MANUEL SANTOS CARVALHO
Entre Morros e Capim
Histórias da Guerra Colonial
Título:
Entre Morros e Capim
(Histórias da Guerra Colonial)
Autor:
Manuel Santos Carvalho
Capa:
Aquartelamento no Norte Angolano
ISBN 978-2-9813189-3-0
Reservados todos os direitos de edição e tradução
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MANUEL SANTOS CARVALHO
Entre
Morros e Capim
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Do autor:
Saga - Editora Peregrinação - 1989
Um poeta no Paraíso - Éditions Luso - 1994
Parc du Portugal - Éditions Luso - 1997
À beira-Main - Éditions Luso – 2003
Ti Vida – Edição do autor – 2012
O homem que falava com as flores - Edição do autor-2012
As belas manhãs de Maria Constança - Edição do autor -2012
Manuel Carvalho nasceu em Cicouro, Miranda do
Douro.
Colares e a Batalha foram lugares que o viram
crescer.
Viveu grande parte da juventude nos Outeiros da
Gândara dos Olivais, nos arredores de Leiria.
Fez a guerra colonial em Angola. Depois, correu
muitas terras até chegar a Montreal, no Canadá, em 1980.
Tem colaboração literária espalhada por diversos
jornais e revistas em Portugal e na diáspora.
É o coordenador da revista on-line "Satúrnia - Letras
e Estudos Luso-Canadiano
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Às vitimas da guerra
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Norte de Angola. Calambata. Tempo de guerra.
O aquartelamento encarrapitado no cimo do morro. A
meia encosta, a sanzala.
Ao redor, a omnipresença dos morros verdes de
capim. Nas vertentes, as manchas escuras e densas da mata.
Finalmente, após longa espera, os maçaricos
chegaram. À porta de armas, uma enorme bandeirola de
pano branco, letras garrafais pintadas em vermelho vivo,
fazia as honras da recepção:
«A RAZÃO DA VOSSA TRISTEZA É A RAZÃO
DA NOSSA ALEGRIA.»
Os velhinhos, em polvorosa, rodearam a coluna.
Troçam, hílares, do ar aparvalhado dos recém-chegados.
- Estes maçaricos ainda cheiram a sal.
- Estávamos com medo que se tivessem perdido na
picada.
- Aqui não podem chamar pela mamã.
Mas logo a saudade desponta. Abruptamente, a
fachada rude esboroa-se.
- Vem alguém de Viana?
- De Chaves?
- De Leiria?
Reencontros. Abraços. Corações a estoirar na boca.
Um tropel de emoções a rasgar caminhos largos de
ternura, a correr como sombras pela imensidão do capinzal.
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O nosso pelotão ficará alojado naquela caserna apontou o alferes Mendonça. - Instalem-se o melhor
possível. Dentro de duas horas o nosso sargento Martins irá
proceder à distribuição de lençóis e cobertores.
Fernandes carregou a mala às costas e seguiu na
direcção apontada pelo alferes.
O interior da caserna apresentava um ar caótico. Os
beliches descarnados, colchões esventrados, bagagens
amontoadas por toda a parte, detritos e papéis pelo chão de
terra batida. Alijou a mala e sentou-se na borda de uma
cama, a abarcar gradualmente a situação.
Maçaricos e velhinhos trocavam galhardetes.
- O que me dás em troca deste armário que eu próprio
fiz?
- Troco esta ração de combate por um maço de
cigarros do puto. Quem quer?
- O que vale este espelho? Um gajo vê-se poucas
vezes ao espelho mas mesmo assim faz jeito.
- Não tens nada para trocar?
Fernandes ergueu os olhos para o velho. Muito alto,
pele e osso no camuflado a cair aos bocados já sem pitada de
cor. Pelos rasgões apareciam bocados de pele espessa e
acobreada, e tufos de pêlos. No rosto acavalado, coberto de
barba duma semana, os olhos eram pestanudos e mansos.
- Trocar por quê?
- Por um cão.
- Um cão?!
O velho nem deu pela estupefacção que causara.
- Sim, um cão inteligente e bonito.
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Fernandes não sabia de devia rir ou mandar o outro à
merda.
-Mas para que diabo quero eu um cão?
- Tu nem sabes a companhia que faz um cão. Aqui,
neste inferno a companhia dum cão é uma coisa
maravilhosa. Se ficares com o Fantasma vais ver que não te
arrependes.
- Não tenho nada para trocar, pá. Vai chatear outro.
O grandalhão ficou momentaneamente desorientado,
a baloiçar os braços esqueléticos. Mas voltou logo à carga.
- Mas não queres ver o cão? Não perdes nada. É um
bicho muito fino.
- Se é assim tão fino, leva-o contigo.
- Levava, levava, mas é muito complicado. É preciso
uma data de trapalhadas, documentos, vacinas. Podes crer
que o levava, vou ter muitas saudades dele. - A voz
estrangulava-se, os olhos humedeciam. – Sem dono, até são
capazes de matá-lo.
- Deixa lá ficar o cão, homem. Eu trato dele.
O velho quase desatou a chorar. A sua manápula
esmagava o ombro do “maçarico”.
- Eu sabia, pá. Eu sabia que podia confiar em ti.
Nestas coisas, nunca me engano. Vou chamar o Fantasma
para que tu o vejas.
Em dois saltos, atingiu a porta a enfiou os dedos na
boca. O assobio partiu veloz.
- Não tarda nada, está aí.
Mal tinha acabado de falar, um grande cão, branco e
felpudo, irrompeu pela caserna em carreira cega. Atirou as
patorras ao peito do dono, a ganir tristemente. A baba
escorria entre os dentes brancos e aguçados.
- Quieto, Fantasma, quieto.
Na caserna elevou-se um coro de protestos.
- Leva daqui esse hotel de pulgas.
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- Se ele vem para este lado, dou-lhe um tiro.
- É mais burro do que o dono.
- Senta-te, Fantasma.
O cão obedeceu. A cauda farfalhuda varria o chão, os
botões pretos dos olhos pregados no dono. De quando em
quando, lançava um gemido dolorido.
- A malta gosta do Fantasma. Estas bocas não são do
coração. É bonito, não é? Ficas com ele?
- Que remédio!
- Trata bem dele, ouviste? Dá-lhe banho uma vez por
semana. Não tem uma pulga. Anda mais limpo do que estes
gajos todos juntos.
- É manso?
- É um autêntico cordeiro. Só não gosta dos oficiais.
Ele lá terá as suas razões.
- Assim, fico mesmo com ele. Já tenho alguém que
pensa como eu. - Alçou o indicador para o bicho que o
escutava compenetrado, a língua rosada de fora. - Toma
atenção, pá. Sou o teu novo dono e também não gosto de
oficiais. Vamos dar-nos às mil maravilhas, não é, pá?
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Costa rodeou uma cama, saltou por cima dum caixote
e conseguiu acercar-se do velho de melenas aloiradas. Este,
sobre a mala a abarrotar, fazia esforços inauditos para fechála. O suor corria-lhe pelo rosto e pelas costas.
- És o Lopes?
- Sou - respondeu o velho, porfiando no esforço.
- És tu que fazes tatuagens?
- Fazia.
Costa vacilou perante a resposta torta. Ficou
momentaneamente mudo, como que interessado na tarefa do
outro.
- Queres que te ajude?
Lopes olhou-o desconfiado.
- Já agora, dá aqui uma mão - aceitou, por fim.
Com certa dificuldade, lá conseguiram fechar a mala.
- Tens que atar um cordel à volta, quando não
rebenta-te pelo caminho.
- Onde é que eu vou desenrascar um cordel - irritouse Lopes. - Ninguém tem um cordel a mais? - gritou para a
caserna.
Não obteve resposta.
- Devo ter um em qualquer parte - ofereceu Costa.
Lopes tirou o lenço do bolso e passou-o pelo rosto.
- Afinal, o que queres, pá? - perguntou, a
contragosto.
- Queria que me fizesses uma tatuagem.
- És parvo ou quê? Achas que estou com pachorra
para fazer tatuagens?
- Era simples. Uma coisa rápida.
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- Vai dar uma volta, pá. Não tens mais nada em que
pensar?
Costa não admitia a ideia de perder aquela
oportunidade.
- Pago-te o que quiseres.
- És surdo ou parvo? Vai chatear outro. - O velho
arredou-o com brusquidão.- Sai da frente que vou beber uma
cerveja à cantina.
Costa seguiu-o para da fora.
- Não te custava nada...
- Olha o que me havia de tocar prá despedida.
- Dou-te cinquenta paus. Dinheiro do puto.
Lopes estacou, sob o céu ardente. Fitou irritado o
outro.
- És um grande teimoso.
Costa ganhou renovadas esperanças.
- Aceitas? Uma nota do puto, nova em folha.
O velho estava irremediavelmente preso ao chamariz.
- Já viste a trabalheira que me vais dar? Sei lá onde
meti as agulhas. Tornar a desfazer a mala...!
- Eu dou-te uma ajuda. Não tenhas problemas.
- És do tipo carraça. Afinal, que tatuagens queres?
- Uma coisa simples. Um coração com uns dizeres.
- Quais dizeres?
Costa enrubesceu.
- Diz lá!
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- Amo-te, Maria da Luz - atreveu-se a confessar.
Lopes largou a rir.
- Só um apaixonado poderia ser tão teimoso. Logo vi.
Bom, vamos beber uma cerveja e depois tratamos disso.
Tens aí os cinquenta paus?
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O Barão arrumou a mala a um canto, desembaraçouse das cartucheiras e da G3 e escapuliu-se da balbúrdia da
caserna.
Entrou na cantina. Conseguiu, à força de cotoveladas,
aproximar-se do balcão. A gritaria era ensurdecedora.
- Uma cerveja - pediu.
O seu camuflado novo em folha contrastava
violentamente com os camuflados desbotados e esfarrapados
da maioria dos presentes.
- Tás com sede, maçarico? - arrotou-lhe na cara um
velho de carão avermelhado.
- Tá-se a ver, não?
O cantineiro não tinha mãos a medir.
- Amanhã, não há mama pra ninguém - desabafou,
em jeito de vingança. - Vou fazer o balanço e passar a pasta
ao maçarico.
O Barão agarrou a cerveja de cima do balcão.
- Não tens uma chave para abrir isto? - perguntou ao
cantineiro.
- Para que queres a chave? - riu-se este. Tens a
esquina do balcão ou então os dentes.
- Estes maçarico pensam que estão numa estância de
repouso - riram-se ao redor.
O Barão encolheu os ombros, resignado. Seguiu o
conselho do cantineiro e a espuma jorrou para o chão. Meteu
o gargalo à boca. A cerveja soube-lhe a caldo.
- Não há cerveja fresca?
Novas risadas. Um velhinho grandalhão assentou-lhe
uma palmada nas costas.
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- Se queres cerveja fresca vai à messe dos senhores
oficiais ou dos sargentos - aconselhou, irónico. - A esses não
falta cerveja fresca. O nosso frigorífico não dá para a
primeira rodada, principalmente hoje.
- E uns gajos tão sabidões como vocês permitem
isso?
- Donde és tu, ó vivaço? - perguntou um tipo
baixote com um grande colar de missangas ao redor do
pescoço bronzeado.
- Lisboa - deixou cair displicentemente o Barão.
Sabes onde fica?
- O Luís? - galhofou uma voz. - Sabe lá onde fica
Lisboa. É de trás do sol posto.
- És de Lisboa? - tornou o velhinho grandalhão. - Eh
Rijo, chega aqui.
O interpelado voltou-se com uma cerveja na mão e
um olhar irónico. Tinha cabelo preto, muito bem penteado,
um bigode aparado a debruar o lábio cheio.
- O que há?
- Tens aqui um conterrâneo.
- És lisboeta? De que zona?
- Alfama.
- Eu sou do bairro da Liberdade.
- Belo - alegrou-se o Barão. - Não se consegue uma
cerveja fresca, pá? Isto sabe a mijo.
- Anda daí.
A noite caíra abruptamente, percorrida por um bafo
escaldante. Na parada, cheia de vozes e sombras, avultavam
as silhuetas das viaturas.
- Ainda há pouco estava sol e já é de noite - admirouse o Barão.
- Aqui é assim. É a terra do tudo ou nada.
- E sempre assim este calor?
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- Na época das chuvas é. Quando vier a estação do
cacimbo, lá para Março, arrefece um pouco.
Continuava a balbúrdia nas casernas, montes de
caixotes e malas por todo o lado.
- Hoje ninguém vai dormir - prognosticou Rijo.
- Quem é capaz? - concordou o Barão. - Nem os que
partem nem os que fica.
- Vamos ali, à messe dos sargentos.
- Espreitaram pela janela. A confraternização estava
no auge, as mesas pejadas de garrafas de cerveja, os
cinzeiros a abarrotar de piriscas.
Rijo entreabriu a porta.
- Psst...psst...
Um furriel corpulento aproximou-se, passos incertos,
olhos a transbordar de cerveja.
- Furriel Gomes, arranje aí duas cervejinhas...
- Golpista até ao último minuto, eh Rijo!
- Ande lá, faça esse favor cá ao rapaz. Sempre nos
demos bem...
- Não me atires mais areia prós olhos. Aguenta aí.
- Este é dos porreiros - confidenciou Rijo.
O furriel voltou com as cervejas.
- Tomem lá as meninas.
- Obrigadinho, meu furriel. Vai ganhar o céu.
- Vai bardamerda.
Rijo tornou a cerrar a porta.
- Vamos abancar ali no refeitório. Toma lá a tua.
Estão quase geladas.
Na cozinha, os cozinheiros ultimavam o jantar.
Sentaram-se numa das mesas, a saborear a bebida.
Somente os mosquitos evolucionavam por ali.
- Há aqui mosquitos a dar com um pau - queixou-se o
Barão, às palmadas ao pescoço.
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- Hoje andam felizes com tanto sangue novo. O
nosso já não lhes sabe a nada.
O Barão olhou o serrilhado dos morros esbatidos
contra o céu para lá do arame farpado. Uma dor arrepanhoulhe o peito.
- Isto vai custar...
Rijo deu-lhe uma palmada nas costas.
- Não te armes em herói, bebe umas cervejas, arranja
uma lavadeira que te lave também os tomates e daqui a dois
anos estarei em Lisboa à tua espera. Já acabaste a cerveja?
Agora vamos até à messe dos oficiais dar o golpe àqueles
mecos.
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O capitão Anselmo refastelou-se no sofá.
- Que horas são? - perguntou, num bocejo.
- Quatro da madrugada - respondeu o capitão
Rosado, consultando o relógio.
Estavam sós na messe dos oficiais, naquela hora
morta.
- Bom, agora que concluímos a transferência da
Companhia, bem merecemos um copo. Aceita, Rosado?
- Excelente ideia.
- Uísque?
- De acordo.
Anselmo abandonou a comodidade do sofá e deu a
volta ao balcão do bar. Apanhou a garrafa da prateleira e
retirou dois copos da copa.
- Como?
- Com gelo.
Anselmo encheu os copos até meio. Abriu o
frigorífico e tirou uma cuvete do gelador.
- Felizmente que os senhores alferes ainda nos
deixaram algum gelo. - Pôs a cuvete debaixo do fio de água
da torneira. – Quantos cubos?
- Dois, por favor.
Ficaram a bebericar de pé, cada qual do seu lado do
balcão.
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À terceira golada, Anselmo pousou o copo.
- Permite-me alguns conselhos, Rosado?
- Até lhos agradeço.
- Vamos, então, sentar-nos.
Acomodaram-se no sofá.
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- Sabe qual foi o meu maior problema? A disciplina.
Não a disciplina dos quartéis da metrópole: formaturas
impecáveis, botas engraxadas, cabelo cortado. Aqui é
diferente. Não podemos transigir é em aspectos como
rondas, reforços, limpeza, entre outras coisas.
- Tenho a experiência da Guiné.
- Na Guiné é diferente. Como estamos numa zona de
passagem, pode-se passar a comissão sem contacto directo
com o inimigo e, irresistivelmente, há a tendência para o
abandalhamento. É esse abandalhamento que é perigoso.
Quando menos se conta, pumba, levamos uma porrada
tremenda. Olhe, se quer ter os homens na mão, seja
intransigente nos pormenores, faça-os sentir que não podem
andar à balda. Eu não permitia troncos nus, exigia que o
subir e arrear da bandeira fossem feitos a preceito, não
prescindia das formaturas antes das refeições. Tudo isto
pode parecer irrisório mas, mais lá para a frente, verá como
tem importância. Estou a aborrecê-lo?
- Nem por sombras, é muito interessante o que está a
dizer.
O capitão Anselmo sorriu e esticou as pernas.
- Eu estou a falar-lhe disto porque teria gostado que o
meu antecessor me tivesse alertado também. Ter-me-ia
evitado muitos dissabores. Dou-lhe um exemplo: eu vinha
cheio de belos planos. Nada de messes, comida igual para
todos. Passados oito dias, os soldados já davam palmadas
nas costas dos furriéis e dos alferes, pouco faltava para os
tratarem por tu. Já não havia ordem que não fosse discutida.
Estávamos quase inoperacionais. Vi-me grego. Fui obrigado
a tomar medidas radicais. Uma messe para os oficiais, outra
para os sargentos, refeitório para o resto da malta. Daí para a
frente tudo começou a correr lindamente. Se você falar com
o pessoal, todos me consideram um bom tipo. - Riu-se. - E
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sabe porquê? Porque também nunca deixei acabar a cerveja
e o tabaco na cantina. Fixe bem este pormenor, não esqueça.
- Não esquecerei - riu Rosado.
- Vamos beber outro uísque? É quase manhã, nem
vale a pena ir para a cama.
- Isso é lá consigo. Pela minha parte, vou ter dois
anos para pôr o sono em dia.
- Passe cá o copo.
Enquanto vertia o uísque, Anselmo mudou
subitamente de assunto:
- E lá pela metrópole? A malta continua a fazer
encontros regularmente?
Quando Rosado respondeu, já Anselmo se instalara
de novo a seu lado.
- Sabe, Anselmo, está cada vez mais generalizada a
ideia de que esta guerra não tem solução militar. Os capitães
estão fartos de fazer comissões no ultramar, de queimar a
juventude longe da família e dos amigos.
- Só há uma solução. Todos nós sabemos isso. Anselmo bebeu uma golada sequiosa e olhou o camarada
nos olhos. - É preciso derrubar este regime e mudar as regras
do jogo. E só nós o poderemos fazer.
- Nos encontros, já toda a gente compreendeu isso,
poucas vozes discordantes se ouvem.
- Se assim é, está para breve o grande dia. Ainda me
dá mais vontade de chegar o mais depressa possível a
Lisboa.
Calaram-se. A noite começava a diluir-se. Já se
ouviam vozes à solta pela parada.
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Após alguns dias de sobreposição, os velhinhos
acenaram efusivos adeus e treparam para as viaturas que
logo se perderam a roncar picada abaixo, envoltas em
nuvens de poeira, com pressa de chegar a Luanda.
Ficou um silêncio de confins do mundo. Ao redor, a
muralha dos morros, as manchas misteriosas das matas, o
azul esbranquiçado do céu.
Foi então que toque do clarim, anunciando o
almoço, serpenteou parada além, despertou a bandeira que
desfalecera no mastro, ricocheteou nos telhados de zinco das
casernas, para logo ser engolido pela bocarra abrasadora do
sol a pino.
- Toca a formar - gritava o alferes Vasconcelos.
Quebrado o torpor, todos se apressaram a entrar nas
casernas à procura de pratos e talheres.
- Onde raio meti eu o garfo - lamentava-se o Barão,
revolvendo o armário.
- Sabes lá tu onde cabeça, quanto mais o garfo –
troçou Américo.
Ainda pouco afeitos à nova rotina, íam surgindo aos
magotes, aturdidos, para a fritadeira da parada, engrossavam
lentamente a formatura. Já os faxinas, comandados pelo
furriel vagomestre Máximo, numa azáfama, colocavam as
terrinas da sopa sobre as mesas.
- Mande entrar a malta, meu alferes - lamentou-se
alguém. - O sol derrete.
- Ainda falta gente.
O Barão bamboleava-se parada adiante.
- Corre, cabrão - gritaram-lhe.
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- Gajos destes só à porrada.
- A tiro.
- Tão com pressa de meter o focinho na gamela? perguntou, sarcástico, o Barão, entrando calmamente na
cauda da formatura.
- A primeira fila pode entrar - ordenou o alferes
Vasconcelos. - Em fila indiana, sem abandalhamentos.
- Hoje temos feijão frade com atum ou atum com
feijão frade? - troçou o Barão.
- Estás com sorte, Barão - ripostou o alferes -,
qualquer dia vais ter feijão frade com feijão frade.
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Nunes fazia a distribuição da comida.
- Já todos têm ovo? – perguntou.
- Eu ainda não - queixou-se o Barão.
- Deixa-te de brincadeiras, pá. Põe lá o ovo no prato.
Américo olhava abstracto os pedaços rosados de
atum encarrapitados no monte de feijões. Num ápice, o
Pacaça surripiou-lhe o ovo.
- Passem cá os copos pra eu dividir o vinho - ordenou
Nunes.
Dezenas de olhos seguiam, solenes, a cascata roxa do
vinho.
- Queres mais vinhos, Pacaça? - ofereceu Mendes. Podes ficar com o meu.
O Pacaça levantou os olhos do prato, agradecido.
- Deixa cá ver, pá. - Os dois copos, atestados lado a
lado, encheram-lhe o coração de alegria.
- Dizem que este vinho tem uns pozinhos de
perlimpimpim para tirar a tesão à malta – insinuou o Barão.
- Se tens medo, dá cá o teu.
- Furriel Pinho - chamou um cabo na 2ª mesa -, não
há mais comida? Não chegou para todos.
- Vou saber à cozinha.
- Falta um ovo nesta mesa – protestaram lá para o
fundo do refeitório.
O Fantasma passeava por entre as mesas.
- Hoje não levas nada, Fantasma. Nem os cães
tragam isto.
Na 3ª mesa acendeu-se calorosa discussão por causa
do vinho. Houve insultos, histerismos, iam jogando à
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porrada, mas tudo acabou por se resolver. O furriel Máximo,
a parlamentar com os cozinheiros nem chegou a a intervir.
Um faxina trouxe mais feijão para a 2ª mesa.
- E atum? – perguntou candidamente o cabo.
- Atum? Vai pescá-lo.
- A tua irmã é que eu pescava.
A 1ª mesa terminou a refeição.
- Podemos sair? - perguntou Nunes.
O furriel Máximo inspeccionou se estava tudo em
ordem: os restos nas terrinas, a mesa limpa.
- Podem sair.
Mendes acendeu um cigarro.
- Não vens? – perguntou-lhe Américo.
- É só acabar este cigarro.
- Fico contigo. Dá cá lume.
Ficaram a fumar calmamente, um diante do outro, os
cotovelos apoiados na mesa.
- Ficam para o jantar? – troçou o faxina que
levantava os tabuleiros e as terrinas.
- Vai lavar a loiça e não nos chateies - despachou-o
Américo.
Amontoados à porta de armas, à torreira do sol, a
garotada da sanzala esperava pacientemente a chegada do
jipe do lixo para depois irem à lixeira recolher as magras
sobras da refeição.
- Em que pensas?
Mendes apontou o magote das crianças.
- Será para isto que andamos para aqui nesta guerra?
- Se começas a preocupar-te com essas coisas vais
dar em doido ou na cadeia. É perigoso pensar certas coisas,
quanto mais dizê-las, bem sabes. O que eu quero é acabar a
comissão. Na minha terra diz-se que na tropa não devemos
ser muito espertos nem muito burros.
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- Vou falar ao capitão - decidiu Mendes. - Os garotos
poderiam pelo menos vir aqui recolher a comida antes de ser
atirada para a lixeira.
- Vê lá no que te metes.
- O capitão parece-me bom tipo.
Levantaram-se. A parada estava branca de tanta luz.
Sem vivalma. A bandeira desfalecera no mastro, ansiosa pela
brisa da tarde.
- Vou falar com o capitão - repetiu Mendes. - E tu?
- Vou escrever à família.
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Mendes entreabriu a porta da messe dos oficiais. A
sala estava deserta, envolta numa penumbra fresca.
- Queres alguma coisa, pá?
Estremeceu àquela voz inesperada. Semicerrou os
olhos e conseguiu focar o vulto do Malacão, regaladamente
estendido no sofá.
- O nosso capitão?
- Pode falar comigo que é a mesma coisa.
- Deixa-te de parvoíces. Sabes dele ou não?
- Tá no gabinete.
- Obrigado.
Ia cerrar a porta quando Malacão o chamou.
- O que há?
- Vem cá para te passar uma carta de apresentação.
Malacão ria como um perdido até que se engasgou e
começou a tossir.
- Vê lá, não vomites o osso que os teus donos te
deram ao almoço.
Malacão, passado o ataque de tosse, veio à porta
ripostar:
- É melhor comer os ossos dos oficiais do que feijão
frade com atum, meu palerma.
Aliviado, tornou a refastelar-se no sofá, a digerir o
bife com ovo a cavalo e as duas cervejas geladas do almoço.
- Palerma - ainda grunhiu antes de cerrar os olhos.
*
- O meu capitão dá licença?
`
- Entra.
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O capitão Rosado olhou-o, intrigado, por detrás da
secretária. As bolsas, sob os olhos azuis, meio turvos,
estavam roxas.
“O capitão mama uisque como quem bebe água”,
propalava-se pelo aquartelamento.
- Há problemas?
- Queria falar pessoalmente com o meu capitão sobre
um assunto.
- Despacha-te lá, tenho mais que fazer.
De pé, decidido, Mendes enfrentou o superior.
- Tenho observado o que se passa e é um crime atirar
com tanta comida para o lixo quando na sanzala há crianças
a morrer de fome.
O capitão espalmou as mãos na secretária e ergueuse, furioso.
- Quem és tu para vires para aqui com essa conversa?
Estás a armar em esperto ou a provocar-me?
- Longe de mim tal ideia, meu capitão. - O tom de
voz era conciliante. - Seria uma obra de caridade ajudar
esses infelizes.
O capitão deixou-se cair na cadeira. Passou a mão
cansada pelo rosto e pelos cabelos.
- Isso é outro falar. Vai lá embora que eu vou pensar
no assunto.
- As crianças poderiam vir ao refeitório recolher as
sobras, depois das refeições.
- Já compreendi, basta. - Os olhos cansados mediram
Mendes de alto a baixo. - Não gostas muito desta guerra,
pois não?
- Confesso que gosto mais de mulheres.
Rosado soltou uma risada, divertido.
- Podes ir. Obrigado pela ideia.
Mal Mendes partiu, Rosado retirou a garrafa de
uísque da gaveta da secretária e sorveu uma longa golada.
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- Cabrões ! - Com um piparote bem medido, Américo
espalmou o mosquito contra o pescoço. - Já não me lixas
mais.
Sentia-se chegar ao limite da resistência, os
tornozelos e os nós dos dedos dolorosamente inchados de
tanta ferroada. Prestes a desatar aos berros.
Ao redor do aquartelamento, à volta dos postes de
iluminação, os mosquitos saíam da noite em hordas cerradas.
"Maldita terra, malditos mosquitos. Não bastava este calor
de morrer."
Pousou a G3 no parapeito do posto de vigia e pôs-se
a espiar o negrume. Múltiplos ruídos, indestrinçáveis, de
todos os timbres, elevavam-se para além do anel de luz das
lâmpadas da periferia do aquartelamento. Era um bramar
soturno, hostil, prenhe de suspeições.
Por instantes esqueceu-se dos mosquitos, percorrido
por um arrepio. Mas o ressonar dos dois camaradas de posto,
mesmo a seus pés, serenou-o.
"Se estivesse sozinho morria de cagaço."
Olhou o relógio de pulso. Os ponteiros fosforescentes
indicavam as três horas da madrugada. Dentro de três
quartos de hora despertaria o Mendes para o render. Seria a
sua vez de ferrar o galho, se fosse capaz.
Apetecia-lhe fumar um cigarro mas a imagem
ameaçadora do capitão sobrepôs-se ao desejo. Não lhe
apetecia mesmo nada apanhar uma porrada e ir parar ao
Leste, que era bem pior do que o Norte, segundo diziam.
- Sentinela, eh sentinela !
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Emaranhado nos seus pensamentos, levou tempo a
recompor-se.
- Estavas a dormir, logo na primeira noite?
Pela voz, reconheceu o furriel Neves.
- Aqui no poleiro, não dá o sono a ninguém, meu
furriel.
- Podia passar por aqui um regimento de turras que
não davas por nada. Vamos lá a ver se abres mais os olhos.
Américo sentiu os passos do furriel perderem-se na
noite. Enervado, tornou a olhar o relógio. Estava na hora.
Até já passavam cinco minutos.
- Acorda, Mendes, está na hora.
O camarada soergueu-se da enxerga, estremunhado.
- Já ? Não me estás a tramar ?
- Vá, levanta-te. Não acordes o Fernandes.
- Logo agora que estava a sonhar com uma miúda
muito boa lá da terra. Vou convidá-la para ser minha
madrinha de guerra.
- Mas já tens três ou quatro.
- Quantas mais melhor. Tens um cigarro?
- Cuidado com o capitão!
- O capitão que vá bardamerda. Dá cá o cigarro.
O clarão do fósforo iluminou dois rostos terrosos.
Depois, ficou a ponta vermelha do cigarro a fazer
arabescos na noite.
- Não te deitas?
- Não tenho sono. Fico contigo um bocado.
- Saudades? Deixa lá que qualquer dia já chega o
correio.
Falavam em surdina, para não acordar o Fernandes.
Os mosquitos tinham acalmado e para além dos
morros começava a assomar o clarão da madrugada.
29
- Sabias que o meu filho fez ontem um ano? - disse
Américo, com tremuras na voz. - É verdade, fez ontem um
ano que ele nasceu em França.
- Tu estavas na França, não é? Que maluqueira foi
essa de voltares para fazer a tropa?
- Sei lá! Comecei a pensar que nunca mais poderia
regressar a Portugal, que o meu filho nunca poderia conhecer
os avós. A mulher também se sentia triste sem a família.
Resolvemos regressar. Mas quando acabar esta
merda, volto para a França.
- Dizes bem, esta merda.
Subitamente, um estampido acordou a noite.
- Ouviste?
- Foi no posto 3.
Soou outro tiro, logo seguido duma rajada.
O aquartelamento encheu-se de sobressalto : luzes,
vozes alteradas, correrias, o latir do Fantasma.
- Será um ataque? aventou Américo de dedos
crispados na G-3.
Fernandes despertara.
- O que é que a gente vai fazer?- balbuciou.
A pergunta fê-los sentir como galinhas aprisionadas.
- Terá morrido alguém?
- E nós aqui sem saber de nada.
- Que porra de situação.
- Calma - aconselhou Mendes. - Não me parece coisa
grave.
- Sentinela! - gritaram lá de baixo.
- Quem está aí? - perguntaram em coro.
- É o furriel Meneses. Estejam tranquilos que ainda
não é desta que vão morrer. Foi o parvo do Costa que julgou
ter ouvido um ruído estranho e desatou às rajadas como um
maricas. Algum javali.
30
- Que cagaço, meu furriel! - Américo soltou uma
risada nervosa. - Já pensávamos que os turras tinham
atacado.
- Ponham-se mas é a pau com os ataques dos
mosquitos.
- Que susto aquele gajo nos pregou - desabafou
Fernandes. - Ia-me borrando todo.
- O furriel disse que eram os javalis mas podiam
muito bem ter sido os turras.
- Nunca se sabe.
- Afinal, quem é que está de sentinela? Eu ou vocês?
- galhofou Mendes.
A parada enchia-se de vida com as primeiras
pinceladas da manhã.
O segundo pelotão vai sair para a mata - suspirou
Fernandes. - Já é de dia.
- Graças a Deus - benzeu-se Américo, olhos postos
na luminosidade que acobreava o dorso dos morros.
31
Noite de consoada. Pouco passava das dez horas da
noite e na caserna do 1o pelotão já se bebera até chegar
como o dedo. Fernandes sacou do realejo e largou a tocar
modinhas do Minho. Todos se puseram a dançar, os dorsos
nus cheios de reflexos acobreados.
- Puxa pela garganta, Fernandes. Mostra a esta malta
quem são os nortenhos - gritou o Pacaça. Levou uma cerveja
à boca e a maçã-de-adão começou a subir e a descer no
pescoço de touro.
- Cinco segundos, hem! Quem é capaz de fazer este
tempo? Alguém tem peneiras? - desafiou ao redor, de olhos
envinagrados.
Mas ninguém lhe ligou. Dançava-se e bebia-se por
entre guinchos ululantes. O odor dos corpos suados
misturava-se com o cheiro azedo da cerveja entornada. O
Pacaça agarrou outra cerveja e recomeçou a sua corrida
contra o tempo: um.. . dois. . . três... quatro segundos.
Ufano, os olhos negros incendiados, desafiava a
malta.
- Hei-de chegar aos três segundos ainda esta noite taramelava, numa dança de ébrio.
O Barão começou a cantar:
«Estou farto deles»
E o pelotão acompanhou-o em coro:
«Da chicalhada,
Esses pançudos,
Que não fazem nada».
32
Américo segurou Mendes por um pulso.
- Quero-te mostrar uma coisa - ciciou-lhe ao ouvido.
Nos olhos já lhe bailavam meia dúzia de cucas.
- Anda daí.
A malta continuava a cantar:
«Vai prá mata
Ó meu malandro.
Por tua causa
É qu’eu aqui ando».
Mendes acabou de beber a cerveja e deixou-se
conduzir. Américo tirou a mala de debaixo da cama e abriua.
- Olha! Tá lindo, não tá?
Mendes pegou na fotografia. O rosto traquinas do
filho do Américo fê-lo engolir em seco.
- Tá lindo, não tá? - insistia a voz cheia de lágrimas
do Américo.
«Abre a cantina,
Ó cantineiro,
Anda co’a malta
Caga no Primeiro».
- Quando penso que hoje é noite de consoada! soluçava Américo.
O Fernandes estava fantástico nessa noite, quase
fazia o realejo falar. Os corpos contorciam-se, alucinados,
ululantes. O Barão saltou para cima duma cama:
- Meus senhores, vamos beber em honra da malta que
está nos postos de sentinela esta noite.
Foi então que uma ideia genial chispou naquele mar
de álcool.
33
- E se lhes fôssemos levar uma pinga? - juntou uma
voz.
Como que por magia, uma garrafa de bagaço nasceu
das mãos do Pacaça.
- Em frente, marche! - comandou o Barão.
À aproximação daquele mar proceloso, as sentinelas
gritavam, alarmadas:
- Quem vem lá?
- É o pai Natal que te traz um presente - respondialhe o pelotão.
E sem tempo para uma resposta, a garrafa de bagaço
começava a gorgolejar garganta abaixo dos felizes
contemplados.
34
O Pacaça esqueceu-se que era um grande bebedor. Já
nem mesmo uma boa partida de lerpa o fazia esquecer a
imensidão exasperante dos dias.
- É um caso perdido - comentava, descorçoado o
Barão. - Eu que tinha tantas esperanças neste rapaz!
O Pacaça sorria, o carão inundado por um fogaréu
que lhe crescia nas entranhas.
Impreterivelmente, todas as noites, antes de se
escapulir do quartel para a cubata de Maria, passava pela
cozinha buscar os restos do jantar.
- Lá vem o rapa-tachos - galhofavam os cozinheiros.
Quando havia faltas, chegava ao ponto de repartir
com a rapariga a sua ração. Estirado no catre, qual ritual,
gostava de vê-la comer, silenciosa, cheia de olhares
idólatras.
No final, olhos semicerrados, o rosto crispado de
desejo, chamava-a:
- Anda cá.
Naquela noite estranhou-a. Não lhe achou o ardor
habitual. O olhar turvou-se-lhe ciumento.
- O que tens?
- Nada - respondeu Maria, abraçando-o.
O Pacaça repeliu-a com brutalidade.
- O que tens? - repetiu, sondando-lhe os olhos baixos.
– Andas com outro?
- Tenho um filho na barriga - anunciou, com
simplicidade, Maria.
- Um filho!? - gritou o Pacaça, sentando-se de
repelão no catre. - Meu!?
35
Apanhou as calças e vestiu-as atabalhoadamente.
Sentia o estômago às reviravoltas como quando estava com a
ressaca.
Maria continuava sentada na beira do catre, esfíngica
estátua de ébano.
O Pacaça calçou as botas e pegou na camisa.
- Um filho!?
Velou noite fora.
“Um filho!?”.
Era algo de insólito que se incrustara subrepticiamente no seu mundo simples e que, à traição, o
socara no estômago, como um copo de bagaço em jejum.
Ouvia o ressonar dos camaradas. A lua ocupou,
gorda e enfarinhada, o rectângulo da janela, pincelando a oca
a caserna. Depois, tranquilamente, desapareceu.
“Que diabo posso fazer? Levar o garoto comigo?
Abandoná-lo?”
A esta última alternativa. o coração confrangeu-selhe. Na sanzala, em todas as sanzalas por onde passava, as
crianças mulatas constrangiam-no.
- Eh filho duma lata de conserva!
- Eh café com leite!
Nunca deixara de repreender os camaradas, quando
estes troçavam dos garotos.
Certa vez ia jogando à porrada com o Barão. Não
tinha estômago para ouvir aquelas coisas.
“Iria o seu filho ser um dia alvo de troças idênticas?”
Sentia-se acalorado. Com os pés. atirou o lençol para
o fundo da cama, indiferente aos mosquitos.
“E se ficasse em Angola?”
Arrepiou-se e cobriu-se de novo com o lençol.
Na sanzala, os galos já cantavam. Em breve
despontaria a alba.
36
Passou ao de leve pelo sono. Um sono prenhe de
pesadelos e de reviravoltas na cama. A uma reviravolta
maior a espertina regressou. Contou os meses pelos dedos.
“No fim da comissão já o miúdo teria um ano. Já lhe
chamaria pai.”
A ideia de ficar, qual monstro libidinoso, enroscouse-lhe no cérebro.
“E por que não? Já ouvira dizer que davam terras lá
para o sul. Não tinha medo ao trabalho. Afinal, se
regressasse, não teria também que ir cavar o seu pão na
Alemanha ou na França? Pelo menos em Angola
compreendia as pessoas, falava-se língua de gente. Por que
não? Ficar com a criança, com Maria”.
O Pacaça sorriu e fechou os olhos, apaziguado. Não
tardou a adormecer. Pela janela já escorria uma claridade
diáfana.
37
A mensagem, captada pelo pessoal do posto de
transmissões, propalou-se rapidamente pelo aquartelamento:
"Caiu uma catrefada de turras nas armadilhas do
trilho Luvo."
As casernas esvaziaram-se e a parada encheu-se de
frenesim. Os cozinheiros largaram os tachos e correram a
engrossar os magotes efervescentes. O pessoal da limpeza
desenvencilhou-se das vassouras e embicou direito ao posto
de transmissões. Para aumentar a balbúrdia, o jipe da água
com o autotanque a reboque irrompeu pela parada a grande
velocidade, quase cilindrando um dos grupos.
- Querem trancar o jipe? - refilou o condutor, envolto
numa nuvem de poeira.
O furriel mecânico Reis apercebeu-se do incidente e
saiu disparado da messe dos sargentos, de rosto apopléctico
por quatro ou cinco nocais.
- O que há?
- Estes gajos atravessaram-se diante do jipe desculpou-se o condutor.
- Quantas vezes já te disse para andares mais devagar
dentro do aquartelamento? - gritou o furriel, assanhado.
O condutor achou por bem bater em retirada e o jipe
começou a rastejar de rabo entre as pernas para a cozinha.
Só então o furriel Reis se apercebeu da agitação
reinante.
- Passa-se alguma coisa? - perguntou ao redor.
- Parece que caiu um exército de turras nas nossas
armadilhas - respondeu-lhe o básico Malacão, feliz por
esclarecer um furriel.
38
*
O furriel Meneses estava estendido na cama,
embrenhado na leitura duma revista quando se levantou a
balbúrdia. Depois ouviu o derrapar do jipe.
''São os fângios do Reis” pensou, mas como a
agitação persistia pousou a revista e foi abrir a porta.
- O que há? - perguntou ao Reis que regressava
agitadíssimo à messe.
- Caíram uns gajos nas armadilhas do Luvo.
- Nossos?!
- Turras, parvo.
Meneses começou a ver tudo à roda. Parada, homens,
casernas, céu, bandeira, num turbilhão alucinante. Encostouse à parede para não cair.
- Sentes-te mal, pá? - assustou-se Reis.
Lentamente, tudo foi reocupando o seu devido lugar.
Ficou só o coração a estraçalhar o peito.
- Queres um copo de água?
Meneses abanou a cabeça.
- Não, obrigado. Já estou bem.
- Devias ir medir a tensão, aconselhou Reis. Deves andar
a precisar duns copos. Anda dai.
- Vai tu. Já estou bem.
Reis ainda duvidava.
- Vê lá se te dói alguma coisa.
Meneses reentrou na camarata. Atirou-se para cima
da cama.
“Caídos nas armadilhas que ele e o alferes
Vasconcelos tinham montado.”
Vozes, saídas das próprias entranhas esmagavam-lhe
as têmporas.
“Assassino... Assassino...”
Afundou a cara na almofada, as mãos crispadas nos
ferros da cama.
39
Um rugido animal subiu-lhe à garganta. As lágrimas
saltaram, por fim, a ferver, rosto abaixo.
40
Na messe dos oficiais, a digestão do jantar estava
demorada.
Malacão sentia-se ferver por dentro. Combinara com
o Pinto ir à sanzala e a oficialada não dava sinais de se
apressar, pregados às cadeiras, a palrar pelos cotovelos.
- Serve-nos o café, Malacão - ordenou o capitão
Rosado. – Inesperadamente teve um ataque de generosidade:
vai ao meu quarto e trás a garrafa de napoleão que lá tenho
aberta, estás a ouvir?
- Ena! - exclamou, atónito o alferes Silva. - Perdeu a
cabeça?
- É para não me chamarem sovina, pelas costas.
- Deviam ser duas garrafas - insinuou o alferes
Vasconcelos. - Uma em exclusivo para mim. Afinal, não sou
eu o herói? Digam lá quem é que montou as armadilhas para
os patos? Já pensou em me propor para uma medalha,
capitão Rosado? Ou quer os louros só para si?
O capitão estava capaz de encaixar tudo e mais
alguma coisa.
- Pela minha parte, enchia-lhe o peito de medalhas replicou, sorridente. - Só que não o vejo com arcabouço para
tanto peso.
Nesse instante, Malacão chegou com a bandeja dos
cafés e a garrafa.
- Ainda precisam de mim? - perguntou, esperançoso,
colocando tudo sobre a mesa.
- Já te queres pirar? - carregou o sobrolho o capitão.
Malacão bateu as pálpebras, impregnado de
ingenuidade.
41
- Eu, meu capitão!? - exclamou, magoado. Os seus
olhitos esverdeados escorriam mel. - Tenho de ir à sanzala
saber se as lavadeiras já têm pronta a roupa do senhores
oficiais. É por isso que estou tão apressado.
- À grande Cheveik! - gargalhou o alferes Coelho,
sorvendo o café. - És impagável. És o melhor faxina do
mundo.
- Vai lá, salafrário - assentiu o capitão.
Malacão pisgou-se lestamente, não sem antes
envolver a garrafa num olhar amoroso.
“Logo, no regresso, vou-te dar uma arrombadela.
Contando que estes filhos da puta não a espremam até à
última gota. Capazes disso são eles.”
42
A coluna chegou cedo a S. Salvador, mal passava das
dez horas da manhã.
- Meus senhores, regressamos à Calambata às quatro
horas da tarde. Às três e meia quero-vos a todos em cima das
viaturas. Aviso-vos de que se causarem problemas não terei
contemplações com ninguém. Alferes Vasconcelos, já
montou o sistema de guarda às viaturas?
- Já sim, meu capitão. Ficam dois homens de guarda,
rendidos de hora a hora.
- Óptimo. Ah, outra coisa, sempre de quicos na
cabeça e camisa abotoada. O nosso comandante do sector
não perdoa. Já muito menino apanhou uma porrada das
grossas por muito menos. Também estou a ver alguns de
vocês com os camuflados muito rasgados. Vejam se, pelo
menos quando vêm a S. Salvador remendam as roupas. Não
quero que considerem o pessoal da Calambata um bando de
maltrapilhos. Podem destroçar. E juízo!
S. Salvador era pouco mais do que a rua principal.
Nela se congregava toda a vida da cidade: estabelecimentos
comerciais, cafés, cinema, correios, serviços administrativos,
umas tantas ou quantas vivendas. Ao redor, os
aquartelamentos e a sanzala. E, como um anel estragulador,
para nao esquecer a guerra, arame farpado e postos de
sentinela.
O pessoal dispersou rapidamente. Alguns apressaram
o passo logo direitos ao café onde os esperava um mar de
cerveja gelada. Outros, olhar transtornado, encaminharamse, furtivos, para o local, numa rua mais disfarçada, onde lhe
constava ter chegado uma puta branca vinda de Luanda.
43
*
Costa não perdeu tempo e entrou rapidamente no
estúdio fotográfico.
- As fotografias do furriel Reis já estão prontas? disparou.
O fotógrafo levantou a cabeça calva do jornal. Tinha
faces cavadas e amareladas pelos trópicos e uns olhos azuis
amargurados.
- Da Calambata.
- Ah, já me lembro.
Tirou da prateleira um envelope.
- Foi ele que o mandou cá vir buscá-las?
- Foi sim. Aqui tem um bilhete.
Costa tirou o papel do bolso da camisa.
- Veja.
O homem fez um gesto de enfado e ignorou o bilhete.
- Tudo bem.
Costa, mal se apanhou na rua, abriu o envelope e
pôs-se a folhear as fotografias. Riu-se, baboso, quando
encontrou a que procurava. Ficara porreiro, com a a jibóia
que o Pacaça matara, enrolada à volta do pescoço. Grande
fotografia aquela! Iria fazer pelo menos cinco cópias para
enviar para Portugal. Aquela já iria direitinha numa carta
para a Maria da Luz.
A caminho dos correios, a passo estugado, ia
mastigando a prosa que acompanharia o retrato. Talvez
assim: “Aqui te envio a fotografia da jibóia que matei à
catanada numa operação. Estava de sentinela durante a noite
e pressentia quando ela se preparava para atacar a tenda de
três camaradas. Se não tivesse agido rapidamente não sei o
que seria. Nem quero pensar nisso. Uma menina destas
quando se enrosca num um homem já não há nada a fazer. É
trigo limpo, os ossinhos todos partidos...”
44
Os três unimogs voavam na picada. O capitão
andava sempre a martelar: nada de velocidade excessiva,
nunca perder de vista a viatura da retaguarda. Mas qual quê,
o acelerador era para ser pisado, desdenhavam os
condutores. Principalmente nestes regressos de S.
Salvador, com a cerveja a fazer das suas.
A secção do furriel Neves viajava na viatura da
retaguarda, a comer com a poeira toda em cima.
- Afasta-te mais, gritou o furriel Neves ao condutor.
- O quê?
- Afasta-te por causa do pó - repetiu o furriel.
O condutor rodou a cabeça para gritar.
- O nosso capitão não gosta disso - lembrou mas
desacelerando de imediato.
- O nosso capitão que vá ter um menino - gracejou o
cabo Madeira.
- Se precisarmos de ajuda, mandas logo um verylight, não é verdade, ó Madeira? Deve ser para o que essa
merda serve.
O cabo Madeira acusou mais uma vez o toque. Era o
seu ponto fraco. Enquanto a outra malta empunhava as
esbeltas G3, ele andava sempre com o morteiro às costas,
além das munições que lhe vergavam a espinha.
- Só espero que nunca precisem de mim.
- Távamos bem tramados.
- Pacaças! - gritou o Costa, apontando o dedo.
- Pára, pára - gritou o furriel Neves, às sapatadas às
costas do condutor.
45
O unimog, com os travões a fundo, arrastou-se na
picada como uma jibóia até se imobilizar.
- Onde estão?
- Ali, ali - apontava o Costa, vermelho de excitação.
- Não vejo nada.
- Ali, ali, junto às árvores.
- Já vejo...já!
- Porra, ainda não vejo nada...
- Grande cegueta...
- Já vejo...já vejo.
Encavalitavam-se nos bancos, aos empurrões. Pouco
a pouco, todos foram avistando os bichos. Eram duas
pacaças. Pastavam, pachorrentas, a cerca de duzentos metros
da picada, num vale de capim rasteiro e verdejante..
- Vão três gajos comigo - ordenou o furriel Neves,
saltando lesto do unimog.
- E a coluna? – inquietou-se o condutor.
- Que esperem.
*
O capitão, que viajava no unimog do meio, ao lado
do transmissões, regulava laboriosamente a distância entre as
viaturas.
- Mais depressa.
- Mais devagar.
- Façam sinal à viatura da frente para abrandar.
- Transmissões, comunica a nossa posição para a
Companhia.
-Eh pá, põe a arma em cima dos joelhos, pensas que
isso é um cajado?
Numa curva, perdeu de vista a viatura da retaguarda.
Esperou pela recta seguinte para ver se a avistava, mas nada.
Eclipsara-se.
- Façam sinal à viatura da frente para parar.
46
Nos primeiros tempos da comissão fazia logo o
pessoal descer das viaturas para o capim. Era uma estopada
fazer uma coluna com ele. Presentemente, já estava um
pouco mais razoável.
- Onde se terão metido?
- Devem-se ter atrasado, por causa do pó - opinou o
alferes Mendonça.
Têm muito medo do pó, esses meninos. Quando
chegar a época do cacimbo é que vão saber o que é pó. Já
comunicaste com a Companhia? - perguntou ao operador de
transmissões.
- Não respondem.
- Patrão fora, dia santo na loja.
- Vamos ver o que se passa? - sugeriu o alferes
Mendonça, já apreensivo.
Um tiro, logo seguido por um cacharolete deles,
ecoou pelos morros. Depois, mais um tiro solitário e o
silêncio.
- Vamos voltar atrás - ordenou o capitão.
Os unimogs roncaram nervosos na manobra. O
Fantasma levantou a cabeça e latiu, inquieto, de orelhas
espetadas.
- Mais depressa.
Cobriram seguramente dois quilómetros de picada
sem encontrar vivalma.
- Vamos voltar, não podem estar mais para trás disse o capitão, com voz insegura.
A estupefacção pincelava todos os rostos. Ninguém
se atrevia a aventar qualquer explicação.
- Inverter a marcha - ordenou o capitão.
Os unimogs tornaram a roncar. Todos se seguravam
com força aos bancos para não serem cuspidos.
Fernandes deu um pontapé ao Fantasma, que não
parava de latir.
47
O cão ganiu dolorido e enfiou-se debaixo dos bancos,
junto ao caixote das fitas de balas da metralhadora.
- Parece bruxedo - exclamou, banzado, o Fernandes.
Os unimogs voavam, de prego a fundo.
Um quilómetro a frente, Mendes, que seguia no
primeiro unimog, ao lado do condutor, julgou aperceber-se
de qualquer coisa estranha mais à frente. Soergueu-se no
banco, para fixar melhor, e só teve tempo de soltar um grito
de alerta:
- Trava!
O condutor esmagou o travão e a viatura foi da rastos
uma dúzia de metros. Imobilizou-se, por fim, a dois dedos
travessos do unimog desaparecido que, vindo do capim,
reentrava tranquilamente na picada. Logo depois, surgiu o
unimog do capitão também na eminência de se enfeixar nos
outros. Ficou atravessado na picada, num arremedo de pião.
Os insultos choveram de todo o lado.
- Cabrões!
- Iam-nos matando a todos.
- Bando de inconscientes.
- Filhos da puta.
O capitão saltou do unimog e correu, a espumar, para
os prevaricadores.
- Quem comanda esta viatura? - disparou.
- Eu - respondeu o furriel Neves, calmamente.
- Você vai ter de achar uma boa explicação, caso
contrário vou tramá-lo, sem dor nem piedade.
O pessoal já descobrira a pacaça morta em cima da
viatura. A excitação era uma onda avassalante.
- Fizeram para a coluna por causa duma pacaça? continuou, encolerizado o capitão. - É o cúmulo da
bandalheira. Alferes Mendonça, é esta a disciplina do seu
grupo?
48
O capitão apercebeu-se de que estava a falar para o
boneco. Em catadupa, contavam-se detalhes da caçada.
- Caiu que nem um tordo! Tenho a certeza que foi o
meu tiro.
- Deixa-te de bazófias. Toda a gente viu que foi o
meu.
- A bala no coração é minha, apostava a vida.
- A outra também levou chumbo.
- Vai morrer lá mais à frente.
- Grande bicho. Custou a subi-la para o unimog.
- O nosso furriel vagomestre Máximo é que vai
gostar.
- Todos para as viaturas. No aquartelamento tratamos
do caso - concluiu, impotente, o capitão, com a voz já
amolecido pela certeza dumas boas arrobas de carne fresca.
49
Américo pensava no filho quando a explosão o
atirou ao ar. Caiu de costas na cama fofa do capim.
Por um bom lapso de tempo não conseguiu
raciocinar, os ouvidos numa zoada tremenda. Gradualmente,
foi recuperando a lucidez.
“Meu Deus! O que teria sido? Meus Deus, meu Deus,
devo estar ferido. Será grave?”
Vozes alvoroçadas subiam ao redor.
“Meu filho, nunca mais te torno a ver”.
Após mais uns minutos de imobilidade, apercebeu-se
que não sentia dores. Ousou mexer um pé, depois o outro, as
mãos, o pescoço, o suor a cegá-lo. Sentou-se.
“Meu Deus, estou vivo”.
Pôs-se de pé. A zoada nos ouvidos parou.
Finalmente, compreendeu que não estava ferido.
Na picada sobrepunham-se ordens, gritos, correrias.
“Foi uma mina, foi uma mina. Onde estará a minha
G3? Se o capitão me apanha sem a arma dá-me uma
descasca.”
Reentrou na picada.
- Há feridos?
Ninguém lhe respondeu. O capitão, na berma da
picada, acocorado sobre o rádio de transmissões,
comunicava
com
a
Companhia,
numa
voz
despropositadamente alta. O Barão fumava um cigarro, com
a G3 a servir de cajado. O enfermeiro punha um penso na
testa do Costa.
- Estou muito ferido? - perguntou este, pálido como
um cadáver.
50
- Nem deita sangue. Feriste-te numa folha de capim.
- Qual folha de capim, qual carapuça, isto foi um
estilhaço, bem senti.
O unimog atingido afocinhara, com os pneus da
frente rebentados. Um cheiro intenso a borracha queimada
pairava no ar.
- Vem já aí o 2° pelotão socorrer-nos - anunciou o
capitão, largando o rádio. - Alferes Mendonça, mande já os
homens sair da picada e monte a segurança. Que bandalheira
é esta?
Só então Fernandes sentiu a falta do Fantasma.
- O Fantasma? Onde tá o Fantasma?
- Cagou-se todo com o medo e cavou por esses
morros acima - troçou o Barão.
Fernandes emitiu um assobio e esperou. Nada, do
Fantasma nem sombras.
- O Fantasma tá aqui. Em cima do unimog.
Fernandes correu para a viatura danificada. Um
grande novelo, branco e peludo, jazia sob os bancos.
O animal não se moveu.
- Fantasma! - tornou o dono, a voz sumir-se.
Pegou-lhe por uma pata inerte e puxou-o. Estava
morto. Um estilhaço perdido fizera um rombo na caixa da
viatura e perfurara-lhe o peito, ao nível do coração.
Fernandes continuou a puxar e o corpo tombou na
picada com um baque surdo. Uma roseta de sangue alastrava
pelo peito do cadáver, humedecia a terra esfarelada.
Mendes pousou a mão no ombro do Fernandes.
- Tem calma. .
- O que há aí? - interpelou-os o capitão. - Não
ouviram as ordens?
- O Fantasma morreu - disse Mendes.
- Atirem-no para o capim. Antes o cão do que um
homem. Mexam-se.
51
- Ficaste viúvo, Fernandes - troçou o Barão.
Surdo a tudo, Fernandes debruçara-se sobre o corpo
do animal, os lábios lívidos agitados numa prece.
52
- João Moreira.
- Pronto!
- Carlos Afonso.
- Estou aqui.
Empoleirado numa mesa do refeitório, qual deus
louco, o cabo-cripto Ruivo semeia, às mãos-cheias, a alegria
e a tristeza, as lágrimas e os risos.
- Pedro Antunes.
- Eu...
- José Fernandes.
- Dá cá.
Mãos nervosas como gadanhas. Dedos hirtos que se
engalfinham nas cartas e aerogramas.
Ruivo era o tipo mais importante da Companhia. Ou,
pelo menos, assim o cria.
Na verdade era ele que estava incumbido da
distribuição do correio que o avião trazia duas vezes por
semana de S.Salvador, juntamente com os frescos.
O avião chegava geralmente por volta das onze horas
da manhã e rasava duas ou três vezes o aquartelamento, com
as goelas abertas, a dar tempo que se montasse a segurança à
pista.
Enquanto o furriel vagomestre Máximo procedia à
conferência da carne e do peixe, o Ruivo recebia das mãos
do piloto o saco do correio. Aquele saco era um coração
gigantesco, palpitante, poderoso. O principal sustentáculo da
Companhia.Mais do que as G3 e a cerveja, as metralhadoras
e os cigarros, os morteiros e as negras da sanzala.
- Hoje pesa - dizia invariavelmente o piloto.
53
- Deve vir cheio de cornos - gracejava por sua vez o
Ruivo.
Concluída a transacção do correio e dos frescos, a
D.O. começava a deslizar pela pista e dentro em pouco não
era mais do que um mosquito zumbidor rumo a S. Salvador.
O pessoal da segurança saía do capim e saltava lesto
para o unimog que arrancava de prego a fundo para o
caldeirão ao rubro do aquartelamento.
- Américo Pereira.
- Aqui.
- Carlos Marecos.
- Viva!
Restam três cartas. As unhas cravam-se nas palmas
das mãos. Os rostos contorcem-se em esgares doloridos.
Ruivo passeia um sorriso displicente por aquele mar
de olhos esgrouviados e acaricia o magro monte de
correspondência que resta com
artifícios de amante sabido.
- Despacha-te... pá!
- Calminha..., tens tempo de saber que o teu filho já
chama pai a outro.
- Vai gozar com a tua avó.
O litúrgico deu lugar ao burlesco. Ruivo procura
escamotear o tempo, prolongar o seu reinado.
- Daqui a nada tás a apanhar um borracho nos óculos.
Atingido o ponto crítico de ruptura. É perigoso ir
mais além.
- José Mendonça.
- Até que enfim.
- Pedro Moreira.
- Uf...!
- Manuel Augusto.
- Mas... não há mais nada...? - pergunta uma voz
incrédula.
54
- Nada mais. Começa a procurar outra que essa já te
pôs os cornos.
Há rostos lívidos de angústia, sorrisos rasgados de
orelha a orelhas, dorsos quebrados de solidão, olhos
refulgentes de alegria.
“Sou o tipo mais importante da Companhia” conclui, mais uma vez, Ruivo.
55
- Acorda, Mendes, acorda!
Como que vinda de muito longe, uma voz agreste,
misturada com o ruído da chuva e o ressonar da caserna,
martelava-lhe o cérebro.
- Acorda, pel’amor de Deus.
Voltou-se para o outro lado e meteu a cabeça debaixo
da almofada.
- Acorda, acorda!
Só quando se sentiu violentamente sacudido é que
emergiu do sono, atarantado.
- Acorda, Mendes!
Finalmente, reconheceu a voz do Américo. Uma voz
trémula, cheia de maus presságios.
- Deixa-me dormir, pá. Vai chatear outro.
- Mendes, vem depressa. É o Fernandes.
Sentou-se na cama, num repente, assaltado por
negros pressentimentos. Na escuridão, adivinhou o rosto
transtornado do Américo, cheirou a tragédia.
- O que foi?
- O Fernandes está doido, quer matar o capitão.
- O que é feito dele?
- Sei lá! Levou a G3. Está perdido de bêbado.
- Grande maluco.
Às apalpadelas, enfiou as calças e calçou as botas.
- Vamos depressa.
A parada era um mar de lama. Na messe dos
sargentos ainda havia luz. Deviam estar a jogar ao póquer ou
simplesmente a embebedarem-se.
56
Agachados, encharcados até aos ossos pela chuva
que tombava em catadupa, rodearam o pavilhão da
enfermaria, cosidos à parede. A correr, atravessaram o
descampado até ao edifício dos oficiais. A violência da
chuva fazia-os bailar.
Américo perdeu uma bota e ficou a praguejar, ao pécoxinho, até que lá conseguiu encontrá-la. Quando a enfiou
no pé, a lama espichou por todos os lados.
Do quarto do capitão não se soltava o mínimo sinal.
Devia estar a dormir a sono solto.
- Onde estará metido o gajo?
- Vamos pelas traseiras - opinou Américo.
Tornearam o edifício. Finalmente, avistaram o vulto
do Fernandes, espalmado contra a parede, junto à janela do
quarto do capitão.
- O que fazes aqui, pá? - interpelou-o Mendes, em
surdina.
- Girem - ordenou Fernandes.
- Separava-os uma distância de três metros.
- Vai-te deitar, Fernandes - gemeu Américo.
- Desapareçam!
Mendes fez menção de avançar. Fernandes deu um
salto felino para o lado e alçou a arma.
- Se dás mais um passo, estoiro-te os miolos.
- Não te desgraces - implorou Américo.
- Vão - se embora, isto não é da vossa conta.
- Nós somos teus amigos, só queremos o teu bem continuou Américo.
Subitamente, deixou de chover. Ficaram as cascatas
de água a jorrar dos telhados.
- O capitão não é o culpado da morte do Fantasma insistiu Américo.
- Não teve nenhum respeito pela sua morte. Vai
pagar por isso.
57
- Estás a ver mal as coisas.
Mendes avançou mais um passo. Já distinguia, com
nitidez, o vulto transtornado do Fernandes.
- Nem mais um passo.
Fernandes fez um gesto brusco e desequilibrou-se.
Mendes não perdeu a oportunidade e atirou-se. Gritou de dor
quando o ombro chocou contra a G3. Mesmo assim
conseguiu filar a camisa do outro.
- Vou-te matar, maldito - rosnou Fernandes.
Rolaram na lama. Mendes sentia o hálito azedo do
Fernandes escaldar-lhe o rosto. O ombro doía-lhe
terrivelmente e já lhe faltavam as forças para afastar as mãos
que lhe buscavam o pescoço como víboras.
Nos baldões da luta, Fernandes escarranchara-se-lhe
em cima. Mendes estrebuchou, tentava desalojar o
adversário mas a lama não o deixava aplicar toda a sua força.
A tenaz, à volta do pescoço, apertava cada vez mais.
Subitamente, as mãos afrouxaram a pressão. Depois,
Fernandes caiu para o lado, como um gemido débil.
- Estás bem?
Mendes abriu os olhos e compreendeu. Américo
ainda conservava na mão o toro de madeira com que
derrubara o Fernandes.
- Levanta-te, este brutamontes quase te ia asfixiando.
No quarto do capitão acendeu-se a luz.
- Estamos perdidos - gaguejou Américo.
Mendes recuperou imediatamente, não havia tempo a
perder.
- Vamos embora daqui. Vamos carregar o gajo. Não
te esqueças da G3. Pega-lhe pelos ombros que eu pego pelos
pés.
Já se ouviam passos no quarto.
- Rápido!
58
Fernandes, coberto de lama era uma autêntica enguia.
Aos tropeções, lá o foram arrastando. Mal tinham dobrado a
esquina, a janela abriu-se e a voz do capitão esbofeteou-os.
- Quem está aí? Está aí alguém?
Os segundos escorriam como horas. Finalmente,
sentiram o ruído da janela a fechar-se. Deixaram o corpo
tombar como um saco e, amparados à parede, escorregaram
até ao chão.
A água da chuva já não jorrava dos telhados e as
estrelas brilhavam. Uma paz cálida cobria tudo.
- Que grande sarilho. - Mendes sorriu. - Quem é que
depois iria tocar realejo nas nossas farras?
59
A canícula calcinava. A luz crua do dia reverberava
no capim, feria os olhos.
A patrulha serpenteava morro acima. Era penoso. Por
vezes, o capim, grosso como canas, encobria os homens e só
se ouvia o espadanar da catana rasgando caminho.
Chegados ao alto do morro, toucado por árvores
raquíticas, o alferes Mendonça deu voz de descanso. Os
homens, arfantes, olhos congestionados, cegos pelo suor,
desenvencilharam-se das mochilas e estenderam-se sobre o
capim aqui mais ralo.
- Vamos almoçar aqui. Passem a palavra.
- Um rumor de regozijo percorreu o grupo. Todos
procuraram as magras sombras. As rações de combate
surgiam do fundo das mochilas.
- Quem quer trocar lata de sardinhas? - perguntou o
Barão, abrindo o saco.
- Vai chatear a tua avó - respondeu uma voz agreste.
- Duas latas de sardinhas por uma de chouriço reforçou o Barão.
- Passa cá - aceitou o Pacaça.
- Quando chegar a Portugal, nunca mais quero ouvir
falar de conservas - lamuriou-se outro.
- Cala a cloaca! Na tua terra só comias bolota troçou o Barão.
- Vamos lá calar - admoestou o furriel Neves. - Isto
não é um bordel.
- Antes fosse - suspirou Fernandes.
- Cardoso! - chamou o alferes.
- Diga, meu alferes.
60
- Quando acabares de comer, comunica com o
aquartelamento.
- Ok, meu alferes.
- Pede que mandem um helicóptero com duas grades
de cerveja fresquinha...
- E umas garotas...
- Leão...leão...águia chama. Leão...leão...águia
chama. Diga se me ouve. Escuto.
- Estão a dormir a sesta.
- Leão...leão...
À medida que iam acabando a refeição, cada qual se
estendia para o seu lado, a cavaquear e a fumar.
- ...Águia chama. Diga se me ouve. Escuto.
- Deixa lá, Cardoso. Tornas a chamar mais tarde decidiu o alferes.
- Como queira.
O alferes encostou-se a uma árvore e pôs-se a estudar
a carta.
As vespas zumbiam, em nuvem, ao redor das latas
vazias. Uma águia planava lá no alto.
- Cinco minutos para preparar - bradou o alferes.
- Quem é que teria inventado a guerra? - filosofou
uma voz aborrecida.
De má vontade, puseram-se a apertar as bocas dos
sacos e a afivelar as cartucheiras.
Sacos às costas, as G3 no ombro, davam as últimas
fumaças.
- 1ª secção à frente - ordenou o alferes.
Começaram a descer o morro. A meia encosta
principiava a mata que debruava o rio, segundo a carta e as
contas do alferes. Em breve, o calor ficou para trás, sob o
tecto verde. Era uma transição brusca, de quem passa
subitamente do inferno para o céu. A princípio, foi preciso
cortar algumas lianas mas logo o caminho ficou
61
desimpedido, as árvores mais espaçadas, o chão atapetado de
folhas mortas. Alguns rasgos no tecto verde entremostravam
o céu azul, puro, distante. Pairava no ar um ténue cheiro a
matéria em decomposição.
O rio, corria gordo, turvo, largo. Na outra margem, a
mata era cerrada, insondável.
*
Seguiam ao longo do rio, sem pressas. Por vezes era
preciso tranpor um ou outro riacho que vinha desaguar no rio
e aproveitavam pata atestar os cantis e para refrescar os
rostos.
À cabeça da coluna, o Pacaça, de catana em punho,
por desenfado, cortava uma ou outra liana mais atrevida que
tombava das árvores. Sentia-se a rebentar de energia, a
passada larga.
- Mais devagar, Pacaça - implorou Fernandes.
O Pacaça deitou-lhe uma mirada trocista e abrandou
o passo. Inclinou-se para a frente para vencer uma pequena
elevação. Ao chegar ao alto,
arregalou os olhos,
boquiaberto. Lançou-se imediatamente ao chão. Bateu com o
queixo no manobrador da G3 e engoliu a dor. Sentiu a
restolhada do pelotão imitando-o.
O alferes Mendonça rastejou até junto dele.
- O que há?
- Veja.
Lá à frente, numa clareira mais folgada, sob o
cerrado tecto das copas de árvores de grande porte,
amontoavam-se meia dúzia de palhotas. Ao redor, uma
pequena plantação de mandioca e de tomates. Não se
vislumbrava vivalma, num silêncio sem pássaros. A separálos, por entre juncos, corria um ribeiro manso a caminho do
rio.
O furriel Meneses juntou-se-lhes.
62
- Há problemas?
O alferes limitou-se a esticar o queixo.
- Não se vê ninguém, o que vamos fazer? - ciciou
Meneses.
- Por precaução, o melhor é uma secção ir fazer o
envolvimento - decidiu o alferes. Não estejam os gajos
emboscados do outro lado. Nós ficamos a protegê-los.
Avance com a sua secção.
Meneses retrocedeu até junto dos seus homens. Uma
mescla de ansiedade e curiosidade saltava de todas as caras.
- Há um acampamento ali à frente. Parece
abandonado mas, por questão de segurança, a nossa secção
vai fazer o envolvimento.
Os homens do furriel Neves tomaram posição,
cosidos às irregularidades do terreno, as armas apontadas ao
acampamento.
- Preparados? Vamos! - ordenou Meneses.
Correram agachados, ziguezagueantes, por entre as
árvores, os dedos a formigar nos gatilhos. Ao chegarem ao
regato, hesitaram, alapardaram-se nos juncos.
- Vamos atravessar por equipas. Primeiro a tua,
Nunes - comandou Meneses.
Os homens entraram na água, resolutos. A meio do
leito, a água dava-lhe pelos joelhos. Costa escorregou numa
pedra, deu três ou quatro passos em falso e foi-se
esborrachar contra as costas graníticas do Pacaça.
- Queres uma bóia, pá? - troçou este.
Chegados à outra margem, espalharam-se, cosidos às
árvores. Nunes fez sinal à outra equipa para avançar.
A pequena plantação de tomateiros estendia-se até às
palhotas, vinte passos adiante. Tudo estava calmo, num
sereno contraste de luz e sombras. Os tomates
avermelhavam na ramagem verde. Para a esquerda, as
folhas serrilhadas do mandiocal vergavam-se frescas para o
63
chão. Por um rasgão no tecto vegetal, o sol jorrava poalhas
de ouro na prata do ribeiro.
- Como isto é tranquilo - embebeu-se Américo, a
arma apontada ao bojo da mata.
*
Passaram as palhotas a pente fino.
- Deserto! - desabafou, desapontado, o alferes
Mendonça que chegara com os restantes homens do pelotão.
A tensão acumulada começou a esboroar-se e as
conversas irromperam em balbúrdia.
- Calados! - bradou o alferes. - Furriel Neves, espalhe
os homens. - O que vos parece isto? - perguntou, dirigindose aos furriéis.
- Parece-me que isto é um acampamento de
passagem - disse Neves. - Estava abandonado quando
chegámos, não há indícios de fuga precipitada. Não há
pegadas frescas.
- Acampamento de passagem? - estranhou Meneses.
- Uma espécie de estalagem a meio da viagem esclareceu Neves. - descansam aqui e prosseguem a viagem.
Mendonça levantou os olhos para o tecto vegetal.
- Os aviões podem passar por aqui milhares de vezes
que não topam nada - observou.
Costa aproximou-se, esbaforido.
- Meu alferes, descobrimos um trilho.
- Vamos ver.
Atravessaram a lavra de tomates a correr. Os tomates
esparramavam-se em manchas sanguinolentas.
- Veja, veja! – dizia Costa, agitado.
Na verdade, um trilho bastante batido, saía da mata
para o capinzal.
64
- Isto deve levar a algum lado - entusiasmou-se o
alferes. - Barão, Fernandes, deitem fogo às palhotas. Rápido
que vamos prosseguir.
- Vai ser um espectáculo em grande - rejubilou o
Barão. - Vai dar para assar sardinhas como na noite de S.
António.
- Qual é o seu plano? - desconfiou o furriel Neves. Devíamos comunicar com a Companhia e explicar o que se
está a passar.
- Quem é o comandante do pelotão? Eu o vocês? Havia um brilho estranho nos olhos do alferes.
Neves voltou costas, desabridamente.
As chamas irrompiam, vermelhas, tentaculares, num
estrelejar de ramos e folhas secas. Envoltos na fumarada,
archotes em punho, o Barão e o Fernandes saltavam de
palhota em palhota.
- Quem quer estrelar ovos? - ouvia-se a voz do
Barão.
- Saiam daí, seu burros - gritou-lhes o furriel
Meneses -, ainda acabam feitos frangos de churrasco.
Os
incendiários
emergiram
do
braseiro,
chamuscados, a tossicar.
Quem não tem fósforos pode aproveitar para acender
o cigarro - ainda teve forças para pilherear o Barão.
Primeira secção à frente. Vamos seguir o trilho gritou Mendonça.
*
- Avança, rebenta-minas - troçou o Barão.
Pacaça investiu trilho fora. Sentia-se fresco, estuante
de força. A balançar contra a coxa, o cantil atestado de água
fresca, redobrava-lhe o vigor.
65
A meio da coluna, atrás do transmissões, Américo
cismava na quezília do alferes Mendonça com o furriel
Neves. Dava razão ao furriel. Era, na verdade, um suicídio
seguir o trilho.
Lá mais para diante, a luz intensa indicava que em
breve sairiam da mata para o inferno do capinzal. Foi
quando a explosão estrugiu os ares. O Barão sentiu um bafo
quente aflorar-lhe o rosto e qualquer coisa, talvez um seixo,
bateu-lhe no peito. Atirou-se ao chão como os demais. Lá à
frente reinava a confusão.
- Enfermeiro! Ó Grilo! - gritavam.
Américo levantou-se e correu para a cabeça do
pelotão. Um pouco ao lado, o buraco da mina anti-pessoal
ainda fumegava. O Grilo chegou nesse instante.
- Afastem-se! Deixem o rapaz respirar - ordenou,
alijando rapidamente a mala dos medicamentos.
O alferes Mendonça, pálido, olhar alapardado,
começou a dar ordens, raivoso:
- Vocês dois, montem a segurança ali à frente.
Vamos a dispersar, grande corja. Aqui não há maricas.
- É grave? - perguntou Américo ao enfermeiro.
O Pacaça gemia, desfalecido.
- Se é grave? Tem os pés esfacelados. Vou-lhe fazer
torniquetes para estancar a o sangue. Segurem-me aqui no
frasco do soro.
Meneses voltou-se resoluto para o alferes.
- Peça imediatamente a evacuação do rapaz. Não há
tempo a perder. - Antes que o alferes ripostasse, ordenou. O Cardoso que venha imediatamente aqui.
Cardoso acorreu, meio desequilibrado pelo sacolejar
do rádio. Ajoelhou-se e alijou o aparelho do ombro.
Mendonça sentiu que o comando lhe estava a
escorregar das mãos. Ia repor tudo nos eixos, relembrar a
66
hierarquia mas o olhar feroz do furriel Neves secou-lhe as
ordens na garganta.
- Certo - concordou. - Contacte a Companhia,
Cardoso.
- Leão...leão...diga se me ouve, escuto.
- Que tal está ele? - voltou a interrogar Américo.
Grilo abanou a cabeça, descoroçoado.
- Tá a perder muito sangue. Vai ser difícil estancá-lo.
- Leão...leão...águia chama.
- Vais aguentar, não é Pacaça? - encorajou Américo.
O ferido sorriu, lívido.
- Não me dói muito...é grave?
- Qual quê! Estás para lavar e durar.
Pacaça cerrou os olhos, inane.
- Aqui não consigo apanhar a Companhia - queixouse Cardoso. - Tenho que sair da mata.
Mendonça aquiesceu com um aceno de cabeça.
- Meneses, acompanhe o Cardoso com a sua secção.Rascunhou a mensagem codificada numa ponta de papel. Rápido.
*
- Consegui - rejubilou Cardoso, limpando com as
costas da mão o suor que o cegava - Atenção, leão, tenho
uma mensagem urgente. Mandem cerveja, temos sede.
Na mata, Grilo afagava a cabeleira empapada em
suor do Pacaça.
- Aguenta, rapaz, aguenta...
Apertou os torniquetes e passou uma gaze embebida
em água pelo lábio ressequidos do ferido.
- Põe o frasco do soro mais alto, cabrão - gritou para
o Costa.
Américo tirou a faca de mato da bainha e pôs-se a
rasgar a casca duma árvore. Rasgões profundos e longos por
67
onde escorria uma seiva escura. Como sangue. Estremeceu e
embainhou a faca, com dedos trémulos.
O alferes Mendonça passeava para trás e para diante.
O olhar do furriel Neves perseguia-o, feroz.
- Então? - perguntou, detendo-se junto do ferido.
- Está com o pulso muito fraco - murmurou Grilo.
- Mantém-no vivo, homem. Faz o impossível.
A restolhada da secção do furriel Meneses
sobressaltou-os.
- Vão enviar um helicóptero - anunciou o furriel
Meneses com uma pincelada de esperança na cara.
- Vamos sair da mata - comandou o alferes. Improvisem uma maca para o ferido.
- Já não é preciso, meu alferes - soluçou Grilo. - Já
não é preciso.
Mendonça ficou boquiaberto, um braço petrificado
no ar.
- Cabrões, apareçam - ululou Américo. - Alçou a G3
e despejou-a, de rajada, para o ventre da mata. - Covardes!
Venham lutar cara a cara. - A baba escorria-lhe pelos cantos
da boca contorcida. A mata uivou ferida de mil ecos.
Esvaziado o carregador, atirou a arma contra uma árvore e
lançou-se ao chão com um urro feroz.
Ninguém se mexia. Como se o tempo se tivesses
esvaído naquele recanto do mundo. Por fim, o Barão
enfrentou a morbidez do instante:
- Merda, somos algumas crianças? Parece que nem os
temos no sítio.
68
Malacão entrou no gabinete do capitão para dar a
habitual sacudidela à poeira.
- Dá licença, meu capitão?
Sentado à secretária, o capitão Rosado não despregou
os olhos da fotografia que segurava na ponta dos dedos.
- Entra.
Espicaçado pela curiosidade, Malacão rodeou,
dissimuladamente, a secretária. O rosto bonito da mulher
incendiou-lhe os olhos de gato com cio.
- Malacão!
- Diga, meu capitão.
- Esta semana vais fazer uma limpeza geral ao meu
quarto. Uma limpeza esmerada, ouviste. - Os olhos dos dois
homens continuavam pregados no rosto fresco do retrato. –
Na próxima semana a minha mulher chega à Calambata e
quero tudo a brilhar. Estás a ouvir?
- Sim, meu capitão – assentiu Malacão sem mexer
um músculo do rosto afilado. Só os olhitos faiscavam.
*
Malacão entrou na cantina, sem fôlego.
- O que vens aqui cheirar, pá? - estranhou o Chico
cantineiro. Tens a cerveja fresca que queres lá na messe.
- Mete a tua cerveja no cu - ripostou Malacão
escostando as costas arfantes ao balcão. Espraiou o olhar
pela malta que beberricava, amorfa, as nocais e as cucas
meio chocas. Tudo malta que lerpara. Aqueles que tinham
recebido correio estavam a estas horas nas casernas, cada
qual no seu casulo, a ler e a reler os aerogramas.
69
- Quem não recebeu carta não precisa de ficar com
essa cara de batata esborrachada - mofou. - Tenho notícias
frescas, muito melhores do que as da santa terrinha. Até vão
saltar. Só vos peço cuidado para não furarem o tecto com os
cornos.
- Não tarda nada tás com uma garrafa na fuça ameaçou um tipo do 4º pelotão.
- Então segurem-se com força. Prá semana vamos ter
a visita duma senhora branca, de carne e osso, boa com’o
milho.
Num repente, Malacão viu-se envolvido por uma
dúzia de caras atónitas.
- Ah, conta...conta.
- Diz, pá, diz...ui...se tás a reinar rebento-te a mona.
- Poça! Isto é melhor do que receber dez cartas.
Chico meteu uma cerveja gelada nas mãos do
Malacão.
- Bebe, bebe que bem mereces.
- Deixem-me ganhar fôlego - pediu Malacão,
saboreando a cerveja. - Todo eu tremo.
- Não é para menos. Uma branquinha! Ui, Jesus!
Malacão pousou a cerveja no balcão e desafiou:
- Adivinhem quem é!
- Mau! A malta conhece-a?
- Não me digas que é a Flora, aquela valente puta
velha de S. Salvador?
- Essa já aviou cem batalhões.
- Com aquele bandulho já deve ter feito para cima de
mil abortos.
- Qual Flora! Frio, muito frio.
- Deixa-te de rodeios e diz lá quem é.
Malacão tornou a pegar na cerveja. Bebeu uma
valente golada e percorreu as caras com os olhitos
amarelados a transbordar de luxúria.
70
- Meus senhores, brevemente teremos cá, na
Calambata, a mulher do capitão.
O grupo ficou de olhos arregalados, os pedregulhos
das palavras atravessados nas gargantas, incapazes de sair.
- A...
- A mulher...
Malacão acabou de sorver a cerveja antes de atirar
para o ar mais um punhado de detalhes.
- O capitão mandou limpar o quarto a preceito para
quando ela chegar. Disse-me: quero tudo a brilhar.
- E és tu que vais fazer a cama todos os dias?
- Pois.
- Vais mexer nos lençóis onde ela se deitou?
- Vê-la descascada...
- Até talvez te peça para lhe esfregar as costas depois
do banho...essas senhoras são assim...
Malacão crescia como um deus.
- Que sorte.
- Nem me obriguem a pensar nessas coisas, até se me
turva a vista.
Chico saiu de trás do balcão e esgueirou-se para a
porta, a mão na algibeira.
- Eh, onde vais Chico?
Uma onda de risadas acompanhou-o até à porta.
- Mais um aborto, eh Chico!
71
Mendes contemplava, babado, a fotografia da oitava
madrinha de guerra, acabada de chegar.
- Para que queres mais uma madrinha? - estranhou
Fernandes. - Dizias que era uma para cada dia da semana e,
que eu saiba, a semana só tem sete dias.
- Mendes beijou o retrato, regalado.
- Sempre é bom ter uma suplente - esclareceu. Supõe
tu que uma delas morre. Ficava descalço.
- Tás mesmo cacimbado.
*
Costa recebera carta do irmão. Ficou inquieto,
vagamente perturbado. O irmão não era homem para lhe
escrever, só por escrever. Alguma coisa séria seria.
Sentou-se no beliche e rasgou o envelope, ansioso.
Mal leu as primeiras frase, as mãos começaram a tremer-lhe,
os olhos a saltar as linhas, cegos de lágrimas:
“Querido irmão, peço a Deus que te encontres de
boa saúde, nessas terras do diabo.
Resolvi escrever-te para te contar certas coisas tristes
que por cá se passam, pois é melhor ser alguém da família a
a contar-to do que um estranho. A tua mulher, a Maria da
Luz, não se tem portado nada bem. Anda de cabeça perdida
desde o teu embarque, metida com um gajo casado, lá na
fábrica...”
Amarfalhou a carta, o peito esmagado por uma mão
enorme que apertava, apertava, a cabeça a chocalhar, tudo a
girar em turbilhão.
72
A carta soltou-se dos dedos enferrujados. Tombou na
cama e enterrou a cabeça na almofada, numa quietude de
morto.
*
O Barão lerpara mais uma vez. Com um cigarro nos
lábios, deambulava pela caserna, envenenado.
- Eh Mendes, essa madrinha de guerra tem cara de
bota da tropa.
- Ó Américo, o teu filho já chama pai a outro?
Ao rés da cama do Costa, a carta amarrotada
despertou-lhe a atenção. Deu uma olhadela intrigada ao
Costa, que continuava imóvel, e agachou-se para apanhá-la.
Afastou-se um pouco, por precaução, e alisou
meticulosamente a folha antes de a começar a ler. Um
sorriso sardónico atravessou-lhe a cara de orelha a orelha, os
olhos a saltarem das órbitas, os lábios a enrolarem
gulosamente as palavras. Deus dois saltos para o meio da
caserna.
- Prestem atenção, meus senhores - bradou como um
arauto. – Tenho a honra de vos anunciar que o nosso querido
pelotão tem mais um cornudo nas suas fileiras. Prestem
atenção, por favor: querido irmão, peço a Deus que te
encontres...Aiiii!
O uivo medonho do Barão rasgou os ouvidos atentos
do pelotão, ribombou pelo telhado de zinco, rastejou parada
fora, sobressaltou as sentinelas nos postos de vigilância.
Com o Costas às cavalitas, caiu de joelhos, a grunhir como
um porco na matança. A carta planou por instantes e aterrou
suavemente na cama do Fernandes.
- Ai que ele mata-me..ai...ai...acudam-me.
Costa não deixava a presa, os dentes bem cravados
no pescoço do adversário.
73
- Ai Jesus - gemia o Barão, lavado em lágrimas -,
este gajo mata-me. Ai..ai...
Ninguém dava mostras de intervir, as gargalhadas a
estoirar por todos os cantos, até que, por fim, Mendes pôs
cobro ao espectáculo:
- Deixa-o, Costa! Larga o gajo.
Costa rilhou os dentes com um rugido feroz e soltou
a presa, por fim. Mudo, correu para a cama e voltou à
letargia anterior.
Barão gemia lastimosamente, agarrado ao pescoço.
Mendes ajudou-o a erguer-se e arrancou-lhe a
camisa. A mordidela saltou sanguinolenta.
- Isto está feio, vai já à enfermaria.
- Tás tramado, pá. O Costa tá com a raiva.
E as gargalhadas tornaram a rebolar caserna fora.
74
- Sinto-me o culpado da morte do rapaz. Foi um
capricho meu, uma birra de criança. É um loucura rematada
seguir um trilho do inimigo, até os manuais mais rascas
dizem isso. Não chego a perceber o que me passou pela
cabeça.
- Esquece - atalhou Vasconcelos, pegando na
ballantines e tornando a encher os copos.
Já passava da meia-noite e o aquartelamento
mergulhara no silêncio. Só estavam os dois na messe. O
capitão recolhera cedo ao seu quarto. O alferes Coelho
andava no mato. E o alferes Silva estava acamado com um
forte ataque de paludismo.
Com o uísque a roer as inibições, Mendonça
experimentava um desejo galopante de desabafar, de
desenterrar fantasmas.
- Até ando com medo de me deitar. Na escuridão
começo a pensar no rapaz, a bombardear-me com perguntas.
- Já te passou pela cabeça que também me posso pôr
as mesmíssimas perguntas?
- Não percebo.
- Os gajos das armadilhas.
- Isso é outra história. Morreram quatro gajos, é
verdade. Mas eram inimigos. Além disso, nunca os viste
nem mais gordos nem mais magros. Nunca lidaste com eles,
nunca lhes falaste. É como ler no jornal a notícia da morte
duma centena de pessoas num cataclismo qualquer. Não nos
afecta praticamente nada. O meu problema é diferente. Eu
conhecia o pacaça, tinha-o como um excelente rapaz, era
uma força da natureza. Não preciso esforçar-me muito para
75
reconstruir a sua imagem. E isso dói. Não percebo como
procedi daquela maneira. Havia qualquer coisa malígna a
empurrar-me. O próprio furriel Neves estranhou a minha
atitude e eu, sem lhe der ouvidos, cheguei até a irritar-me
com as suas reticências. Nem tenho coragem de enfrentar o
pelotão. Todos me consideram o culpado. Sinto os olhos
cheios de rancor daquela malta a rasgar-me cá por dentro. A
nossa relação futura nunca mais será a mesma. Tudo será
diferente doravante.
Mendonça calou-se. Encostou a nuca à parede e
fechou os olhos.
- Passo horas seguidas a tentar interpretar a minha
reacção - prosseguiu depois. - Era óbvio que aquela decisão
era uma loucura e eu não me vi, estava cego.
Vasconcelos desabotoou a camisa, acalorado,
acariciou o estômago. Um sorriso perverso alongou-lhe o
bigode.
- Queres que te faça o diagnóstico?
Mendonça continuava encostado à parede, agora com
os olhos fixos no tecto.
- Mais uma brincadeira das tuas? Mas diz lá.
- Há quanto tempo não estás com uma mulher?
Mendonça endireitou-se, irritado.
- A que propósito vem isso?
- Na mouche! - A palmada na mesa fez saltar os
copos. – Aí está a causa de toda essa impulsividade.
- Qual causa?
Vasconcelos bebeu o uísque dum trago e afagou o
bigode antes de cravar o olhar trocista no outro.
- Perturbações psíquicas causadas pela ausência
prolongada de relações sexuais. Terapêutica: uma hora na
palhota duma preta.
- Queres acabar com a brincadeira?
76
Vasconcelos soltou uma gargalhada. Deu mais uma
palmada na mesa.
- Acertei mesmo no alvo, certo?
Mendonça levantou-se com brusquidão.
- Se preferes continuar nesses termos, vou-me deitar.
Não estou para te aturar.
- Eu não digo? Como explicas essa irritação crónica?
- Queres conversar a sério ou não?
Mendonça tinha-se levantado, crispado.
- Senta-te, estava a reinar. Ainda não acabámos o
uísque.
Mendonça aquiesceu. Reatou a conversa.
- Vou alterar as minhas férias. Quero gozá-las o mais
depressa possível. Em Lisboa, longe disto tudo, talvez me
consiga reencontrar.
- Fazes bem, quando regressares já muita água terá
corrido. Esta solidão, no meio de muita gente, é terrível,
deixa as pessoas confrontadas com as suas contradições. Põe
a nu a pergunta crucial: o que fazemos aqui? Faz-nos
compreender o absurdo desta guerra.
Inesperadamente, Vasconcelos desistiu de encher os
copos.
- Vou-me deitar. Não bebo mais. Merda pró uísque.
- Eu vou fazer a ronda - disse Mendonça com voz
tremida.
O facto não passou despercebido ao outro.
- Problemas?
- Não...não é nada. Vai lá deitar-te.
Vasconcelos insistiu:
- Queres que te acompanhe?
Mendonça enrubesceu, a boca arrepelada num tique.
- Se queres...
- Se começas a recear os teus homens dessa maneira,
estás liquidado.
77
Mendonça enterrou a cara nas mãos.
- O que queres que faça? É superior às minhas forças.
Quando me aproximo dos postos de sentinela estou sempre à
espera dum tiro. Não consigo controlar-me. Começo a
pensar: esta malta odeia-me, à mínima oportunidade
espetam-me um tiro. Não consigo arrancar esta obsessão da
cabeça.
- Que porra esta! Estou a ver que nem a terapêutica
da preta te pode valer. Estás metido numa grande alhada.
78
A noite estava negra. As nuvens negras e pesadas. De
tempos a tempos, ouvia-se o ribombar dum trovão lá longe.
Fugazes relâmpagos recortavam contra o horizonte as
silhuetas das casernas. O calor, carregado de humidade,
asfixiava, fazia as têmporas latejar.
Mendonça saiu do quarto furtivamente. Passou rente
à messe dos sargentos, rodeou o edifício da enfermaria
esbatido contra o céu de chumbo como um pagode e
aproximou-se do posto de sentinela.
- Sentinela – chamou.
Lá do alto, chegou-lhe um arrastar de pés pouco
apressados.
- Hei! Quem vem lá?
É o alferes Mendonça. É para te avisar que vou à
sanzala.
- Compreendido. Não há problemas.
Mendonça enrubesceu no escuro. Deplorou o tom
cúmplice que a voz do soldado velava.
- Vou falar com o soba.
- Comigo não há problemas. – retorquiu, embrulhada
numa pequena gargalhada, a voz lá do alto.
Mendonça sentiu-se impotente para ripostar.
Embrenhou-se na noite. Mais do que uma vez teve a
tentação de retroceder para o quartel que, envolto pela
iluminação periférica, era rutilante jóia engastada na noite.
Reminiscências fustigavam-no: farrapos de juras de
fidelidade feitas à namorada, estilhaços de normas morais
que pertenciam a outro mundo, tão distante e brumoso.
79
`
Entrou na sanzala. Novelos de fumo subiam dos
telhados. Sombras, vozes, percorriam a noite. Um cão pôsse a ladrar. Procurou a cubata de Ana. Uma pálida claridade
coava-se pelas frinchas da porta desconjuntada. Hesitou.
Coseu-se à parede..
O ridículo da situação incutiu-lhe coragem.
Tamborilou na porta.
- Quem é?
- Alferes Mendonça.
O vestido escarlate de Ana recortou-se no umbral.
`
- Posso entrar?
O assentimento veio mudo.
Um candeeiro a petróleo bruxuleava, cobrindo de
sombras as paredes descarnadas de adobes.
Mendonça sentou-se no catre, na rigidez do colchão
de capim. No chão, de terra batida, ainda fumegavam uns
restos de lume. A um canto um monte de camuflados sujos à
espera dos braços da lavadeira.
- Vim-te fazer uma visita. Senta-te junto a mim.
Ana obedeceu às ordens do alferes, com um olhar
manso. O vestido subiu mostrando as coxas fortes e jovens.
A mão do rapaz acariciou a coxa, tacteou o ventre, subiu ao
encontro dos seios.
- Despe-te.
O corpo nu da rapariga era uma estátua esculpida em
ébano. Mendonça despiu-se rapidamente e estendeu-se ao
lado dela.
Foi quando a imagem do Pacaça se entrepôs.
- Veste-te!
Um esgar de contrariedade arrepelou o rosto de Ana.
Enfiou o vestido com mal contida irritação.
- O nosso alferes tá a brincar.
- Se eu te explicasse não compreenderias.
80
Mendonça vestiu as calças. Sacou da carteira e tirou
uma nota.
- Toma!
- Não quero.
- Não precisas de dinheiro?
Amuada, Ana não respondeu. Sentou-se na cama.
De pé, Mendonça passeou o olhar pela miséria que o
rodeava. Pousou-o no vulto silencioso da lavadeira.
- Ouve, Ana, gostas de cá estar?
- Não, lá para o sul, na nossa terra, era melhor. Por
que nos trouxeram para aqui?
Mendonça pensou, constrangido, em toda aquela
gente arrancada brutalmente às suas terras ancestrais e
espalhada, como gado, pelas diferentes sanzalas: Calambata,
Madimba, Tamboco, Cuimba... Sob o pretexto de os furtar à
influência dos movimentos independentistas.
- É a guerra, Ana.
- Nós não fizemos mal a ninguém.
- Aqui estão protegidos dos terroristas.
Logo se arrependeu de ter proferido tais palavras
capciosas. Com certeza Ana tinha amigos, familiares, talvez
o noivo entre os guerrilheiros. Era ridículo falar-lhe em
protecção, em terroristas. Olhou-a nos olhos e, pela primeira
vez, viu um estendal de privações a bailarem-lhe nos olhos.
Atirou a nota para cima da cama.
- Sabes, Ana, no fundo, embora não pareça, estamos
no mesmo barco. Um barco em risco de ir ao fundo. Com a
diferença de que eu viajo nos camarotes e tu no porão.
No regresso ao quartel, a decisão estava tomada. Já
não regressaria das férias. O salto para França, os caminhos
do exílio esperavam-no de braços abertos.
81
Pinto mastigava lugubremente o guisado. Nos
últimos tempos, a alegria de viver parecia abandoná-lo. Já
nem mesmo o privilégio de ser faxina na messe dos
sargentos lhe levantava a moral. A cerveja sabia-lhe a mijo e
os bifes a sola. Estava no ponto de invejar os operacionais.
Pelo menos esses andavam no mato, visitavam outros
aquartelamentos. Desopilavam. E ele? Era como se estivesse
numa prisão. Os dias eram intermináveis e das noites nem
era bom falar.
- Tás cacimbado de todo - atiçava-o Malacão.
- Não posso continuar assim - resmungou, afastando
da frente o prato quase intacto. Descascou uma manga e
enterrou os dentes na polpa resinosa. Os fios da manga
enredaram-se –lhe nos dentes e, chateado, atirou o fruto para
o balde do lixo. Com a ponta da faca, pôs-se a palitar os
dentes.
O monte de loiça suja atulhava o lava-loiça.
“O Malacão não pense que vou lavar esta tralha
sozinho.”
Na verdade, nos últimos dias, mal acabava de servir
o almoço aos oficiais, o Malacão eclipsava-se sem comer
nada. Só reaparecia passado um bom pedaço, silencioso,
esbranquiçado, com um apetite voraz como nunca tivera.
Atirava-se à comida a ponto de rapar o fundo aos tachos.
Para o obrigar a levantar da cadeira e colaborar na lavagem
da loiça era um castigo. Só à força de palavrões.
- Andará o gajo a pirar-se para a sanzala? - cogitava.
- Mas assim à luz do dia?
82
Nesse instante, Malacão entrou sorrateiro como uma
sombra. Agarrou o tacho e vazou o guisado para o prato.
Começo a engolir fartas colheradas. A maça de adão subia e
descia vertiginosamente.
- Queres que vá à cozinha buscar outra tachada? –
troçou Pinto, começando a lavar a loiça.
Malacão nem levantou os olhos do prato.
- Outra tachada? - repetiu. Depois compreendeu: Vai
bardamerda.
Continuou a devorar o guisado.
- Estou à tua espera para lavar a loiça.
- As cadelas apressadas parem os filhos mortos ou
malucos.
- A tua mãe devia ser das apressadas.
- Já tu não tens problemas desses, foste feito dum
monte de merda.
Pinto alvejou-lhe a cabeça com o esfregão. Malacão
esquivou-se e o projéctil esparramou-se contra a parede.
- Cegueta.
Pinto bufava, congestionado`.
- Tás a ficar cacimbado de todo – comentou Malacão
com um olhar compreensivo, sem deixar de mastigar. –
Tens falta de uma coisa que eu cá sei.
- Se és tão esperto, diz lá o que é?
- Chicha.
- E tu, não tens?
- Eu? Eu...pois claro...ou julgas que sou de pau?
- Onde costumas ir à hora à hora do almoço, mal sais
da messe? – não deixou arrefecer Pinto, com um ar velhaco
no carão bonacheirão.
Malacão encolheu-se como um coelho bravo.
Suspendeu a colher entre o prato e a boca aberta.
- Que paleio é esse?
83
Pinto compreendeu que jogara uma cartada certeira e
abocanhou logo a oportunidade.
- Sei tudo - martelou.
- Tudo...o quê?
- Tudo.
A colher regressou cheia ao prato.
- Tudo!- repetiu Pinto.
- A gaja é mesmo boa – confessou Malacão.
Pinto teve a percepção de que estava no limiar duma
descoberta mirabolante. Enxugou as mãos e sentou-se
defronte do camarada.
- Conta lá.
- E tão branquinha!
O sangue tingiu o rosto redondo do Pinto.
- Tu...tu andas com a mulher do capitão!?
Só então Malacão compreendeu que caíra numa
esparrela.
- Não sabes de nada – gritou, furioso. - Estiveste a
tirar nabos da púcara. - Vai lá lavar a loiça e deixa-me em
paz.
Pinto regressou ao lava-loiça, cabisbaixo. Os olhos
matreiros do Malacão perseguiam-no.
- Se continuares a lavar a loiça sozinho, talvez um dia
te conte tudo. Já agora, traz-me um café e um conhaque.
84
- Traz-me uma cerveja, Pinto - berrou o furriel
Magalhães.
- Há mais arroz? - perguntou o sargento Martins.
- Não há, não, meu sargento.
- E na cozinha? - insistiu o sargento.
- Eu queria trazer mais, mas o cozinheiro não deixou
– explicou Pinto. - Só quando chegar o 3º pelotão da
Madimba é que sabem se sobra ou não.
- Ó Máximo, você está a cortar a ração?
- Só assim é que ele pode comprar um carro quando
chegar à metrópole - espicaçou o furriel Reis.
O furriel Máximo ficava fulo com estes apartes. O
suor borbutava-lhe na fronte e os olhos verdes agitavam-se
nos óculos de míope. Ripostou com voz trémula:
- O que me consta é que tu tens intenção de levar um
unimog. Os unimogos estão sempre avariados porque estão a
desaparecer peças constantemente.
- Mais vale isso do que matar a malta à fome.
- Lá isso é verdade – corroborou o furriel Magalhães.
- Olha quem fala. Ainda esta manhã não havia
nenhum rádio operacional para o 3º
pelotão sair intrometeu-se o furriel Pinho.
A discussão generalizou-se a toda a messe. A eterna
guerra entre operacionais e especialistas. Gritava-se e
gesticulava-se o que deu tempo para o Pinto emborcar uma
cerveja.
- Vocês, os operacionais só servem para andar com a
mochila às costas - gritava exasperado o furriel Reis.
85
- Cala-te, rodinhas. És mecânico porque tiveste uma
cunha maior do que uma berliet. Nunca tinhas visto um
motor na tua vida. Vocês são todos meninos das cunhas.
- E vocês nem essa esperteza tiveram - saltou o
furriel enfermeiro Ribeiro.
- Deus me livre de um dia cair doente. Este seringas
era carniceiro na vida civil.
Pinto já não estava a gostar nada da brincadeira.
Aproveitara para dar um espreitadela à messe dos oficiais e
estes estavam prestes a terminar a refeição. A mulher do
capitão até já pedira o café.
“Mau, mau, se estes gajos não se largam, tou
tramado”, cogitava, apreensivo, vendo a discussão cada vez
mais acesa.
Logo quando, vencendo medos e fantasmas, decidira
avançar com o arrojado plano de apanhar o Malacão e a
mulher do capitão em flagrante delito.
Quando já via tudo perdido, Malacão veio em seu
socorro. Avançou messe dentro em passo desenvolto, com o
ar circunspecto que sempre afivelava em tais circunstâncias.
- Meus senhores - bradou. - O nosso capitão pede o
favor de fazerem menos barulho.
- Vêm? - exasperou-se o 1º sargento Matos. - Estão
sempre a dar oportunidades aos oficiais de nos pregarem
raspanetes.
- Eles que vão à merda - resmungou o furriel
Máximo, ainda exaltado.
- Ouvir raspanetes de garotos - lamentava-se o 1º
sargento. - Tenho filhos mais velhos do que eles.
Malacão piscou um olho ao Pinto.
“Nem sabes o que te espera, grande sacana” - sorriu
este. - Hoje não escapas.
*
86
Teresa despira-se a aprontava-se para se estender na
cama. Habitualmente, aproveitava aquela paz depois do
almoço, enquanto o marido e os alferes ficavam na messe a
beber e a fumar, para saborear uma boa hora de repouso.
Aquela incursão no teatro da guerra, que a princípio
tanto a excitara, estava a tornar-se fastidiosa. O único
atractivo que ainda perdurava naquela aventura era o prazer
de ser o centro das atenções, de se sentir cobiçada por
centenas de olhos esfomeados.
- Isto é um campo de concentração - desabafava para
o marido.
- Eu bem te avisei. Mas não me deste ouvidos.
- Sou caprichosa, bem sabes.
- Foi isso que me atraiu em ti.
Sorriu à evocação do galanteio do marido quando,
repentinamente, a porta escancarou-se e um soldado com o
quico enterrado até aos olhos esgazeados irrompeu quarto
dentro.
- Ei, o que é isto? - exclamou assustada, cobrindo-se
com o lençol.
Pinto estacou como um boi na arena. Resfolegava,
desorientado, alagado em suor.
- Quem é o senhor? - tornou Ana, já recomposta.
Pinto soltou um urro de animal ferido de morte e
fugiu, tombando na carreira cega, uma cadeira que se lhe
atravessou no caminho.
Teresa franziu a testa, intrigada, e foi cerrar a porta.
“Há cada coisa!”.
*
Empoleirado na sanita, recomposto da estupefacção
inicial, Malacão estava prestes a rebentar de riso. Pulmões
em brasa, as lágrimas saltavam-lhe dos olhos em catadupa.
“Ai que eu rebento, ai que eu rebento”
87
“Por fim, a gargalhada explodiu em ondas fragorosas
que lhe deixaram as pernas a tremer como vimes.
Pelo orifício, que abrira na parede entre a casa de
banho e o quarto do capitão, por onde todos os dias
espreitava a mulher, assistira, do princípio ao fim, ao
monumental espectáculo do Pinto.
Indefeso, deixou-se submergir por nova avalanche de
hilaridade.
“Ai que eu rebento, ai que eu rebento.”
No quarto, de olhos arregalados, assustada, Teresa
vestiu-se apressadamente e correu a refugiar-se na messe
onde os oficiais travavam animada partida de póquer.
88
Formada na parada, a Companhia derretia sob a
explosão do sol a pino. Tudo era branco, duma brancura que
entrava pelos olhos e fritava os miolos.
- Que será desta vez? - interrogavam-se todos. Coisa boa não é.
O sol mordia as costas e o suor encharcava as
camisas.
Os alferes e os furriéis passeavam frente à formatura
com caras de caso. Até o primeiro-sargento Matos levantara
o nariz dos calhamaços da contabilidade e seguia o decorrer
dos acontecimentos encostado à ombreira da porta da
secretaria. Só o alferes Vasconcelos é que arvorava um
sorriso trocista, francamente divertido com o espectáculo.
Centenas de olhos permaneciam cravados na porta do
gabinete do capitão, ansiosos por vê-lo surgir.
- Tá a fazer render o peixe - murmuraram na última
fila.
- Silêncio - berrou o alferes Silva.
- O chicalhão tá a precisar dum aperto - rosnou uma
voz.
Contudo, a expectativa suplantava todos os rancores.
Para o capitão ter mandado formar a companhia o caso devia
ser grave. Ninguém escapara, desde os cozinheiros aos
enfermeiros, passando pelos básicos e faxinas. Somente as
sentinelas permaneciam nos postos.
Quando todos já começavam a desesperar, o capitão,
irrompeu do gabinete em passo marcial. Sob a boina,
apercebia-se o rosto severo, impenetrável.
89
- Atenção, Companhia, senti..DO - rugiu o alferes
Silva.
- Mande descansar - sibilou o capitão.
- Companhia, descan..SAR! À vontade.
O capitão postou-se frente aos homens, verrumandoos um a um.
- Meus senhores, a primeira coisa a dizer é que me
sinto profundamente magoado. Há entre vós gente que não
soube merecer a confiança que vos concedi. É a pior ofensa
que me podiam ter feito.
A Companhia não piava, esquecida a voracidade do
sol. O capitão deu dois ou três passos, rodou nos tacões e
prosseguiu a sua diatribe:
- Ontem, alguém se introduziu nas instalações dos
oficiais com ignóbeis intuitos. - Alçou o dedo - Quero o
culpado. Terá este a hombridade de dar um passo em frente?
Quem foi?
Ninguém se moveu. Os olhos do capitão passeavam,
perfurantes, pelos rostos congestionados.
- Ninguém se apresenta? Pensei que estava a lidar
com homens mas enganei-me. Já que é assim, ficam desde já
suspensas as colunas a S. Salvador e proibidas as visitas à
sanzala. E a ração de cerveja será cortada para metade. Até
ao fim da comissão, se for preciso. Podem estar certos de
que o culpado não irá escapar. Mande destroçar, alferes
Silva.
- Ai, Jesus - gemeu Malacão.
Apesar do calor, os dentes do Pinto batiam como
castanholas.
- Atenção, Companhia, direita...ER - grasnou o
alferes. - Destro...ÇAR.
90
A malta ficou surpreendido com a inesperada entrada
do alferes Mendonça na caserna.
- Boa noite.
Ninguém se mexeu, as conversas adiadas nos lábios.
Mendonça aventurou-se até ao meio da caserna,
vigiado por olhares de soslaio. Largou em chorrilho as
palavras estudadas:
- Como devem saber, por em breve para férias. Não
quero partir sem vos dar uma explicação, esclarecer certas
coisas. - As palavras pareciam esmagar-se contra os rostos
sombrios, precocemente adultos. – Quero, em primeiro
lugar, dizer-vos que lamento tanto ou mais do vocês a morte
do...vosso camarada...do Pacaça.
- Lamentar não chega - falou Mendes, logo
coadjuvado por um murmúrio cavo.
Mendonça atirou-se com sofreguidão àquela brecha:
Como vos queria dizer, não me limito a lamentar. Sei
que não poderei restituir a vida ao vosso camarada mas irei
fazer os possíveis por atenuar o meu erro. Era isto que vos
queria dizer.
- Fazer o quê? – tornou Mendes.
Já havia rostos interessados, olhares curiosos.
- Mal chegue à metrópole, irei procurar de imediato
os pais dele. Sei que vivem com dificuldades mas a minha
família é, felizmente, bastante abastada e poderá apoiá-los
nesta situação tão difícil.
Mendonça olhou ao redor, com as lágrimas nos
olhos.
91
- Talvez vos custe a a acreditar mas tenho-vos em
grande estima. Foi no vosso convívio que compreendi
muitas coisas. Recebi grandes lições. Nunca, nunca mais
poderei esquecer o tempo que passámos juntos. Brevemente,
compreenderão melhor o sentido das minhas palavras.
Fernandes saiu do seu canto com uma garrafa nas
mãos.
- É bagaceira do Minho. Beba que é de estalo.
Mendonça abraçou-o.
- Obrigado. Obrigado por tudo..
- Eh, meu alferes, não beba tudo, deixe uma pinga
prá malta - alarmou-se o Barão, saltando da cama.
E logo a caserna explodiu em algazarra.
92
Para espanto geral, Pinto passou a usar óculos de sol
e deixou crescer um bigode que lhe dava um ar façanhudo
que desvirtuava completamente a sua índole de pacato
aldeão minhoto.
- Mas, ó Pinto, até de noite? - estranhavam.
Pinto desfazia-se em explicações, evocava a sua
galopante alergia à luz, à mais ténue claridade.
- Andas a treinar para toupeira? - ria Malacão.
- És o culpado de tudo - enfurecia-se Pinto. - Nunca
mais te hei-de perdoar.
- Deixa lá que ela já vai embora dentro de dias. acalmava-o Malacão. - Pelo que oiço lá na messe, só olhou
para a tua ferramenta em pé. Não tenhas medo que não te
poderá reconhecer.
Logo uma gargalhada irreprimível o sacudia de alto a
baixo e lhe enchia os olhos de lágrimas.
Pinto ficava com vontade de lhe saltar em cima mas
logo o medo de dar nas vistas reprimia o impulso.
Aconchegava os óculos na cara e rosnava por baixo do
bigode:
- Ainda mas hás-de pagar.
Malacão fazia-lhe peito, destemido, ameaçador.
- Queres que dê com a língua nos dentes? Já te
esqueceste que é por tua causa que a malta não pode ir à
sanzala nem a S. Salvador? Que é por tua causa que
andamos todos com as mãos gastas de tanto esfregar o pau?
- Fala mais baixo - assustava-se Pinto. - Olha que te
podem ouvir. Sempre fomos amigos.
93
Apaziguados, lá iam beber mais uma cerveja que,
criteriosa e alternadamente, carregavam na conta quer dos
sargentos quer dos oficiais.
- A gaja é mesmo boa - suspirava o Malacão.
Pinto acariciava o bigode, sonhador e, sem palavras
para exprimir o que lhe lavrava a alma, deixava a cerveja
escorrer garganta abaixo a acalmar o fogo que lhe devorava
as entranhas.
94
Teresa e Mendonça partiram para Luanda no mesmo
táxi-aéreo.
À última hora, tiveram um inesperado companheiro
de viagem: o Barão, a contas com uma hepatite de quatro
cruzes.
- Tens que nos dizer como isso se arranja, ó Barão despediam-se os camaradas.
Pela primeira vez, desde que se conheciam, o Barão
não teve forças para ripostar. Limitou-se a um simulacro de
sorriso amarelado.
No dia seguinte, inesperadamente, num acesso de
brandura, o capitão Rosado levantou o racionamento da
cerveja e a proibição de irem à sanzala. A Companhia
reencontrou rapidamente a rotina habitual: patrulhas,
bebedeiras, caçadas, paludismo, saudades, solidão. Os dias
as esgotarem-se lentamente na clepsidra daquele tempo
suspenso.
A época do cacimbo estava à porta. Mais clemente o
calor e amansadas as chuvas, os morros começavam a
amarelecer, à espera das queimadas que iluminavam as
longas noites estreladas dos trópicos.
95
ENTRE MORROS E CAPIM
O aquartelamento encarrapitado no cimo do morro. A
meia encosta, a sanzala.
Ao redor, a omnipresença dos morros verdes de capim.
Nas vertentes, as manchas escuras e densas da mata.
Finalmente, após longa espera, os maçaricos chegaram. À
porta de armas, uma enorme bandeirola de pano branco, letras
garrafais pintadas em vermelho vivo, fazia as honras da recepção:
«A RAZÃO DA VOSSA TRISTEZA É A RAZÃO DA
NOSSA ALEGRIA.»
Os velhinhos, em polvorosa, rodearam a coluna. Troçam,
hílares, do ar aparvalhado dos recém-chegados.
- Estes maçaricos ainda cheiram a sal.
- Estávamos com medo que se tivessem perdido na picada.
- Aqui não podem chamar pela mamã.
Mas logo a saudade desponta. Abruptamente, a fachada
rude esboroa-se.
- Vem alguém de Viana?
- De Chaves?
- De Leiria?
Reencontros. Abraços. Corações a estoirar na boca.
Um tropel de emoções a rasgar caminhos largos de
ternura, a correr como sombras pela imensidão do capinzal.
ISBN 978-2-9813189-3-0
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Entre Morros e Capim