Lei da Ficha Limpa: STF confirma a constitucionalidade do julgamento pelos
Tribunais de Contas de prefeitos ordenadores de despesa
Recentemente aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a aplicação da Lei
Complementar n. 135, de 04 de junho de 2010, conhecida como Ficha Limpa, já
acontecerá nas eleições municipais deste ano. No julgamento, o STF referendou o
dispositivo que valida o julgamento de prefeitos pelos Tribunais de Contas sempre que
figurarem como ordenadores de despesa, fortalecendo a posição dos TCs no âmbito do
controle externo e preservando uma de suas relevantes competências, já que possibilita
a reparação do dano causado através do julgamento daqueles que ordenam despesas.
O regramento consta da parte final da alínea g, do inciso I, do artigo 1º da Lei
Complementar nº 64/90 (Lei das Inelegibilidades), com a redação dada pela Lei
Complementar nº 135/10, aplicando-se o disposto no inciso II, do artigo 71 da
Constituição Federal a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários
que tenham agido nessa condição. Esse dispositivo constitucional dispõe sobre o
julgamento dos ordenadores de despesa pelo Tribunal de Contas.
A redação da sobredita norma assevera:
"Art. 1º São inelegíveis
I - para qualquer cargo:
........................................................................................................
g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas
rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade
administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta
houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se
realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão,
aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os
ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa
condição;"
O legislador intencionou submeter os Chefes do Poder Executivo, especialmente os
Prefeitos, nos casos em que acumulam as funções de governo com a de gestor público
(ordenador de despesas), a julgamento de suas contas, com caráter de exclusividade,
pelos Tribunais de Contas, nos termos do inciso II do art. 71 da Carta Magna.
Destaquemos as diferenças entre contas de governo e contas de gestão. Segundo José de
Ribamar Caldas Furtado, "existem dois regimes jurídicos de contas públicas: a) o que
abrange as denominadas contas de governo, exclusivo para a gestão política do chefe
do Poder Executivo, que prevê o julgamento político levado a efeito pelo Parlamento,
mediante auxílio do Tribunal de Contas, que emitirá parecer prévio (CF, art. 71, I, c/c
art. 49, IX); b) o que alcança as intituladas contas de gestão, prestadas ou tomadas,
dos administradores de recursos públicos, que impõe o julgamento técnico realizado
em caráter definitivo pela Corte de Contas (CF, art. 71, II), consubstanciado em
acórdão que terá eficácia de título executivo (CF, art. 71, § 3º), quando imputar débito
(reparação de dano patrimonial) ou aplicar multa (punição)" ("Os regimes de contas
públicas: contas de governo e contas de gestão", artigo publicado na Revista do TCU, nº
109, maio/agosto 2007).
Inclusive, na ADI n. 849/MT o Supremo Tribunal Federal reconheceu a distinção entre
contas de governo (art. 71, I, da CF/88) e contas de gestão (art. 71, II, da CF/88).
Vejamos a ementa do acórdão:
"Tribunal de Contas dos Estados: competência: observância compulsória do
modelo federal: inconstitucionalidade de subtração ao Tribunal de Contas da
competência do julgamento das contas da Mesa da Assembléia Legislativa compreendidas na previsão do art. 71, II, da Constituição Federal, para submetêlas ao regime do art. 71, c/c. art. 49, IX, que é exclusivo da prestação de contas do
Chefe do Poder Executivo. I. O art. 75, da Constituição Federal, ao incluir as
normas federais relativas à "fiscalização" nas que se aplicariam aos Tribunais de
Contas dos Estados, entre essas compreendeu as atinentes às competências
institucionais do TCU, nas quais é clara a distinção entre a do art. 71, I - de
apreciar e emitir parecer prévio sobre as contas do Chefe do Poder Executivo, a
serem julgadas pelo Legislativo - e a do art. 71, II - de julgar as contas dos demais
administradores e responsáveis, entre eles, os dos órgãos do Poder Legislativo e
do Poder Judiciário. II. A diversidade entre as duas competências, além de
manifesta, é tradicional, sempre restrita a competência do Poder Legislativo para
o julgamento às contas gerais da responsabilidade do Chefe do Poder Executivo,
precedidas de parecer prévio do Tribunal de Contas: cuida-se de sistema especial
adstrito às contas do Chefe do Governo, que não as presta unicamente como
chefe de um dos Poderes, mas como responsável geral pela execução
orçamentária: tanto assim que a aprovação política das contas presidenciais não
libera do julgamento de suas contas específicas os responsáveis diretos pela
gestão financeira das inúmeras unidades orçamentárias do próprio Poder
Executivo, entregue a decisão definitiva ao Tribunal de Contas." (STF, Tribunal
Pleno, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, pub. no DJ de 23.04.1999, p. 01)
Na prestação de contas de governo o Presidente da República, os Governadores de
Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos Municipais expressam os resultados da
atuação governamental em referido exercício financeiro. Nesta situação, como o chefe
do Executivo não é considerado o ordenador de despesas da máquina pública, o
Tribunal de Contas não tem competência para julgar o seu exercício financeiro anual.
Logo, o julgamento dessas contas compete totalmente ao Poder Legislativo (art. 71, I
c/c 49, IX da CF/88), que poderá ou não seguir o parecer prévio, pela aprovação ou
rejeição das contas, emitido pelo Tribunal de Contas.
Ainda pelo magistério de José de Ribamar Caldas Furtado, "tratando-se de exame de
contas de governo o que deve ser focalizado não são os atos administrativos vistos
isoladamente, mas a conduta do administrador no exercício das funções políticas de
planejamento, organização, direção e controle das políticas públicas idealizadas na
concepção das leis orçamentárias (PPA, LDO e LOA), que foram propostas pelo Poder
Executivo e recebidas, avaliadas e aprovadas, com ou sem alterações, pelo Legislativo.
Aqui perdem importância as formalidades legais em favor do exame da eficácia,
eficiência e efetividade das ações governamentais. Importa a avaliação do desempenho
do chefe do Executivo, que se reflete no resultado da gestão orçamentária, financeira e
patrimonial" ("Os regimes de contas públicas: contas de governo e contas de gestão",
artigo publicado na Revista do TCU, nº 109, maio/agosto 2007).
Já as contas de gestão, por sua vez, submetem-se a julgamento direto pelos Tribunais de
Contas, que têm competência para julgar, com exclusividade, as contas dos
administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, podendo
gerar imputação de débito e multa (art. 71, II e § 3º da CF/88). Logo, o Prefeito,
assumindo também a função de ordenador de despesas, submeter-se-á a um duplo
julgamento: um pela Câmara Municipal mediante exame do parecer prévio emitido pelo
Tribunal de Contas nas contas de governo e, portanto, um julgamento político e outro
pelo próprio Tribunal de Contas, mas agora em julgamento técnico nas chamadas contas
de gestão. Este fator é o que tem gerado o grande número de prefeitos afastados, ou sob
julgamento.
Contudo, a interpretação até então proferida pelo Supremo Tribunal Federal não era
essa, mas a de que os Chefes do Poder Executivo, ainda quando investidos na condição
de ordenadores de despesas, apenas se submetem ao julgamento político do Poder
Legislativo, não cabendo aos Tribunais de Contas julgarem suas contas com base no
inciso II do art. 71 da Carta Magna. (RE 597362/BA – repercussão geral)
Com a Lei da Ficha Limpa e o recente julgamento emitido pelo Supremo Tribunal
Federal, penso ter sido a matéria superada, passando a haver, no plano
infraconstitucional, preceito expresso prevendo a necessidade de duplo julgamento no
caso de Chefe do Poder Executivo acumulando a função de ordenador de despesas.
Assim, passou a ser inelegível o mandatário que, na condição de ordenador de despesas,
tem suas contas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de
improbidade administrativa pelo Tribunal de Contas, no exercício da competência
prevista no inciso II do art. 71 da Carta Magna.
Desta feita, salvo se o Supremo Tribunal Federal modificar seu entendimento no
julgamento do RE 597362/BA, reconhecido como de repercussão geral, conclui-se ser
constitucional a expressão "aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da
Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários
que houverem agido nessa condição", acrescida ao texto da alínea "g", do inciso I do
art. 1º da LC nº 64/90 pela LC nº 135/10.
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