CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO CEARÁ FACULDADE CEARENSE CURSO DE SERVIÇO SOCIAL EMANUELA SALES DOS SANTOS OS MORADORES DA PRAÇA DO FERREIRA: O QUE FAZEM, COMO VIVEM E POR QUE SE ENCONTRAM NAS RUAS FORTALEZA 2013 EMANUELA SALES DOS SANTOS OS MORADORES DA PRAÇA DO FERREIRA: O QUE FAZEM, COMO VIVEM E POR QUE SE ENCONTRAM NAS RUAS Monografia apresentada ao curso de graduação em Serviço Social do Centro de Ensino Superior do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Serviço Social. Orientadora: Prof.ª Ms.ª Valney Rocha Maciel FORTALEZA 2013 EMANUELA SALES DOS SANTOS OS MORADORES DA PRAÇA DO FERREIRA: O QUE FAZEM, COMO VIVEM E POR QUE SE ENCONTRAM NAS RUAS Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Serviço Social, outorgado pela Faculdade Cearense – FAC, tendo sido aprovada pela banca examinadora composta pelos professores. Data de Aprovação:___/___/___ BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________ Profª. Msª. Valney Rocha Maciel ____________________________________________________ Profª. Msª. Joelma Maria de Freitas ____________________________________________________ Assistente Social- Especialista. Elainne Cristiane Andrade Ferreira Aos Moradores de Rua da Praça do Ferreira agradeço pela disponibilidade e colaboração com que se colocaram na construção deste estudo e pela grande lição de vida que me foi proporcionada. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, a Deus que sempre esteve ao meu lado em todos os momentos desta longa caminhada de vida acadêmica, e que me deu à luz necessária nos momentos de dificuldades e incertezas. Aos meus pais, Maria do Socorro e Francisco Honorato, pelo amor, apoio e por sempre acreditarem na minha capacidade. Aos meus irmãos, Daniela Sales, Francisco José Sales e Emanuel Sales, pelo amor que sentem por mim. Ao meu namorado Júlio Cesar, pelo carinho e dedicação. À orientadora desta monografia, Professora Valney Rocha, pela sua competência e dedicação, além de toda a contribuição com seu conhecimento na construção deste trabalho. Às minhas queridas amigas e companheiras do Curso de Serviço Social da FAC, em especial: Ana Patrícia, Ana Wládia, Juliana, Maria Janaina e Marileide, que estiveram sempre ao meu lado, apoiando-me nos momentos difíceis, compartilhando as alegrias e dividindo as angústias, sempre com palavras otimistas. Obrigada pela troca de conhecimento e pelo apoio a mim dedicado nesses quatro anos. Aos meus amigos Alfredo, Leandro e Luiz Carlos, pelo carinho, companheirismo e pela infinita dedicação para com a minha pessoa. Às minhas “Madrinhas”: Dra. Zélia, Dra. Elizabeth, Edna, Neide e Zoraide, que me deram força e estímulos em um momento muito especial. À banca examinadora agradeço pela disponibilidade e pela valiosa contribuição em minha formação acadêmica. A todos os professores e mestres do curso de Serviço Social da FAC, que contribuíram para o meu aprendizado acadêmico e para a realização de um sonho. Aos moradores de rua entrevistados, pela disponibilidade com que se colocaram na construção deste estudo. Finalmente, a todos aqueles que, direta ou indiretamente, apoiaram-me e incentivaram-me, fazendo-me renovar a coragem de continuar, apesar das dificuldades. Meu carinho e gratidão. A coragem nada mais é que a vontade mais determinada e, diante do perigo ou do sofrimento, mais necessário (...); mas a coragem está no desejo, não na razão; no esforço, não na intenção. Trata-se sempre de perseverar em seu ser, e toda coragem é feita de vontade (...) um começo sempre recomeçado e sempre difícil (...); como toda virtude, a coragem só existe no presente (...), é preciso ser corajoso, não amanhã ou daqui a pouco, mas agora. (Comte-Sponville) RESUMO Este trabalho apresenta a temática Os Moradores da Praça do Ferreira: o que fazem como vivem e por que se encontram nas ruas, sendo relacionada com as políticas públicas existentes, que visam assegurar e garantir os direitos dessas pessoas. O presente trabalho também visa analisar a efetivação dos atendimentos, buscando compreender os motivos que levaram essas pessoas a viver em situação de rua, e como elas percebem a execução da Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR). Também são abordados aspectos históricos e atuais referentes aos motivos relacionados à ida das pessoas para as ruas. A pesquisa de campo tem como característica a entrevista semiestruturada de maneira qualitativa, ocorreu entre os meses de Agosto a Novembro de 2013, quando foram realizadas 6 entrevistas, sendo 3 moradores de rua e 3 ex. moradores de rua. A pesquisa foi realizada na Praça do Ferreira, local escolhido devido ao intenso fluxo dos mesmos, mostrando que existe um grande número de pessoas em situação de rua e que muitos não conhecem e/ou não percebem a execução de serviços da PNPR. Infelizmente, isso só mostra a precariedade na execução da política, sendo este elemento fundamental e importante para os indivíduos que buscam a superação da vulnerabilidade social em que estão inseridos, dificultando, assim, sua ressocialização. Palavras-chaves: População em Situação de Rua, Políticas Públicas. Vulnerabilidade Social. ABSTRACT This paper presents the theme The homeless of Praça do Ferreira: what they do, how they live and why they are in the streets, related to the existing public policies, which are aimed at ensuring and guaranteeing the rights of these people. Also this paper analyzes the effectiveness of the assistance, aimed to understand the reasons that led these people to live in the streets and how they perceive the National Policy execution for homeless people (PNPR). Historical and current aspects related to the reasons why these people have gone to the streets are also discussed. The field research has a semi-structured interview, in a qualitative way, occured from August to November of 2013, when six interviews were carried out, in which three of the interviewees were homeless and three were ex-homeless. The research was conducted in Praça do Ferreira, chosen due to the intense flow of homeless people, showing that exists a large quantity of people in this situation, many do not know and/ or do not perceive the services performance of the PNPR. Unfortunately, this reveals the policy performance precariousness, this is a fundamental and important element for those who look for overcoming the social vulnerability in which they are, difficulting, thus, their re-socialization. Keywords: Homeless people, Public Policies, Social Vulnerability. LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS CF - Constituição Federal CRAS - Centro de Referência da Assistência Social CREAS - Centro de Referência Especializado da Assistência Social CENTRO POP - Centro de Referência para a População em Situação de Rua FNRU - Fórum Nacional de Reforma Urbana IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IJF - Instituto Dr. José Frota LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social MDS - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MNPR - Movimento Nacional da População de Rua NASF- Núcleo de Apoio à saúde da Família ONG - Organizações não Governamentais PAEFI - Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos PIB - Produto Interno Bruto PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra em Domicílios PNAS - Política Nacional de Assistência Social PNDH - Programa Nacional de Direitos Humanos PNPR - Política Nacional para a População em Situação de Rua PSB - Proteção Social Básica PSE – Programa de Saúde na Escola SEMAS - Secretária Municipal de Assistência Social SETRA - Secretária de Trabalho, Desenvolvimento Social e Combate a Fome SUAS - Sistema Único de Assistência Social SUS - Sistema Único de Saúde TCC - Trabalho de Conclusão de Curso SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................................................... 10 2 ASPECTOS GERAIS SOBRE O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO NO BRASIL E UM BREVE CONTEXTO SOBRE FORTALEZA ...................................................... 13 2.1 Breve Contexto Histórico Sobre o Processo de Urbanização no Brasil .............. 13 2.2 Um breve contexto histórico sobre a cidade de Fortaleza .................................. 16 2.3 Cidade: Direito de Todos ................................................................................... 23 3 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA INSERIDA NA POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA E NA POLÍTICA NACIONAL PARA A POPULAÇÃO DE RUA ......... 28 3.1 População em Situação de Rua: Uma Breve Contextualização ......................... 28 3.2 Política Nacional de Assistência Social .............................................................. 36 3.3 Política Nacional Para a População em Situação de Rua e Suas Formas de Inclusão Social ......................................................................................................... 40 4 A PESQUISA DE CAMPO NA PRAÇA DO FERREIRA .................................... 47 4.1 O Cenário da Pesquisa e as Escolhas Metodológicas ....................................... 47 4.2 Perfil e Análise dos Sujeitos da Pesquisa .......................................................... 50 4.3 Desafios e Resultados da Pesquisa................................................................... 52 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 544 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 57 APÊNDICE ............................................................................................................ 600 ANEXOS ................................................................................................................ 633 10 1 INTRODUÇÃO O Presente trabalho tem como objetivos específicos: conhecer o perfil dos sujeitos da pesquisa; descobrir os motivos que levaram esses indivíduos a morarem nas ruas; e conhecer como se apresenta o cotidiano dos mesmos. Sobre a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR), fez-se necessário saber se eles conheciam a política, e como a PNPR, o Estado e a sociedade estão contribuindo para a ressocialização dos mesmos. Buscando conhecer como os mesmos percebem a execução da Política Nacional para População de Rua em Fortaleza, Ceará. A motivação em pesquisar sobre a população em situação de rua surgiu a partir do preconceito de uma colega de trabalho da presente pesquisadora, quando a mesma disse a seguinte frase: „„nunca mais quero trabalhar com pobre, a gente faz, faz e eles não agradecem” e do entendimento desta última de que não se pode generalizar. Realizar um trabalho social com pessoas que estão em situação de risco tem seus desafios, e é preciso ter muita força de vontade e querer efetivar seus propósitos sem esperar nada em troca desses indivíduos. Partindo desse preconceito, iniciaram-se os questionamentos sobre a realidade e o cotidiano dessas pessoas, enquanto esta autora era estagiária do Instituto Dr. José Frota (IJF), no período de março de 2012 a junho de 2013. Assim, foi possível realizar atendimentos iniciais com pessoas que estavam em situação de rua, inclusive, em alguns casos, o usuário encontrava-se em estado de saúde grave. Também existiam casos de abandono por parte de familiares, fazendo com que esse usuário passasse a ser responsabilidade da Instituição e do Estado. A escolha do campo ocorreu através de visitas noturnas realizadas na Praça do Ferreira, durante os meses de agosto a novembro de 2013. Durante as visitas, foi possível uma aproximação com os moradores, tornando-se possível perceber em suas falas a insatisfação com a situação de vulnerabilidade em que se encontram e as dificuldades por eles enfrentadas ao tentar acessar serviços ofertados por algumas instituições públicas. Esta pesquisa foi realizada, inicialmente, através da observação sensível, pois o campo exigia, e os pesquisados deveriam ser conhecidos, antes de serem observados, bem como o meio no qual estão inseridos. Conforme Cardoso (2008, p. 11 24), “a observação Sensível tem a qualidade de nos alertar para o sensível relacionamento com os usuários (...) e nem tudo que se vê, assim o é”. Com o reconhecimento do campo, começou-se uma aproximação com os indivíduos que vivem em situação de rua. Aos poucos se estabeleceu uma conversa com os mesmos, questionando-os, até que se iniciassem as entrevistas. Por se tratar de um espaço público existe um movimento constante: alguns apenas frequentam a praça; outros já têm a praça como dormitório. O tipo de pesquisa escolhido foi a qualitativa, sendo realizada a técnica da entrevista semiestruturada. De acordo com Minayo (2010, p. 64) é o tipo de entrevista com “perguntas fechadas e abertas, em que o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão sem se prender a indagação formulada”. Depois das entrevistas foi realizado um levantamento sobre as informações repassadas, para a apresentação do perfil do entrevistado. Paralelamente às entrevistas, procurou-se indagá-los sobre outros assuntos que iam surgindo no decorrer da entrevista, sempre observando suas reações e olhares. Para preservar a identidade dos entrevistados, utilizei nomes fictícios. O presente trabalho está organizado em três capítulos. O primeiro aborda o contexto histórico sobre o processo de urbanização do Brasil, abrangendo um pouco do processo histórico de Fortaleza, e abordando a cidade como direito de todos. Nesse capítulo, trata-se de pesquisas e conceitos de Ermínia Maricato (2001), Valney Rocha Maciel (2004), e outros. O capítulo seguinte trata da contextualização da população em situação de rua, da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e da Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR), além de suas formas de inclusão. O capítulo também traz a abordagem sobre os direitos assegurados a eles, sendo os principais autores utilizados nesse capítulo Ana Elizabeth Mota (2010), Robert Castel (1998), Sarah Escorel (1999), Maria Lúcia Lopes da Silva (2009), entre outros. O terceiro capítulo aborda o percurso metodológico, onde são apresentadas as escolhas metodológicas, o cenário, o perfil e os relatos dos sujeitos que estão em situação de rua, mostrando a análise, desafios e resultados da pesquisa. Nesse capítulo foram utilizados os autores Maria Cecilia de Souza Minayo (1994), Roberto Cardoso de Oliveira (2000) e Mirian Goldenberg (2009). 12 Nas considerações finais é ressaltado que, infelizmente, o número de moradores de rua vem aumentando no município de Fortaleza, além de serem explicitadas percepções e questionamentos acerca do tema estudado, mostrando a relevância da temática e que se faz necessário novos estudos sobre a Política Nacional para a População de Rua. 13 2 2.1 ASPECTOS GERAIS SOBRE O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO NO BRASIL E UM BREVE CONTEXTO SOBRE FORTALEZA Breve Contexto Histórico Sobre o Processo de Urbanização no Brasil Para Maricato (2001), a urbanização brasileira se originou através do processo de modernização, que, ao mesmo tempo, contraria aqueles que esperavam um processo de superação do Brasil arcaico, pois muitos tinham a concepção que o atraso estava vinculado à hegemonia da economia agroexportadora. O Brasil, semelhante aos demais países da América Latina, intensifica seu processo de urbanização1, principalmente na segunda metade do século XX. No ano de 1940, a população residente nas cidades era de 26,3%; em 2000, a estimativa era de que esse número aumentasse para 81,2%. Esse crescimento é impressionante, pois em 1940 o Brasil tinha 18,8 milhões de habitantes, enquanto em 2010 esse número teve um acréscimo, subindo para 196,7 milhões de habitantes (Maciel, 2004). No século XIX, o Brasil tinha aproximadamente 10% da população nas cidades, e nesse período já existiam cidades de grande porte no país. Mas, é a partir do século XX que o processo de urbanização da sociedade realmente se consolida, sendo impulsionado pelo trabalho livre e por uma indústria que se desenvolve nas atividades cafeicultoras e para as necessidades básicas do mercado interno. As reformas urbanas ocorridas em diversas cidades brasileiras como Manaus, Belém, São Paulo, Rio de Janeiro dentre outras , no século XIX e século XX, lançaram um urbanismo moderno, realizando obras de saneamento básico para erradicar as epidemias, enquanto ao mesmo tempo, promoviam o embelezamento paisagístico. “E precisam, evidentemente, de transportes, saúde, lazer, saneamento básico e muitas outras necessidades. O espaço urbano é, portanto, um local de contínuas e profundas transformações, ou seja, de profundas e contínuas contradições (MARICATO, 2001, p. 17). 1 O processo de urbanização brasileira deu-se, praticamente, no século XX. No entanto, ao contrário das expectativas de muitos, o universo não superou algumas características dos períodos colonial e imperial, marcados pela concentração de terra, renda e poder, pelo exercício do coronelismo ou política do favor e pela aplicação arbitrária da lei. 14 Nesse período, o embelezamento paisagístico e o controle de epidemias iria favorecer, principalmente, o mercado imobiliário, que já se firmava nas cidades. As populações excluídas desse processo eram expulsas para os morros e favelas de cidades como: Recife, São Paulo, Belém, Porto Alegre, Curitiba, Manaus, Santos e, principalmente, para o Rio de Janeiro. Essas cidades passaram por um saneamento ambiental e embelezamento nesse período à custa da retirada dos pobres para as áreas mais periféricas. (Maciel, 2004). O Brasil sempre foi uma terra de contrastes. A urbanização do país não se distribui igualitariamente por todo território, conforme se observa na tabela a seguir. O processo de urbanização se concentra, principalmente, na região Sudeste, formada pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo (IBGE, 2000). Tabela 1- Brasil: Índice de urbanização por região (%) Região 1950 1970 2000 Sudeste 44,5 72,7 90,5 Centro- Oeste 24,4 48 86,7 Sul 29,5 44,3 80,9 Norte 31,5 45,1 69,9 Nordeste 26,4 41,8 69,1 Brasil 36,2 55,9 81,2 Fonte: Estatísticas Históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1950 a 1988 2.ed. Rio de Janeiro: IBGE, 1990, p 36-7; Anuário estatístico do Brasil 2001, Rio de Janeiro: IBGE, 2000, p. 2-14 e 2-15. Em 1930, a elite industrial assume a hegemonia política na sociedade e “o Estado passa a investir decididamente em infraestrutura, objetivando o crescimento das indústrias” (MARICATO, 2001, p. 17). Em 1950, o país começa a produzir bens duráveis e de produção, como eletrodomésticos, eletrônicos e automóveis. A produção em massa e o consumo passam a modificar o modo de viver dos brasileiros. Abordando estudos de Maciel (2004), as famílias do meio rural que se aventuraram e partiram para as cidades tiveram, à época, melhorias na qualidade de vida. De 1940 até 1980, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 7% ao ano, fator que contribuiu efetivamente com a concentração de renda para que tais melhorias 15 fossem possíveis. O crescimento econômico começava a dar sinais de que a riqueza estava de certa forma, chegando às camadas populares. Junto com o crescimento econômico surgiu a nova classe média urbana. Esse crescimento deixou enormes problemas populacionais, pois a grande massa populacional não tinha acesso à previdência social, serviços de saúde, moradia, saneamento básico entre outros. E, para piorar a situação dessa parte da sociedade, a década de 1980 foi um período de declínio econômico e os anos 90 trouxe consigo o desemprego. Com o crescimento econômico também vieram as desigualdades sociais que se constituíram a partir da concentração de renda nas mãos de uma minoria, junto com a urbanização desordenada, que causou uma série de problemas sociais e ambientais. Dentre eles, destacam-se o desemprego, a criminalidade e a favelização, pois, em consequência dessa má distribuição de renda, parte da população buscou as áreas de risco como morros, mangues, dunas, e até mesmo ruas e praças, um lugar em que pudessem se fixar. A partir do momento que o trabalho se torna mercadoria, a reprodução do trabalhador deveria se dar pelo mercado. Mas isso não aconteceu, e grande parte dos trabalhadores atuam fora do mercado formal, e mesmo aqueles empregados regularmente na moderna indústria, apelam para expedientes de subsistência para se prover de moradia na cidade. Significa que grande parte da população, até mesmo aqueles regularmente empregados, constrói sua moradia em áreas irregulares ou invadidas, não participando do mercado hegemônico. A falta de moradia é uma das consequências decorrente da desigualdade social, sendo um dos fatores responsáveis pelo crescimento no número de pessoas que moram nas ruas no Brasil. Apesar do governo oferecer programas de auxílio à moradia, que parecem beneficiar a população, estes apenas estão “mascarando” o descaso das autoridades. Por isso, os indivíduos que não têm “um teto” para morar, buscam alternativas, e, no intuito de solucionar seu problema, uma das opções que aparece para eles é abrigar-se em praças e/ou ruas. Para compreender melhor a realidade desses indivíduos, que é o cenário da pesquisa em questão, faz-se necessário uma discussão, que será apresentada em capítulos posteriores do presente trabalho. 16 2.2 Um breve contexto histórico sobre a cidade de Fortaleza A ocupação da cidade se deu a partir da chegada dos holandeses, que objetivavam se estabelecer através de um polo defensivo (JUCÁ, 2000). Apenas nos meados do século XVII foi que Fortaleza passou a ser considerada um povoado, e, somente em 1603, Pero Coelho de Sousa construiu, na Barra do Ceará, o Forte de São Tiago. Em 1612, foi erguido o Forte de São Sebastião, por Martins Soares Moreno, em homenagem ao rei português que desapareceu no norte da África. Aos 18 anos Moreno já havia estado em terras pernambucanas, acompanhando uma comitiva do Governador Diogo Botelho, em abril de 1602, quando foi engajado na bandeira de Pedro Coelho para o Siará, lugar onde permaneceu a amizade do índio Jacaúna, fator importante para seu retorno 10 anos depois. Através de pesquisas sobre a história da cidade, pode-se dizer que Fortaleza tem seu nome ligado às edificações, enquanto espaço socialmente construído, e não teve, em sua gênese, uma intencionalidade. „„Embora não houvesse objetivo para fundar uma povoação, vila ou cidade, isso aconteceu de forma espontânea, tão logo se verificou a expulsão dos flamengos 2”(JUCÁ, 2000, p. 21). Tal expulsão ocorreu em 1654, e os anos de 1660 a 1698 foram marcados pela reconstituição do Forte de Schoonenborch3. No período colonial, a economia do Nordeste se caracterizava pela produção de cana-de-açúcar e Fortaleza tinha sua principal atividade econômica. (MACIEL, 2004). O pequeno povoado foi reconhecido como Vila Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, no ano de 1726, pela Carta Régia. A pequena vila ficou deslocada das outras regiões do Ceará, que eram produtoras de bens econômicos para o comércio da área litorânea de Pernambuco e do exterior, ao longo do século XVIII, fator este que podara o desenvolvimento das atividades econômicas de caráter urbano. (MACIEL, 2004). “A essa circunstância acresce-se o fato de que a vinculação administrativa do Ceará a Pernambuco exclui da vila, até o final do século XVIII, (...) o desempenho de funções burocráticas” (LEMENHE, 1991, p. 17). 2 3 Flamengos: conjunto dos falares sul neerlandeses usados no norte da Bélgica e em algumas regiões francesas. Forte de Schoonenborch: ponto turístico da Cidade de Fortaleza 17 Fortaleza teve sua independência no ano de 1799, e a partir de então se intensificou a atividade exportadora do algodão. “Esta atividade assume um papel de destaque para a Vila, constituindo a base de sustentação do grande empório comercial” (SILVA, 1992, p. 23). Somente em 17 de março de 1823, Fortaleza foi considerada cidade, com o nome de Cidade da Fortaleza de Nova Bragança. Após 20 anos, em 1842, passou a existir por parte da Câmara Municipal, a preocupação com o ordenamento da cidade, e se pensou que ruas e becos deveriam ser alinhados. Em 1843, a preocupação era com o nivelamento das ruas. Fortaleza tornou-se o centro coletor do algodão, e este passou a ser produzido no interior e trazido para a cidade, abastecendo o mercado têxtil da Inglaterra, nos meados do século XIX. A Guerra de Secessão americana, em 1866, favorece a exportação do algodão cearense para a Inglaterra, assim como a Revolução Industrial teve sua contribuição. A cultura do algodão foi um elemento fixador da população no sertão semiárido. Mesmo com todo crescimento econômico da época, Fortaleza registrava ocupações contínuas de sertanejos expulsos pela seca. O drama das secas modificou milhares de vidas no Ceará, infelizmente, nem sempre para melhor. Famílias foram para as capitais em busca de emprego e assistência, mas com esse aumento populacional a elite fortalezense buscou retirar do centro da capital esses “indesejados”: os retirantes. Assim, foram criados os abarracamentos, que se localizavam ao redor do centro de Fortaleza, servindo para acomodar os retirantes. O mais famoso abarracamento foi o Alto da Pimenta, mais conhecida como Praça da Bandeira. Atualmente, a mesma praça é ocupada por diversas famílias, tornando-se um lugar de morada para indivíduos que vivem em situação de rua. Com o intenso processo de migração entre os anos de 1877 e 1879, mais de 100 mil sertanejos vieram para a capital. Foi um tempo em que as epidemias, como a varíola, vitimaram milhares de pessoas. Somente no dia 10 de dezembro de 1878, o Cemitério Lazareto da Lagoa Funda recebeu cerca de 1.004 cadáveres. Já era prática comum milhares de flagelados da seca migrarem para Fortaleza, vivenciando um quadro grotesco de fome, tuberculose, entre outros. A oligarquia Accioly nada fez e ainda chegou a proibir a imigração de cearenses para outros estados. O povo estava entregue a sua própria sorte. 18 Foram as oposições a Accioly que movimentaram as campanhas para o combate à seca e aos seus males, ganhando notoriedade a campanha do médico farmacêutico Rodolfo Teófilo que realizava uma campanha sanitária filantrópica, onde prestava esclarecimentos e aplicava a vacina nos populares fortalezenses. Com a construção das estradas de ferro, aproximam-se as localidades do sertão, passando a impulsionar o crescimento da cidade. Nesse período, Fortaleza contava com diversos serviços, como caixas postais, e a educação contou com os cursos superiores de Agronomia, Direito, Farmácia e Odontologia. A estrada de ferro ligava Fortaleza à cidade de Sobral, no ano de 1935, favorecendo o intercâmbio de mercadorias e culturas, levadas do interior para a cidade. “O espaço urbano não é apenas o lugar onde o cidadão vive, mora e trabalha. Nem só o local onde o capital obtém lucros. É, principalmente, o objeto em si da extração dos ganhos capitalistas” (Maricato, 1988, p. 07). Em 1880, chegava ao fim o período de endemia da varíola e grande parte dos imigrantes retornava ao sertão; outros preferiam migrar para a Amazônia, indo trabalhar nos seringais. As transformações ocorreram na sociedade brasileira no final do século XIX, marcando a paisagem das cidades. A partir de 1860, o poder público iniciava um processo de aformoseamento do espaço urbano, nesse período os conceitos de ruas e praças foram reformulados. “Novas idéias e tecnologias, além da mão de obra mais preparada, contribuíram para alterar a produção do espaço citadino que se construía” (MACIEL, 2004, p. 59). A cidade de embelezara com o primeiro cinema, em 1907, e o imponente Teatro José de Alencar, em 1910. “Idelfonso Albano cuidava do alinhamento das casas, alargamento de ruas e a instalação dos bondes elétricos, em 1914” (SILVA,1992, p. 27). O espaço urbano se modificou, „„tornandose um objeto a ser embelezado com máscaras de fácil decomposição” (MACIEL, 2004, p. 60). Foi nos anos 70 que o crescimento da cidade, antes com mais de um milhão de habitantes, torna-se visível. Principalmente, em termos de verticalização do espaço formal e da malha urbana, Fortaleza fez jus à sua condição de metrópole, assumindo a primazia absoluta diante do cenário cearense, seja pelo avanço e expansão urbano ou pela sua concentração demográfica. Esse fato se deve a influência que Fortaleza exerce na contratação das principais atividades comerciais, administrativas, portuárias, sociais, industriais e culturais do Estado. 19 Com o apoio da prefeitura e a destituição da participação popular, Fortaleza passa a valorizar o planejamento urbano. Começa a se discutir a transformação de Fortaleza em metrópole regional e suas áreas arredores em regiões metropolitanas. A área leste (Aldeota) sofre grande impulso, transformandose na área imobiliária da cidade. Segundo os estudos de Dantas (2009), a busca de novos espaços pela burguesia que residia nas imediações da área central implicou em alterações marcantes na cidade e na supervalorização de alguns bairros, como a Aldeota, Meireles, Praia de Iracema, Papicu, Bairro de Fátima e outros. O bairro mais valorizado da cidade, por ser preferido das elites e da alta classe, é o bairro da Aldeota. Por isso, tem-se o melhor atendimento no que se refere à infraestrutura de serviços urbanos e comerciais. O processo de verticalização se deu durante os anos 70: pequenos edifícios de apartamentos foram construídos na Aldeota e começou-se o processo de especulação imobiliária da Praia do Futuro. Lá a construção de grandes prédios não foi possível, ao contrário da Avenida Beira Mar, tendo como problema o altíssimo índice de maresia na faixa do litoral que vai da Praia do Farol à foz do rio Cocó, o que favorecia a corrosão das edificações, assim como dos bens materiais dos que habitavam, resultando na desvalorização dos imóveis. O crescimento urbano de Fortaleza ocorreu, tradicionalmente, através da ocupação dos loteamentos existentes, sobretudo nas periferias das cidades. Assim, formaram-se grandes aglomerados populacionais, tornando difíceis os atendimentos à população pelo sistema de serviços urbanos, bem como pelo comércio e pelas escolas, dificultando a integração social. O crescimento demográfico de Fortaleza está relacionado à formação de grandes favelas, onde reside a população pobre, sendo a maioria de imigrantes, ou melhor, gerações de imigrantes. Muitas favelas tiveram origem no século XIX, com a política dos abarracamentos, e na década de 30. Durante a década de 70, os administradores municipais e estaduais programaram uma política de conjuntos habitacionais, com o intuito de minimizar a real situação da época, tendo a construção destes iniciada em 1967, com o Conjunto Habitacional Prefeito José Walter. 20 Tabela 2 - Relação dos Conjuntos habitacionais construídos (Período: 1957/1976) Conjuntos Local Total de Habitações Habitacionais Albuquerque Lima Praia do Futuro 135 Aliance Mondubim 84 Almirante Garcia Dávila Aldeota Sul 145 Alvorada Água Fria 279 Beira Rio Barra do Ceará 412 Ceará (1ª etapa) Granja Portugal 966 Cidade 2000 Nova Aldeota 1.936 Esperança Entre Leste/Oeste e Sargento Hermínio 114 Francisco Sá I e II Francisco Sá 329 Guararapes Aldeota Sul 88 Nova Assunção Barra do Ceará 868 Palmeiras Messejana 732 Pref. José Walter Mondubim 4.742 FONTE: Dantas, et al, 2009. A mesma Fortaleza moderna, vista como a grande metrópole, esqueceu a sua identidade do passado, quando era aldeia, e parece não se reconhecer no presente. Se os ricos e pobres estão distantes socialmente, o que dizer da distância social entre os ricos e os que vivem na extrema pobreza? Aqueles que estão nas ruas, dormindo em bancos de praças a espera dos afortunados, esperando uma ajuda ou auxílio. Eles acreditam que os afortunados irão lhe dar mais esmolas, e, por isso, costumam vagar pelas ruas de Fortaleza. Portanto, uma cidade do porte de Fortaleza, vista como metrópole, e que tem o desenvolvimento que privilegia o território e o capital, não pode esquecer o ser humano e sua sobrevivência. De acordo com Menezes (2006), o engenheiro Silva Paulet criou um projeto de urbanização, no intuito de ordenar as ruas para uma expansão. A partir desse momento, as vias públicas passaram a ter um novo sistema, sendo rigorosamente paralelas em ângulo reto. As casas de taipa passaram a ser substituídas pelas de tijolo e alvenaria, surgindo em 1940 os primeiros parapeitos. A iluminação pública foi instalada somente em 1848, quando Fortaleza já tinha cerca 21 de 5.000 habitantes. Em 1880, foi a inauguração da Estação Central João Felipe, tendo, dessa forma, o início do transporte público e coletivo. Fortaleza contava com 25 bondes à tração animal, sendo substituído, em 1913, pelos bondes elétricos da Caerá Light and Tamways Power Co. Em 1920, Fortaleza expande ruas ao leste, para a Aldeota e para a Praia do Meireles; na Aldeota surgem as residências grandes e modernas, que abrigavam as famílias mais abastadas. No Meireles sugiram os grandes clubes da alta sociedade, como o Náutico, o Clube dos Diários, o Clube Ideal, entre outros. Parte do Patrimônio Arquitetônico de Fortaleza remete ao fim do século XIX e século XX. No final do século XIX, a Praça do Ferreira é a praça mais conhecida e frequentada de Fortaleza, sendo considerada o coração da cidade, além de palco de importantes acontecimentos da história. Seus bares, cinemas e cafés foram, por muito tempo, local de encontro dos cearenses, passando por ali ilustres personagens da história cearense, como Quintino Cunha, Boticário Ferreira, entre muitos outros. A Praça do Ferreira ainda hoje é rodeada por várias construções que marcaram época em Fortaleza, como a Farmácia Osvaldo Cruz e o Cine São Luís. Atualmente, a Praça possui uma versão moderna de quiosques e de um pequeno cajueiro, no mesmo lugar que existiu o Cajueiro da Potoca. Essa mesma praça é, atualmente, ocupada por várias “Marias” e “Josés”, pessoas que sobrevivem das ruas e que estão abandonadas nos bancos da praça. Infelizmente, esse número vem crescendo, e o pior: essa realidade está se escondendo e se adaptando no cotidiano de Fortaleza. A história da referida Praça vai ser discutida no quarto capítulo. Fortaleza completou 287 anos no dia 13 de abril, e durante esse tempo, a cidade passou por várias mudanças que transformaram a paisagem da capital cearense. Dentre eles, pode-se citar a construção do Jardim Japonês, na Avenida Beira Mar (TRIBUNA DO CEARÁ, 2012). Entre os anos de 2007 e 2010, o número de pessoas vivendo em situação de extrema pobreza no Ceará aumentou 51,64%. Nesse período, a quantidade de indivíduos que ganham até U$ 1 por dia (cerca de R$1,85), critério utilizado pelo Banco Mundial para estabelecer a pobreza extrema, subiu de 991.120 para 1.502.924. É um acréscimo de 511.804 indivíduos, que está abaixo da linha de miséria. 22 As pessoas em situação de rua, muitas vezes, vivem como estranhos E não participam da sociedade, fazendo o papel de não pessoa, implicando, assim, em uma relação de desrespeito frente aos indivíduos que vivem em uma sociedade atuante. O desamparo é uma característica do viver citadino. Conforme De Lucca (2007, p. 229), “a experiência de rua deixa gradativamente de ser uma experiência de sofrimento, transformando-se em situação de risco e insegurança. Infelizmente, ao invés das pessoas em situação de rua serem consideradas grupos que estão em risco, eles são vistos como risco à segurança da população. Segundo o censo do IBGE (2010), Fortaleza tem 2.452.185 habitantes, sendo a quinta capital do país em termos populacionais, ficando atrás dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Distrito Federal e Bahia. Fortaleza destaca-se pela atividade comercial, caracterizando-se como uma cidade terciária, tendo como maior destaque o turismo e o entretenimento. Mesmo diante de tantas mudanças, a situação de pobreza extrema em que vivem os indivíduos é gritante. Vive-se em uma sociedade onde as necessidades são estimuladas e criadas através do consumo, e, para muitos, essa é a única condição de inclusão na sociedade. O desejo por consumir está muito presente na sociedade. Vive-se em uma sociedade desigual, onde existem pessoas extremamente ricas e extremamente pobres. Fortaleza se revela pela concentração de riqueza em convivência com a pobreza, carregando marcas da desigualdade social. Com a expansão do capitalismo, a necessidade de produzir aumenta gerando uma sociedade de consumo, que dará origem ao desperdício e a segregação. Ao mesmo tempo em que aumenta a concentração de riqueza, aumentam também as favelas, a miséria, o desemprego e, principalmente, a violência urbana, crescendo o desequilíbrio e os conflitos sociais. “A cidade, ao mesmo tempo em que se apresenta de forma dinâmica e com setores de alto padrão, mostra também sua face miserável, tornando-se a expressão da contradição” (COSTA, 2007, p. 94). A cidade se tornou um espaço de contradições e lutas diárias, e um dos aspectos mais contraditórios é a paisagem urbana, considerada o choque das diferenças, na medida em que a cidade é “concentração de pessoas exercendo, em função da divisão social do trabalho, uma série de atividades concorrentes ou complementares, o que enreda uma disputa de uso” (CARLOS, 2008. p. 50). A mesma cidade que inclui também exclui aqueles que não fazem parte do mercado consumidor, sendo um mosaico de paisagens que revelam as desigualdades 23 sociais, materializadas no espaço urbano. As maneiras mais significativas das desigualdades revelam-se, também, nas formas de habitação. 2.3 Cidade: Direito de Todos A cidade surge de uma vontade humana e coletiva, resultado da organização da vida em sociedade. Foi o desejo do homem de enfrentar os desafios impostos pela natureza que favoreceu o surgimento de uma vida sedentária, em que cada um buscou um lugar para viver (MACIEL, 2004). Grande parte dos habitantes vive nas grandes cidades, tidas como palco de lutas e contradições. Com a expansão das cidades e das regiões metropolitanas, surgiram também as extensas periferias ocupadas por populações pobres, pessoas essas que foram expulsas dos grandes centros urbanos e partiram em busca de trabalho, renda e equipamentos urbanos. Fortaleza, atualmente, convive com essa realidade. A distribuição dos benefícios acarretados pelo processo urbano é historicamente injusta, resultado de décadas de descaso, de preconceito e, principalmente, atuação privilegiada voltada para uma minoria. Segundo Pesquisa Nacional por Amostra em Domicílios4 (PNAD), de 2006, cerca de 83% dos brasileiros vivem em cidades. Em 2010, o país possuía cerca de 6.329 aglomerados subnormais, ou seja, assentamentos irregulares conhecidos como favelas, invasões, grotas, vilas entre outros. Esse aglomeramento nos centros urbanos é resultado de um desenvolvimento econômico que, desde os meados do século XX até os dias atuais, vem diminuindo os empregos no campo, ocasionando a migração em busca de melhores condições de vida. A tão sonhada melhora de vida na cidade, não veio acompanhada das politicas públicas. Morar na área urbana significa enfrentar poluição, insegurança, falta de saneamento básico, violência e, principalmente para muitos, a falta de moradias. Em realidade, a perspectiva radical do „direito a cidade‟, no Brasil pode ser facilmente confundida com os direitos básicos, uma utopia diluída nas lutas por 4 A PNAD considera aglomerados subnormais o número de domicílios ocupados em favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros assentamentos irregulares para o conjunto do País, Grandes Regiões, Unidades da Federação e municípios. 24 direitos elementares da população, como água, esgoto e transporte escolar. É um „direito à cidade‟, mínimo como a cidadania brasileira: e „possível‟ (CARLOS, 2008). Martins (2006, p. 134) define o direito à cidade a partir das concepções do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), pilar aglutinador do amplo espectro de agentes e de instituições sociais envolvidas na bandeira e na causa popular das reformas urbanas. O direito á cidade e à cidadania é concebido como direito fundamental e concerne à participação dos habitantes das cidades na definição legitima do destino que estas devem seguir. Incluir o direito à terra, aos meios de subsistência, à moradia, ao saneamento ambiental, à saúde, à educação, ao transporte público, à alimentação, ao trabalho, ao lazer e à informação. Abrange ainda o respeito às minorias, a pluralidade étnica, sexual e cultural e o usufruto de um espaço culturalmente rico é diversificado, sem distinções de gênero, etnia, raça, linguagem e crenças. (MARTINS, 2006, p. 134). O direito à cidade passou a fazer parte do direito humano universal protocolado pela Carta Mundial do Direito à Cidade. Essa carta foi elaborada pelo Fórum Nacional da Reforma Urbana, e aborda três princípios fundamentais, sendo eles: o exercício pleno da cidadania; a gestão democrática da cidade; e a função social da propriedade. Pode-se pensar um direito de cidadania, os articulando com os direitos humanos. Todos os habitantes que se encontram nas áreas urbanas devem ter seus direitos garantidos, sendo eles direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, permitindo, assim, que todos aproveitem com igualdade, tendo acesso aos serviços públicos domiciliares e urbanos. Seus direitos civis e políticos também devem ser garantidos pela liberdade de ação e organização, com respeito à variedade das culturas, podendo qualquer pessoa viver sem discriminação de qualquer tipo, seja de gênero, raça, etnia ou orientação sexual, no intuito de preservar a memória e a identidade cultural de cada indivíduo. Em 2003, foi criado o Ministério das Cidades, formado por organizações sociais, Organizações Não Governamentais (ONG‟s), entidades profissionais, acadêmicas e de pesquisa, entidades sindicais e órgãos governamentais. Esses atores sociais e suas ações orientaram o desenvolvimento sustentável para as cidades de forma participativa, sempre respeitando as diferenças. Já surgiram conquistas importantes em consequência dessa luta, como documentos e carta de princípios. Destaca-se o Tratado Por Cidades, Vilas e Povoados, Justos, 25 Democráticos e Sustentáveis (1992); a Carta Europeia dos Direitos Humanos na Cidade (1992), e a Carta Mundial do Direito à Cidade (2005). Esses documentos têm como objetivo influenciar os modos de governar das políticas públicas sejam elas regionais ou nacionais, de modo que exista a democracia com o objetivo de reverter o quadro de desigualdade social. No Brasil, esse movimento tinha como bandeira de luta a reforma urbana, ganhando força na redemocratização brasileira, em 1985. Uma das principais conquistas em relação à politica urbana na Constituição Brasileira foi à promulgação do Estatuto das Cidades- lei nº. 10.257 (2001). Sob o direito à cidade, o Ministério das Cidades (2003) aborda como missão o “combate as desigualdades sociais, transformando as cidades em espaços mais humanizados, ampliando o acesso da população à moradia, ao saneamento e ao transporte”. A partir do advento do Estatuto das Cidades, ficou prevista a aplicação dos princípios das funções sociais da cidade e da propriedade. Isso significa dizer que as atividades econômicas e o direito à propriedade urbana devem atender, em primeiro lugar, as necessidades humanas, tendo como base os direitos humanos e partindo de um processo participativo e democrático, para depois atender aos interesses da burguesia. Prevê o fortalecimento e a participação de municípios em politicas públicas que assegurem os direitos aos seus habitantes, com participação popular, inclusive dos setores que mais sofrem com desigualdades econômicas e sociais. A Constituição Federal, em seu artigo 5°, incisos XXII e XXIII, dispôs que: “É garantido o direito de propriedade em todo território nacional, mas também estabeleceu que toda propriedade atenderá a sua função social. Alcança-se, com este importante princípio, novo patamar no campo do direito coletivo introduzindo a justiça social no uso das propriedades, em especial no uso das propriedades urbanas. E é o Estado, na sua esfera municipal, que deverá indicar a função social da propriedade e da cidade, buscando o necessário equilíbrio entre os interesses público e privado no território urbano. Assim, a propriedade urbana, cujo uso, gozo e disposição pode ser indesejável ao interesse público e que, o sendo, interfere diretamente na convivência e relacionamento urbanos deverá, agora, cumprir sua função social”. Tais legislações têm o compromisso de criar instrumentos políticos e jurídicos, com o objetivo de transformar as cidades brasileiras, visando minimizar as desigualdades sociais e possibilitando uma humanização das relações sociais. 26 Podem-se citar como exemplo dessa nova forma política, os Conselhos, as Conferências das Cidades e o Orçamento Participativo. Os maiores problemas enfrentados nas cidades estão relacionados com a habitação. Todas apresentam contrastes, marcadas por desigualdades, sem acesso à moradia, educação, alimentação, trabalho, entre outros. Esse cenário é mais forte nos países em desenvolvimento, como o Brasil, pois se está diante de uma economia voltada para a produtividade e lucro, que consiste na lógica do capitalismo. Assim, promove-se a construção de avenidas, edifícios e ruas, não se preocupando em garantir os direitos e atender as necessidades de seus habitantes. Faz-se necessário uma política habitacional, em que os conjuntos populares não sejam construídos somente nas periferias, com dificuldades, especialmente, de transporte público. Ao conversar com um morador de rua, durante a pesquisa de campo, o 5 Sr. José (2013), de 51 anos, que mora nas ruas há 21 anos, o mesmo aborda que: As maiores prioridades dos moradores de rua são: habitação, segurança e um órgão responsável para capacitação. Nós estamos entregue as baratas. Os governantes não estão nem aí pra nós. Existe muita gente que ganha em cima dos moradores de rua, os mercenários. Até ganhei uma casa, mas ficava muito longe do meu trabalho, eu tinha que acordar às quatro horas da manhã, lá era muito perigoso pra pegar o ônibus, estava arriscando minha vida. Fora isso, ainda tinha que pagar uma taxa de condomínio, pois lá tinha cerca elétrica, tinha que pagar água e luz. Você sabe, né, uma pessoa que ganha pouco não tem condições. A assistência „jogou nós‟ lá e não tivemos nem um acompanhamento social por parte dela. Então vendi e voltei pra rua de novo, mas não foi só eu: de sete moradores só um tá lá morando hoje. Como o Sr. José (2013), existem vários outros moradores de rua na mesma condição: o desamparo passa a se característica do viver citadino. Atualmente, os moradores de rua vêm ganhando espaços com o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). Em 2002, Fortaleza tinha cerca de 4.000 moradores de rua; em 2013, estima-se que esse número passa de 5.000 moradores de rua (DIÁRIO DO NORDESTE, 2013). Nas palavras do Sr. José (2013) “as ruas foram feitas pra namorar, passear, brincar e não pra se morar”. 5 O Sr. José, como os outros nomes citados no trabalho, são nomes fictícios que foram utilizados para os entrevistados durante a pesquisa de campo. 27 Os moradores de rua são vistos como estranhos que não fazem parte da sociedade, implicando em uma relação de desrespeito frente aos indivíduos. Existe uma tendência de elevação dos moradores de rua, uma vez que a vida coletiva e a vida privada estão ligadas à lógica do mercado, transformando a educação, a habitação, e a saúde em mercadorias. Ao invés dos moradores de ruas serem grupos que estão em risco, eles são vistos como o próprio risco. (COSTA, 2005). O II Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) tem como um dos principais objetivos a “sensibilização de toda sociedade brasileira com vistas à construção e consolidação de uma cultura de respeito aos direitos humanos” (BRASIL, 2002, p. 03). O programa implica na garantia dos direitos à moradia, educação, saúde, dentre outros. Em se tratando de moradia, está longe a garantia no aspecto de espaço, privacidade, segurança, abastecimento de água, esgoto, luz, razão pela qual é fundamental, segundo o PNDH II (2002, p. 28), “criar, manter e apoiar programas de proteção e assistência aos moradores de rua, incluindo abrigo, orientação educacional e qualificação profissional”. O Ministério das Cidades veio propor uma política urbana inovadora, com a responsabilidade de integrar os setores de infraestrutura, saneamento, habitação, planejamento urbano, dentre outros. O intuito era integrar as políticas, levando em consideração o direito de cada cidadão, a sua qualidade de vida e, principalmente, assegurar o seu direito à cidade. Tais preocupações estão ligadas as orientações da Politica Nacional de Assistência Social (PNAS); um dos intuitos da PNAS (2004) é tornar visíveis os setores da sociedade brasileira, tradicionalmente tidos como invisíveis ou excluídos das estatísticas. Vários são os lugares em Fortaleza onde a miséria se efetiva. Pode ser na Aldeota, passando por viadutos, terminais rodoviários, até chegar às ruas e praças do centro. No próximo capítulo, serão abordados os moradores de rua e as respectivas políticas para eles. 28 3 3.1 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA INSERIDA NA POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA E NA POLÍTICA NACIONAL PARA A POPULAÇÃO DE RUA População em Situação de Rua: Uma Breve Contextualização Com a Revolução Industrial, um maior número de pessoas passou a vender o único bem que possuíam: a sua força de trabalho; formaram, então, a classe trabalhadora, ou proletariado, que surgiu do movimento de organização dessa classe contra o modo de produção capitalista, que cada vez mais fazia com que o número de sobrantes aumentasse (VICTOR, 2013). São tidas como “sobrantes” as pessoas que estão fora do mercado de trabalho, em consequência da redução dos postos de trabalho, da competitividade e da concorrência exigida pelo mercado capitalista, fatores esses que contribuem para o aumento da desigualdade social. Para o individuo prover sua sobrevivência, tornase necessário a sua inserção no mercado de consumo, pois se os mesmos não fazem parte do processo de circulação de mercadoria, automaticamente sobram, ou seja, passam a constituir os “sobrantes da sociedade”. É nesse contexto que estão inseridas a população em situação de rua. Para Escorel (1999, p. 34), “a Revolução Industrial e a implantação definitiva e dominante do modo de produção capitalista encontraram respaldo nas mudanças de representação social da pobreza para estabelecer regulamentos e normas punitivas e criminalizantes”. Para o enfrentamento desse modo capitalista, as lutas sociais e a organização dos trabalhadores proporcionaram o surgimento de reuniões políticas sobre as condições de vida e trabalho. Ao se sentirem pressionados, os governos decidem pela elaboração de legislações protetoras, com o intuito de dar respostas aos trabalhados insatisfeitos. As ações públicas de proteção social favoreciam aos desempregados, prestando assistência social às pessoas que não tinham condições de trabalhar para manter seu sustento, tidos como inválidos. Para Castel (1998), antes da Revolução Industrial e de sua demanda de mão de obra, a pobreza estava relacionada ao mercado de trabalho. Algumas pessoas formaram grupos e eram conhecidos como mendigos, pois existiam pessoas inválidas e incapazes, que não tinham condições físicas e/ou mentais para trabalhar, ficando a mercê da proteção e da caridade. Mas também tinham aqueles 29 que se aproveitavam da caridade das pessoas, indivíduos que não tinham nenhum problema físico ou mental, que estavam aptos a exercer suas atividades, mas preferiam pedir esmolas para sobreviver. “A grande preocupação é ver que esse fenômeno se agrava cada vez mais e bem mais rápido do que a capacidade de desenvolver, implementar e efetivar os trabalhos e as políticas sociais para esse público” (VICTOR, 2013, p. 14). Esse agravamento é consequência do aumento de massa sobrante da população, pois o sistema capitalista apenas visa o aumento do lucro, sem se importar com as consequências atribuídas à sociedade. Com o processo da industrialização, veio o desenvolvimento tecnológico, ocasionando desemprego e desigualdade social, pois muitos trabalhadores foram tirados de seus campos de trabalho, sendo substituídos por máquinas. Dessa forma, geravam riquezas para uma pequena parcela da sociedade, enquanto muitos trabalhadores possuíam apenas o básico para sobreviver; outros não tinham nem o básico, convivendo diariamente com a fome. De acordo com Silva (2009, p. 258): [...] O aumento da produtividade do trabalho não elimina a produção da mais-valia; ao contrário é uma forma de viabilizá-la pela contração do tempo de trabalho necessário à produção do equivalente ao salário e aumento do tempo excedente (trabalho não pago), que se traduz em lucro para o capitalista. O processo de industrialização submete a classe trabalhadora aceitar as condições precárias de trabalho, recebendo baixos salários, insuficientes para sua subsistência, acarretando em desemprego e contribuindo para a formação do exército de sobrantes. Muitos passam a viver nas ruas, tornando-se invisíveis aos olhos da sociedade e aumentando a desigualdade social. “As mudanças no mundo de trabalho são responsáveis pelo aumento dos „trabalhadores sem trabalho, ou seja, dos miseráveis e dos excluídos” (VICTOR, 2013, p.16). Para enfrentar a nova problemática social de exclusão, são necessárias novas estratégias de sobrevivência da classe trabalhadora, sendo que as políticas de seguridade social eram baseadas na centralidade do trabalho assalariado, e, se essa classe não tinha salário, ficavam sem condições de sobrevivência (CASTEL, 1998). Conforme Silva (2009, p. 23): A redução dos postos de trabalho e o incremento do uso de tecnologias avançadas para elevar a produtividade das empresas não lhe tiraram a 30 capacidade peculiar de gerar riquezas; a fonte de riqueza no capitalismo contemporâneo continua sendo o trabalho não pago. Uma das formas de lucro do capitalismo vem da tecnologia, que tem o objetivo de acelerar a fabricação de mercadorias em um menor tempo, gerando, assim, inúmeros desempregos. O que antes necessitava de mais trabalhadores para o processo de fabricação, agora é fabricado em menos tempo e com menos mão de obra. Com a modernização das máquinas, o investimento em tecnologia fez com que a mão de obra perdesse o valor, tornando o trabalho do indivíduo precarizado e sem valor, gerando vulnerabilidade social (VICTOR, 2013). Para garantirem seus empregos, os trabalhadores teriam que aprender a executar várias atividades, ou seja, teriam que ser trabalhadores polivantes. Para Silva (2009, p. 20), [...] um perfil de trabalhador capaz de desenvolver simultaneamente diversas atividades, operar várias máquinas e de utilizar intensamente a sua capacidade intelectual, em favor do capital; [...] formou-se uma gigantesca massa populacional sobrante, uma massa excedente às necessidades médias de acumulação do capital, o que Marx (1988b) denomina superpopulação relativa ou exército industrial de reserva. O processo de modernização e o crescimento da metrópole ocasionaram um extenso fluxo migratório para as cidades, aumentando o número de pessoas que buscavam empregos, querendo se inserir no mundo do trabalho precário. Essas pessoas se submetiam a qualquer condição de trabalho, no intuito de prover sua subsistência, e os que não conseguiam emprego começaram a pensar em outras estratégias de sobrevivência, e uma delas foi à mendicância. Para essa população fora do mercado formal, o que lhes restaram foi à busca por outras maneiras de suprir suas necessidades; muitos foram coletar materiais para reciclagem. O sistema econômico produz esses objetos descartáveis, o trabalho desses indivíduos no campo da informalidade é desvalorizado, a sociedade os descriminam e esquecem que a coleta de material reciclável é de extrema importância, principalmente, para as indústrias. Sobre isso, Burstyn (2003, p.8) afirma que: [...] o sistema global produz pessoas descartáveis, que passam a viver do descarte do consumo. Como se os seres humanos fossem lixo, vivendo na rua e da rua, do lixo dos ricos. O descarte social e o descarte do consumo se unindo, um vivendo do outro. 31 As transformações ocorridas ao longo dos séculos em relação aos sistemas social, econômico e político da sociedade, contribuíram para que os atores também se transformassem, e não seria diferente com a população em situação de rua (VICTOR, 2013). Transformações estas que foram acarretadas pelo intenso processo de globalização, afetando as relações econômicas e sociais. Alguns grupos que fazem parte da população em situação de rua são: catadores de materiais recicláveis, flanelinhas, albergados, pedintes, biscateiros, andarilhos, crianças e adolescentes que fugiram de casa, hippies e pedintes de Natal (passam de um a dois meses na rua para receberem doações de caridade na época do Natal) (BURSZTYN, 2003). Geralmente, eles estão localizados no centro da cidade, por ser um local de consumo da sociedade e por oferecer abrigo durante a noite, ao fechar das lojas. Com a globalização e o avanço tecnológico, muitas são as consequências negativas, transformando as relações sociais e econômicas do mundo, configuradas na reprodução de desigualdades sociais e na falta de garantias para uma grande parcela da população. A desigualdade de distribuição de bens sociais, a discriminação, o desrespeito às diferenças e a involução de valores, fazem parte do pensamento globalizado e do processo econômico em curso. Pessoas estão vivendo por meio de caridade ou de estratégias que elas criam para sua sobrevivência em sociedade. Mas esses serviços não são suficientes para atender a demanda existente, além de também não serem idealizados. Ter uma moradia digna é um direito de todos assegurado pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, no art.6°. Sem ter um lugar para morar, muitos passam a ocupar locais públicos como moradia, fragilizando a ressocialização desses indivíduos. A população em situação de rua é vista como se fosse formada por indivíduos perigosos que comprometem a segurança da sociedade. Bursztyn (2003, p. 20) diz que: [...] aumentaram as disparidades e as incertezas, ao passo que a pobreza extrema se acentuava. Assim, parcelas das populações que viviam no patamar inferior dos circuitos econômicos são jogadas para fora do sistema. São excluídas do processo de geração de riqueza (emprego) e da distribuição de seus frutos (consumo). Sobrevivem, mas valendo-se apenas de um acesso precário a mecanismos públicos, com a assistência social e 32 os serviços de saúde e, [...], a caridade privada, a filantropia ou entidades assistenciais religiosas. Infraestrutura privada, como habitação, vai-se tornando algo distante, inacessível. Trabalham, muitas vezes, mas não são empregados. Obtêm alguma renda, mas de forma assistemática e pouco convencional. Transformaram o espaço público – as ruas- em seu universo e de sobrevivência privado. Às vezes tornam-se perigosos, na medida que praticam delitos [...]. Cada morador de rua têm diversos motivos que os levaram a estar nessa situação, seja ela temporária ou permanente. Alguns deles vieram com o processo de migração, pela dificuldade de inserção no mercado de trabalho, pelo rompimento com os vínculos familiares e pelo uso de substâncias psicoativas(VICTOR, 2013). Ressalta-se que o termo “morador de rua” é utilizado para pessoas que estão em situação permanente nas ruas, enquanto que “população em situação de rua” é usado para os que estão temporariamente nas ruas, sendo considerado algo que pode ser superado com sua inserção no mercado formal de trabalho. O processo de migração do campo para a cidade é um dos principais motivos que levam as pessoas à situação de rua. Geralmente, eles chegam à cidade em busca de emprego ou apenas com promessas, e não tendo nenhum recurso financeiro, acabam ficando sem moradia, passando a ocupar lugares públicos como ruas, praças parques, viadutos, marquises, entre outros, transformando esses lugares em locais de moradias (BURSZTYN, 2003). No Brasil, o processo de migração da zona rural para a zona urbana teve alguns momentos marcantes: a época do “milagre econômico” brasileiro, por exemplo, quando a população saía do campo com a perspectiva de conseguir emprego com o crescimento industrial (VICTOR, 2013). Com as intensas transformações econômicas da época, viver na cidade significava ter maiores possibilidades de emprego e garantia de subsistência. Outro momento foi a chamada “década perdida”, quando ocorreu a diminuição do êxodo rural, consequência da diminuição da população do campo, que, na década anterior já havia migrado para a zona urbana (BURSZTYN, 2003). Nas áreas metropolitanas que foram ocupadas pela população socialmente excluída ocorreu a periferização da pobreza, a diminuição da renda dos indivíduos e a precariedade dos serviços urbanos prestados a essas comunidades. “Essa população vive em situação de risco, pois a ocupação é feita de maneira desordenada e essas áreas ficam com o número elevado de pessoas” (VICTOR, 2013, p. 260). 33 A população em situação de rua está inserida nesse contexto. Grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades, mas que têm em comum a condição de pobreza e a falta de pertencimento à sociedade formal (COSTA, 2005). No decorrer de suas vidas, algum infortúnio os atingiu, seja o rompimento dos vínculos familiares, o desemprego, problemas com álcool e/ou drogas. Aos poucos vão perdendo suas perspectivas de vida, passando a ter as ruas como espaço de sobrevivência e moradia. Essa realidade é característica do processo de exclusão social existente no Brasil. A exclusão social tem origens econômicas, mas se caracteriza, também, pela falta de pertencimento social, perda da autoestima, dificuldade de acesso à informação e, principalmente, a falta de perspectiva futura. Bursztyn (2003, p. 146-147) afirma que “no Brasil o fenômeno da exclusão social ganhou grandes proporções devido à expansão do desenvolvimento econômico sem o desenvolvimento social, deixando as pessoas em situação de pobreza”. A população em situação de rua compartilha de diversas estratégias para sobreviver no espaço urbano, seja inserido no trabalho informal ou como pedinte. Vários fatores identificam a população em situação de rua, por isso, a formação dessa população é heterogênea. Alguns autores têm conceitos diferenciados quanto ao fenômeno população em situação de rua. De acordo com o Artigo 1°, parágrafo único da Política Nacional para a População em Situação de Rua, define-se que: População em Situação de Rua é o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. (BRASIL, 2009). Para Escorel (1999, p. 17) “a população de rua se distingue entre uma minoria de grupos familiares que está na rua, e a maioria homens sós, que andam em grupo, em duplas ou sozinhos, para os quais a família está distante e é apenas referência”. Para a autora, a população em situação de rua consiste no rompimento dos vínculos familiares. 34 Para Sebes (1992 apud Bursztyn 2003, p. 152), “população em situação de rua são aqueles que estão nas ruas circunstancialmente, temporariamente e permanentemente, ou entre os que estão na rua e os que são da rua”.Já para Rodrigues e Silva (1999 apud Burstzyn 2003, p. 153), “(...) população em situação de rua é o conjunto daqueles que vivem permanentemente nas ruas, que dependem de atividade constante que implique ao menos um pernoite semanal na rua”. Diante disso, pode-se compreender por população em situação de rua, as pessoas que tiveram seus vínculos familiares rompidos, e que, por algum motivo, seja pelo uso de álcool e/ou drogas, por falta de emprego ou por descaso do poder público, estão vivendo na pobreza e sofrendo preconceito. Pessoas que não conseguem ganhar o mínimo para garantir sua alimentação e moradia digna, passando a ocupar temporariamente ou permanentemente as ruas e os bancos das praças. De acordo com Bulla (2004, apud, Prates, 2004, p.113-114) “a perda de vínculos familiares, decorrente do desemprego, da violência, da perda de algum ente querido, alcoolismo, drogadição, entre outros fatores é o principal motivo que levam as pessoas a morarem nas ruas”. São histórias de sucessivas perdas que, em muitos casos, estão associadas ao uso de álcool e drogas, não só pelo indivíduo que está na rua, mas pelos familiares. O Sr. Francisco (2013), 44 anos, que retornou para as ruas há quatro meses relata que: “(...) voltei a viver nas ruas desde que mataram meu filho, há quatro meses. Voltei a beber novamente, quando o vi no caixão. O mundo não teve mais sentido pra mim”. Nas ruas também se encontra pessoas que chegaram às grandes cidades e não conseguiram emprego ou um local para morar, como o caso do Sr. Antônio (2013), 47 anos, que está em situação de rua há dois anos: [...] vim de Recife pra cá para trabalhar como segurança ou vigia, pois já tenho experiência na carteira. Eu trabalhava aqui em Fortaleza em uma determinada distribuidora de remédios como vigia, mas minha esposa precisou fazer uma cirurgia no Recife e não tinha quem ficasse com ela. Então, pedi as contas e fui para Recife. Lá não consegui emprego e não queria ficar dependendo dela, aguentando humilhações de parentes. Resolvi voltar para Fortaleza, só que não consegui mais emprego aqui, e o único lugar que tive pra ficar foi a rua. Aqui estou, há dois anos, mas sei que essa situação é temporária, todos os dias vou procurar emprego [...]. Para Bulla (2004, apud, Prates, 2004, p.113-114), “de uma forma geral, as pessoas em situação de rua apresentam-se com vestimentas sujas e sapatos 35 surrados, denotando a pauperização da condição de moradia na rua”. Nas ruas não se encontram somente pessoas sujas, com sapatos surrados. Durante a pesquisa de campo, foi possível conhecer e ter uma aproximação com várias pessoas que estão em situação de rua, sendo possível afirmar que grande parte dessas pessoas têm o cuidado com sua aparência e se preocupam com sua higienização. Existem alguns moradores de rua que, realmente, vivem sujos, mas não se pode generalizar, por ser uma forma preconceituosa de olhar a realidade na qual essas pessoas estão inseridas. Conforme a Pesquisa Nacional Sobre a População em Situação de Rua (2008), “a população em Situação de Rua não é incluída nos censos demográficos brasileiros e de outros países, fundamentalmente, porque a coleta de dados dos censos é de base domiciliar”. Trata-se de uma população sem visibilidade social, pois os principais órgãos responsáveis por realizar pesquisas, como o IBGE, não oferecem pesquisas específicas sobre a população em situação de rua. De acordo com o Sumário Executivo da Pesquisa Nacional sobre a População de Rua (2007) e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2008, foram contabilizadas 31.922 pessoas em situação de rua vivendo em calçadas, praças, rodovias, etc. O Sumário Executivo (2007) aborda as seguintes características socioeconômicas: A população em situação de rua é predominantemente masculina (82%). Mais da metade (53%) das pessoas adultas em situação de rua possui entre 25 e 44 anos. 39,1% das pessoas em situação de rua se declararam pardas. Essa proporção é semelhante à observada no conjunto da população brasileira (38,4%). Declararam-se brancos 29,5% (53,7% na população em geral) e pretos 27,9%, (apenas 6,2% da população em geral). Assim, a proporção de negros (pardos somados a pretos) é substancialmente maior na população em situação de rua. Os níveis de renda são baixos. A maioria (52,6%) recebe entre R$ 20,00 e R$ 80,00 semanais. Não existem pesquisas que retratem as características desse público com abrangência nacional. O próprio Censo, realizado pelo IBGE (2000), bem como as pesquisas de amostragem domiciliar de mesmo instituto, não computam essa 36 população de rua, em função da sua falta de moradia. Os poucos dados existentes são obtidos em pesquisas realizadas por municípios ou por universidades (COSTA, 2005). A atenção do Poder Público em relação ao segmento populacional é recente, sendo consequência de vários anos de lutas sociais. O desinteresse do Estado reflete a contradição com que a sociedade e a opinião pública tratam o tema, ora com compaixão, preocupação e assistencialismo, ora com preconceito e com indiferença (COSTA, 2005). Essa realidade começou a mudar no final da década de 1980 e início dos anos 1990, com a Constituição Federal de 1988, que instituiu os direitos sociais como direitos fundamentais de todo cidadão, e com a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que veio regulamentar a Constituição Federal, reconhecendo a Assistência Social como uma política pública. 3.2 Política Nacional de Assistência Social A Constituição de 1988 instituiu a Assistência Social como uma política social não contributiva, voltada para aqueles cujas necessidades materiais, sociais e culturais não podiam ser asseguradas, quer pelas rendas do trabalho, quer pela condição geracional, seja ela pela infância e velhice, ou por necessidades físicas e mentais (MOTA, 2008). Sua conjuntura se formou nos meados da década de 1990, sendo marcada por crises políticas e econômicas, atingindo, principalmente as sociedades periféricas. A Politica Nacional de Assistência Social (PNAS) foi elabora em 2004 e o público dessa política são cidadãos e grupos que se encontram em situação de risco. Buscou-se garantir proteção para todos que dela necessitam, sem contribuição, permitindo a melhoria e a ampliação dos serviços de assistência. A PNAS tem como objetivos: Prover serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica, em especial para famílias, indivíduos e grupos que deles necessitarem. Contribuir para a inclusão e a equidade dos usuários e grupos específicos, ampliando o acesso aos bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais, em áreas urbana e rural. 37 Assegurar que as ações no âmbito da Assistência Social tenham centralidade na família, e que garantam a convivência familiar e comunitária. A PNAS implementou em 2005 o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que tem como objetivo a garantia de políticas públicas para a população que se encontra em situação de vulnerabilidade. Seu modelo de gestão é descentralizado e participativo, tendo como prioridade a ampliação de serviços, programas, projetos e benefícios voltados para as famílias e para os indivíduos que dela necessita. O SUAS materializa o conteúdo da LOAS: “a Assistência Social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que prevê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas” (BRASIL, 1993). Para cumprir o que é estabelecido pelo SUAS, em 13 de julho de 2007 foi criada a Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS). Com a mudança de gestão em 2013, a secretaria passou a ser Secretaria de Trabalho, Desenvolvimento Social e Combate à Fome (SETRA). A Política de Assistência Social que institui o SUAS define dois patamares de proteção social: a básica e a especial, de modo a garantir as seguintes seguranças: segurança de sobrevivência, de rendimento e de autonomia; acolhida e convívio ou vivência familiar. (MOTA, 2008). A proteção social básica fica sob a responsabilidade dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS). Como exposto na PNAS, são considerados serviços de proteção básica aqueles que têm a família como unidade de referência, ofertando um conjunto de serviços locais que visam à convivência, a socialização e o acolhimento de famílias cujos vínculos familiares e comunitários não foram rompidos, assim com a promoção de sua integração ao mercado de trabalho. (MDS, 2004,). A proteção social especial fica sob a responsabilidade dos Centros de Referências Especializado da Assistência Social (CREAS). Como exposto na PNAS, buscam-se proteger famílias e indivíduos em situação de direitos violados, sem consequência de abandono, maus tratos, abuso sexual, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, entre outros. Suas ações visam à qualidade na atenção protetiva e de reinserção, a partir de duas modalidades de atenção: média 38 complexidade, quando os vínculos familiares e comunitários não são rompidos; e alta complexidade, quando os vínculos são rompidos e há perda de referência ou ameaça com necessidade de retirada do núcleo familiar e/ou comunitário. A criação do SUAS pode viabilizar uma normatização, organização (no sentido de romper com a sobreposição de papéis), racionalização e padronização dos serviços prestados, inclusive considerando as particularidades regionais e locais (MOTA, 2008). Para o Sr. João6 (2013), 46 anos, morador de rua, “a assistência não existe. Estamos desassistidos por ela, essa é a verdade”. O Estado tem a função de garantir os direitos dos usuários, não podendo se omitir diante desse relato, pois é de sua responsabilidade proporcionar e garantir acesso aos serviços oferecidos pela Assistência Social, assim como a outros serviços públicos. A Assistência Social, como política de proteção social, tem como princípio “garantir a todos que dela necessitam, e sem contribuição prévia, a provisão dessa proteção” (BRASIL, 2004). A proteção social tem como principais características: primeiro, as pessoas; segundo, as circunstâncias dessas pessoas; e terceiro, o núcleo de apoio. Sendo um elemento da Política Social de Assistência Social, tem o dever de garantir os benefícios: a segurança da sobrevivência (de rendimento e de autonomia), que é garantida para todos, independente de sua situação; seja para desempregados, pessoas com deficiência física ou mental, idosos, etc. A PNAS tem o intuito de propagar a visibilidade “daqueles setores da sociedade brasileira tradicionalmente tidos como invisíveis ou excluídos das estatísticas: população em situação de rua, adolescentes em conflitos com a lei, indígenas, quilombolas, idosos e pessoas com deficiência física” (VICTOR, 2013). Em consonância com a LOAS, a PNAS (2004) é regida pelos seguintes princípios: I - Supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica; II - Universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas; III - Respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e 6 Sr. João, como os outros nomes citados no trabalho, são nomes fictícios que foram utilizados para os entrevistados durante a pesquisa de campo. 39 comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade; IV - Igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais; V - Divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão. A PNAS (2004), baseada na Constituição de 1988 e na LOAS, tem as seguintes diretrizes: I - Descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social, garantindo o comando único das ações em cada esfera de governo, respeitando-se as diferenças e as características sócio territoriais locais; II – Participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis; III – Primazia da responsabilidade do Estado na condução da Política de Assistência Social em cada esfera de governo; IV – Centralidade na família para concepção e implementação dos benefícios, serviços, programas e projetos. A PNAS existe para assegurar o atendimento, garantindo os direitos sociais através da proteção social, seja ela básica ou especial, buscando chegar até aqueles indivíduos que estão vivendo na vulnerabilidade social. Enquanto política social, está na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Assistência Social, regulamentada desde 2004, sendo referenciada pela PNAS, que orienta sua implementação. O SUAS passa a atuar nos níveis de proteção social voltada às populações em situações de risco. As políticas públicas abordam uma perspectiva de inclusão, fazendo uso de diversos mecanismos, com o intuito de amenizar as situações de risco que os indivíduos possam encontrar. É crescente o número de desempregados no mercado formal e o acesso às proteções estão mais restritas, como é o caso da população em situação de rua, pois essas pessoas não contam com condições mínimas para sobreviver, e, assim, seus acessos aos serviços públicos se tornam cada vez mais restritos. Para assegurar os direitos dessa população que vive em situação de rua, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e seu comitê intersetorial, instituíram a Política Nacional para a População de Rua. Além das políticas públicas, torna-se necessária uma conscientização da sociedade sobre os seus direitos. 40 3.3 Política Nacional Para a População em Situação de Rua e Suas Formas de Inclusão Social Em dezembro de 2009, o presidente do país, Luiz Inácio Lula da Silva, decretou a Política Nacional para a População de Rua, no intuito de assegurar o direito de acesso às politicas públicas. Essa política é fruto das reflexões e debates do grupo de Trabalho Interministerial para a Elaboração da Política Nacional de Inclusão da População em Situação de Rua 7. Composto pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Ministério das Cidades, Ministério da Educação, Ministério da Cultura, Ministério da Saúde, dentre outros ministérios, além da fundamental participação de representantes do Movimento Nacional de População de Rua (MNPR) (MDS, 2008). Conforme a PNPR (2009) Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. A Política Nacional estabelece diretrizes e rumos, possibilitando a inclusão e reintegração destas pessoas à sociedade e ao convívio familiar, garantindo o acesso pleno aos seus direitos assegurados na Constituição. Além da igualdade e equidade, têm como princípios: I - Respeito à dignidade da pessoa humana; II - Direito à convivência familiar e comunitária; III - Valorização e respeito à vida e à cidadania; IV - Atendimento humanizado e universalizado; e V - Respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência. (PNPR, 2009) 7 Politica Nacional para a População em Situação de Rua: Decreto 7.053, de 23 de dezembro de 2009. 41 Os profissionais que trabalham na realização de atividades seguindo o que está nos princípios da PNPR, têm o objetivo de realizar atendimentos para os seus usuários, que são as pessoas em situação de rua, assegurando o direito de essas pessoas acessarem os serviços oferecidos pelas políticas públicas (VICTOR, 2013). Esses profissionais devem garantir a efetivação e qualidade dos serviços oferecidos a essa população, evitando qualquer tipo de preconceito. Em relação aos objetivos da PNPR (2009) são eles: I - Assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda; II - Garantir a formação e capacitação permanente de profissionais e gestores para atuação no desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais, transversais e intergovernamentais direcionadas às pessoas em situação de rua; III - Instituir a contagem oficial da população em situação de rua; IV - Produzir, sistematizar e disseminar dados e indicadores sociais, econômicos e culturais sobre a rede existente de cobertura de serviços públicos à população em situação de rua; V - Desenvolver ações educativas permanentes que contribuam para a formação de cultura de respeito, ética e solidariedade entre a população em situação de rua e os demais grupos sociais, de modo a resguardar a observância aos direitos humanos; VI - Incentivar a pesquisa, produção e divulgação de conhecimentos sobre a população em situação de rua, contemplando a diversidade humana em toda a sua amplitude étnico-racial, sexual, de gênero e geracional, nas diversas áreas do conhecimento; VII - Implantar centros de defesa dos direitos humanos para a população em situação de rua; VIII - Incentivar a criação, divulgação e disponibilização de canais de comunicação para o recebimento de denúncias de violência contra a população em situação de rua, bem como de sugestões para o aperfeiçoamento e melhoria das políticas públicas voltadas para este segmento; IX - Proporcionar o acesso das pessoas em situação de rua aos benefícios previdenciários e assistenciais e aos programas de transferência de renda, na forma da legislação específica; X - Criar meios de articulação entre o Sistema Único de Assistência Social e o Sistema Único de Saúde para qualificar a oferta de serviços; XI - Adotar padrão básico de qualidade, segurança e conforto na estruturação e reestruturação dos serviços de acolhimento temporários, de acordo com o disposto no art. 8o; XII - Implementar centros de referência especializados para atendimento da população em situação de rua, no âmbito da proteção social especial do Sistema Único de Assistência Social; XIII - Implementar ações de segurança alimentar e nutricional suficientes para proporcionar acesso permanente à alimentação pela população em situação de rua à alimentação, com qualidade. 42 Destaca-se que todos os objetivos da PNPR têm a missão de atender e ampliar os acessos aos serviços e programas que integram as políticas públicas, sejam elas de saúde, educação, previdência ou assistência social, voltados para a população em situação de rua, garantindo, assim, a efetivação dos direitos e contribuindo para a superação da situação em que se encontram. Para conferir concretude aos princípios e diretrizes estabelecidos nessa Política, são apresentadas ações balizadas por debates realizados no âmbito do Grupo de Trabalho Interministerial sobre População em Situação de Rua. As propostas assinaladas representam uma agenda mínima de ações, cuja implementação constitui desafio para toda a sociedade brasileira (BRASIL, 2008). Sobre trabalho e emprego: 1. Inclusão da população em situação de rua como público-alvo prioritário na intermediação de emprego, na qualificação profissional e no estabelecimento de parcerias com a iniciativa privada e com o setor público para a criação de novos postos de trabalho; 2. Promoção de capacitação, qualificação e requalificação profissional da população em situação de rua; 3. Incentivo às formas cooperadas de trabalho no âmbito de grupos populacionais em situação de rua; 4. Ampliação da discussão sobre níveis de renda para a população em situação de rua; 5. Incentivo a ações que visem a inclusão produtiva e reserva de cotas de trabalho para população em situação de rua; 6. Promoção de oficinas sobre economia solidária, centradas no fomento e na capacitação, a partir de recortes regionais, com o apoio do Ministério do Trabalho e Emprego; 7. Ampliação das cartas de crédito e do crédito solidário para a população em situação de rua; 8. Garantia de acesso por parte da população em situação de rua a seus direitos trabalhistas e à aposentadoria. A Constituição Federal garante e assegura a todos o direito ao trabalho, moradia e saúde. A população em situação de rua é composta por trabalhadores, sendo que a maioria tem alguma profissão, mesmo que não a estejam exercendo (VICTOR, 2013). Atualmente, muitos vivem na informalidade do trabalho, sem os direitos trabalhistas assegurados. Infelizmente, grande parte desses indivíduos não são atingidos por programas governamentais. A população de rua têm seus direitos violados, utilizando-se de diversas estratégias para garantir sua sobrevivência e a promoção de políticas públicas voltadas para a (re) inserção desses indivíduos no mercado formal de trabalho, a garantia dos seus direitos trabalhistas, e, consequentemente, de uma vida digna. 43 Sobre desenvolvimento urbano e habitação (BRASIL, 2008): 1. Criação de alternativas de moradia para população em situação de rua nos projetos habitacionais financiados pelo Governo Federal; 2. Desenvolvimento e implementação de uma política de Locação Social, articulada a outros ministérios e a governos municipais e estaduais, contemplando a possibilidade de estabelecimento de bolsas aluguel e/ou alternativas de moradia compartilhadas, com período máximo de recebimento do benefício; 3. Desenvolvimento de projetos de reforma de imóveis públicos para uso habitacional e enquadramento da população em situação de rua nos programas de habitação de interesse social existentes, com ênfase nas áreas centrais urbanas. 4. Disponibilização de imóveis vazios nos centros urbanos, por meio da articulação entre as esferas de governo para viabilização de projetos de moradia para a população de rua; 5. Incorporação de projetos de geração de emprego e renda, associativismo e capacitação profissional em processos de planejamento das áreas centrais; 6. Mobilização e articulação dos atores no que tange a habitação e trabalho social especificamente voltado para a população em situação de rua; 7. Inclusão de critérios de priorização de projetos que levem em consideração a população em situação de rua nos programas habitacionais financiados pelo Governo Federal, notadamente o FNHIS (Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social) e o FGT (Fundo de garantia por Tempo de Serviço); 8. Garantia de integração entre habitação e meios de sobrevivência, tais como proximidade dos locais de trabalho, facilidade de transporte, infraestrutura, etc.; 9. Promoção de diálogo entre o Ministério das Cidades e a Caixa Econômica Federal para a revisão e reformulação das modalidades previstas em programas de habitação de interesse social. O direito à moradia é um direito fundamental garantido pela Constituição, não se resumindo apenas ter direito a um teto, mas em ter uma habitação adequada, com uma infraestrutura básica, que ofereça à população em situação de rua uma moradia digna, com segurança. Seu custo deve ser acessível, conforme a renda mensal da pessoa, pois se torna difícil manter outras necessidades básicas, como alimentação. Ter uma moradia digna é fundamental para que as pessoas possam ter uma estrutura de vida, tendo acesso a outros serviços como educação, saúde, lazer, entre outros. No caso da população de rua, torna-se necessário uma política de acompanhamento, seja do momento que sai das ruas até sua acomodação definitiva. 44 Sobre a Política de Assistência Social (2009): 1. Estruturação da rede de acolhida, de acordo com a heterogeneidade e diversidade da população em situação de rua, reordenando práticas homogenizadoras massificadoras e segregacionistas na oferta dos serviços, especialmente os albergues; 2. Produção, sistematização de informações, indicadores e índices territorializados das situações de vulnerabilidade e risco pessoal e social acerca da população em situação de rua; 3. Inclusão de pessoas em situação de rua no Cadastro Único do Governo Federal para subsidiar a elaboração e implementação de políticas públicas sociais; 4. Assegurar a inclusão de crianças e adolescentes em situação de trabalho na rua no programa de Erradicação do Trabalho Infantil8; 5. Inclusão de pessoas em situação de rua no Benefício de Prestação 9 10 Continuada e no Programa Bolsa Família , na forma a ser definida; 6. Conferir incentivos especiais para a frequência escolar das pessoas inseridas nos equipamentos da Assistência Social, em parceria com o Ministério da Educação; 7. Promoção de novas oportunidades de trabalho ou inclusão produtiva em articulação com as políticas públicas de geração de renda para pessoas em vulnerabilidade social. Ou seja, a PNPR existe com o intuito de garantir os direitos sociais, promovendo a inclusão da população em situação de rua. Mas, no contexto atual, o grande desafio para os moradores de rua é a sua inserção no mercado de trabalho formal, seja pelo seu grau de instrução e/ou qualificação. Muitos têm problemas com álcool e/ou drogas e estão a mercê das ruas, locais onde a política não se efetiva para muitos. Na educação, a PNPR, busca a inclusão da população em situação de rua nos programas de apoio ao desenvolvimento de atividades educacionais, culturais e de lazer, em escola aberta especialmente nos finais de semanas. Na saúde, a PNPR garante a atenção integral das pessoas em situação de rua e adequação das ações e serviços existentes, assegurando a equidade e o acesso universal no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Em relação à cultura, promove ações e debates de conscientização visando alterar a forma de conceber 8 Programa para a Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). O Benefício de Prestação Continuada (BPC) corresponde a um direito constitucional na forma de benefício de um salário mínimo mensal para pessoa a partir de 65 anos, que não tem como prover seu sustento. Também é pago para pessoas com deficiências, sendo elas físicas ou mentais, que não tenho condições de proverem seu sustento, nem de tê-lo provido pela família. 10 O Programa Bolsa Família consiste em transferência de renda para famílias em situação de pobreza. 9 45 as pessoas em situação de rua, desconstruindo os estigmas e promovendo sua (re) socialização. (PNPR, 2008). O MDS aborda como principais ações de inclusão social para a população em situação de rua: Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua: consiste nos serviços ofertados para pessoas que utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência. Com a finalidade de assegurar atendimento e atividades direcionadas para o desenvolvimento de sociabilidades, na perspectiva de fortalecimento de vínculos interpessoais e/ou familiares que oportunizem a construção de novos projetos de vida (MDS, 2011). Serviço de Acolhimento Institucional (para adultos e famílias em situação de rua): abrange o acolhimento provisório com estrutura para acolher com privacidade pessoas do mesmo sexo ou grupo familiar. É previsto para pessoas em situação de rua e desabrigo por abandono, migração e ausência de residência, ou pessoas em trânsito e sem condições de autossustento (MDS, 2011). Serviço de Acolhimento em República (para adultos em processo de saída das ruas): são serviços que oferecem proteção, apoio e moradia subsidiada a grupos de pessoas maiores de 18 anos em estado de abandono, situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social, com vínculos familiares rompidos ou extremamente fragilizados e sem condições de moradia, que não têm como manter seu sustento (MDS, 2011). Projeto de Capacitação e Fortalecimento Institucional da População em Situação de Rua (2010): têm o objetivo de fortalecer as condições sócio- organizativas e de desenvolvimento social do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) (MDS, 2011). Expansão Qualificada dos Serviços Socioassistenciais (Resolução CIT Nº 7, de junho de 2010): oferta do Serviço de Proteção e Apoio a Famílias e Indivíduos (PAEFI), no CREAS, e Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua, no Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (MDS, 2011). 46 Antes da Política Nacional para a População em situação de Rua, a atenção do poder público era de forma fragmentada, setorizada com políticas higienistas que estavam somente preocupadas em limpar as ruas. A população era vista como uma ameaça às normas da sociedade; eram os “desencaixados” do mundo. Atualmente, a PNAS junto com a implantação do SUAS, passa a contemplar o atendimento dessa população no sistema de Programa de Saúde na Escola (PSE), de proteção de média e alta complexidade, que trabalha com o objetivo de inclusão, restaurando os vínculos sociais e familiares desses usuários. 47 4 4.1 A PESQUISA DE CAMPO NA PRAÇA DO FERREIRA O Cenário da Pesquisa e as Escolhas Metodológicas Tendo o intuito de conhecer a realidade das pessoas que vivem em situação de rua, o cenário que eleito foi a Praça do Ferreira, por ser considerada o coração da cidade de Fortaleza, e palco de importantes acontecimentos. Seus antigos cafés, bares, cinemas e bancos foram pontos frequentes de encontro do povo cearense. A praça passou por grandes reformas ao longo dos anos, sendo uma significativa em 1902, com a construção do Jardim 7 de Setembro. Nessa época existiam quatro importantes quiosques: Café Elegante, Café Comércio, Café Java e Café Iracema. Nos princípios do ano de 1934 foi inaugurada a Coluna da Hora, cujo relógio servia de orientação para toda a cidade. Sua última reforma aconteceu em 1991, em que foi recuperada sua versão moderna. O prédio Excelsior foi construído em 1825, pelo engenheiro coronel Conrad Jacob de Niemeyer, tendo o auxílio de presos. Sua estrutura foi inspirada em um edifício de Milão, tendo um estilo eclético, e em toda decoração foi utilizado material importado da Europa. O Excelsior Hotel teve suas atividades encerradas em 1964. Ao abordar a Praça do Ferreira não se pode esquecer a Farmácia Osvaldo Cruz, fundada em 1934, mas cujo prédio foi construído em 1927. Pertenceu a Benjamim Hortêncio de Medeiros, médico clínico geral que tinha um consultório montado na própria farmácia e trabalhava fabricando remédios, como a pílula de matos. Nos meados de 1950, a farmácia foi comprada por Edgar Rodrigues, que deu continuidade às vendas de medicamentos, produtos químicos e homeopáticos, mantendo o ambulatório nas instalações da farmácia. Ainda hoje a praça é rodeada por grandes prédios e suas estruturas foram ampliadas e modernizadas ao longo do tempo. Em seus arredores é grande a concentração de comércios que, quando fecham as portas, suas calçadas servem de abrigo para essa população, muitas vezes, esquecida pela sociedade. É no banco da praça, ao anoitecer, que essas pessoas relatam suas histórias de vida, suas perspectivas, angústias, e conversam sobre o que farão no dia seguinte, sendo um momento de descontração enquanto o carro da sopa não chega. Foram esses bancos que permitiram observar, escutar e conhecer, mesmo 48 que não fosse detalhadamente, o cotidiano e os motivos que levaram essas pessoas a morarem nas ruas e a ter os bancos da praça como dormitório. Durante a pesquisa de campo, observou-se o fluxo dos moradores de rua, pois existe uma grande concentração dos mesmos, principalmente, no período da noite na praça, facilitando a acessibilidade a eles. Em relação à segurança, a praça conta com um policiamento ostensivo durante o dia perpassando para o período noturno. Atualmente, existe uma cabine com policiais que realizam a segurança na praça, e, por isso, muitos moradores se sentem seguros durante a noite. A pesquisa foi realizada nesse horário e, após avaliar os critérios anteriormente citados, optouse por realizar a pesquisa na Praça do Ferreira. O interesse em pesquisar a população em situação de rua surgiu quando em decorrência de se ter escutado a seguinte frase: “nunca mais quero trabalhar com pobre. A gente faz, faz e eles não agradecem”. Essa frase foi dita por uma colega de trabalho da presente autora, que fazia um trabalho social com os moradores da área de risco do Bairro Pirambu, localizado em Fortaleza. Ao escutar esta frase surgiram os questionamentos sobre os porquês dessa colocação. Enquanto estagiária do Instituto Dr. José Frota (IJF), no período de março de 2012 a junho de 2013, foi dada a oportunidade para a presente autora realizar alguns atendimentos iniciais com pessoas que estavam em situação de rua. Existiam casos em que o usuário encontrava-se em estado de saúde grave, acarretando em casos de abandono por parte de familiares, fazendo com que esse usuário ficasse sob a responsabilidade da Instituição e do Estado. No sétimo semestre, ao elaborar o projeto de TCC, foi abordada a temática idosos em situação de rua, mas, após a conclusão do projeto, notou-se a falta de algumas discussões. Por isso, decidiu-se que já estava na hora de uma aproximação mais efetiva com o campo de pesquisa, então a presente autora passou a ir às ruas e praças, sempre observando as pessoas que lá vivem. Em todos os locais sempre observava se havia pessoas em situação de rua e ficava curiosa acerca de suas histórias e da situação em que eles se encontravam. Com a construção do TCC no oitavo semestre, os questionamentos aumentaram e a indagação sobre por que não pesquisar a população de rua como um todo? Por que somente idosos? Então, decidiu-se ampliar as discussões pesquisando a população em situação de rua. 49 A partir do mês de agosto de 2013, a presente autora começou a frequentar e a observar algumas praças durante a noite, pois acredito que no período noturno existe uma maior acessibilidade aos moradores de rua, pois muitos passam o dia andando nas ruas do centro de Fortaleza e a noite grande parte dessa população retorna para os bancos da praça, procurando me aproximar e conversar com os mesmos e sempre observando sua dinâmica. O intuito era de conhecer um pouco da realidade dessas pessoas, como sua rotina para alimentação e higienização, além de seus vínculos familiares. Conhecer essa realidade auxilia no desenvolvimento da pesquisa, e é através da observação que se passa a conhecer a realidade da pesquisa. Esse conhecimento adquirido através de informações contadas pelos próprios sujeitos não são encontradas impostas em nenhuma teoria. Conforme Oliveira (2000, p.19), “(...) a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação empírica, o objeto, sobre o qual dirigimos nosso olhar, já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo”. Para a realização de uma pesquisa é necessário que ela seja adequada com a realidade de cada indivíduo, levando-se em consideração sua dinâmica, pois é importante que o pesquisador conheça os limites entre o que está sendo pesquisado e a relação com o campo de pesquisa. Segundo Minayo (1994, p. 15): [...] A realidade social é o próprio dinamismo da vida individual e coletiva com toda a riqueza de significados dela transbordante. Essa mesma realidade é mais rica que qualquer teoria, qualquer pensamento e qualquer discurso que possamos elaborar sobre ela. Em relação ao tipo de pesquisa, adotou-se a abordagem qualitativa, que para Minayo (2008, p. 57), [...] além de permitir desvelar processos sociais ainda pouco conhecido referentes a grupos particulares, propicia a construção de novas abordagens, revisão e criação de novos conceitos e categorias durante a investigação. Caracteriza-se pela empiria e pela sistematização progressiva de conhecimento até a compreensão lógica interna do grupo ou do processo em estudo. A pesquisa qualitativa permitirá conhecer diversos valores, crenças, opiniões, hábitos e atitudes. Utilizando esse tipo de pesquisa, o pesquisador passa a 50 ter uma visão crítica, proporcionando-lhe um meio mais eficiente para alcançar os objetivos do seu estudo (MINAYO, 2008). A técnica utilizada foi a entrevista semiestruturada, trazendo questões claras e objetivas, sem o intuito de induzir ou confundir os sujeitos participantes da entrevista, sendo estas gravadas com a permissão dos entrevistados. Para Goldenberg (2004, p.86) “as entrevistas e questionários podem ser estruturados de diferentes maneiras. Abertas: resposta livre, não limitada por alternativas apresentadas, o pesquisado fala ou escreve livremente sobre o tema que lhe é proposto (...)”. A entrevista semiestruturada é baseada na comunicação verbal, com perguntas abertas e fechadas, tendo o intuito de permitir ao entrevistado uma maior liberdade para questionamentos sobre os temas propostos pelo pesquisador. Essa técnica permite observar a subjetividade (MINAYO, 2008). Para preservar a identidade dos entrevistados, utilizou-se nomes fictícios e todas as informações repassadas foram devidamente autorizadas pelos mesmos, mediante o termo de consentimento (Anexo 2). 4.2 Perfil e Análise dos Sujeitos da Pesquisa Na pesquisa de campo, o instrumental utilizado foi a entrevista semiestruturada, com o intuito de permitir que os entrevistados possam expor seus argumentos, enriquecendo, assim, a investigação. No campo, a identificação da entrevista consta do nome fictício do entrevistado, e a entrevista foi realizada com seis homens, três moradores de rua e três ex-moradores de rua. A escolha dos entrevistados se deu de maneira aleatória, as entrevistas foram realizadas com homens não por questão de gênero, mas pelo acesso que tive aos mesmos quando cheguei à praça. Segundo Minayo (2010, p. 64), “(...) o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão sem se prender à indagação formulada”. Analisando o perfil durante a pesquisa de campo, nas conversas com os moradores, e na realização da entrevista (Anexo G), observou-se que a maioria dos moradores de rua encontra-se na faixa etária entre 28 e 70 anos, a maior parte deles são solteiros, todos do sexo masculino e se consideram morenos. Os entrevistados foram: Josué, 39 anos, morador de rua há quinze anos, Marcos Paulo, 57 anos, 51 morador de rua, Silvio de Souza, 46 anos, mora nas ruas há mais de vinte anos, Daniel Soares, 33 anos, morou nas ruas durante três anos, João Paulo, 70 anos, conviveu nas ruas durante doze anos e Afonso Lopes, 55 anos, viveu nas ruas durante oito anos, Todos com o 1° grau incompleto, exceto o Daniel Soares, pois o mesmo atualmente é estudante do curso de direito e com várias profissões, estando inseridos no mercado de trabalho de maneira informal, seja como flanelinhas, catadores de papel, serventes, pedreiros, garçons, dentre outras profissões. Os motivos pelos quais estão nas ruas são diversos. Em conversa com os moradores, os principais motivos são conflitos familiares abordados de diversas formas: brigas, discussões e agressões físicas, além de problemas com drogas. Muitos desses motivos ocasionaram suas idas para as ruas, rompendo com os laços familiares e fazendo com que eles passassem a viver sozinhos ou tendo como companhia outros indivíduos que estão na mesma situação. Com o afastamento muitos não conseguem mais prover o sustento da família ou até mesmo sentem vergonha de estarem em situação de rua, contribuindo para sua permanência nesses locais. O tempo de permanência nas ruas varia de três a vinte anos. Ao serem questionados sobre a PNPR, a maioria não conhece a política, apesar de alguns utilizarem serviços assegurados por ela. Mesmo os que conhecem não reconhecem a efetivação da política. Percebe-se que mesmo com a política específica voltada para a população de rua, existe a precariedade em garantir a execução dos serviços ofertados pela PNPR; moradores relatam que existe muita burocracia para o acesso aos serviços oferecidos. No que se refere ao Estado e a Sociedade, todos responderam, de forma unânime, o descaso, o preconceito e a discriminação existente. Essas respostas mostram a concepção dos mesmos, como eles se sentem aos olhos da Sociedade e do Estado. “Existe o desprezo do Estado com a gente; da sociedade eu não sentia muito preconceito, apenas a discriminação” (Josué de Oliveira, 2013). “O Estado não está nem aí pra resolver o problema da população de rua; a sociedade tem preconceito com a gente” (Afonso Lopes, 2013). “A sociedade discrimina a gente” (João Paulo, 2013). “O Estado não faz nada por nós, principalmente para o povo de rua. Nós não existe para a sociedade, como eu já disse, eles tratam a gente como porco, cachorro” (Marcos Paulo, 2013). 52 “A Assistência enxerga o morador de rua como usuário do sistema, que precisa ser escutado, respeitado, mas que na verdade não existe. Já a saúde e a educação enxerga o morador de rua como uma criatura que não quer sair das ruas, que são dependentes químicos, viciados e drogados. E a sociedade vê e finge que não vê; diz que quer ajudar, mas tem época e o motivo de ajudar, olham para o morador de rua como preguiçoso, mendigo, ladrão e drogado” (Daniel Soares, 2013). “O Estado vê a gente como „coitadinho‟ e „pobrezinho‟, e para a sociedade nós somos os invisíveis, nem existimos” (Sílvio de Souza, 2013). Os ex- moradores de rua relatam que não conseguiram sair da situação de rua sozinhos; alguns tiveram o apoio da família e outros encontram nas dificuldades das ruas uma maneira de se sobressair da condição na qual estão inseridos. Mesmo saindo das ruas, os vínculos de amizade construídos entre eles são muito fortes, todos os ex-moradores retornam à praça no período da noite e nos finas de semanas, principalmente, aos domingos para conversar e rever amigos que conquistaram no banco da praça. 4.3 Desafios e Resultados da Pesquisa Pode-se dizer que o maior desafio foi romper com os medos, pois, muitas vezes, surgiam questionamentos sobre a maneira que iria abordá-los na rua, tinha medo de que eles não aceitassem a realização da pesquisa, porque nas ruas ou eles gostam de você ou simplesmente não gostam. No contexto de várias histórias, houveram momentos de emoção, de indignação, nos quais a sensação de impotência perdurou diante de tantas dificuldades vivenciadas por eles, principalmente quando foi proferida a seguinte frase: “já passaram aqui na praça várias reportagens, assistentes sociais, estudantes e pesquisadores, todos querendo saber da nossa vida, mas nada fazem para melhorar” (Marcos Paulo, 2013). A violência na rua também é um desafio: era um sábado à noite no dia da ida à Praça do Ferreira, e durante uma conversa com um morador, houve uma discussão entre eles. O ânimo na praça estava muito tenso, a vontade de ir embora foi grande, a apreensão também, mas, mesmo assim, a pesquisa continuou. 53 Todas as perguntas que constavam no roteiro de entrevista foram respondidas de maneira satisfatória, contribuindo para que se pudesse conhecer um pouco da rotina dessas pessoas, seu despertar pela manhã, sua luta diária pela sobrevivência, tendo como intuito do dia conseguir ao menos o almoço, o álcool e as drogas são frequentes já fazem parte da rotina de alguns moradores, com o fechar das lojas; seus desejos e um momento de descontração quando o carro da sopa 11 chega e/ou quando conseguem papelões novos para passar a noite. Sobre a PNPR, as respostas foram satisfatórias, pois eles responderam o que realmente conheciam da política, de quais atividades eles participavam e como percebiam a sua execução para a superação e saída das ruas. 11 Carro da sopa são carros de ONG´s, empresas e/ou particulares que realizam a distribuição de sopa no período da noite na Praça do Ferreira. 54 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nos últimos anos, o número de moradores de rua na cidade de Fortaleza vem crescendo, embora não existam dados oficiais relacionados à quantidade de pessoas que vivem atualmente em situação de rua. Mesmo tendo seus direitos assegurados pela Política Nacional para a População de Rua, o acesso aos serviços ainda são vistos como burocráticos, existindo uma precariedade em sua execução; somente uma pequena parcela da população consegue utilizar os serviços de forma adequada. A pesquisa procurou conhecer se os investigados percebem a execução da PNPR em Fortaleza. Para que se adquirisse essa compreensão, fez-se necessário o conhecimento apreendido durante toda a formação acadêmica, estágio e, principalmente, observação do campo, foi dividida em duas etapas: a ida ás ruas, para uma aproximação com os moradores, e o momento da entrevista. No decorrer da análise, foi possível observar um pouco da rotina ao anoitecer, as falas e as conversas entre si. Percebeu-se que o uso de álcool e drogas é frequente na vida dos moradores de rua, atingindo o seu modo de viver. Muitos disseram que bebem e/ou usam drogas para esquecer os problemas, sendo estas formas de refúgio para muitos, pois viver na rua não é fácil. Alguns preferem vagar de praça em praça, buscando sua sobrevivência, pois algumas praças são vistas como favoráveis no que tange os requisitos alimentação e segurança. Durante as caminhadas nas praças, notou-se a discriminação sofrida pela população em situação de rua. Algumas vezes, enquanto a pesquisa estava sendo realizada na praça no horário de 19h e 20h, o carro da sopa costuma passar e, com isso, foi possível sentir o preconceito das pessoas que ali passavam, pois muitos olhavam “dos pés a cabeça”, provavelmente, perguntando-se o que a presente autora estava fazendo ali. Muitos devem ter pensado: será comprando drogas ou seria mais uma moradora de rua? O preconceito, a discriminação e o descaso são visíveis. Existem usuários de drogas, existe a rivalidade entre eles, a disputa por território, mas também existem pessoas de bem, cidadãos que por algum motivo estão ali, no banco da praça, nas calçadas; pessoas que tiveram os laços familiares rompidos e lutam, diariamente, em busca de sair das ruas. 55 Foi por esses motivos que se tornou importante entrevistar ex-moradores de ruas, pois como essas três pessoas existem outras que conseguiram sair das ruas. Mas, como eles mesmos dizem, ninguém sai da rua sozinho e nenhum dos entrevistados saíram da rua por intermédio de políticas públicas, e sim porque tiveram o apoio de terceiros ou restabeleceram seus vínculos familiares. Faz-se necessário o apoio da família, da sociedade e do poder público. Julgar sempre é mais fácil que conhecer, e conhecer a realidade dessas pessoas foi um aprendizado inenarrável e inquestionável. Houve a oportunidade de conhecer alguns integrantes do Movimento Nacional para a População em Situação de Rua, movimento que é constituído por ex-moradores e moradores de rua, todos em prol de um mesmo objetivo: reivindicar a efetivação e a elaboração de legislações específicas para eles. Eles estão na busca por políticas públicas que realmente assegurem seus direitos e que os serviços garantidos sejam de qualidade, e, principalmente, que todos tenham acesso. O desemprego, o rompimento dos vínculos familiares, o uso abusivo de álcool e drogas e o processo de migração, são fatores que trouxeram muitos indivíduos a viverem em situação de rua. Ao conhecer um pouco dessa realidade, juntamente com os relatos dos mesmos, foi possível endossar aspectos desta pesquisa com resultados de analises de outros autores, percebendo-se que alguns pesquisadores também abordavam esses fatores em seus livros como sendo um dos principais motivos que levam pessoas a viverem nas ruas. É notória a necessidade de uma continuidade aos estudos sobre a população em situação de rua, pois os questionamentos aqui apresentados só aumentam. Existe uma política voltada para essa população, mas, infelizmente, o acesso é para poucos. Durante as entrevistas, notou-se que muitos não conhecem a política ou mesmo nunca ouviram falar, não sabendo quais os serviços ofertados. Muitos moradores reclamam que não existem cursos profissionalizantes, e que o curso oferecido é de artesanato, e muitos não consideram essa arte uma profissão, pois não conseguem enxergar uma maneira de sobreviver. Este tema despertou na presente autora a pretensão de estudar a efetivação dessas políticas, em uma futura pós-graduação. A moradia digna é um direito constitucional assegurado pela Constituição Federal e pela PNPR. O morador de rua precisa de moradia, mas também precisa 56 de segurança, trabalho e lazer; precisa ter sua dignidade reconquistada. A segurança é indispensável, pois eles estão expostos diariamente nas ruas, seja durante o dia ou à noite; alguns são vítimas de agressões físicas, psicológicas e, em alguns casos, de homicídios por parte de pessoas que estão na mesma condição. Observa-se que é dada uma importância à moradia, mas também é necessário que exista um acompanhamento psicológico e social com essas pessoas para que se possa superar a situação de rua, principalmente, as pessoas que estão nas ruas há muito tempo. É preciso lembrar que nas ruas existem famílias, crianças, adolescentes, adultos e velhos. Acredita-se que a implantação de cursos profissionalizantes e o trabalho sejam formas de contribuir para que muitos indivíduos saiam da situação de rua; “o certo é distribuir curso profissionalizante para que as pessoas se aperfeiçoem e fiquem capacitadas. Bom mesmo era um programa que ajudasse na profissão das pessoas” (Josué de Oliveira, 2013). Este estudo teve como premissa conhecer a população em situação de rua, que é invisível aos olhos da sociedade, abordando as discussões sobre os motivos que levaram essas pessoas a ficarem em situação de rua, também com o intuito de mostrar a políticas existentes para esse público. São necessárias políticas públicas que possam garantir melhores condições de vida, promovendo segurança, uma habitação digna e o provimento de seu sustento e de sua família. 57 REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: 2010. BRASIL. Lei Orgânica da Assistência Social (1993). 2ª ed. Brasília: MPAS, 2001. BRASIL. Política Nacional da Assistência Social – PNAS/2004. Norma Operacional Básica – NOB/SUAS. Brasília: 2004. BRASIL. Política Nacional para a População em Situação de Rua. Brasília: 2008. BRASIL. Lei Nº 10,257, de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade e Legislação Correlata. 2. ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>. Acesso em: 30 de ago. de 2013. BRASIL. Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos – PAEFI. 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Trabalho de Conclusão de Curso- Curso de Serviço Social, 2012. 60 APÊNDICE APÊNDICE A - Roteiro de Entrevista Semiestruturada I- DADOS PESSOAIS Nome real ou fictício: Idade: Naturalidade: Estado Civil: Escolaridade: Profissão: II- SOBRE A VIDA NAS RUAS O que lhe fez morar nas ruas? Como é viver nas ruas? Qual a maior dificuldade que encontra nas ruas? PossuI algum problema de saúde? Faz uso de algum medicamento com frequência? Possuí familiares? Caso possua, mantém algum contato com ele(s)? Faz uso de algum tipo de droga (álcool etc.)? III- SOBRE A POLÍTICA NACIONAL PARA A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA Você Conhece a Política Nacional para a População em Situação de Rua? Se positivo, através de quais atividades percebe a execução da Política? Frequenta algum programa de assistência aos cidadãos de rua ou é assistido por algum? O que poderia ser feito pelo poder público para que muitos deixassem a rua? 61 APÊNDICE B - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Título da Pesquisa: OS MORADORES DA PRAÇA DO FERREIRA: O QUE FAZEM COMO VIVEM E POR QUE SE ENCONTRAM NAS RUAS. Pesquisador: Emanuela Sales dos Santos Orientadora: Prof.ª Ms Valney Rocha Maciel O Sr. (Sra.) está sendo convidado(a) a participar desta pesquisa que tem como finalidade analisar e compreender a problemática sobre a população de rua, visando conhecer os motivos que levaram esses sujeitos a morarem nas ruas a partir das causas externas que interferem diretamente nesse fenômeno. Tal pesquisa é requisito para a conclusão do curso de Bacharelado em Serviço Social pela Faculdade Cearense. Ao participar deste estudo, o Sr. (Sra.) permitirá que o pesquisador utilize suas informações para a realização desta pesquisa. Entretanto, os dados obtidos serão mantidos em sigilo, somente o pesquisador e sua orientadora terão conhecimento dos dados. O participante tem a liberdade de desistir a qualquer momento do estudo caso julgue necessário, sem qualquer prejuízo. A qualquer momento poderá pedir maiores esclarecimentos sobre a pesquisa através do telefone do pesquisador. O maior benefício para o participante será a sua contribuição pessoal para o desenvolvimento de um estudo científico de grande importância, onde o pesquisador se compromete a divulgar os resultados obtidos. O Sr. (Sra.) não terá nenhum tipo de despesa para participar desta pesquisa, bem como nada será pago por sua participação. Após estes esclarecimentos, solicito o seu consentimento de forma livre para participar desta pesquisa. 62 CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Tendo em vista os esclarecimentos apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, manifesto meu consentimento em participar da pesquisa: OS MORADORES DA PRAÇA DO FERREIRA: O QUE FAZEM COMO VIVEM E POR QUE SE ENCONTRAM NAS RUAS. ____________________________________________ Nome do participante ____________________________________________ Assinatura do participante ____________________________________________ Assinatura do pesquisador ____________________________________________ Prof.ª Valney Rocha Maciel Orientadora/ Faculdade Cearense TELEFONE: Pesquisador: (85) 8630-3953 63 ANEXOS ANEXO A - Fotos da Praça do Ferreira - Coluna da hora FONTE: SANTOS, Emanuela Sales , 2013. 64 ANEXO B – Fotos da Praça do Ferreira - Cine São Luiz FONTE: SANTOS, Emanuela Sales, 2013. FONTE: SANTOS, Emanuela Sales, 2013. 65 ANEXO C – Fotos da Praça do Ferreira - Antigo prédio da Caixa Econômica 12 FONTE: SOUSA, Alfredo Monteiro , 2013. 12 Fotografia por Alfredo Monteiro de Sousa. 66 ANEXO D - Fotos da Praça do Ferreira - Farmácia Oswaldo Cruz FONTE: SOUSA, Alfredo Monteiro, 2013. 67 ANEXO E - Fotos da Praça do Ferreira - Hotel Excelsior FONTE:< http://s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2012/01/29/praca_do_ferreira_620x465.jpg> FONTE: SANTOS, Emanuela Sales, 2013. 68 ANEXO F – Praça do Ferreira FONTE: <http://s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2012/01/29/praca_do_ferreira_620x465.jpg>. FONTE:http://4.bp.blogspot.com/_6DcEKKi77ss/TTiTo4YUAnI/AAAAAAAAA3U/qzz8_liGr7g/s1600/Pra%25C3%2 5A7a+do+Ferreira.GIF>. 69 ANEXO G – Depoimento do morador Josué de Oliveira, 39 anos “Sou Josué de Oliveira, moreno, tenho 39 anos, sou solteiro, natural de Fortaleza, estudei até a 4° série, sempre trabalhei com reciclagem. Vim morar na rua devido à problemas familiares. Na época eu tinha 15 anos e estou na rua até hoje. Viver na rua é viver na solidão, é muito ruim, existe muita insegurança, temos de encarar o dia a dia para sobreviver, ao menos garantir o almoço. Tenho mãe e irmã, mas não tenho nenhum contato com elas porque eu decidi ficar desse lado (nas ruas). Já faz muito tempo que não falo com elas. Não uso drogas, só consumo álcool (cachaça). Sinto vergonha de morar na rua, porque quem mora na rua pra mim é lixo. A pior parte é dormir na rua, porque têm pessoas do mal que só querem fazer o mal mesmo; eles matam, furam uns aos outros. Na rua a gente tá arriscado a matar ou morrer, devido às rixas entre os próprios moradores de rua. A Política Nacional para a População em Situação de Rua só existe no papel. Eu tenho vontade de aprender alguma coisa, porque reciclagem não é profissão é ocupação. Infelizmente, não chega nenhum curso pra mim, só de artesanato, e isso pra mim não é profissão. Bom mesmo era um curso profissionalizante. Faço acompanhamento no CAPS geral, mas lá só tem mais é palestra. A “Instituição da Prefeitura” que é para o morador de rua é uma grande furada. A gente chega na “Instituição” e eles só dão encaminhamentos, mas não ajudam na condução. Para retirar o documento é preciso ter verba, até mesmo uma calça jeans e eu não tenho, pois existe lugar que só pode entrar se tiver de calça. Eu tinha todos os meus documentos, mas perdi e não consigo tirar outro; só ando com o Boletim de Ocorrência. As pessoas não veem isso, querem ajudar sem saber ajudar. Já o Estado é uma fachada, só isso, quer apagar uma imagem que não vai conseguir, apenas cresce todo dia. É um “faz de conta”, os projetos não saem do papel. Tem que ajudar é no emprego, o certo é distribuir curso profissionalizante para que as pessoas se aperfeiçoe e fique capacitada, bom mesmo era um programa que ajudasse na profissão das pessoas. O Governo tem que se conscientizar que o povo quer cursos profissionalizantes, empregos e não Bolsa Família ou Hotel Social. Já tem muita gente acostumada, não serve pra nada mesmo, é uma mentira uma comédia do ...., ajuda a morrer mais depressa. Tem muito amigo meu aí, que o cartão fica é empenhado por droga. A gente precisa é de abrigo para gerar oportunidade de emprego. Existe muita burocracia para conseguir um benefício, deveria ter um acompanhamento para 70 quem recebe esses benefícios. A sociedade discrimina a gente, mas esquece de que da mesma forma que existe morador de rua do mal, também tem os políticos de “colarinho branco” que só fazem o mal. Existe morador de rua do bem também, mas ela (sociedade) tem razão, porque quem vê cara não vê coração. A população de rua só faz crescer, como um casal de animal: quando você menos espera já tem milhares.” 71 ANEXO H – Depoimento de Marcos Paulo, 57 anos “Sou Marcos Paulo, tenho 57 anos, sou solteiro, natural de Fortaleza, estudei até a 5° série, porque meu pai queria que eu e meus irmãos trabalhasse quando a gente era criança. Nunca casei, morava com meus pais e depois comecei até morar com minha irmã e meu sobrinho. Passei a morar na rua porque família é muito ruim, era muita confusão. Um dia, o meu sobrinho me bateu porque eu tinha bebido. Eu passava a noite toda trabalhando e quando eu chegava ninguém queria abrir a porta pra mim. Aí, me cansei e fui embora morar na rua. Desde criança eu mó agonia, estou tomando vitaminas, mas acabou e tenho que arrumar, né? Fico esperando que alguém me dê, mas como é caro e difícil, nem todo mundo quer ajudar. Desde que sai de lá nunca mais fui na casa da minha família, só fui alguns anos atrás porque eu tinha bebido, porque bom eu não vou. Só bebo às vezes. Olha que já faz mais de vinte anos que moro na rua e nunca usei droga, nem fumei, só gosto muito é de jogar sinuca. Mas falando da minha família, eu não sei explicar, eu disse que nunca mais ia andar lá e não fui mesmo. Antes eles vinham atrás de mim, agora não vêm mais, porque deve saber que não estou trabalhando. Faz muito tempo que não tenho contato com meus irmãos. A vida na rua tem muita coisa boa e ruim: passo fome, porque sou exigente com comida e o povo considera a gente como porco, cachorro; têm deles que trazem comida que nem sal tem. A coisa boa de morar na rua é a pessoa andar sozinho, porque evita problema, né? As coisas ruins é a pessoa tá com essa sacola, aqui só Deus e eu é quem sabe o que tem dentro, com medo do morador ruim roubar a gente, querem de qualquer jeito que você dê as coisas a eles como se você tivesse obrigação e medo deles. Mas têm os bonzinhos também que lhe dá as coisas sem você pedir. A maior dificuldade de morar na rua é porque não tem banheiro, em todas as praças era pra ter banheiros públicos. Não conheço nenhuma política para morador de rua. Fui 14 vezes em uma Instituição da Prefeitura para conseguir um benefício, mas nunca consegui nada. Aí desisti. Não recebo e acho que nunca vou receber. O povo só acredita em quem mente. O Estado deveria dar emprego, é o que eu preciso, seja do que for, até quebrar pedra. Mas o Estado não faz nada por nós, principalmente, para o povo de rua, nós não existe, o povo de rua não existe. Toda noite tem confusão e é os próprios moradores que procuram. Tem uns que estão drogados e os outros não aguentam; eu também não aguento, eles matam, furam e não vão nem preso, porque a polícia quer é que a 72 gente se mate, porque aí vai diminuir o trabalhado deles, né? Já para a sociedade, como eu já disse, eles tratam a gente como porco, cachorro, eles não querem a gente na rua, querem nós é no presídio, porque quem é pra tá preso é animal, né? Não é gente.” 73 ANEXO I – Depoimento Silvio de Souza, 46 anos “Sou Silvio de Souza, tenho 46 anos, sou solteiro, natural de Fortaleza, vim morar nas ruas por causa de problemas familiares. Já está com mais de vinte anos que moro na rua, não tenho contato frequente com minha família. Às vezes falo com minhas três filhas. Tanto meus pais como minhas filhas sabem da minha situação, mas pretendo um dia sair das ruas. Na rua nós não vivemos: sobrevivemos. Faltam banheiros, alimentação. Graças a Deus, nunca tive nenhum problema de saúde, meu vício é o álcool. Durante o tempo que estou nas ruas já frequentei algumas atividades no Centro Pop, como roda de conversas, oficinas de arte. Mas na última vez que fui lá, tive um desentendimento e deixei de ir. Já consegui uma casa pelo programa de Assistência, Minha Casa Minha Vida, deixei meus pais morando lá, e por alguns motivos, voltei pra rua novamente. O Poder Público era pra oferecer cursos profissionalizantes, só tem curso de arte. Artesanato é legal, mas é muito difícil você vender alguma coisa. Tem que ter acompanhamento psicológico, social com os moradores de rua. O problema do morador não é somente ter casa; existem vários outros. O Estado vê a gente como “coitadinho” e “pobrezinho”, e para a sociedade nós somos os invisíveis, nem existimos. Não sei nem o que é felicidade”. 74 ANEXO J – Depoimento de Daniel Soares, 33 anos “Sou Daniel Soares, tenho 33 anos, estou casado atualmente, natural de Fortaleza. Antes eu trabalhava como técnico de informática. Sou universitário, estou cursando o curso de Direito e morei três anos e meio nas ruas. Eu tinha uma dependência cibernética e dependência química; com a mistura das duas, culminou em crimes que afetou minha casa, a minha família tinha um pensamento ortodoxo, muito tradicional, era uma família de classe média. Estudei bastante, mas não me livrou dos vícios das drogas e da internet. Usava cocaína e quando eu estava muito bêbado, comecei a usar o crack. Na minha família não existia criminoso; o primeiro criminoso foi repelido: “eu”. Houve uma ruptura com os vínculos familiares. Existem momentos bons e existem momentos horríveis quando vivemos na rua. Se você for uma criatura calma, trabalha e tem uma dependência química, você mora na rua, ganha seu dinheirinho e compra sua droga. Não se alimenta muito bem, mas se alimenta; mas se você for seguir o caminho do parasitismo, da preguiça, só esperar que alguém lhe dê, aí você vai achar a rua um inferno na terra. Não existem banheiros públicos, essa também é uma dificuldade encontrada pelo morador de rua. Quando estava na rua, eu não tinha nenhum contanto com minha família, eles não sabiam onde eu estava. Assim que saí das ruas os laços foram reestabelecidos. Não me sentia feliz morando nas ruas, mas existiam algumas alegrias: o domingo é o dia que todo mundo se encontra na rua, para alguns estressados, é o dia da cobrança; o ponto de encontro era na sopa da Praça do Ferreira, no café da manhã da Praça dos Leões. O bom da rua é isso: se você gosta de alguém, você gosta porque gosta mesmo e pronto, não porque tem alguma coisa, porque ninguém tem nada a oferecer; a única coisa que tem a oferecer é a companhia, a conversa, mas como toda família também têm seus conflitos. Quando eu estava na rua, frequentava as atividades desenvolvidas pelo Centro Pop, como as rodas de conversa, realizavam exames em parceria com o NASF, mas nunca tive nada da Assistência como aluguel social, hotel social, casa pelo programa minha casa minha vida, nada. O morador de rua não pode esperar: primeiro tem que existir uma sensibilização para entender que as pessoas “desenraizam” dos lugares, das coisas que normalmente as pessoas fazem, essa responsabilidade de pagar água, luz, tudo isso é perdido. Quando alguém vai morar nas ruas, ela não tem mais essa responsabilidade e passa a ter a liberdade total, não tem que pagar nada, não tem 75 mais o controle, o acesso as coisas do capitalismo, tudo isso tem que ser reconquistado novamente. O que o Poder Público deveria fazer era escutar os desejos, as ansiedades das pessoas que estão nas ruas, porque as pessoas estão desestruturadas psicologicamente. Tem que haver um trabalho intersetorial. A Assistência enxerga o morador de rua como usuário do sistema, que precisa ser escutado, respeitado, mas que na verdade não existe; já a Saúde e a Educação enxerga o morador de rua como uma criatura que não quer sair das ruas, que são dependentes químicos, viciados e drogados; e a Sociedade vê e finge que não vê, diz que quer ajudar, mas tem época e o motivo de ajudar; olham para o morador de rua como preguiçoso, mendigo, ladrão e drogado. O morador de rua tem que ser respeitado. Existe a dificuldade de interpretar que aquele sujeito que está deitado no chão ou sobre o papelão tiveram todos os seus direitos violados, esquecendo que ele é um cidadão que merece respeito, tem que ter sua dignidade restabelecida. Pouca gente fala com o morador de rua, pior são as frases ditas com o olhar: o olhar de desprezo, como uma coisa asquerosa, quem está ali sendo visto olha pra você e enxerga em você a crítica, o preconceito contra eles”. 76 ANEXO J – Depoimento João Paulo Soares, 70 anos “Sou João Paulo Soares, tenho 70 anos, sou natural de Granja, estou solteiro, estudei até a 5º série, minha profissão é de servente, não sou aposentado, sou moreno. Morei nas ruas por causa de problemas na família, principalmente, com filhos por conta de drogas. Era muito difícil eu beber, bebia só uma cervejinha de vez em quando. Nunca usei droga, nem era viciado em jogo; só fumei muito. Preferi viver nas ruas do que aguentar as confusões. Não é bom viver nas ruas, minha maior dificuldade era arrumar um serviço e alimentação. Tenho problema de coração e fraqueza, mas a fraqueza era por causa da fome,e para sobreviver pedia, fazia alguns trabalhos avulso: uma limpeza, lavava carros, também pedia. A maior dificuldade era arranjar alimentação durante o dia. Antes, eu tinha contato de longe com minha família só através de telefone. Não conheço a Política Nacional para População em Situação de Rua. O Estado era pra dar serviço, um local certo. Tem que tomar providência. Existe o desprezo do Estado com a gente; da sociedade, eu não sentia muito preconceito, apenas a discriminação. A violência hoje é demais, principalmente, entre os próprios moradores. Morei na rua 12 anos, dormia nos bancos da Praça do Ferreira. Graças a Deus está com cinco anos que sai das ruas. Agora voltei a ter o contanto com minha família e pretendo voltar agora para minha cidade. Sai da rua porque o meu sobrinho arranjou um local pra morar e me levou pra morar com ele. Eu não era feliz quando eu morava nas ruas, sempre tive a vontade de sair das ruas.” 77 ANEXO K – Depoimento de Afonso Lopes, 55 anos “Sou Afonso Lopes, tenho 55 anos, sou natural de Camocim, sou casado e moro há 38 anos em Fortaleza. Estudei até a 1° série, porque meu pai colocava eu e meus irmãos para trabalhar. Minha profissão sempre foi capinar, roçado, fazer tijolo. Já fui casado e tenho três filhos. Atualmente, vivo com outra mulher, mas não tenho filho com ela. Morei oito anos na rua porque estava desempregado e não queria depender da família. Sabe como é, né? Mas sempre tive contato com eles: minha mãe, meus irmãos e tios que moram em Granja, só não falava com meus filhos porque eles não queriam saber de mim. Graças a Deus não tenho problemas de saúde, só às vezes quando eu bebo. Só dia de domingo é que minha pressão aumenta, mas tomo remédio e fica tudo bem. Também nunca usei droga, só bebo às vezes mesmo. Antigamente, morar na rua era fácil e era difícil, porque tinha muito desemprego, mas era mais fácil arranjar uma casa. Hoje em dia não, tudo é mais difícil, principalmente por causa da violência. Hoje a gente não pode nem dormir na praça que é roubado. Existe muitos atritos entre os próprios moradores de rua: a gente tá dormindo e o pessoal (outros moradores de rua) já chega batendo querendo roubar seu papelão, suas coisinhas. Às vezes me sentia feliz morando na rua, porque eu estava com meus amigos, mas também não era feliz porque eu andava sujinho. Quando eu ia dormir ficava pensando na minha família, com saudade de casa, mas eu não tinha serviço. A maior dificuldade de morar na rua é a falta de banheiro que não tem, não podia tomar banho, lavar roupa, de manhã não tinha onde escovar os dentes, tinha que andar sujinho mesmo; essa é a grande dificuldade do morador de rua. Não conheço nenhuma política pro morador não. O Estado não está nem aí pra resolver o problema da população de rua, porque está é crescendo. Antes era menos gente morando na rua e eles não faziam nada, imagine agora. A sociedade tem preconceito com a gente, quem faz alguma coisa ainda é as irmãs (ONG’s, igrejas). Lá a gente tem um sabão pra lavar as roupas, pode tomar um banho, tem uma merenda, mas na hora de dormir, a gente tem que ir é pra praça mesmo. Está com cinco anos que sai da rua, mas toda noite venho aqui pra Praça do Ferreira. Antes eu dormia aqui, até que um dia encontrei meu ex-patrão e ele me chamou pra trabalhar de vigia e me deu um cantinho pra dormir. É muito bom você ter uma caminha, acordar e tomar um banho, ficar despreocupado sem ter medo de briga durante a noite. Hoje sou feliz porque tenho um lugarzinho pra morar.”