que, en efecto, democracia es vista en algunos pasajes como forma de organización del poder político, pensada en otros como tipo de sociedad, aqui se esboça una 3 Sobre este assunto, também ver: Schleifer, James. Como Nació la democracia en América de Tocqueville. México: Fondo de Cultura Económica, 1984. Há, também, outro artigo do autor: Un Modelo de Democracia: Lo que Tocqueville Aprendió em América (2005), onde o autor também trata do problema do conceito de democracia na obra de Tocqueville. 4 Uma análise aprofundada desse problema encontra-se em Jasmin (2005, p. 41): “Quando Tocqueville tentou formalizar conceitualmente esta intuição, recorreu à palavra democracia, corrente na tradição política para referir-se a uma forma de governo e significar governo do povo. Mas a empregou com sentido não tão usual para referir-se a uma forma de sociedade. A rigor, o conceito permaneceu sem uma definição satisfatória e, apesar das inúmeras tentativas de Tocqueville, manteve uma inequívoca polissemia. Entretanto, é forçoso reconhecer que, em meio à pluralidade de significados, predominou no sistema conceitual a conotação associada ao que chamou certa vez ‘uma maneira de ser da sociedade’, por oposição à definição mais estreita que se referia à soberania do povo, ao direito político e à forma de governo”. “Analiticamente, o conceito foi utilizado em dois níveis distintos, nem sempre suficientemente diferenciados: um histórico-empírico e outro teórico” (p. 41) . 19 sociologia de la produción intelectual y estética en un contexto democrático, allí se aborda un retrato psicológico de la mujer y el hombre demócratas. Las leyes; la opinión pública y los partidos políticos; la distribuición del poder, de la riqueza y del prestigio; la vida cotidiana, bien abierta a la participacion de todos en actividades colectivas o bien practicada replegándose cada cual sobre si mismo; la envidia como sentimiento especialmente democratico, acompañada de la convicción de que todos los miembros de la comunidad deben ser iguales y de que todos los trabajos y ocupaciones (siempre que no violen la ley) son igualmente honrables y respetables; un alto nível médio de instrucción pública junto a una notable pobreza de grandes obras culturales, e incluso un escassísimo interés por producirlas; apetito inextinguible por mejorar el bienestar económico individual mezclandose con la desaparición progresiva de ambiciones profundas; se desea la paz, se aprecia bien poco al ejército y la vida militar, se detesta la guerra, pero cuando se abandona ese estado, cuando la sociedad democrática decide guerrear, se acomoda en su tonalidad a esa situación, concentra todas sus energias en la lucha y es dificilíssima de vencer; tales son algunos de los temas desde los que Tocqueville intenta precisar qué es democracia, cuáles son los componentes y direcciones del movimiento democrático (Zuñiga, 1984, p. 17-18). Em uma célebre passagem, Raymond Aron (1986, p. 209) sintetiza muito bem o entendimento de Tocqueville sobre a democracia: A seus olhos, a democracia consiste na igualização das condições. Democrática é uma sociedade onde não existem distinções de ordens e de classes; em que todos os indivíduos que compõem a coletividade são socialmente iguais, o que não significa que sejam intelectualmente iguais, o que é absurdo, ou economicamente iguais, o que, para Tocqueville, é impossível. A igualdade social significa a inexistência de diferenças hereditárias de condições; quer dizer que todas as ocupações, todas as profissões, dignidades e honrarias são acessíveis a todos. Estão, portanto, implicadas na idéia de democracia a igualdade social e, também, a tendência para a uniformidade dos modos e dos níveis de vida. Para Célia Galvão Quirino (s/d, p. 12): O olhar de Tocqueville, ao apresentar a democracia americana como uma sociedade de homens iguais, parece ter se fixado em três aspectos importantes e os ter eleitos como aqueles que são significativos para que se pudesse compreender o fenômeno da democracia. O primeiro foi definido e classificado como o de “igualdade de condições”. O segundo diz respeito à igualdade de oportunidades. O terceiro, não menos importante, é aquele que faz com que a sociedade americana não possua, ou pelo menos não aparente possuir, estratificação social rígida, nem permita haver qualquer impedimento social, legal ou político à ascensão social. Isto é, os americanos se encaram como iguais não apenas perante a lei, mas também ao exercer 5 qualquer atividade social 5 “Essa idéia de democracia como uma sociedade igualitária é muito bem definida por Tocqueville a partir, tanto da existência real de uma situação de igualdade de costumes, quanto da perspectiva de que a sociedade, como um todo, possuía dela própria. Assim, embora Tocqueville considerasse, como um dado importante, as diferenças de classe social que a riqueza confere, certamente, não 20 Outro problema reconhecido entre comentadores e leitores de Tocqueville, quando se trata de democracia, é saber que o pensador francês se “move” em dois níveis distintos. Por vezes, suas análises são empírico-descritivas, e por outras são “modelos sociais” que não correspondem a nenhuma sociedade específica6. Leer La Democracia en América o El Antiguo Régimen y la Revolución buscando solo un análisis de la sociedad americana de la época o de la monarquia absoluta y el proceso revolucionario, es retener una parte de lo que ambos textos ofrecen. Hay, sin duda, momentos, en que Tocqueville busca tal objectivo, pero hay otros, y además entremezclados con los anteriores, en los que la intención es otra (Zúñiga, 1984, p. 19). Mas, se há um ponto concordante nas interpretações dos comentadores, é que Tocqueville reconhece na democracia um movimento arrebatador, onde lhe parece que a vontade dos homens não pode mais conter movimento tão forte. Os homens podem e devem dirigir a democracia, mas não há como contê-la. Se a observação atenta e a meditação sincera levassem os homens de nosso tempo a reconhecer que o desenvolvimento gradual e progressivo da igualdade constitui, a um só tempo, o passado e o futuro da sua história, bastaria essa descoberta para dar àquele desenvolvimento o caráter sagrado 7 da vontade de Deus soberano . Neste caso, querer deter a democracia seria como lutar contra o próprio Deus, e só restaria às nações acomodar-se ao estado social que lhes impõe a Providência. Os povos cristãos parecem-me oferecer hoje em dia um espetáculo aterrador; o movimento que os impele é já demasiado rápido para que ainda o seria na igualdade econômica que a democracia buscaria seus alicerces. Portanto, mesmo que a riqueza pudesse ser vista como um fator gerador de desigualdade, outros fatores e valores mais significativos, para o povo americano, podem impedir que essa desigualdade venha a afetar, no seu âmago, as igualitárias e determinantes relações sociais da sociedade democrática. Também seria preciso considerar que, nessa democracia jacksoniana, a riqueza é vista como algo que pode ser adquirido e, nesse momento pelo menos, não é a única forma de se obter o poder. O exemplo do presidente do país, como um autêntico “self-made man” e de seus partidários é para ser observado e seguido. Tudo parece ser possível a qualquer um e a todos” (Galvão Quirino, s/d, p. 14). 6 “Mi premisa de trabajo es, por supuesto, que Tocqueville llegó al Nuevo Mundo con ciertas ideas y preocupaciones ya en mente. Alcanzó las costas americanas llevando mucho del bagage histórico y cultural francés de principios del siglo XIX. Llegó con ideas preconcebidas sobre las características fundamentales y la orientación de la sociedad moderna. Ya estaba pensando en la revolución, en la centralización, en la marcha de la democracia, en conseguir la igualdad, en el republicanismo, en el tema de la soberania, en los posibiles abusos de um poder incontestado, y en el futuro de la liberdad. Pero el proprio lenguage de Tocqueville indica que América le dio lecciones que él no esperaba y que cambiaram su manera de pensar de forma importante” (Schleifer, 2005, p. 18). Talvez, possa-se pensar conforme a citação acima, que esses modelos “ideais” também mudaram conforme a experiência vivida por Tocqueville na América. 7 Sobre esse tema, ver Marcelo Gantus Jasmin: Tocqueville, a Providência e a História. Disponível em <www.casaruibarbosa.gov.br>. Acesso em: 28/12/2009. 21 possamos conter; não é ainda bastante rápido para que percamos a esperança de dirigi-lo: a sua sorte acha-se em suas próprias mãos, mas pode escapar-lhes bem depressa (Tocqueville, 1987, p. 14). Ao interpretar a crescente igualização de condições dos povos ocidentais, Tocqueville apresenta-a como um processo universal, consistindo num movimento quase irrefreável: os homens entram na era da igualdade. E mais, essa igualdade se torna o fato decisivo, é ela responsável por toda sorte de mudanças na sociedade, desde a opinião pública e os hábitos, às leis e aos governos. E foi justamente esse novo estado social que destruiu tudo o que representava o Antigo Regime, as instituições aristocráticas. Desde o primeiro volume da Democracia até o Antigo Regime, Tocqueville permanece com essa idéia. Nem mesmo a Revolução de 1789, para o pensador francês, escapa desse pensamento. Por mais radical que tenha sido a Revolução, inovou muito menos de que se supõe geralmente (...). A verdade é que destruiu inteiramente ou está destruindo (porque ela continua) tudo que, na antiga sociedade, deriva das instituições aristocráticas e feudais, tudo o que a elas se ligava de uma ou de outra maneira, tudo o que delas trazia, uma marca por menos que fosse. A Revolução não foi de maneira alguma um acontecimento fortuito. Realmente pegou o mundo de improviso embora nada mais fosse que o complemento do trabalho mais longo e do término repentino e violento de uma obra à qual dez gerações tenham trabalhado. Mesmo que não tivesse surgido a Revolução Francesa, o velho edifício social teria ruído por toda parte, aqui mais cedo, acolá mais tarde, mas teria caído peça por peça, em vez de desmoronar-se de uma só vez. A Revolução resolveu repentinamente, por um esforço convulsivo e doloroso, sem transição, sem precauções, sem deferências, o que ter-se-ia realizado sozinho, pouco a pouco, com o tempo. Esta foi, portanto, a obra da Revolução (Tocqueville, 1982, p. 67-68). É claro, como comenta Barbu (1982, p.17), que, mesmo Tocqueville “tratando” a democracia como um fait total8, ela se manifesta de várias formas, dependendo do contexto histórico. Assim, o movimento democrático na Inglaterra guarda diferenças com o movimento democrático na França e nos Estados Unidos, por exemplo. “Enquanto a democracia inglesa é a democracia da liberdade, a francesa é a democracia da igualdade”, comenta Barbu (idem, p. 18). 8 Fato total ou Fenômeno total é a expressão cunhada por Marcel Mauss, sociólogo e antropólogo francês, sobrinho de Émile Durkheim. São fenômenos complexos que abrangem vários níveis da realidade. Ver, sobre isso, Marcel Mauss, 1974, p. 41. 22 Cada tipo de sociedade possui suas qualidades e seus defeitos, conseqüentemente a transição da aristocracia para a democracia implica ao mesmo tempo ganho e perdas. A história é uma figura de Janos, e a mensagem final de L’Ancien Régime é a de se atentar para os bons e maus aspectos da democracia, e aceitá-la sem alegria exuberante e sem desespero – ou melhor, nem esperar muito de um futuro democrático, nem chorar demais por um passado aristocrático (Barbu, 1982, p. 24). Nesse aspecto, é a ação humana, a ação de cada povo, com seus costumes, hábitos e crenças, que irá determinar o rumo da democracia. Tocqueville, em muitas passagens, expressa-se tragicamente, dando a entender um destino inexorável para o mundo ocidental9. Mas isso é apenas em aparência. Uma análise mais aprofundada da obra do pensador francês reconhecerá a intenção deste de alterar os rumos da democracia; para melhor. Tocqueville está, em todos seus escritos, preocupado com a liberdade no mundo moderno. Assim, é preciso ultrapassar essas contradições superficiais para compreender sua obra. O próprio Tocqueville, no livro II da Democracia, reconhece e adverte para o seu tom trágico. Causas diferentes, mas igualmente independentes do princípio da igualdade, poderiam ser encontradas na Europa e explicariam grande parte do que nela se passa. Reconheço a existência de todas essas diferentes causas e o seu poder, mas meu assunto em nada me obriga a falar delas. Não me entreguei à tarefa de mostrar a razão de todos os nossos pendores e de todas as nossas idéias; desejei simplesmente fazer ver em que parte a igualdade modifica uns e outras. Talvez cause admiração o fato de, adotando firmemente a opinião de que a revolução democrática de que somos testemunhas é um fato irresistível contra a qual não seria nem desejável nem prudente lutar, muitas vezes me 9 Reproduz-se aqui um famoso escrito “profético” de Tocqueville, que se tornou muito famoso durante a divisão do mundo entre os capitalistas e os comunistas, pelo menos nos paises capitalistas. “Existem hoje, sobre a terra, dois grandes povos que, tendo partido de pontos diferentes, parece adiantar-se para o mesmo fim: são os russos e os anglo-americanos. Ambos cresceram na obscuridade; e, enquanto os olhares dos homens estavam ocupados noutras partes, colocaram-se de improviso na primeira fila entre as nações e o mundo se deu conta, quase ao mesmo tempo, do seu nascimento e da sua grandeza. Todos os outros povos parecem ter chegado mais ou menos aos limites traçados pela natureza, nada mais lhes restando senão manter-se onde se acham; mas aqueles estão em crescimento; todos os outros se detiveram, ou só avançam a poder de mil esforços; apenas eles marcham a passo fácil e rápido, numa carreira cujos limites o olhar não poderia perceber ainda. O americano luta contra os obstáculos que a natureza lhe impõe; o russo está em luta com os homens. Um combate o deserto e a barbárie, o outro, a civilização com todas as suas armas; por isso, as conquistas do americano se firmam com o arado do lavrador, as do russo com a espada do soldado. Para atingir a sua meta, o primeiro apóia-se no interesse pessoal e deixa agir, sem dirigi-las, a força e a razão dos indivíduos. O segundo concentra num homem, de certa forma, todo o poder da sociedade. Um tem por principal meio de ação a liberdade; o outro, a servidão. O seu ponto de partida é diferente, os seus caminhos são diversos; não obstante, cada um deles parece convocado, por um desígnio secreto da Providência, a deter nas mãos, um dia, os destinos da metade do mundo”. (1987, p. 315-316). 23 tenha ocorrido, neste livro, dirigir tão severas palavras às sociedades democráticas que essa revolução criou. Responderei simplesmente que é por não ser, de maneira alguma, adversário da democracia, que desejei ser sincero para com ela. Os homens nunca recebem a verdade de seus inimigos e seus amigos quase nunca a oferecem; foi por isso que a enunciei (1987, p. 319). Por isso, é preciso reconhecer e distinguir os hábitos democráticos dos hábitos de cada povo. Por exemplo, a religião puritana é um hábito do povo norteamericano, não é, por sua vez, um hábito democrático. Já o hábito de não reconhecer nenhuma autoridade intelectual é um hábito democrático. Por sua vez, a igualdade social de condições, característica imprescindível da democracia, ao contrário do estado social aristocrático, desenvolve em cada homem o desejo de julgar tudo por si mesmo (1987, p. 345). A igualdade faz surgir, no espírito humano, “[...] muitas idéias que não lhe teriam vindo sem ela, e modifica quase todas as que já possuía” (1987, p. 340). O homem democrático, então, para Tocqueville, é um homem que não reconhece mais nenhuma autoridade no mundo terreno. A igualdade faz, cada vez mais, os homens tornarem-se parecidos. “A primeira e mais viva das paixões que a igualdade de condições faz nascer é, não é preciso que o diga, o amor a essa mesma igualdade” (1987, p. 383)10. Mas os que experimentam a igualdade de condições não vêem perto de si senão semelhantes e, não reconhecendo em qualquer parte do corpo social os “sinais [permanentes] de uma grandeza e de uma superioridade incontestáveis”, não podem apoiar suas opiniões na inteligência alheia. Por isso, “são constantemente levados de volta à sua própria razão como a fonte mais visível e mais próxima da verdade [... de modo que] cada um se encerra estreitamente em si mesmo e dali pretende julgar o mundo. O indivíduo democrático é então juiz de si e de todas as coisas, repudiando as antigas tradições de classe, profissão e família que orientam seus antepassados através da autoridade do exemplo. Teoricamente, o método filosófico que preside a consciência individualista democrática é, segundo Tocqueville, cartesiano – cada um só apela para o esforço individual da sua própria razão – e, independentemente do conhecimento das obras de Descartes, os homens seguem suas máximas, pois o “estado social dispõe naturalmente 11 seu espírito a adotá-las ” (Jasmin, 2005, p. 84). 10 “A igualdade de condições, característica dos tempos democráticos, invade todos os domínios da vida humana dando origem a uma paixão a que os homens aderem irrefletidamente. Ou seja, a igualdade de condições aparece como o valor dominante da sociedade igualitária. Enquanto dominante, a igualdade de condições faz nascer entre os homens um ‘pensamento-mãe ou paixão principal’ pela igualdade, que pode preencher completamente o coração humano” (Reis, 2002, p. 65). 11 Para esclarecer melhor o sentido em que Tocqueville considera o povo norte-americano cartesiano, reproduz-se aqui uma passagem da Democracia (1987, p. 321-322): “Creio não existir, no mundo 24 E por repudiar as antigas tradições, principalmente as de classe, é que Tocqueville caracteriza a sociedade democrática, ao contrário da sociedade aristocrática12, como uma sociedade que se “move” de maneira rápida. Nada mais prende o homem democrático. Tudo pode estar ao seu alcance. “A igualdade desenvolve em cada homem o desejo de julgar tudo por si mesmo; dá-lhe, em todas as coisas, o gosto pelo tangível e pelo real, o desdém pelas tradições e pelas formas” (Tocqueville, 1987, p. 345). O homem volta-se para si mesmo, para si próprio, não estima a erudição, não lhe interessa o passado, o que se passava em Roma ou Atenas, só o que exige é o quadro do presente (1987, p. 372). [...] Tocqueville advertiu que a lógica igualitária da democracia universalizava uma inédita mescla de oportunidades e ameaças. Por um lado, a difusão da riqueza, da educação, do conforto e do bem-estar social superaria os velhos extremos de opulência e pobreza, de aristocracia e servidão e abriria caminho a uma numerosa classe média, titular de amplos direitos civis e políticos. Por outro, a dissolução dos tradicionais grupos intermediários fundados no civilizado, país onde menos se preste atenção à filosofia que os Estados Unidos. Os americanos não têm nenhuma escola filosófica própria e muito pouco se incomodam com todas aquelas que dividem a Europa; e mal sabem-lhes os nomes. No entanto, é fácil perceber que todos os habitantes dos Estado Unidos dirigem o espírito da mesma maneira e o conduzem segundo as mesmas regras; isto é, possuem sem que jamais tenham se dado ao trabalho de definir as suas regras, certo método filosófico que é comum a todos eles. Fugir ao espírito de sistema, ao jugo dos hábitos, às máximas de família e, até certo ponto, aos preceitos da nação, só aceitar a tradição como uma informação e os fatos presentes como uma útil lição para fazer de outra e melhor forma; procurar sozinho em si mesmo a razão das coisas; tender para o resultado sem se deixar pretender aos meios e visar o fundo através da forma – tais são os principais traços característicos do que eu chamei o método filosófico dos americanos. [...] Por isso, é a América um dos países do mundo onde se estudam menos e onde melhor se seguem os preceitos de Descartes. Isso não é razão de surpresa. Os americanos de modo nenhum lêem as obras de Descartes, pois seu estado social os desvia de seus assuntos especulativos; mas seguem as suas máximas porque aquele mesmo estado social naturalmente dispõe o seu espírito a adotá-las”. 12 Segundo Zúñiga (1984, p. 21-22), há três pontos importantes no que Tocqueville compreende por sociedade aristocrática: a) Desigualdad entre las distintas clases y estados: el lugar de nacimiento (en la doble dimensión de território geográfico y familia concreta) diferenciaba rigurosa y definitivamente a unos de otros: cada grupo social tenia funciones e normas específicas que delimitaban desde el nacimiento de cada cual el abanico de sus posibles opciones. Se es noble, como se es villano, por razón de nacimiento: no es, pues, necesario componer a cada instante un escenario que permite evidenciar que se posee una u otra calidad porque el escenario y la trama están construidos desde que cada cual viene al mundo. b) El poder ideológico, el político y el económico se concentran en unas manos, el resto se ven confinados al trabajo. Es decir, el poderoso puede olvidar lo cotidiano y concentrar un esforzo en lo extraordinario: la tensión y la energia social serán enderezadas por los grupos preeminentes más en esa dirección que hacia la moderación doméstica. c) Cada grupo social se articula con los restantes grupos sociales a partir de un juego recíproco de derechos y obligaciones: el nobre se ve descargado de trabajar, pero viene obligado a la protección del vasallo. 25 respeito às hierarquias, a paixão incontrolável por sempre mais igualdade, a desconfiança instintiva das massas contra qualquer manifestação de superioridade intelectual, a “tirania da maioria”, a exclusiva concentração das pessoas em seus interesses privados e o conseqüente relaxamento das virtudes cívicas [...] (Kramer, 2000, p. 165). E essas ameaças que a igualdade, o princípio unificador da democracia (cf. Jasmin, 2005, p.47), traz consigo, faz surgir dois novos problemas sociais: o individualismo e o despotismo democrático. 1.2 O Individualismo O individualismo, segundo Tocqueville, é um fenômeno novo, decorrente do processo de igualdade de condições. Ao contrário do egoísmo13, que é intrínseco ao ser humano14, o individualismo só surge nos séculos democráticos. “O individualismo é um sentimento refletido e pacífico, que dispõe cada cidadão a isolar-se da massa de seus semelhantes e a retirar-se para um lado com sua família e seus amigos, de tal sorte que, após ter criado para si, desta forma, uma pequena sociedade para seu uso, abandona de bom grado a própria grande sociedade” (1987, p. 386). Diferentemente das sociedades aristocráticas, onde existia uma cadeia de proteção entre os súditos, na democracia cada um depende única e exclusivamente de seus esforços pessoais. Não há mais laços entre os indivíduos de uma mesma classe. Nas sociedades aristocráticas, a riqueza é um privilégio hereditário, os ricos não precisam se preocupar em obtê-la, é como que natural a condição econômica das classes. Por isso, os aristocratas podem se preocupar com outros assuntos, 13 “O egoísmo esteriliza os germes de todas as virtudes, o individualismo, de início, só faz secar a fonte das virtudes públicas; mas, depois de algum tempo, ataca e destrói todas as outras e vai, afinal, absorver-se no egoísmo. O egoísmo é um vício tão antigo quanto o mundo. Praticamente, não pertence mais a uma que a outra forma de sociedade. O individualismo é de origem democrática e ameaça desenvolver-se à medida que se igualam as condições” (Tocqueville, 1987, p. 386). 14 Tocqueville acredita numa natureza humana. “Quando certa maneira de pensar ou de sentir é produto de um estado social particular da humanidade, nada resta ao modificar-se esse estado. [...] Não se dá, porém, a mesma coisa, quanto aos sentimentos naturais à espécie humana. É raro que a lei, esforçando-se por fazer com que estes se dobrem de certa maneira, não os enfraqueça; que, desejando ajuntar, não lhes chegue a tirar alguma coisa, e que não sejam sempre muito fortes, quando entregues a si mesmos” (1987, p. 450). Nesse sentido, a democracia, como um estado social determinado, apenas altera de maneira superficial alguns sentimentos inerentes ao ser humano. 26 como, por exemplo, a vida pública. Com a “revolução” democrática, cai a barreira social que separava ricos e pobres15. E, por não haver mais laços, os homens se esforçam, cada vez mais, por buscar, pelos seus próprios esforços individuais, um maior bem-estar. “Dessa forma, a democracia seria incentivadora desse isolamento pelo fato de, nela, o indivíduo só contar consigo mesmo e acreditar que é o seu trabalho, bem como os seus esforços e suas capacidades, que irá conceder-lhe tranqüilidade e bem-estar” (Quirino, 2001, p.75). Os homens dos tempos democráticos só desejam tranqüilidade e bem-estar. Sobre o bem-estar, assim se refere Tocqueville (1987, p. 412): Existe, na realidade, uma passagem muito perigosa na vida dos povos democráticos. Quando o gosto pelos prazeres materiais se desenvolve num desses povos mais rapidamente que as luzes e os hábitos da liberdade, chega um momento em que os homens se acham enleados e como que fora de si mesmos, em vista desses bens novos que estão prontos a colher. Preocupados apenas com o cuidado de fazer fortuna, não mais percebem o estreito laço que une a fortuna particular de cada um deles à prosperidade de todos. Não é necessário tirar de tais cidadãos os direitos que possuem; eles mesmos os deixam voluntariamente escapar. O exercício de seus deveres políticos parece-lhes um contratempo desagradável que os distrai da sua indústria. Para o homem moderno, então, constitui perda de tempo o envolvimento com a coisa pública. Isso lhe tira o foco do “essencial” – ganhar dinheiro e viver seguramente. O homem democrático acha inútil a vida pública. “Como os cidadãos que trabalham não desejam pensar na coisa pública e não existe mais a classe que poderia encarregar-se desse cuidado para encher os seus vagares, o lugar do governo fica como que vazio” (Tocqueville, 1987, p. 413). Mesmo vivendo em sociedade, o homem torna-se uma “ilha”. Seu círculo de relações familiares forma “toda a humanidade”. O restante dos homens, mesmo estando a seu lado, “[...] ele não os vê, toca-os e não os sente; existe apenas em si e para si mesmo, e, se ainda lhe resta uma família, pode-se ao menos dizer que não tem mais pátria” (1987, p. 531). 15 “Num povo aristocrático, cada casta tem as suas opiniões, os seus sentimentos, os seus direitos, os seus costumes, a sua existência à parte. Assim, os homens que a compõem nunca se parecem a todos os outros; nunca têm a mesma maneira de pensar ou de sentir, e mal chegam a crer que fazem parte da mesma humanidade” (Tocqueville, 1987, p. 427). 27 Ao se preocupar apenas com sua vida privada, com os bens privados, o homem retira-se do “palco da vida política”. Então, mesmo todos tendo os mesmos direitos, podendo gozar das mesmas profissões, podem perder a liberdade política. E perderão de bom grado se lhes garantirem o bem-estar. Esse é o perigo do individualismo: uma sociedade em que só o conforto e a segurança são valorizados. A igualdade pode estabelecer-se na sociedade civil e não reinar no mundo político. Pode-se ter o direito de se entregar aos mesmos prazeres, de entrar para as mesmas profissões, de encontrar-se nos mesmos lugares [...]. Podese estabelecer-se mesmo uma espécie de igualdade no mundo político, embora não haja a liberdade política. Somos iguais a todos os nossos semelhantes, menos um, que é, sem discussão, o senhor de todos, e que toma igualmente, entre todos, os agentes do seu poder (Tocqueville, 1987, p. 383-384). Então, através da apatia social, decorrente do individualismo, pode surgir um governo despótico. 1.3 O despotismo democrático Mas o que Tocqueville compreende por despotismo democrático não se encontra na história: é uma nova forma de poder. Para esse novo fenômeno, o pensador chama a atenção para o fato de que este poder não se fixará contra a vontade dos homens. Ao contrário, ocupará o lugar vago da política, deixado pelos indivíduos. Então, esse poder, absoluto e brando ao mesmo tempo, irá se impor com o apoio dos homens, desde que se garanta, é bom lembrar, o bem-estar e a segurança. Sobre a base social individualista, um poder imenso, absoluto e brando, cuida de todos os detalhes da vida social dos súditos que se mantêm ocupados na busca dos “pequenos e vulgares prazeres”. Zeloso, age como pai, mas obriga seus “filhos” à eterna menoridade. “Animais tímidos e diligentes”, dependentes do “pastor para todas as coisas”, têm sua vontade inutilizada e o uso do seu livre-arbítrio é raro. O poder não é tirânico, é tutelar; a nova opressão é regulada e pacífica e, em sua forma mais avançada, combina a centralização administrativa com a soberania do povo pela incorporação das “formas exteriores da liberdade” que dão aos súditos a sensação de comandarem a si mesmos. Apesar de tutelados, elegem seus tutores (Jasmin, 2005, p. 66-67). 28 O estado social democrático gera, nos indivíduos, dois tipos de paixões, que se contradizem de certa forma: o desejo de independência e a necessidade de ser conduzido16. De um lado, o homem democrático não se submete a nenhuma autoridade, quer conduzir sua vida particular, seus negócios, da maneira como lhe aprouver. De outro, na vida pública, deseja apenas que esta não tome seu tempo, que não atravanque sua vida privada. Se alguém se dedicar a esta atividade, o homem democrático “agradecerá”, pois ele só quer a paz pública. E, “[uma] nação que não pede a seu governo senão a manutenção da ordem já é escrava no fundo do coração; é escrava do seu bem-estar, e o homem que deve acorrentá-la pode aparecer” (Tocqueville, 1987 p. 413). O homem democrático não percebe que, inclusive a sua vida privada, seu bem-estar, depende da coisa pública. Ele crê que comparecer às urnas basta para garantir sua liberdade política17. “A vida privada é tão ativa nos tempos democráticos, tão agitada, tão cheia de desejos, de trabalhos, que quase não resta mais energia nem vagar a cada homem para a vida política” (1987, p. 515). O homem democrático é, ao mesmo tempo, independente e frágil. Não lhe ocorre se unir com seu semelhante. E como nenhum deve obediência a outro, a um senhor, como nos tempos aristocráticos, o poder de associação é quase nulo. Os séculos democráticos desenvolvem nos homens idéias simples e gerais. Vêem-se como iguais, crêem que as regras devem ser iguais a todos. Essas idéias também têm seu lado negativo, principalmente em política, pois “[...] a uniformidade legislativa parece-lhe ser a condição primeira de um bom governo” (1987, p. 513). E em qual governo reina uma uniformidade maior que no despótico? À medida que as condições se tornam iguais num povo, os indivíduos parecem menores e a sociedade, maior; ou melhor, cada cidadão, tendo se tornado semelhante a todos os demais, perde-se na multidão, e não se parece mais senão a imagem vasta e magnífica do próprio povo. Isso dá naturalmente aos homens dos tempos democráticos uma opinião muito elevada dos privilégios da sociedade e uma idéia muito humilde dos direitos do indivíduo. Admitem eles facilmente que o interesse de um é tudo e o de outro é nada. Com grande boa vontade, concordam que o poder que representa a sociedade possui muito mais luzes e sabedoria que qualquer 16 Ver, sobre esse tema, Jasmin, 2005, p. 67. “A imagem tocquevilleana do despotismo democrático, ao mesmo tempo que mantém os pressupostos tradicionais de uma natureza servil, rompe com a tradição ao assumir a viabilidade de um despotismo ocidental (Vollrath), uma degeneração do político em não-político, considerada legal e legítima porque apoiada no consentimento” (Jasmin, 2005, p. 73). 17 29 dos homens que a compõem, e que o seu dever, tanto quanto o seu direito, é tomar cada cidadão pela mão e conduzi-lo” (Tocqueville, 1987, p. 513). Os homens admitem e se convencem de que, como o poder emana do povo, o Estado tem o poder de tudo fazer. Deve pôr a mão em tudo, como menciona Tocqueville. Assim, cria-se um poder central onipotente. “A unidade, a ubiqüidade, a onipotência do poder social, a uniformidade de suas regras, constituem o traço de realce que caracteriza todos os sistemas políticos nascidos hoje em dia” (Tocqueville, 1987, p. 514). Mesmo que haja eleições e que os homens as desejem, os programas políticos e as idéias dos governos não mudam. “Todos concebem o governo sob a imagem de um poder único, simples, providencial e criador” (idem, p. 514). Os homens, nos tempos democráticos, não se importam em perder a liberdade política, desde que todos a percam. Preferem a igualdade acima de tudo e, mais, os bens que um estado social democrático pode proporcionar. Esses são os maiores problemas das eras democráticas, segundo Tocqueville. Mas isso não quer dizer que todos os povos democráticos cairão sob o jugo de um Estado onipotente, devido às suas respectivas apatias políticas. E, nesses termos, o maior exemplo de que se pode combinar igualdade e liberdade está no povo dos Estados Unidos da América. 30 2. As possibilidades da liberdade em um Estado democrático Tocqueville inscreve-se como um defensor irredutível da liberdade. Era um apaixonado pela liberdade. Mas o que, realmente, o pensador francês compreendia por liberdade? Ao interpretar a crescente igualização de condições como um estado social que pode levar tanto à servidão quanto à liberdade, Tocqueville vê na ação humana (principalmente na ação política) as possibilidades da liberdade num estado democrático. É através da ação dos indivíduos que se pode tornar possível a liberdade na igualdade. Tocqueville, porém, não é um generalista. Admite que não é possível haver uma só causa para os fenômenos históricos. Por isso, o rumo incerto das eras democráticas. Odeio, de minha parte, estes sistemas absolutos, que fazem depender todos os acontecimentos da história de grandes causas primeiras, ligando-se umas às outras por uma cadeia fatal, e que suprimem, por assim dizer, os homens da história do gênero humano. Eu os acho limitados em sua pretensa grandeza, e falsos sob seu ar de verdade matemática. Creio, ainda que isso desagrade aos escritores que inventaram estas teorias sublimes para alimentar sua vaidade e facilitar seu trabalho, que muitos fatos históricos só poderiam ser explicados por circunstâncias acidentais, e que muitos outros permanecem inexplicáveis; que enfim o acaso, ou antes este emaranhado de causas segundas que assim chamamos por não sabê-lo desembaraçar, interfere, e muito, em tudo que nós vemos sobre o teatro do mundo [...] (Tocqueville apud Jasmin, 2005, p. 185). Para Tocqueville, essa busca por fatos gerais também ocorre por causa dos valores democráticos. É por isso que critica os historiadores dos séculos democráticos. Não que Tocqueville fosse invariavelmente contrário a esse tipo de 31 explicação, mas não podia deixar de notar a ação de indivíduos18. É por isso que distingue os historiadores dos séculos aristocráticos dos historiadores dos séculos democráticos. Para ele, os historiadores dos séculos aristocráticos tentaram explicar os acontecimentos pela ação dos indivíduos, já que era fácil perceber um grupo reduzido de indivíduos que comandavam a sociedade. Nos séculos democráticos, os historiadores tentam explicar os acontecimentos pelas causas gerais, pois só enxergam a massa. Mas esse tipo de explicação de mundo tem um fato muito negativo para Tocqueville, pois, ao atribuírem só causas gerais a certos eventos e, ainda, criarem, a partir dessas causas gerais, um sistema, eliminam a liberdade dos indivíduos. Só vêem o movimento do povo por uma força superior. Os historiadores que vivem nos tempos democráticos não recusam, pois, apenas atribuir a alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino do povo; ainda tiram aos próprios povos a faculdade de modificar a sua própria sorte e os submetem ora a uma providência inflexível, ora a uma espécie de cega fatalidade. Segundo eles, cada nação é invencivelmente ligada, pela sua posição, sua origem, seus antecedentes, sua natureza, a certo destino, que nem todos os esforços poderiam modificar (1987, p. 377). Tocqueville, até mesmo por sua ação política como parlamentar, aposta na liberdade humana, principalmente na liberdade política, para “sanar” os problemas da igualdade. Crê que uma democracia perfeita só é possível de acontecer onde ninguém exerça um poder tirânico e os homens sejam inteiramente livres porque iguais e iguais porque inteiramente livres19. Mas existem mil outras formas de democracia e o medo de Tocqueville é de que se estabeleça nas nações uma igualdade civil sem que seja mantida a liberdade política. A liberdade20, para o 18 “Quanto a mim, creio que não há época em que seja necessário atribuir uma parte dos acontecimentos deste mundo a fatos muito gerais e outra a influências muito particulares. Essas duas causas se encontram sempre; só difere a sua relação” (Tocqueville, 1987, p. 376). 19 Ver Tocqueville, Segunda Parte, Cap. I, p. 383. 20 Segundo Helena Esser dos Reis (2002), a noção de liberdade, para Tocqueville, tem duas características importantes: 1ª a independência individual; 2ª a participação política. “Veremos que, apesar das peculiaridades, sua concepção de liberdade reúne sempre a independência individual, entendida como não submissão ao arbítrio de outrem, e a participação, ou seja, o direito de todos os cidadãos tomarem parte nas decisões das questões relativas à sua comunidade. A liberdade, concebida como independência e participação, pode apresentar-se tanto em um estado aristocrático, quanto em um estado democrático, e realiza-se no espaço público de convívio dos cidadãos” (2002, p. 10). Conforme Jasmin (2001, p. 206), “para Tocqueville, a liberdade democrática moderna depende do fato político da existência pública dos indivíduos livres como cidadãos, da mobilização da vontade de cada um na formação da vontade soberana, o que introduz um elemento de atividade cívica como condição para a legitimidade do poder político igualitário livre”. 32 pensador francês, não é uma característica das épocas democráticas, aliás, não é característica de nenhum estado social21. A liberdade manifestou-se aos homens em diferentes ocasiões e sob diferentes formas; nunca se ligou exclusivamente a um estado social e podemos encontrá-la também fora das democracias. Por isso, não poderia formar o caráter distintivo dos séculos democráticos. O fato particular e dominante que singulariza estes séculos é a igualdade de condições; a paixão principal que agita os homens em tais ocasiões é o amor por essa igualdade (Tocqueville, 1987, p. 384). Outro problema é que a liberdade pode, em seus excessos, acabar com a tranqüilidade social; além disso, seus benefícios não são fáceis de reconhecer. “Os bens que a liberdade proporciona só se mostram ao cabo de algum tempo, e é sempre fácil enganarmo-nos quanto à causa que os faz nascer22” (1987, p. 385). Mas, diante dos males que a igualdade pode introduzir no seio da sociedade, como a apatia política, a tirania e o despotismo, só há um remédio: a liberdade política. Muitas pessoas, na França, consideram a igualdade de condições como um mal, e a liberdade política como outro. Quando são obrigadas a sofrer uma, esforçam-se, ao menos, por escapar à outra. Eu, por mim, digo que, para combater os males que a igualdade pode produzir, só existe um remédio eficiente: é a liberdade política (Tocqueville, 1987, p. 391). Para Tocqueville, a liberdade humana não é algo inerente ao homem. Existem homens, segundo ele, incapazes de sentir apreço a tal valor. “O que, em todos os tempos, tão fortemente agarrou os corações de certos homens à liberdade é sua própria atração, seu encanto, independentemente de suas dádivas; é o prazer de poder falar, agir, respirar sem constrangimento sob o único governo de Deus e de 21 Mas Tocqueville, no artigo “O estado social da França antes e depois de 1789”, admite que a liberdade no estado social democrático é a forma mais justa. “Segundo a noção moderna de democracia – e eu me atreveria a dizer que é a noção justa da liberdade –, todo homem, pressupondo-se que recebeu da natureza as luzes necessárias para conduzir-se por si mesmo, tem de nascimento um direito natural e imprescritível de viver com independência de seus semelhantes em tudo o que se relaciona com sua pessoa, e a ordenar segundo lhe convém seu próprio destino” (1988, p. 94). 22 No Antigo Regime, escreve Tocqueville (1982, p. 160): “É verdade que com o tempo a liberdade sempre traz, a quem sabe retê-la, uma vida remediada, o bem-estar muita vezes, a riqueza. Existem porém tempos onde ela perturba momentaneamente o uso de tais bens e outros onde só o despotismo permite seu gozo transitório. Os homens que nela só apreciam estes bens nunca a conservam por muito tempo”. 33 suas leis. Quem procura na liberdade outra coisa que ela própria foi feito para a servidão” (Tocqueville, 1982, p. 160). Mas a democracia faz surgir condições que podem ser favoráveis à liberdade humana, pois, como já exposto, não existem mais hierarquias rígidas entre as classes. Dessa forma: [uma] vez que a cadeia hierárquica é rompida tornando os homens iguais entre si, a liberdade estende-se a todos os membros do corpo social: a cada um é reconhecido o direito de pensar, julgar e agir por si mesmo. É preciso observar que, segundo Tocqueville, o igual direito à liberdade, não sendo inerente à natureza humana, advém historicamente. É o vir-a-ser da igualdade de condições que faculta a todos os homens o exercício da liberdade (Reis, 2002, p. 30) E porque o “movimento da história” produz circunstâncias novas, é que os homens devem se preparar para estas, ou seja, devem ser educados para adaptarem-se às novas circunstâncias. Se os homens não se prepararem para a democracia, a fim de dirigi-la, esta crescerá abandonada, “feito criança de rua” e, quando tomar o poder, os seus vícios aparecerão. Então os homens tentarão destruir a democracia e, não, corrigir os seus defeitos. Um Estado democrático livre só é possível de ser construído se houver a participação direta do conjunto dos cidadãos na gestão da coisa pública. “É incontestável, na realidade, que, nos Estados Unidos, o gosto e o costume do governo republicano nasceram nas comunas e no seio das assembléias provinciais [...]. Cada cidadão nos Estados Unidos transporta, por assim dizer, o interesse que lhe inspira sua pequena república ao amor da pátria comum” (Tocqueville, 1987, p. 127). A arte de se associar, segundo Tocqueville, deve crescer na medida em que cresce a igualdade de condições. É o cálculo tocquevilleano para a liberdade. Sem associação, sem a participação dos homens nos negócios públicos, não haverá liberdade23. 23 “El espirito de associación es multiforme en Norteamérica, y Tocqueville se limita aqui a estudar su intrusión en la vida política. Va de la simple petición colectiva a la elección de una asamblea cuyos delegados han sido escogidos para la defensa de um principio o un interés. En este caso, llega a una especie de rivalidad en las asambleas legales (...). El ejemplo de Norteamérica convence a Tocqueville de que el derecho de associación constytue una libertad esencial” (Jardin, 1988, p. 173). 34 Tocqueville teme que se estabeleçam instituições democráticas sem que os cidadãos tenham idéias e sentimentos que os preparem para a liberdade. Os costumes são fundamentais para que um povo democrático permaneça livre: “A minha finalidade foi mostrar, pelo exemplo da América, que as leis e, sobretudo os costumes, podiam permitir a um povo democrático permanecer livre” (1987, p. 242). Da mesma forma, se os governos democráticos não permitirem que os cidadãos usem sua liberdade política, não haverá independência para ninguém: “[...] nem para o burguês, nem para o nobre, nem para o rico, mas uma tirania igual para todos; [...] se não se chegar mesmo com o tempo a fundar entre nós o império pacífico da maioria, chegaremos [...] ao poder ilimitado de um só” (1987, p. 242). Todo o empreendimento dos americanos está em manter a democracia através de uma cada vez maior igualdade e liberdade; por isso, se esforçam para manter a coisa pública e a ajuda mútua: “Devo dizer que muitas vezes vi americanos fazerem grandes e verdadeiros sacrifícios à coisa pública, e observei cem vezes que, quando necessário, quase nunca se furtam de prestar fiel apoio uns aos outros” (1987, p. 391). O espírito público dos americanos se sobressai. Em outra passagem, fica ainda mais explícito o caráter associativo da vida civil dos americanos: Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os espíritos, estão constantemente a se unir. Não só possuem associações comerciais e industriais, nas quais tomam parte, como ainda existem mil outras espécies: religiosas, morais, graves, fúteis, muito gerais e muito pequenas. Os americanos associam-se para dar festas, fundar seminários, construir hotéis, edifícios, igrejas, distribuir livros, enviar missionários aos antípodas; assim também criam hospitais, prisões, escolas” (Tocqueville, 1987, p. 391-392). É esse espírito cívico que fez dos Estados Unidos uma democracia a ser seguida24. “Os sentimentos e as idéias não se renovam, o coração não cresce e o espírito não se desenvolve a não ser pela ação recíproca dos homens uns sobre os 24 É preciso mencionar aqui que Tocqueville jamais pensou que a França deveria seguir ou copiar os passos da democracia norte-americana. O pensador francês cita o caso do México, que transportou para seu território a legislação americana e nem por isso se tornou uma nação próspera. Tocqueville não vai aos Estados Unidos para trazer ensinamentos à França, no sentido de copiar o povo americano, mas tenta comparar os Estados Unidos com os outros países a fim de que estes encontrem soluções para os males da democracia. Uma interpretação contrária a essa pode ser encontrada em Luis Werneck Vianna. Lições da América: o problema do americanismo em Tocqueville (1993). 35 outros”. Da mesma forma, “para que os homens permaneçam civilizados ou assim se tornem, é preciso que entre eles a arte de se associar se desenvolva e aperfeiçoe na medida em que cresce a igualdade de condições” (Tocqueville, 1987, p. 394). 2.1 A Doutrina do Interesse Bem Compreendido Quando o homem democrático admite apenas o seu interesse, quando uma sociedade perde qualquer referência das virtudes públicas, quando a apatia aos negócios públicos toma conta do corpo social, não é somente o individualismo a causa do desinteresse pelos assuntos públicos. Há, entre outras causas, uma muito relevante nas sociedades democráticas: a falta de tempo. O homem democrático [não] só não possui o gosto natural de se ocupar com o público, mas muitas vezes não tem tempo para fazê-lo. A vida privada é tão ativa nos tempos democráticos, tão agitada, tão cheia de desejos, de trabalhos, que quase não resta mais energia nem vagar a cada homem para a vida política. Não serei eu que negarei que tais inclinações não sejam invencíveis, já que minha finalidade principal, ao escrever este livro, foi combatê-las. Afirmo apenas que, em nossos dias, uma força secreta os desenvolve constantemente no coração humano, e se não forem detidos, acabarão por enchê-lo (Tocqueville, 1987, p. 515). Para superar esses males que afastam os indivíduos da vida pública25, é preciso criar-se ou recuperar as virtudes públicas26. Para Tocqueville, as virtudes 25 Segundo Goldstein, interpretando Tocqueville (1964, p. 41), o individualismo é a principal ameaça ao espírito público. “The chief threat to the existence of this new type of public spirit, Tocqueville balieved, was individualism. According to definition, it will be remembered, individualism – one of the baneful results of democratization – leads men to think of themselves as isolated atoms, without ties to society at large”. 26 Para Goldstein (1964, p. 39), Tocqueville parece distinguir a virtude privada e individual das virtudes públicas. Nas repúblicas antigas, os homens virtuosos estavam sempre prontos à sacrificar seus interesses em nome do bem público. Essa era a definição clássica de virtude. Nesse sentido, Tocqueville está de acordo com a tradição de Montesquieu, de Maquiavel e da teoria política grega. Levando em conta o sentido clássico, para Tocqueville a América não era virtuosa mas iluminada, pois conciliava interesses públicos e privados. Mas, então, a definição clássica não era mais válida? As repúblicas não precisavam mais ser virtuosas? “An entry in one of the American journals indicates an implicit distinction between ‘virtue’ in the sense of the private individual´s adherence to the Cristian virtues, and what Tocqueville calls ‘la vertu publique’. The ancient republics Tocqueville placed himself squarely in the tradition of Montesquieu, Machiavelli and ultimately, of Greek political theory. But, he asked himself, did the classical formulation hold good for modern republics? More specifically, as America animated by ‘virtue’ in the sense of desinterestd love of country? He decided that America was not virtuous but was, however, enlightened since it attempetd to reconcile public and private interests. Did this mean, then, that the 36 públicas devem estar embasadas em outros princípios do que estavam durante a aristocracia. Se, nos séculos aristocráticos, o homem se elevava acima do seu interesse pessoal, crendo em valores como o sublime, a glória ou no próprio Deus, nos séculos democráticos, “em que a imaginação voa menos alto” e os homens se preocupam muito mais com o bem-estar, as virtudes públicas não devem contrariar os interesses privados dos indivíduos. A idéia do sacrifício pessoal, em virtude de algo maior, parece não conseguir conquistar mais os homens democráticos27. A questão central passa a ser: qual a vantagem pessoal em ter virtudes públicas? Por que é importante e vantajoso sacrificar-se pelo bem de todos? Nos Estados Unidos da América, a conciliação do interesse privado com o interesse de todos tornou-se uma doutrina. Nos Estados Unidos, quase nunca se diz que a virtude é bela. Afirma-se que é útil e todos os dias prova-se isso. Os moralistas americanos não pretendem que seja necessário sacrificar-se aos semelhantes porque é grandioso fazêlo, mas dizem ousadamente que tais sacrifícios são tão necessários àquele que os impõe como àquele que dele se aproveita. Percebem que, no seu país e no seu tempo, o homem era levado para si mesmo por uma força irresistível e, perdendo a esperança de detê-la, não mais pensaram senão em orientá-la. Por isso, de modo algum negaram que cada homem poderia seguir o seu interesse, mas se esforçaram por provar que o interesse de cada um é ser honesto (Tocqueville, 1987, p. 401). Essa doutrina, que pode ser encontrada tanto na classe rica quanto nas camadas mais pobres, perpassa todos os atos da vida dos americanos. Cada ação humana que leva em consideração o outro pode ser “encaixada” na doutrina do interesse bem compreendido. A base da doutrina, que está de acordo com os tempos democráticos, é o amor próprio, o interesse pessoal. Mas esse amor não pode ser um amor egoísta ou individualista. Deve ser um amor esclarecido: “[o] amor esclarecido por si mesmos leva-os incessantemente a ajudar-se entre si e os dispõe a sacrificar, de boa vontade, ao bem do Estado, uma parte de seu tempo e das suas riquezas” (Tocqueville, 1987, p. 401). classical definition was no longer valid, that virtue was not nesessarily the principle of all republics?” (Goldstein, 1964, p. 39). 27 Isso não quer dizer que os séculos aristocráticos fossem mais virtuosos, apenas que o apelo às virtudes mudou. 37 A doutrina do interesse bem compreendido, admite Tocqueville, é uma doutrina pouco elevada28, no sentido de sua simplicidade. E, por ser de fácil assimilação, não dependendo de grandes esforços intelectuais, está ao alcance de todos29. É uma doutrina que não torna os homens virtuosos, no sentido antigo do termo, pois não requer grandes sacrifícios, grandes obras30. A doutrina do interesse bem compreendido não produz grandes dedicações, mas sugere a cada dia pequenos sacrifícios; por si mesma não seria capaz de tornar um homem virtuoso; mas forma uma multidão de cidadãos corretos, temperantes, moderados, previdentes, senhores de si mesmos; e, se é verdade que não conduz diretamente à virtude, pela vontade, aproxima-se dela insensivelmente pelos hábitos. Se a doutrina do interesse bem compreendido viesse a dominar inteiramente o mundo moral, as virtudes extraordinárias seriam, sem dúvida, mais raras. Mas também penso que, então, as grosseiras depravações seriam menos comuns. A doutrina do interesse individual talvez impeça alguns homens de mostrar-se acima do nível ordinário da humanidade; mas grande número de outros que ficam abaixo a encontram e se conservam nele. Quando consideramos alguns indivíduos, ela os abaixa. Quando encaramos a espécie, ela a eleva (Tocqueville, 1987, p. 402). 28 “Se o olhar aristocrático de Tocqueville já desistira de encontrar no mundo igualitário das massas qualquer saliência significativa das doutrinas morais que considerava mais elevadas – especialmente aquelas do interesse de si segundo as quais ‘a base das ações é o dever’ –, a doutrina do interesse bem compreendido, ou da ‘utilidade da virtude’, cumpria o papel de reduzir o caráter predatório do auto-interesse ao obrigar os indivíduos à participação no público. De algum modo acreditava o então jovem Tocqueville, a prática criaria o gosto e o que era inicialmente cálculo da ambição poderia tornar-se resultado virtuoso. Nesses termos poderíamos falar de uma terapêutica comunitária no jovem Tocqueville, aquela fundada na esperança de que, ‘à força de trabalhar para o bem de seus concidadãos, ganha-se enfim o hábito e o gosto de servi-los’” (Jasmin, 2001, p. 211). 29 “[...] De modo geral, somente as concepções simples se apoderam do espírito do povo. Uma idéia falsa, mas clara e precisa, terá sempre mais poder no mundo do que uma idéia verdadeira, mas complexa. Daí vêm os partidos, que são como pequenas nações dentro de uma grande, a se apressarem sempre por adotar por símbolo um nome ou princípio que, muitas vezes, só incompletamente representa a finalidade que se propõem e os meios que empregam, mas sem o qual não poderiam subsistir nem se mover. Os governos que só repousam sobre uma única idéia ou sobre um único sentimento fácil de existir talvez não sejam os melhores; mas são, com toda a certeza, os mais fortes e os mais duráveis’” (Tocqueville, 1987, p. 128). 30 “Trata-se, portanto, de uma doutrina moralmente fraca, de um ‘ponto de vista pouco elevado do qual os americanos vêem as ações humanas’. Ela é o resultado de duas idéias arraigadas nas sociedades democráticas: 1º sobretudo do egoísmo que faz com que só se pense em si, 2º da concentração da alma nas coisas materiais’. Mas essa impureza originária importava pouco ao pensador sempre mais preocupado com as conseqüências políticas das idéias: ‘As grandes almas às quais a doutrina [moralmente pouco elevada] não poderia satisfazer passam indiferentes por ela e a ultrapassam, enquanto as almas ordinárias aí permanecem’, produzindo-se como resultado geral fazer ‘marchar comodamente a sociedade, ainda que sem grandeza’. Não sendo a grandeza um valor agregativo nas sociedades igualitárias, a doutrina do interesse bem compreendido, se útil a toda a sociedade, é ‘ainda mais útil naquelas onde os homens não podem retirar-se para a fruição platônica do bem fazer e vêem o outro mundo prestes a escapar-lhes” (Jasmin, 2002, p. 81-82). 38 A utilidade e a honestidade, para Tocqueville, podem ser relacionadas. Quem procura o útil certamente o faz pensando no interesse próprio. Mas é a maneira como o homem concebe seu próprio interesse o que importa. O interesse pessoal pode ser o mote para uma ação honesta. Até mesmo a religião, nos Estados Unidos, segundo Tocqueville, coincide com a doutrina do interesse bem compreendido. Mesmo que a religião professe a “solução” para fora deste mundo, exige do povo americano outros sacrifícios terrenos. Os americanos não só seguem a sua religião por interesse, mas muitas vezes situam neste mundo o interesse que se pode ter depois. Na Idade Média, os padres só falavam da outra vida; quase não se davam de provar que um cristão sincero pode ser aqui embaixo um homem feliz. Mas os pregadores americanos voltam constantemente à terra e só a grandes penas podem desligar dela os seus olhares. Para melhor tocar os seus ouvintes, fazem-nos ver todos os dias como as crenças religiosas favorecem a liberdade e a ordem pública, e é muitas vezes difícil saber, ouvindo-os, se o objeto principal é proporcionar a felicidade eterna no outro mundo ou o bem-estar neste (Tocqueville, 1987, p. 404). Certamente, os homens religiosos não seguem sua religião apenas por interesse, nos Estados Unidos, mas Tocqueville destaca o interesse como o principal motivo de os americanos seguirem sua religião. Logo, o interesse pessoal, desde que esclarecido, não afasta os homens das crenças religiosas, e até pode os aproximar. 2.2 Liberdade e crenças religiosas nas eras democráticas Pelo fato de Tocqueville deixar uma margem à ação humana, mesmo acreditando piamente no triunfo da igualdade, é que se pode “deslocar” o seu pensamento dos temas modernos, ou melhor, verificar que a religião ainda tem papel importante na construção de seu fundamento teórico da democracia. Ademais, se o moderno também se caracteriza pela oposição à tradição, é aí que Tocqueville vai se deter. Segundo o autor, a América não cai no despotismo da maioria, maior perigo nas eras democráticas, por causa da religião. São as convicções e os costumes religiosos do povo dos Estados Unidos que freiam esse despotismo. “O 39 cristianismo, que tornou os homens iguais perante Deus, não se mostrará repugnado em crer todos os cidadãos iguais perante a lei” (1987, p. 17). E continua: “[...] não se pode estabelecer o reino da liberdade sem o dos costumes, nem fundar os costumes sem possuir as crenças [...]” (1987, p. 18). Mas é preciso lembrar que Tocqueville não vai a América para estudar os costumes e hábitos do povo dos Estados Unidos, vai para estudar a democracia, no país onde esse movimento “irrefreável” se encontra em estágio adiantado, para poder tirar desses estudos ensinamentos para a sua França31. Portanto, mesmo que o pensador francês fale estritamente do povo anglo-americano, encontram-se idéias relativas à era democrática. Por isso, Tocqueville assim se refere aos colonizadores do território estadunidense: Os fundadores da Nova Inglaterra eram, ao mesmo tempo, ardentes sectários e exaltados inovadores. Cerceados dentro dos limites mais estreitos de certas crenças religiosas, eram livres de todo preconceito político. [...] Assim, no mundo moral, tudo é classificado, coordenado, previsto, decidido de antemão. No mundo político, tudo é agitado, contestado, incerto; num, a obediência passiva, ainda que voluntária; noutro, a independência que 32 desdenha a experiência e inveja toda autoridade (Tocqueville, 1987, 42). Mas, dessa passagem sobre o povo anglo-americano, Tocqueville conclui o seu pensamento com uma idéia geral: “A liberdade vê na religião a companheira de suas lutas e seus triunfos, o berço de sua infância, a fonte divina de seus direitos. Considera a religião como a salvaguarda dos costumes; os costumes, como a garantia das leis e penhor de sua própria preservação” (1987, p. 42)33. 31 Como é possível perceber neste trecho (1987, p. 152): “E para quem este estudo será interessante e proveitoso, senão para nós, que somos cotidianamente arrastados por um movimento irresistível e que caminhamos como cegos, talvez para o despotismo, talvez para a república, mas, com toda a certeza, para um estado social democrático?”. 32 “Outro argumento central desenvolvido por Tocqueville na abertura da Democracia apresenta a idéia de um ‘ponto de partida’ fundador do ‘caráter da civilização anglo-americana’ e que reunia, pela primeira vez de modo íntimo e harmonioso, o espírito de liberdade e o espírito de religião, ambos originários da antiga Inglaterra, onde se encontravam em conflito. Simbolicamente, Tocqueville afirma que o futuro daquela jovem nação podia ser discernido na alma e nas atividades do primeiro puritano a pisar a América do Norte” (Jasmin, 2001, p. 202). 33 Conforme Gibert (1972, p. 1098), a religião é a melhor maneira de ensinar o homem a ser livre, pois funda um projeto, ao mesmo tempo, político, econômico e social. É a garantia dos costumes frente à imoralidade da igualdade. “Mais quoi qu’il en soit de ce fait, Tocqueville a suffisamment étudié la société américaine pour se rendre compte que c’est la religion qui lui ‘enseigne le mieux... l’art d’etre libre’ (I, p. 304). En fondant lês moeurs, en justifian l’elan d’un projet à la fois politique, économique et social, la religion est la meilleure garantie de la liberté politique. [...] Mais qu’elle 40 Mas se Tocqueville vê com bons olhos a religião católica34, também não é desatento às idéias antirreligiosas do século XVIII, ou seja, aos pensadores modernos e suas críticas à religião: “Os filósofos do século dezoito explicavam de uma forma extremamente simples o enfraquecimento gradual das crenças. O zelo religioso, diziam, deve [enfraquecer-se] à medida que aumentam a liberdade e as luzes” (1987, p. 227). E acrescenta ironicamente: “Pena é que os fatos não estejam de acordo com esta teoria. Existem populações européias cuja incredulidade só é igualada pelo embrutecimento e pela ignorância, ao passo que, na América, vê-se um dos povos mais livres e esclarecidos do mundo cumprir com ardor todos os deveres exteriores da religião” (1987, p. 227). Tocqueville tem consciência de que, no seu tempo, a religião perde espaço para a racionalização da vida, entendendo por racionalização a secularização do mundo. Sabe que a noção de direitos fundamentada em princípios divinos está se enfraquecendo: Não vê o leitor que as religiões se enfraquecem e que a noção divina dos direitos desaparece? Não percebe então que os costumes se alteram e que se apaga com eles a noção moral dos direitos? Não se dão conta de que em toda parte as crenças substituem-se pelo raciocínio e os sentimentos pelo cálculo? Se, em meio a esse abalo universal, o leitor não conseguiu ligar a idéia de direitos ao interesse pessoal que se oferece como único ponto imóvel no coração humano, que lhe restará então para governar o mundo, a não ser o medo? (Tocqueville, 1987, p. 185). Se os intelectuais se animaram com o movimento de racionalização da vida moderna, “associando aos progressos da ciência a crítica das instituições e das crenças passadas35”, Tocqueville, como político que era, também soube perceber o perigo que a modernidade, calcada na racionalização da vida, trouxe. É nesse sentido que ele ataca com freqüência os intelectuais, críticos das idéias religiosas. apprenne aux hommes à être libres, elle est alors le plus sür dês moeurs dans cette société à l’immoralité de la seule égalité. 34 “Creio que se erra em considerar a religião católica como inimiga natural da democracia. Entre as diferentes doutrinas cristãs, o catolicismo parece-me, pelo contrário, uma das mais favoráveis à igualdade de condições. Entre os católicos, a sociedade religiosa compõe-se apenas de dois elementos: o sacerdote e o povo. O sacerdote eleva-se acima dos fiéis; abaixo dele, tudo é igual” (Tocqueville, 1987, p. 222). 35 Ver cap. IV, Segunda Parte, da obra de Touraine (1994, p. 159-185): Os intelectuais contra a modernidade. 41 Na França, atacam com uma espécie de furor a religião cristã sem mesmo tentar colocar outra em seu lugar. Trabalharam com ardor e continuidade para tirar às almas a fé que as enchia e deixaram-nas vazias. Esse empreendimento ingrato inflamou uma multidão de homens. A absoluta incredulidade em matéria de religião [...] pareceu atraente à multidão (1982, p. 149). A religião freia o despotismo da maioria pelo seguinte fato: os homens sentem-se iguais. A máxima cristã é que todos são iguais perante Deus; logo, por que não podem ser iguais no mundo terreno? E por não existir sociedades sem costumes e estes serem fundados por vezes nas crenças religiosas, a liberdade deve estabelecer-se na sociedade como que em comunhão com tais costumes. Para Helena Esser dos Reis (2002, p. 166-167): Tocqueville parte do suposto que todas as ações humanas têm origem “numa idéia muito geral que os homens conceberam de Deus, das suas relações com o gênero humano, da natureza de sua alma e dos seus deveres para com os seus semelhantes”. É, então, nas crenças religiosas, acredita Tocqueville, que a multidão de indivíduos dos tempos democráticos encontra, com segurança, o fundamento último, para além da mera concordância entre julgamentos privados, de todas as suas ações neste mundo. O sentimento de unidade e pertencimento ao gênero humano nos povos democráticos advém da noção de um único Deus criador que determina a todos os homens os mesmos direitos e deveres morais. A fé religiosa dirige os corações dos homens em direção aos seus semelhantes e leva os cidadãos de uma sociedade democrática à realização de ações que o façam sair de dentro de si mesmo e a relacionar-se com seus semelhantes fortalecendo a liberdade 36 entre os homens . Como se pode notar, o pensamento tocquevilleano é muito influenciado pelo espiritualismo cristão. Em sua obra mais famosa, o próprio pensador se declarou católico37. É um intelectual muito preocupado com os rumos do mundo, com a violência da multidão, e um amante da liberdade. Não que a igualdade produza 36 “Os homens têm, pois, um interesse imenso em formular idéias bem firmadas de Deus, da alma, dos seus deveres gerais para com seu Criador e seus semelhantes, pois a dúvida sobre esses pontos capitais levaria todas as suas ações ao acaso e os condenaria, de certo modo, à desordem e à impotência. É essa, pois, a matéria sobre a qual é mais importante que cada um de nós tenha idéias firmadas; infelizmente, é também aquela na qual é mais difícil que cada um, entregue a si mesmo, e pelo esforço exclusivo da sua razão, venha a firmar as suas idéias [...]. Somente os espíritos muito livres das preocupações costumeiras da vida, muito penetrantes, muito desprendidos, muito exercitados, podem, com a ajuda de muito tempo e de cuidados, penetrar até essas verdades tão necessárias” (Tocqueville, 1987, p. 332). Acrescenta Tocqueville que até mesmo os filósofos têm dificuldades sobre esses assuntos, quanto mais o povo. 37 Ver A Democracia na América (1987, p. 227). 42 homens imorais. É a equação entre imoralidade, irreligiosidade e igualdade que atormenta o pensador francês. Não é, de modo algum, a igualdade que torna os homens imorais ou irreligiosos. Mas, quando os homens são imorais e irreligiosos, ao mesmo tempo que iguais, os efeitos da imoralidade e da irreligião se produzem facilmente porque os homens têm pouca ação uns sobre os outros e porque não existe classe que possa se encarregar de fazer a polícia da sociedade. A igualdade de condições jamais cria a corrupção de costumes, mas deixa, às vezes, que esta apareça (Tocqueville, 1987, nota V, p. 564). A igualdade cria o amor ao mundano, aos bens materiais. Faz os homens prenderem-se ao mundo das necessidades materiais. A religião, ao contrário, cria valores bem distintos. “Não há religião que não situe o objeto dos desejos do homem além e acima dos bens da terra, e que não eleve naturalmente a sua alma para regiões muito superiores à dos sentidos” (Tocqueville, 1987, p. 334). 43 3. O papel da educação nos tempos democráticos Como já foi exposto no primeiro capítulo, Tocqueville é, par excellence, o pensador da democracia. Não é um pedagogo ou um teórico da educação38. Mas, apesar disso, empreendeu boas reflexões sobre o tema da educação e da instrução pública. O capítulo presente aborda a relação entre democracia, moral, educação/instrução e liberdade estabelecidas pelo autor. Segundo Tocqueville, as eras democráticas influenciam também, como não poderia deixar de ser, a instrução dos povos. Como um fato total, a democracia influencia inclusive a literatura. Nas democracias, é muito necessário, pois, que todos os homens que se ocupam da literatura tenham recebido uma educação literária e, entre aqueles que têm algumas tintas de belas-artes, a maior parte siga uma carreira política ou abrace uma profissão da qual não se podem desviar senão temporariamente, para gozar furtivamente dos prazeres do espírito. Por isso, não fazem de tais prazeres o encanto principal da sua existência, mas os consideram como um descanso passageiro e necessário, no meio dos trabalhos sérios da vida: tais homens jamais poderiam adquirir o conhecimento bastante profundo da arte literária, para sentir as suas delicadezas; as pequenas nuanças lhes escapam. Tendo apenas um tempo demasiado curto para dedicar às letras, desejam aproveitá-lo por inteiro. Amam os livros que se obtêm sem dificuldade, que se lêem depressa, que não cheguem a exigir pesquisas doutas para serem compreendidos. Pedem belezas fáceis, que se entregam espontaneamente e das quais se possa gozar no momento; precisam, antes de tudo, do inesperado e do novo. Habituados a uma existência prática, cheia de lutas, monótona, precisam de emoções vivas e rápidas, de claridades súbitas, de verdades ou de erros brilhantes, que os tirem momentaneamente de si mesmos e os introduzam de 39 repente, como que violentamente, no meio do tema (1987, p. 358) . 38 “Tout ce qui se raporte à l’instrution publique n’a, à primière vue, qu’une importance minuere dans l’oevre d’Alex de Tocqueville. L’auteur de La Démocratie em Amérique ne fut, Il est vrai, ni un pédagogue ni un théoricien de l’enseignement [...]” (Chabot, 1996, p. 211). 39 “Passaria eu além do meu pensamento, se dissesse que a literatura de uma nação é sempre subordinada ao seu estado social e à sua constituição política. Sei que, independente dessas causas, há várias outras que dão certo caráter às obras literárias; estas, porém, parecem-me as principais” (Tocqueville, 1987, p. 359). 44 A instrução dos homens democráticos é diferente da dos homens dos séculos aristocráticos. Quando muda o estado social, mudam os objetivos e interesses da educação. Assim, [é] isto que se faz entender bem. Um estudo pode ser útil à literatura de um povo e em nada ser apropriado às suas necessidades sociais e políticas. Se nos obstinássemos a ensinar apenas as belas-letras, numa sociedade onde cada qual fosse habitualmente levado a fazer violentos esforços para aumentar a sua fortuna ou para mantê-la, ter-se-iam cidadãos muito educados e muito perigosos, pois, dando-lhes o estado social e político, todos os dias, necessidades que a educação nunca os ensinaria a satisfazer, perturbariam o Estado, em nome dos gregos e dos romanos, em vez de 40 fecundá-los para a sua indústria (Tocqueville, 1987, p. 360) . Então, para a segurança relativa do Estado, se faz necessária uma instrução, para a massa da sociedade, é claro – pois Tocqueville acha que aqueles indivíduos “destinados” às belas-letras devem ter seu espaço garantido em qualquer sociedade –, mais adequada ao mundo moderno. O que seria essa instrução? É evidente que, nas sociedades democráticas, o interesse dos indivíduos, tal como a segurança do Estado, exige que a educação do maior número seja 41 científica, comercial e industrial, antes que literária . O grego e o latim não devem ser ensinados em todas as escolas; mas é importante que aqueles que, por natureza ou por fortuna, são destinados a cultivar as letras ou predispostos a apreciá-las, encontrem escolas onde possam se tornar perfeitamente senhores da literatura antiga e imbuir-se inteiramente do seu espírito. Algumas excelentes universidades valeriam mais, para alcançar esse objetivo, que uma infinidade de maus colégios, onde mal feitos estudos superficiais impedem fazer bons estudos necessários (Tocqueville, 1987, p. 360-361). 40 Em um artigo para a Revista Brasileira de História da Educação, Josefa Eliana Souza mostra que as idéias do pensador francês sobre educação repercutiram aqui no Brasil. A historiadora mostra como o deputado alagoano Tavares Bastos as assimilou. 41 “Não seria possível que essa visão [a visão aristocrática da ciência] fosse a mesma nas nações democráticas. A maior parte dos homens que compõem tais nações é muito ávida de prazeres materiais e presentes, assim como está sempre descontente com a posição que ocupa, e sempre em liberdade para deixá-la, só pensa nos meios de modificar a sua fortuna e fazê-la crescer. Para os espíritos movidos por uma tal disposição, todo método novo que conduz por um caminho mais curto à riqueza, toda máquina que abrevia o trabalho, todo instrumento que abrevia o custo da produção, toda descoberta que facilita os prazeres e os aumenta, parece o mais magnífico esforço da inteligência humana. É principalmente por esse lado que os povos democráticos se apegam à ciência, as compreendem e honram. Nos séculos aristocráticos pedem-se às ciências os prazeres do espírito; nas democracias, os do corpo” (Tocqueville, 1987, p. 348). 45 É possível notar, na passagem acima, que Tocqueville não acredita que todos devam ter uma educação uniforme. O autor chega a ser pragmático nessa questão. A instrução deve estar voltada para as questões práticas do mundo. O pensador francês teme, e por isso une segurança do Estado com instrução, que ocorram fatos como os da Revolução Francesa, quando o povo foi instigado por intelectuais através de algumas obras de filósofos42. Nem todos os indivíduos estão preparados para as belas-letras43. Reconhece que, no mundo moderno, a agitação dos indivíduos é tão grande que sobra pouco tempo para a meditação. Esse fato desfavorece, é claro, os estudos aprofundados. Nada é mais necessário à cultura das altas ciências ou da porção elevada das ciências do que a meditação, e nada há de menos próprio à meditação que o interior de uma sociedade democrática. Numa tal sociedade não se encontram, como os povos aristocráticos, uma classe numerosa que se mantenha em repouso, porque se acha bem, e outra que não se abale porque não espera ser melhor. Todos se agitam: uns porque desejam atingir o poder, outros, apoderar-se da riqueza. No meio daquele tumulto universal, daquele choque repetido de interesses contrários, daquela marcha contínua dos homens para a fortuna, onde encontrar a calma necessária às profundas combinações da inteligência? Como deter o pensamento sobre dado ponto, quando ao redor tudo se movimenta, e quando se é pessoalmente arrastado e agitado dia a dia na corrente impetuosa que desloca todas as coisas? (Tocqueville, 1987, p. 346). 42 “Não foram tão-somente suas idéias que os escritores forneceram ao povo que fez a Revolução: deram-lhe também seu temperamento e seu humor. Sob sua longa disciplina, na ausência de outros condutores, no meio da profunda ignorância da prática na qual se vivia, toda a nação, ao lê-los, acabou contratando os instintos, o tipo de espírito, os gostos e até os defeitos naturais daqueles que escrevem, de tal maneira que, quando teve que agir, transportou para a política todos os hábitos da literatura” (Tocqueville, 1982, p. 147). Também, em uma carta a Guizot, escreve Tocqueville: “¿Cómo, Señor, ha podido usted poner en duda en una frase mi simpatía por el pueblo, cuando una gran parte de mi obra está precisamente consagrada a mostrar bajo nuevas luces, más verdaderas y vivas, el género particular de opresión que sufría y sus miserias, y a hacer comprender cómo la mala educación que el poder real y las clases altas le han dado explicaba esas violencias?... [soy] un amigo no sólo sincero sino también ardiente de lo que usted mismo considera las principales conquistas de la Revolución, la libertad política y todas las libertades particulares que esa palabra contiene, la abolición de todos los privilegios de casta, la igualdad ante la ley, la libertad total de culto, la simplicidad em la legislación” (Ver Nolla, 1992, p.15-16). 43 Para Tocqueville, o problema de se encontrar uma sociedade de homens esclarecidos é o fato de haver povo ou, em outras palavras, indivíduos que trabalhem. O tempo para o ócio parece fundamental para o pensador francês. Como se pode notar nesta passagem: “A facilidade maior ou menor que o povo encontra para viver sem trabalhar constitui pois o limite necessário dos seus progressos intelectuais. Esse limite acha-se situado mais longe em certos países, mais perto em outros; mas, para que de modo algum existissem, seria que o povo de modo algum tivesse que ocupar-se dos cuidados materiais da vida, vale dizer, que não fosse o povo. Por isso, é tão difícil conceber uma sociedade onde todos os homens sejam esclarecidos [...] (1987, p. 153). 46 Mas Tocqueville sabe que, nas eras democráticas, é cada vez maior o número de instruídos. Sabe que o interesse mudou. Da mesma forma que as virtudes públicas podem nascer de interesses materiais nos tempos democráticos, como explicou o pensador em sua doutrina do interesse bem compreendido, o apego às ciências terá um número cada vez maior de indivíduos. “Aliás, eu creio nas altas vocações. Se é fato que a democracia não leva os homens a cultivar a ciência pela ciência, por outro lado, aumenta imensamente o número daqueles que as cultivam [...]” (1987, p. 349). E, tendo uma multidão de homens disponíveis para a ciência, não é impossível de acreditar que “[...] não venha nunca a nascer, de tempos em tempos, algum gênio especulativo inflamado apenas pelo amor à verdade” (idem, p. 349). Para Helena Esser dos Reis (2004, p. 7-8), Tocqueville tem consciência de que a instrução pode superar preconceitos e costumes opostos à liberdade, pois a ignorância facilita o caminho para a servidão44. Tocqueville afirma que “a concentração dos poderes e a servidão individual crescerão nas nações democráticas não somente em proporção à igualdade mas em razão da ignorância”. Eis porque considera a instrução escolar uma condição necessária para a formação de cidadãos: à medida que as condições sociais se nivelam e cada um torna-se tão forte e capaz quanto qualquer outro, para pensar e julgar por si mesmo acerca de todas as questões que lhe concernem, mais vale que todos possam dispor de luzes e 45 costumes que os auxiliem a bem julgar e bem agir (idem, p. 8) . Mas não se pode esquecer que apenas a instrução pública não é capaz de impedir os abusos de um poder tirânico. Tocqueville mesmo se revolta contra esse 44 “Quando os homens que vivem no seio de uma sociedade democrática são esclarecidos, descobrem sem dificuldades que nada os limita, nem os fixa, nem os força a contentar-se com a sua sorte atual. Por isso, todos concebem a idéia de aumentá-la e, se são livres, procuram todos fazê-lo, mas nem todos conseguem da mesma maneira. A legislatura não mais concede privilégios, é verdade, mas a natureza os dá. A desigualdade natural é muito grande e as fortunas se tornam desiguais, desde o momento em que cada qual faz uso de todas as suas faculdades para enriquecer” (Tocqueville, 1987, p. 343). 45 “Os partidários da centralização, na Europa, afirmam que o poder governamental administra melhor as localidades do que elas próprias o poderiam fazer: talvez seja isso verdadeiro, quando o poder central é esclarecido e as localidades não têm o mesmo saber, quando ele é ativo e elas inertes, quando tem o hábito de agir e elas o de obedecer. Compreende-se mesmo que quanto mais aumenta a centralização, mais cresce essa dupla tendência, mais se tornam evidentes a capacidade de uma parte e a incapacidade da outra. Nego, porém, que tal se dê quando o povo é esclarecido, despertado para os seus interesses e habituado a meditar, como se faz na América. Estou convencido, pelo contrário, que neste caso a força coletiva dos cidadãos terá sempre mais poderes para prodizir o bem-estar social do que a autoridade do governo” (Tocqueville, 1987, p. 76, grifos nossos). 47 “pensamento mágico” que vê na educação pública o único caminho para o mundo livre. A educação pública era a única garantia que inventaram contra o abuso do poder porque, como diz ainda Quesnay, “o despotismo é impossível numa nação esclarecida”. Diz um outro dos seus discípulos: “Atingidos pelos males que o abuso da autoridade traz, os homens inventaram mil meios totalmente inúteis e deixaram de lado o único verdadeiramente eficaz, que é o ensino público geral e contínuo da justiça por essência e da ordem natural”. É com a ajuda dessa embrulhada literária que querem suprir todas as garantias políticas (Tocqueville, 1982, p. 156). Para Tocqueville, além de não ser suficiente a instrução pública, ela também pode ser contrária à liberdade humana. Pode criar uma uniformidade entre os homens. Moldar o espírito dos cidadãos. Segundo os economistas, o Estado não deve unicamente comandar uma nação, também deve formá-la de uma certa maneira; cabe-lhe moldar o espírito dos cidadãos em acordo com um determinado modelo que se propôs de antemão; é seu dever enchê-lo com certas idéias e fornecer ao seu coração certos sentimentos que julga necessário. Na realidade não existem limites aos seus direitos nem ao que pode fazer; não forma simplesmente os homens, quer transformá-los; talvez, se o quisesse, poderia fabricar outros! “O Estado faz dos homens tudo o que quer”, diz Bodeau. Esta frase resume todas as suas teorias (Tocqueville, 1982, p. 157). Nesse sentido, a “democracia”, o mundo democrático, também deve ser “educado”, para que os “bons costumes” democráticos reinem. E esse foi um dos objetivos de Tocqueville ao escrever A Democracia. Educar a democracia, reanimar, se possível, as suas crenças, purificar seus costumes, regular os seus movimentos, pouco a pouco substituir a sua inexperiência pelo conhecimento dos negócios de Estado, os seus instintos cegos pela consciência dos seus verdadeiros interesses; adaptar o seu governo às condições de tempo e de lugar, modificá-lo conforme as circunstâncias e os homens – tal é o primeiro dos deveres impostos hoje em dia àqueles que dirigem a sociedade (Tocqueville, 1987, p. 14). Para o pensador francês, a educação e a liberdade, nos Estados Unidos, adequaram-se bem à moral e à religião. De um lado, porque as religiões fornecem à multidão soluções para as questões do dia a dia. De outro, porque a multidão encontra segurança e um fundamento último para as suas ações. E este fundamento é importante, pois dá aos indivíduos hábitos, idéias e sentimentos que os preparam 48 para viver em liberdade (1987, p. 242)46. Mas a liberdade entra nos corações humanos. Se Tocqueville, no Ancièn Regime, se nega a explicar o que é a liberdade – apenas afirma que quem a experimenta sabe o que significa –, também não acredita que seja possível ensinar os homens a tornarem-se livres. A liberdade não pode ser ensinada, mas Tocqueville não nega que possa haver certos hábitos, e mesmo uma instrução, que ajudam a preparar os corações a ela. Se não fosse assim, por que Tocqueville acreditaria tanto na participação dos indivíduos na vida pública? Afinal, é participando também da legislação que o americano aprende a conhecer as leis e é governando que se instrui na forma de governo. Não basta apenas ensinar os homens a ler e escrever para fazer deles cidadãos. Os verdadeiros conhecimentos nascem da experiência e, se os americanos não tivessem sido habituados a governar-se, os conhecimentos literários de muito pouco serviriam47 (1987, p. 234). Contudo, adverte Tocqueville (1987, p. 234): “Não se poderia ter dúvidas de que a instrução do povo, nos Estados Unidos, serve poderosamente à manutenção da república democrática. Creio eu que assim há de ser em toda parte onde não se separe a instrução que esclarece o espírito, da educação que regula os costumes”. Então, conforme Helena Esser dos Reis (2002, p. 52), 46 “Mas é nas prescrições relativas à educação pública que, desde o princípio, se vê surgir à mais pura luz o caráter original da civilização americana. ‘Visto – diz a lei – que um dos principais projetos desse antigo instigador Satanás é manter os homens privados do conhecimento das escrituras... persuadindo-os a não usar as línguas, e a fim de que a sabedoria não fique enterrada nos túmulos de nossos pais, na igreja e na comunidade, e tendo o Senhor a assistir os nossos cometimentos...’. seguem-se disposições que criam escolas em todas as comunas e obrigam os habitantes, sob pena de pesadas multas, a encarregar-se do seu sustento. Nos distritos mais populosos, são, pela mesma forma, fundadas escolas superiores. Os magistrados municipais devem cuidar para que os pais enviem seus filhos às escolas; têm o direito de impor multas àqueles que se recusam a fazê-lo; e caso continue a resistência, a sociedade, substituindo à família, lança mão da criança e arrebata aos pais o direito que a Natureza lhes havia concedido mas do qual faziam tão mau uso. O leitor terá observado, sem dúvida, o preâmbulo dessas determinações: na América é a religião que conduz ao saber; é a observância das leis divinas que conduz o homem à liberdade” (Tocqueville, 1987, p. 4041). 47 “Aquí, tenemos que llamar la atención sobre el entusiasmo que Tocqueville sentía por el autogobierno local del que fue testigo de primera mano en las poblaciones de Nueva Inglaterra. Las instituciones municipales, creía Tocqueville, constituían la fuerza de las naciones libres. Las reuniones de los ayuntamientos eran a la libertad lo que las escuelas a la educación. El autogobierno local era una escuela de democracia. Se permitia que los individuos practicasen el arte del autogobierno y, a través de él, que trascendiesen la estrechez de sus propios intereses y llegasen a valorar las exigencias del bien común. Lo que sorprendía a Tocqueville era que todos los aspectos de la vida local contribuían a esta democracia local llena de vitalidad” (Jennings, 2007, p. 61). 49 [a] tarefa pedagógica impõem-se. Faz-se necessário educar o indivíduo independente da sociedade igualitária para a vida política; isso supõe mais que a prática cega (ou mecânica) de seus deveres cívicos, supõe desenvolver o entendimento e os costumes a fim de orientar o seu julgamento. [...] A instrução propriamente dita, por meio da qual os Homens adquirem conhecimentos, ao mesmo tempo que informa sobre situações vividas, relações econômicas, avanços científicos, os esclarece e lhes possibilita superar idéias e preconceitos opostos à democracia. Há uma correlação direta entre a instrução dos indivíduos e sua capacidade de fazer escolhas políticas esclarecidas. Parece que Tocqueville reconhece, ou melhor, crê em uma correlação entre a educação/instrução dos indivíduos e suas capacidades de fazer escolhas políticas esclarecidas48. Para Tocqueville, há uma diferença entre educação e instrução. Tocqueville utiliza o conceito de educação de uma forma bem mais ampla, relacionando este à conduta moral. A instrução é a aquisição de um tipo específico de conhecimento. “Nos collèges donnent l’instruction, [...], mais quoi qu’on fasse, ils ne peuvent donner l’éducation. L’éducation, la culture de l’âme, l’enseigment du devoir, la préparation aux difficultés et aux chagrins de la vie, tout cela est audessus dês leçons dês collèges” (Tocqueville apud Chabot, 1997, p. 238). A instrução, por outro lado, é condição necessária, mas não suficiente. É preciso que a instrução caminhe junto com os bons costumes de um povo. No caso do povo dos Estados Unidos da América, a instrução se adequou bem ao espírito de participação política. Além de não tentar sobrepor-se à moral religiosa. A importância que Tocqueville atribui à moral e à religião faz com que veja com bons olhos a sobreposição destas à liberdade e à educação: Na Nova Inglaterra, onde a educação e a liberdade são filhas da moral e da religião, onde a sociedade, já antiga e acomodada desde muito tempo, pôde formar para si máximas e hábitos, o povo, ao mesmo tempo que escapa a todas as superioridades [...], habituou-se a respeitar as superioridades intelectuais e morais e a submeter-se a elas sem desagrado: por isso, vê-se que a democracia na Nova Inglaterra faz melhores escolhas que em qualquer outra parte. Pelo contrário, à medida que se desce para o sul, para os Estados onde o laço social é menos antigo e menos forte, onde a instrução se acha menos difundida, e onde os princípios da moral, da religião e da liberdade combinaram-se menos feliz, percebe-se que os talentos e as 48 “Dans la démocratie en Amérique, Tocqueville avait reconnu l'existence de corrélations entre l'instruction que reçoivent les individus et leur capacité de faire des choix politiques éclairés” (Chabot, 1997, p. 240) 50 virtudes se tornaram cada vez mais raros entre os governantes (1987, p. 155). Tocqueville é, porém, cauteloso sobre a instrução pública. “A educação, tanto quanto a caridade, tornou-se, na maior parte dos povos de hoje, um assunto nacional. O Estado recebe e muitas vezes toma a criança dos braços de sua mãe, para confiá-la a seus agentes; é ele que se encarrega de inspirar sentimentos a cada geração e de fornecer-lhes idéias. A uniformidade reina nos estudos como em todo o resto; a diversidade, como a liberdade, desaparecem dele a cada dia” (1987, p. 522). Dessa forma, o poder central se apodera da educação, à medida que aumentam suas atribuições. O número de funcionários públicos aumenta conforme aumenta o poder do Estado. Esses funcionários formam uma nação dentro de cada nação. “Em quase toda parte [...] o soberano domina de duas maneiras: conduz uma parte dos cidadãos pelo temor que experimentam pelos seus agentes, e outra pela esperança que concebem de se tornar seus agentes” (Tocqueville, 1987, nota 5, p. 523). Assim, ao mesmo tempo em que Tocqueville vê na associação dos indivíduos um poder educativo, capaz de impedir que os indivíduos “caminhem” para a servidão, é relutante em relação à instrução pública, pois vê no domínio do Estado sobre a educação a uniformidade de idéias e a crescente burocratização do ensino. Isso não quer dizer que Tocqueville seja contrário à interferência do Estado na educação, pois escreve: “Tenho por certo que a educação laica é a garantia da liberdade de pensar. Creio firmemente que a Universidade deve ser o lugar principal dos estudos e que o Estado deve conservar direitos bem amplos de vigilância, inclusive sobre as escolas que não dirige...” (carta a Bouchitté, fev/1844 apud Gibert, 1988, p. 144, grifos nossos). Mas, para Tocqueville, o maior perigo é a apatia geral, fruto do individualismo, “estado de espírito” próprio das democracias modernas: Não se pode dizer de uma maneira absoluta e geral que o maior perigo de nossos dias é a licença ou a tirania, a anarquia ou o despotismo. Uma coisa e outra são igualmente temíveis, e pode sair de uma só e mesma causa, que é a apatia geral, fruto do individualismo; é essa apatia que faz com que, no dia em que o poder executivo reúne algumas forças, fica em condições de oprimir, e que, um dia depois, quando um partido pode levar trinta homens ao combate, este está igualmente em condições de oprimir. Nem um nem outro 51 podendo fundar nada de durável, o que os faz lograr êxito facilmente impedeos de lográ-lo por muito tempo. Caem porque nada os sustenta (Tocqueville, 1987, nota BB, p. 566). O que é importante combater é, pois, muito menos a anarquia ou o despotismo que a apatia, que pode criar esses estados sociais. A apatia é combatida através do espírito cívico dos cidadãos, o qual só é possível de se efetivar nos indivíduos se estes tiverem liberdade política e participarem ativamente da coisa pública. E, como vimos, a escola, como instituição, serve para “formar cidadãos” apenas na medida em que esteja inserida num contexto maior, mais geral, de cultura cívica. Outro problema, que é possível expor a partir das reflexões de Tocqueville sobre democracia, educação e instrução pública, é a relação entre professores e alunos. Se Tocqueville afirma que nas eras democráticas o espírito de igualdade invade todas as instâncias da vida, modificando também as relações sociais, levando os indivíduos a não reconhecerem autoridade alguma, esse nivelamento entre professores e alunos, onde o professor perde sua autoridade em sala de aula, pode ser concebido, acompanhando o raciocínio tocquevilleano, como um mal dos tempos modernos democráticos. Coloca-se essa relação entre professor e aluno como um mal porque, em sala de aula, não é possível que o professor se ponha em pé de igualdade com o aluno. Deve haver uma certa autoridade por parte do professor. A igualdade deve ser resguardada para o campo da política e, se lembrarmos Hannah Arendt (2005, p. 160), a política, o direito de participar dos negócios públicos, começa onde termina o direito à educação. O “mundo” da política é o mundo dos adultos, o contrário do “mundo” da educação. Infelizmente, como já exposto, a democracia, como um fato total, invade as instituições e as relações educacionais. 52 CONSIDERAÇÕES FINAIS Para Tocqueville, a liberdade da maior parte do povo deve ser o fim de qualquer estado social, porém, ela não deve ser meio para nada. Porque a liberdade não pode caracterizar nenhuma forma de governo, mas ela deve estar contida em qualquer construção social. A diferença entre um estado social aristocrático e um estado social democrático é que neste último a liberdade pode ser garantida a todos, e não apenas a uma classe ou casta. A esperança de Tocqueville na democracia assenta-se na convicção de que este estado social pode “espalhar” a liberdade para todos. É possível, então, não apenas uma igualdade social para todos, como liberdade para todos. Como se pode perceber no capítulo II, Tocqueville se nega a dar uma definição de liberdade, mas supõe que, para que esta possa coexistir em um estado social, é necessário que exista o direito à associação, participação nos assuntos públicos, imprensa que não seja controlada pelo Estado, etc., sejam condições para a liberdade. Neste sentido, a noção de liberdade em Tocqueville não difere muito das noções de liberdade de muitos pensadores dos séculos XVIII e XIX. Por exemplo, seu amigo Stuart Mill tinha uma noção de liberdade muito próxima49. A liberdade, para Tocqueville, é um fim em si mesmo, não pode ser meio para algo, “os que buscam na liberdade algo mais que a liberdade, foram feitos para servir”. Se Tocqueville, em alguns assuntos – como a instrução nos tempos modernos –, se aproxima do pensamento utilitarista, para a liberdade, ao contrário, não admite fins utilitários. Tocqueville desvincula a noção de liberdade do indivíduo isolado. Não é fazendo o que se deseja, mas apenas respeitando o outro, que se garantirá a liberdade. O individualismo pode levar a um estado despótico. Lembrando que o 49 Para João Carlos Espada (2007, p. 218), a noção de liberdade de Tocqueville é um pouco mais complexa que a de Mill, pois Tocqueville não tem apenas um conceito negativo de liberdade. Há também a questão da participação na esfera pública. 53 individualismo é uma recusa do indivíduo a tomar parte nos assuntos públicos para cuidar apenas do seu interesse. A liberdade depende também das associações, as quais são instituições, ou podem se tornar, intermediárias entre os indivíduos e o Estado. Logo, para que possa existir liberdade, não se pode apenas levar em conta os indivíduos isolados. As associações têm o poder de forçar a descentralização do Estado, garantindo também a liberdade. Assim, liberdade, para Tocqueville, é sempre liberdade política. Os indivíduos devem participar dos assuntos públicos. A não participação implica a perda da liberdade. Para que os indivíduos participem dos assuntos políticos, porém, é necessária uma preparação dos mesmos. Uma espécie de educação política, que, no entanto, não deve conter nenhum aspecto ideológico. O que essa educação deve incumbir nos indivíduos, isso sim, é apenas o interesse nos assuntos públicos. Não há e não deve haver nenhum conteúdo nessa educação política. Se é preciso educar para a democracia, essa educação passa mais pelas associações livres do que pela escola. Talvez fosse esse exemplo, para Tocqueville, a maior contribuição do povo dos Estados Unidos da América. O americano aprende a se interessar pelos assuntos públicos porque participa da política. É claro que, se nos E.U.A há uma participação política, é porque há uma legislação que permite aos americanos participarem dos assuntos públicos. Faz-se imprescindível um Estado Republicano também. O que surpreende Tocqueville na participação política dos anglo-americanos refere-se aos assuntos e tomadas de decisões do dia a dia. Não são as questões abstratas da política de Estado. É decidindo se deve ou não construir uma estrada ou uma ponte que o povo anglo-americano cria interesse pela política. A servidão começa quando um povo abandona a esfera pública para cuidar apenas de seus assuntos privados. Se o indivíduo tem a liberdade de negligenciar os assuntos públicos para se dedicar apenas aos assuntos privados, essa mesma “liberdade” se transformará em individualismo e abrirá caminho para um governo despótico. Quanto à instrução pública, Tocqueville é cauteloso. Tem receio da centralização administrativa. Pensa que, se o Estado dominar a instrução, não haverá mais pluralidade de ensino e assevera que o Estado deve fiscalizar todas as 54 escolas, na intenção de saber o que ensinam, porém, sem monopolizar e, muito menos, padronizar o ensino. Tocqueville mantém a noção de uma aristocracia de espírito. Se a revolução democrática faz com que todos se concebam como iguais, não admitindo autoridades intelectuais (pois até mesmo a autoridade do professor em relação ao aluno é abalada nas eras democráticas), nem a idéia de superioridade intelectual – e, de fato, os homens se tornam mais iguais –, é preciso que continuem existindo instituições que eduquem para as belas-artes e para as faculdades superiores do espírito. Se a maioria deve ter uma educação adequada aos tempos modernos, que seja industrial e técnica, é preciso haver também instituições que garantam aos espíritos mais atentos uma educação diferenciada. Essa aristocracia de espírito, certamente, para Tocqueville, não pode ser definida de antemão. Deve ser mais uma constatação de fato do que uma definição prévia de direito. Os espíritos superiores podem ser encontrados em todas as classes sociais. É correto afirmar que Tocqueville relega a instrução a um papel secundário na manutenção da liberdade em um estado social democrático. Mas a instrução tem valor nas épocas democráticas. Tocqueville reconhece que, nos Estados Unidos, a instrução ajuda a ordenar a república. No entanto, se um povo não for esclarecido, não terá luzes para decidir sobre seus rumos, abrindo caminho, assim, para a centralização administrativa. Um povo democrático, adverte Tocqueville, não pode amar apenas a igualdade social de condições. A igualdade pode levar à uniformidade e à servidão. Claro, a igualdade social de condições não leva à corrupção dos costumes, apenas favorece seu aparecimento. É por isso que Tocqueville insiste tanto na conciliação dos costumes, hábitos religiosos e espírito esclarecido com o desejo de igualdade. Tocqueville foi um aristocrata de coração, sua formação e convívio familiar o inclinaram a ser assim. Talvez por isso temesse tanto a massa, a multidão de homens uniformes. Mas há de se reconhecer que anteviu muitos dos problemas que assombraram e assombram o mundo moderno e pós-moderno (se é verdade que já não somos modernos. Ou, nunca fomos modernos?). A nova forma de despotismo, a fúria das massas em busca de uma cada vez maior igualdade, o individualismo. A participação política está cada vez mais calcada no sufrágio universal que, se é 55 necessário, não é suficiente. A participação dos cidadãos se faz necessária em instâncias menores de decisão. Claro que, da forma que estão organizados os Estados-nações, a representação política é imprescindível, sendo que um Estado se tornaria ingovernável se apostasse na democracia direta. O povo deve participar, mas em órgãos locais de decisão política, por exemplo. Parece que os temores e as esperanças de Tocqueville ainda fazem sentido. Comumente se reconhece imprescindível a participação do povo nos assuntos públicos, o temor de um Estado centralizador e supressor das liberdades. Por isso Tocqueville é um clássico, pois encontramos em suas obras reflexões e proposições para os problemas da nossa democracia. 56 REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986. BARBU, Zevedei. Apresentação. In.: TOCQUEVILLE. O Antigo Regime e a Revolução. 2. ed. Brasília: UnB, 1982. [trad. Yvone Jean]. CHABOT, Sonia. Education civique, instrution publique et liberté d’ enseignement dans l’ouvre d’ Alexis de Tocqueville. The Tocqueville Review. XVIII, 2, 1997. ESPADA, João Carlos. La Libertad en Tocqueville. In.: NOLLA, Eduardo (Org.). Libertad, Igualdad, Despotismo. Madrid: FAES, 2007. ESSER DOS REIS, Helena. A liberdade do cidadão: uma análise do pensamento de Alexis de Tocqueville. São Paulo: USP, 2002. Tese de doutorado. ___________. Do hábito ao gosto: uma análise do pensamento pedagógico-político de Alexis de Tocqueville. Educativa. 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