Geração de trabalho e renda – dos experimentos às ações integradas
Caio Márcio Silveira
Políticas de trabalho e renda: chegamos ao fim dos anos noventa e restam poucas vozes
questionando sua necessidade, para uns emergencial, para outros estratégica. Ao
contrário, é a demanda mais presente - visível e intensa.
Não só aqui. A reestruturação produtiva, o esgotamento do modelo fordista de
organização, as crises combinadas do estado do bem-estar e do desenvolvimentismo
clássico, a financeirização “global”, as transformações de fundo nos padrões
tecnológicos, os novos circuitos de informação. Todo esse ambiente faz com que o
problema do trabalho venha assumindo uma dimensão inédita e características novas, no
mundo todo.
Nas duas útimas décadas, na Europa sobretudo, começaram a se multiplicar as
chamadas políticas ativas de trabalho, com aumento dos gastos públicos nessa direção.
Ou seja, além das políticas compensatória s ou passivas – como o seguro-desemprego desencadeiam-se ações de fomento que procuram atuar diretamente sobre a oferta ou a
demanda de trabalho. Isto se traduz em inúmeros instrumentos ligados à capacitação
profissional, à intermediação, à implementação de programas para jovens, ao apoio a
microunidades econômicas (trabalho autônomo, microempresas, cooperativas), entre
outras ações.
No Brasil, o ônus do ajuste agrega-se a uma herança de desigualdade e pobreza. Não
passamos pela combinação virtuosa pleno emprego-seguridade social. No mundo do
trabalho, os efeitos da atual transição se superpõem a uma precariedade histórica. Em
particular, a baixíssima escolaridade dos ocupados ou dos que procuram trabalho, junto
com as deficiências do sistema educacional, recolocam a exclusão como horizonte a ser
evitado e transformado.
Em termos conjunturais, é nítido que a recessão de 1998/99 tornou a questão mais
dramática, quando o próprio desemprego aberto atinge patamares nunca ocorridos. Mas
é provável que este quadro não se torne mais agudo no curto prazo, quando os mais
diversos analistas antevêem um cenário de crescimento, por modesto que seja, já a partir
de ano 2000.
Por outro lado, cada vez mais se considera que o crescimento ou alternativas puramente
macroeconômicas (ainda que representem mudanças “de modelo” ou “estruturais”) são
incapazes por si só de gerar empregos na escala necessária. Ou, mais amplamente, de
gerar inclusão ou desenvolvimento social.
Julgamos que ações de fomento – ou políticas ativas de trabalho e renda - são requeridas
hoje, amanhã e depois. Vale dizer que tais políticas vão além do estritamente
econômico, pois colocam em jogo aspectos relacionados à ética, à cultura e à
democracia. Neste cenário, é impossível desvincular a construção de oportunidades de
geração de trabalho e renda da construção da cidadania.
De uma forma geral, pode-se dizer que as políticas ativas de trabalho e renda visam a
aumentar – para segmentos de baixa renda e baixa escolaridade - as chances de inclusão
e manutenção no mundo do trabalho. Destinam-se portanto a setores excluídos ou
vulneráveis. Universo amplo, que inclui pessoas com diferentes condições etárias, de
gênero ou étnicas, e também diferentes condições de inserção ocupacional: não
ocupados, subempregados, trabalhadores autônomos e participantes de pequenos
empreendimentos familiares e associativos, formais ou informais.
Esta heterogeneidade, somada às peculiaridades de cada local, torna ainda maior a
exigência de uma adequação entre a oferta institucional e os públicos envolvidos nestas
iniciativas. Ou seja: impõem-se ações diversificadas e adaptadas às demandas locais.
Sem prejuízo dessa multiplicidade, podemos destacar três eixos estratégicos de
fomento: o crédito popular ou microcrédito; a capacitação profissional e seus elos com a
questão da educação; a geração de alternativas de mercado.
O acesso ao crédito – por parte de microempreendedores que não dispõem de garantias
reais - constitui elemento de democratização e cidadania. Envolve ainda aspectos extraeconômicos relevantes, uma vez que gera novas oportunidades e novos vínculos sociais,
estimula a auto-estima e, muitas vezes, envolve diretamente questões de gênero, ao
possibilitar às mulheres um direito duplamente negado.
O Brasil já dispõe hoje de um acervo de experiências nesse campo, construído
sobretudo pela prática de organizações não governamentais em cooperação com
agências internacionais e progressivamente considerado nas políticas de governo –
inclusive através de programas e órgãos federais. Metodologias foram testadas e
avanços foram obtidos, mesmo que em escala imensamente inferior à demanda
potencial. Além da questão do alcance, há importantes lacunas a serem preenchidas:
apoio a empreendimentos novos (e não apenas àqueles já constituídos), crédito para
investimentos (e não somente para capital de giro) e acesso por parte de associações e
cooperativas. Por fim, ainda que seja claro o conteúdo social do microcrédito,
segmentos em condição de pobreza mais extrema não constituem o público direto para
esta modalidade de apoio, que requer um mínimo de condições básicas – em termos
educacionais e culturais – para ser internalizado.
Já a questão da capacitação, que assume formas muito mais diversas, é também mais
elástica quanto à possibilidade de atingir segmentos em pobreza extrema, desde que se
estimulem conteúdos e metodologias flexíveis e adaptados às suas realidades sociais e
culturais. Também neste plano, já há um campo de experimentação significativo no
Brasil, sobretudo na esfera do microempreendedorismo, com iniciativas inovadoras e
acúmulos conceituais e metodológicos. Estes avanços, todavia, são até certo ponto
“paralelos” ou “alternativos”, não se reproduzindo na maior parte da capacidade
instalada hoje no país (isto é, no elenco de instituições que atuam em capacitação
profissional).
Mais amplamente, a questão da educação básica é central, não só como direito, mas
cada vez mais como condição para inserção no mundo do trabalho. A necessidade de
conjugar a formação profissional com a elevação ou recuperação da escolaridade básica
impõe, além de ações complementares ao ensino regular, uma efetiva integração com o
sistema público de educação, supondo também uma transformação qualitativa deste
sistema. A educação assume, portanto, um caráter estratégico sob a ótica da cidadania e
do acesso ao mundo do trabalho, devendo ser pensada não principalmente do ponto de
vista da inserção imediata no mercado, mas com ênfase no sentido ético e formativo,
combinando perspectivas de curto, médio e longo prazo.
Em última instância, a questão da capacitação é inseparável da questão da cultura,
envolvendo – além da dimensão cognitiva da aprendizagem – mudanças de
comportamentos e valores. Isto significa, como pretendem diferentes metodologias hoje
em ação no Brasil, trabalhar sobre padrões de construção de identidade e relação social,
mexendo em aspectos estruturantes do nexo entre cotidiano e cidadania, tais como: a
relação de gênero, a relação entre o privado e o público, entre o individual e o coletivo e
entre a sociedade e o estado, mesmo quando o foco é a formação para o mundo do
trabalho.
No terceiro eixo estratégico de fomento - que chamamos genericamente de alternativas
de mercado - incluem-se diversos campos de ação, envolvendo tanto mercado para
produtos quanto mercado de trabalho: ações de intermediação junto ao setor formal para
candidatos a empregos ou junto a usuários de serviços no caso de trabalhadores
autônomos; acesso por parte de microempreendedores a compras governamentais de
bens e serviços; estruturas de suporte ao encadeamento de microunidades econômicas,
com ênfase em redes horizontalizadas ou ainda estimulando a integração vertical de
unidades de diferentes portes; implementação de políticas sociais (provisão de serviços
urbanos, ações nas áreas de educação, saúde e assistência) associadas à absorção de
força de trabalho e diversos outros instrumentos e medidas.
As experiências dos anos noventa no Brasil, com proliferação de iniciativas em pequena
escala relacionadas à geração de trabalho e renda, já permitem indicar linhas de ação,
métodos e caminhos – alguns já trilhados, outros não - em cada uma de suas frentes. A
década termina, porém, deixando claro o desafio da integração como condição de
impacto: integração entre os diferentes eixos de políticas de fomento (formação básica,
capacitação profissional, crédito, encadeamentos de mercado) e integração entre os
diferentes instrumentos de ação, de forma flexível e associada às demandas e vocações
locais.
Porém, mais amplamente, trata-se de integrar as políticas de trabalho e renda não apenas
entre si mas com outras políticas públicas, onde se articulam a questão social e a
questão do desenvolvimento.
Isto supõe esforços renovados na gestação de uma nova institucionalidade. O que requer
desde fluxos financeiros compatíveis com o ritmo das ações – pois o problema é mais
de fluxos do que de fundos - até a configuração de modelos organizacionais que
facilitem ações intersetoriais e transetoriais, passando principalmente por mudanças na
cultura política, superando a lógica clientelista que reproduz balcões e grupos cativos de
“pobres” atendidos por este ou aquele segmento da máquina política tradicional.
Portanto, é de mudança de paradigmas que se trata. Além da dimensão intra-estatal, nas
três esferas de governo, está em jogo a perspectiva de ampliação da esfera pública, o
que significa participação social mais e mais direta, aprofundando o caráter democrático
das gestões e o controle social sobre as políticas públicas.
Tendo em vista os parâmetros de integração, convergência, gestação de esferas públicas
ampliadas e crescente controle social, surge com vigor a ênfase no local (sub-municipal,
municipal ou supra-municipal) como centralidade de ação pública - e não apenas como
“ponta”. Trata-se do domínio onde a participação e o controle social podem ser mais
claramente exercidos e onde a integração de ações de fomento pode ocorrer de forma
concreta e territorializada.
Por certo, isto não significa uma ótica “localista”, como se cada local se resolvesse por
si mesmo: trata-se de reforçar ao mesmo tempo os laços locais e a necessidade de
interconexão com espaços supra-locais, o que significa maior acesso a fluxos de bens,
serviços e informações. O “endógeno” não se desenvolve dissociado do “exógeno”. O
momento requer um esforço de capacitação de atores sociais (gestores e
empreendedores), o que supõe disseminação de metodologias e instrumentos,
intercâmbio de experiências e construção compartilhada de novos referenciais. O acesso
à informação e ao conhecimento dependem sobretudo de comunicação, da possibilidade
de cada ator agregar - à sua parcela de conhecimento e à sua ação - a ação e o
conhecimento produzido por outros atores, sedimentando de forma combinada laços
locais e supra-locais.
Já não são poucos os que hoje vislumbram na atual transição, como contraface às óbvias
tendências excludentes, novas oportunidades de organização e participação social - na
demanda, na formulação e na gestão de políticas públicas integradas, onde as questões
de trabalho e renda adquirem um peso evidente. Mais do que fatores de ligação entre o
econômico e o social (e, portanto, entre as políticas econômicas e as políticas sociais),
políticas ativas de trabalho e renda são elementos do nexo entre democratização da
riqueza, do conhecimento e do poder – tendo como alavanca a organização da sociedade
pela base e a construção de esferas públicas ampliadas desde cada localidade.
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