MANUEL SANTOS CARVALHO Entre Morros e Capim Histórias da Guerra Colonial Título: Entre Morros e Capim (Histórias da Guerra Colonial) Autor: Manuel Santos Carvalho Capa: Aquartelamento no Norte Angolano ISBN 978-2-9813189-3-0 Reservados todos os direitos de edição e tradução 2 MANUEL SANTOS CARVALHO Entre Morros e Capim 3 Do autor: Saga - Editora Peregrinação - 1989 Um poeta no Paraíso - Éditions Luso - 1994 Parc du Portugal - Éditions Luso - 1997 À beira-Main - Éditions Luso – 2003 Ti Vida – Edição do autor – 2012 O homem que falava com as flores - Edição do autor-2012 As belas manhãs de Maria Constança - Edição do autor -2012 Manuel Carvalho nasceu em Cicouro, Miranda do Douro. Colares e a Batalha foram lugares que o viram crescer. Viveu grande parte da juventude nos Outeiros da Gândara dos Olivais, nos arredores de Leiria. Fez a guerra colonial em Angola. Depois, correu muitas terras até chegar a Montreal, no Canadá, em 1980. Tem colaboração literária espalhada por diversos jornais e revistas em Portugal e na diáspora. É o coordenador da revista on-line "Satúrnia - Letras e Estudos Luso-Canadiano 4 Às vitimas da guerra 5 6 Norte de Angola. Calambata. Tempo de guerra. O aquartelamento encarrapitado no cimo do morro. A meia encosta, a sanzala. Ao redor, a omnipresença dos morros verdes de capim. Nas vertentes, as manchas escuras e densas da mata. Finalmente, após longa espera, os maçaricos chegaram. À porta de armas, uma enorme bandeirola de pano branco, letras garrafais pintadas em vermelho vivo, fazia as honras da recepção: «A RAZÃO DA VOSSA TRISTEZA É A RAZÃO DA NOSSA ALEGRIA.» Os velhinhos, em polvorosa, rodearam a coluna. Troçam, hílares, do ar aparvalhado dos recém-chegados. - Estes maçaricos ainda cheiram a sal. - Estávamos com medo que se tivessem perdido na picada. - Aqui não podem chamar pela mamã. Mas logo a saudade desponta. Abruptamente, a fachada rude esboroa-se. - Vem alguém de Viana? - De Chaves? - De Leiria? Reencontros. Abraços. Corações a estoirar na boca. Um tropel de emoções a rasgar caminhos largos de ternura, a correr como sombras pela imensidão do capinzal. 7 8 O nosso pelotão ficará alojado naquela caserna apontou o alferes Mendonça. - Instalem-se o melhor possível. Dentro de duas horas o nosso sargento Martins irá proceder à distribuição de lençóis e cobertores. Fernandes carregou a mala às costas e seguiu na direcção apontada pelo alferes. O interior da caserna apresentava um ar caótico. Os beliches descarnados, colchões esventrados, bagagens amontoadas por toda a parte, detritos e papéis pelo chão de terra batida. Alijou a mala e sentou-se na borda de uma cama, a abarcar gradualmente a situação. Maçaricos e velhinhos trocavam galhardetes. - O que me dás em troca deste armário que eu próprio fiz? - Troco esta ração de combate por um maço de cigarros do puto. Quem quer? - O que vale este espelho? Um gajo vê-se poucas vezes ao espelho mas mesmo assim faz jeito. - Não tens nada para trocar? Fernandes ergueu os olhos para o velho. Muito alto, pele e osso no camuflado a cair aos bocados já sem pitada de cor. Pelos rasgões apareciam bocados de pele espessa e acobreada, e tufos de pêlos. No rosto acavalado, coberto de barba duma semana, os olhos eram pestanudos e mansos. - Trocar por quê? - Por um cão. - Um cão?! O velho nem deu pela estupefacção que causara. - Sim, um cão inteligente e bonito. 9 Fernandes não sabia de devia rir ou mandar o outro à merda. -Mas para que diabo quero eu um cão? - Tu nem sabes a companhia que faz um cão. Aqui, neste inferno a companhia dum cão é uma coisa maravilhosa. Se ficares com o Fantasma vais ver que não te arrependes. - Não tenho nada para trocar, pá. Vai chatear outro. O grandalhão ficou momentaneamente desorientado, a baloiçar os braços esqueléticos. Mas voltou logo à carga. - Mas não queres ver o cão? Não perdes nada. É um bicho muito fino. - Se é assim tão fino, leva-o contigo. - Levava, levava, mas é muito complicado. É preciso uma data de trapalhadas, documentos, vacinas. Podes crer que o levava, vou ter muitas saudades dele. - A voz estrangulava-se, os olhos humedeciam. – Sem dono, até são capazes de matá-lo. - Deixa lá ficar o cão, homem. Eu trato dele. O velho quase desatou a chorar. A sua manápula esmagava o ombro do “maçarico”. - Eu sabia, pá. Eu sabia que podia confiar em ti. Nestas coisas, nunca me engano. Vou chamar o Fantasma para que tu o vejas. Em dois saltos, atingiu a porta a enfiou os dedos na boca. O assobio partiu veloz. - Não tarda nada, está aí. Mal tinha acabado de falar, um grande cão, branco e felpudo, irrompeu pela caserna em carreira cega. Atirou as patorras ao peito do dono, a ganir tristemente. A baba escorria entre os dentes brancos e aguçados. - Quieto, Fantasma, quieto. Na caserna elevou-se um coro de protestos. - Leva daqui esse hotel de pulgas. 10 - Se ele vem para este lado, dou-lhe um tiro. - É mais burro do que o dono. - Senta-te, Fantasma. O cão obedeceu. A cauda farfalhuda varria o chão, os botões pretos dos olhos pregados no dono. De quando em quando, lançava um gemido dolorido. - A malta gosta do Fantasma. Estas bocas não são do coração. É bonito, não é? Ficas com ele? - Que remédio! - Trata bem dele, ouviste? Dá-lhe banho uma vez por semana. Não tem uma pulga. Anda mais limpo do que estes gajos todos juntos. - É manso? - É um autêntico cordeiro. Só não gosta dos oficiais. Ele lá terá as suas razões. - Assim, fico mesmo com ele. Já tenho alguém que pensa como eu. - Alçou o indicador para o bicho que o escutava compenetrado, a língua rosada de fora. - Toma atenção, pá. Sou o teu novo dono e também não gosto de oficiais. Vamos dar-nos às mil maravilhas, não é, pá? 11 Costa rodeou uma cama, saltou por cima dum caixote e conseguiu acercar-se do velho de melenas aloiradas. Este, sobre a mala a abarrotar, fazia esforços inauditos para fechála. O suor corria-lhe pelo rosto e pelas costas. - És o Lopes? - Sou - respondeu o velho, porfiando no esforço. - És tu que fazes tatuagens? - Fazia. Costa vacilou perante a resposta torta. Ficou momentaneamente mudo, como que interessado na tarefa do outro. - Queres que te ajude? Lopes olhou-o desconfiado. - Já agora, dá aqui uma mão - aceitou, por fim. Com certa dificuldade, lá conseguiram fechar a mala. - Tens que atar um cordel à volta, quando não rebenta-te pelo caminho. - Onde é que eu vou desenrascar um cordel - irritouse Lopes. - Ninguém tem um cordel a mais? - gritou para a caserna. Não obteve resposta. - Devo ter um em qualquer parte - ofereceu Costa. Lopes tirou o lenço do bolso e passou-o pelo rosto. - Afinal, o que queres, pá? - perguntou, a contragosto. - Queria que me fizesses uma tatuagem. - És parvo ou quê? Achas que estou com pachorra para fazer tatuagens? - Era simples. Uma coisa rápida. 12 - Vai dar uma volta, pá. Não tens mais nada em que pensar? Costa não admitia a ideia de perder aquela oportunidade. - Pago-te o que quiseres. - És surdo ou parvo? Vai chatear outro. - O velho arredou-o com brusquidão.- Sai da frente que vou beber uma cerveja à cantina. Costa seguiu-o para da fora. - Não te custava nada... - Olha o que me havia de tocar prá despedida. - Dou-te cinquenta paus. Dinheiro do puto. Lopes estacou, sob o céu ardente. Fitou irritado o outro. - És um grande teimoso. Costa ganhou renovadas esperanças. - Aceitas? Uma nota do puto, nova em folha. O velho estava irremediavelmente preso ao chamariz. - Já viste a trabalheira que me vais dar? Sei lá onde meti as agulhas. Tornar a desfazer a mala...! - Eu dou-te uma ajuda. Não tenhas problemas. - És do tipo carraça. Afinal, que tatuagens queres? - Uma coisa simples. Um coração com uns dizeres. - Quais dizeres? Costa enrubesceu. - Diz lá! ` - Amo-te, Maria da Luz - atreveu-se a confessar. Lopes largou a rir. - Só um apaixonado poderia ser tão teimoso. Logo vi. Bom, vamos beber uma cerveja e depois tratamos disso. Tens aí os cinquenta paus? 13 O Barão arrumou a mala a um canto, desembaraçouse das cartucheiras e da G3 e escapuliu-se da balbúrdia da caserna. Entrou na cantina. Conseguiu, à força de cotoveladas, aproximar-se do balcão. A gritaria era ensurdecedora. - Uma cerveja - pediu. O seu camuflado novo em folha contrastava violentamente com os camuflados desbotados e esfarrapados da maioria dos presentes. - Tás com sede, maçarico? - arrotou-lhe na cara um velho de carão avermelhado. - Tá-se a ver, não? O cantineiro não tinha mãos a medir. - Amanhã, não há mama pra ninguém - desabafou, em jeito de vingança. - Vou fazer o balanço e passar a pasta ao maçarico. O Barão agarrou a cerveja de cima do balcão. - Não tens uma chave para abrir isto? - perguntou ao cantineiro. - Para que queres a chave? - riu-se este. Tens a esquina do balcão ou então os dentes. - Estes maçarico pensam que estão numa estância de repouso - riram-se ao redor. O Barão encolheu os ombros, resignado. Seguiu o conselho do cantineiro e a espuma jorrou para o chão. Meteu o gargalo à boca. A cerveja soube-lhe a caldo. - Não há cerveja fresca? Novas risadas. Um velhinho grandalhão assentou-lhe uma palmada nas costas. 14 - Se queres cerveja fresca vai à messe dos senhores oficiais ou dos sargentos - aconselhou, irónico. - A esses não falta cerveja fresca. O nosso frigorífico não dá para a primeira rodada, principalmente hoje. - E uns gajos tão sabidões como vocês permitem isso? - Donde és tu, ó vivaço? - perguntou um tipo baixote com um grande colar de missangas ao redor do pescoço bronzeado. - Lisboa - deixou cair displicentemente o Barão. Sabes onde fica? - O Luís? - galhofou uma voz. - Sabe lá onde fica Lisboa. É de trás do sol posto. - És de Lisboa? - tornou o velhinho grandalhão. - Eh Rijo, chega aqui. O interpelado voltou-se com uma cerveja na mão e um olhar irónico. Tinha cabelo preto, muito bem penteado, um bigode aparado a debruar o lábio cheio. - O que há? - Tens aqui um conterrâneo. - És lisboeta? De que zona? - Alfama. - Eu sou do bairro da Liberdade. - Belo - alegrou-se o Barão. - Não se consegue uma cerveja fresca, pá? Isto sabe a mijo. - Anda daí. A noite caíra abruptamente, percorrida por um bafo escaldante. Na parada, cheia de vozes e sombras, avultavam as silhuetas das viaturas. - Ainda há pouco estava sol e já é de noite - admirouse o Barão. - Aqui é assim. É a terra do tudo ou nada. - E sempre assim este calor? 15 - Na época das chuvas é. Quando vier a estação do cacimbo, lá para Março, arrefece um pouco. Continuava a balbúrdia nas casernas, montes de caixotes e malas por todo o lado. - Hoje ninguém vai dormir - prognosticou Rijo. - Quem é capaz? - concordou o Barão. - Nem os que partem nem os que fica. - Vamos ali, à messe dos sargentos. - Espreitaram pela janela. A confraternização estava no auge, as mesas pejadas de garrafas de cerveja, os cinzeiros a abarrotar de piriscas. Rijo entreabriu a porta. - Psst...psst... Um furriel corpulento aproximou-se, passos incertos, olhos a transbordar de cerveja. - Furriel Gomes, arranje aí duas cervejinhas... - Golpista até ao último minuto, eh Rijo! - Ande lá, faça esse favor cá ao rapaz. Sempre nos demos bem... - Não me atires mais areia prós olhos. Aguenta aí. - Este é dos porreiros - confidenciou Rijo. O furriel voltou com as cervejas. - Tomem lá as meninas. - Obrigadinho, meu furriel. Vai ganhar o céu. - Vai bardamerda. Rijo tornou a cerrar a porta. - Vamos abancar ali no refeitório. Toma lá a tua. Estão quase geladas. Na cozinha, os cozinheiros ultimavam o jantar. Sentaram-se numa das mesas, a saborear a bebida. Somente os mosquitos evolucionavam por ali. - Há aqui mosquitos a dar com um pau - queixou-se o Barão, às palmadas ao pescoço. 16 - Hoje andam felizes com tanto sangue novo. O nosso já não lhes sabe a nada. O Barão olhou o serrilhado dos morros esbatidos contra o céu para lá do arame farpado. Uma dor arrepanhoulhe o peito. - Isto vai custar... Rijo deu-lhe uma palmada nas costas. - Não te armes em herói, bebe umas cervejas, arranja uma lavadeira que te lave também os tomates e daqui a dois anos estarei em Lisboa à tua espera. Já acabaste a cerveja? Agora vamos até à messe dos oficiais dar o golpe àqueles mecos. 17 O capitão Anselmo refastelou-se no sofá. - Que horas são? - perguntou, num bocejo. - Quatro da madrugada - respondeu o capitão Rosado, consultando o relógio. Estavam sós na messe dos oficiais, naquela hora morta. - Bom, agora que concluímos a transferência da Companhia, bem merecemos um copo. Aceita, Rosado? - Excelente ideia. - Uísque? - De acordo. Anselmo abandonou a comodidade do sofá e deu a volta ao balcão do bar. Apanhou a garrafa da prateleira e retirou dois copos da copa. - Como? - Com gelo. Anselmo encheu os copos até meio. Abriu o frigorífico e tirou uma cuvete do gelador. - Felizmente que os senhores alferes ainda nos deixaram algum gelo. - Pôs a cuvete debaixo do fio de água da torneira. – Quantos cubos? - Dois, por favor. Ficaram a bebericar de pé, cada qual do seu lado do balcão. ` À terceira golada, Anselmo pousou o copo. - Permite-me alguns conselhos, Rosado? - Até lhos agradeço. - Vamos, então, sentar-nos. Acomodaram-se no sofá. 18 - Sabe qual foi o meu maior problema? A disciplina. Não a disciplina dos quartéis da metrópole: formaturas impecáveis, botas engraxadas, cabelo cortado. Aqui é diferente. Não podemos transigir é em aspectos como rondas, reforços, limpeza, entre outras coisas. - Tenho a experiência da Guiné. - Na Guiné é diferente. Como estamos numa zona de passagem, pode-se passar a comissão sem contacto directo com o inimigo e, irresistivelmente, há a tendência para o abandalhamento. É esse abandalhamento que é perigoso. Quando menos se conta, pumba, levamos uma porrada tremenda. Olhe, se quer ter os homens na mão, seja intransigente nos pormenores, faça-os sentir que não podem andar à balda. Eu não permitia troncos nus, exigia que o subir e arrear da bandeira fossem feitos a preceito, não prescindia das formaturas antes das refeições. Tudo isto pode parecer irrisório mas, mais lá para a frente, verá como tem importância. Estou a aborrecê-lo? - Nem por sombras, é muito interessante o que está a dizer. O capitão Anselmo sorriu e esticou as pernas. - Eu estou a falar-lhe disto porque teria gostado que o meu antecessor me tivesse alertado também. Ter-me-ia evitado muitos dissabores. Dou-lhe um exemplo: eu vinha cheio de belos planos. Nada de messes, comida igual para todos. Passados oito dias, os soldados já davam palmadas nas costas dos furriéis e dos alferes, pouco faltava para os tratarem por tu. Já não havia ordem que não fosse discutida. Estávamos quase inoperacionais. Vi-me grego. Fui obrigado a tomar medidas radicais. Uma messe para os oficiais, outra para os sargentos, refeitório para o resto da malta. Daí para a frente tudo começou a correr lindamente. Se você falar com o pessoal, todos me consideram um bom tipo. - Riu-se. - E 19 sabe porquê? Porque também nunca deixei acabar a cerveja e o tabaco na cantina. Fixe bem este pormenor, não esqueça. - Não esquecerei - riu Rosado. - Vamos beber outro uísque? É quase manhã, nem vale a pena ir para a cama. - Isso é lá consigo. Pela minha parte, vou ter dois anos para pôr o sono em dia. - Passe cá o copo. Enquanto vertia o uísque, Anselmo mudou subitamente de assunto: - E lá pela metrópole? A malta continua a fazer encontros regularmente? Quando Rosado respondeu, já Anselmo se instalara de novo a seu lado. - Sabe, Anselmo, está cada vez mais generalizada a ideia de que esta guerra não tem solução militar. Os capitães estão fartos de fazer comissões no ultramar, de queimar a juventude longe da família e dos amigos. - Só há uma solução. Todos nós sabemos isso. Anselmo bebeu uma golada sequiosa e olhou o camarada nos olhos. - É preciso derrubar este regime e mudar as regras do jogo. E só nós o poderemos fazer. - Nos encontros, já toda a gente compreendeu isso, poucas vozes discordantes se ouvem. - Se assim é, está para breve o grande dia. Ainda me dá mais vontade de chegar o mais depressa possível a Lisboa. Calaram-se. A noite começava a diluir-se. Já se ouviam vozes à solta pela parada. 20 Após alguns dias de sobreposição, os velhinhos acenaram efusivos adeus e treparam para as viaturas que logo se perderam a roncar picada abaixo, envoltas em nuvens de poeira, com pressa de chegar a Luanda. Ficou um silêncio de confins do mundo. Ao redor, a muralha dos morros, as manchas misteriosas das matas, o azul esbranquiçado do céu. Foi então que toque do clarim, anunciando o almoço, serpenteou parada além, despertou a bandeira que desfalecera no mastro, ricocheteou nos telhados de zinco das casernas, para logo ser engolido pela bocarra abrasadora do sol a pino. - Toca a formar - gritava o alferes Vasconcelos. Quebrado o torpor, todos se apressaram a entrar nas casernas à procura de pratos e talheres. - Onde raio meti eu o garfo - lamentava-se o Barão, revolvendo o armário. - Sabes lá tu onde cabeça, quanto mais o garfo – troçou Américo. Ainda pouco afeitos à nova rotina, íam surgindo aos magotes, aturdidos, para a fritadeira da parada, engrossavam lentamente a formatura. Já os faxinas, comandados pelo furriel vagomestre Máximo, numa azáfama, colocavam as terrinas da sopa sobre as mesas. - Mande entrar a malta, meu alferes - lamentou-se alguém. - O sol derrete. - Ainda falta gente. O Barão bamboleava-se parada adiante. - Corre, cabrão - gritaram-lhe. 21 - Gajos destes só à porrada. - A tiro. - Tão com pressa de meter o focinho na gamela? perguntou, sarcástico, o Barão, entrando calmamente na cauda da formatura. - A primeira fila pode entrar - ordenou o alferes Vasconcelos. - Em fila indiana, sem abandalhamentos. - Hoje temos feijão frade com atum ou atum com feijão frade? - troçou o Barão. - Estás com sorte, Barão - ripostou o alferes -, qualquer dia vais ter feijão frade com feijão frade. 22 Nunes fazia a distribuição da comida. - Já todos têm ovo? – perguntou. - Eu ainda não - queixou-se o Barão. - Deixa-te de brincadeiras, pá. Põe lá o ovo no prato. Américo olhava abstracto os pedaços rosados de atum encarrapitados no monte de feijões. Num ápice, o Pacaça surripiou-lhe o ovo. - Passem cá os copos pra eu dividir o vinho - ordenou Nunes. Dezenas de olhos seguiam, solenes, a cascata roxa do vinho. - Queres mais vinhos, Pacaça? - ofereceu Mendes. Podes ficar com o meu. O Pacaça levantou os olhos do prato, agradecido. - Deixa cá ver, pá. - Os dois copos, atestados lado a lado, encheram-lhe o coração de alegria. - Dizem que este vinho tem uns pozinhos de perlimpimpim para tirar a tesão à malta – insinuou o Barão. - Se tens medo, dá cá o teu. - Furriel Pinho - chamou um cabo na 2ª mesa -, não há mais comida? Não chegou para todos. - Vou saber à cozinha. - Falta um ovo nesta mesa – protestaram lá para o fundo do refeitório. O Fantasma passeava por entre as mesas. - Hoje não levas nada, Fantasma. Nem os cães tragam isto. Na 3ª mesa acendeu-se calorosa discussão por causa do vinho. Houve insultos, histerismos, iam jogando à 23 porrada, mas tudo acabou por se resolver. O furriel Máximo, a parlamentar com os cozinheiros nem chegou a a intervir. Um faxina trouxe mais feijão para a 2ª mesa. - E atum? – perguntou candidamente o cabo. - Atum? Vai pescá-lo. - A tua irmã é que eu pescava. A 1ª mesa terminou a refeição. - Podemos sair? - perguntou Nunes. O furriel Máximo inspeccionou se estava tudo em ordem: os restos nas terrinas, a mesa limpa. - Podem sair. Mendes acendeu um cigarro. - Não vens? – perguntou-lhe Américo. - É só acabar este cigarro. - Fico contigo. Dá cá lume. Ficaram a fumar calmamente, um diante do outro, os cotovelos apoiados na mesa. - Ficam para o jantar? – troçou o faxina que levantava os tabuleiros e as terrinas. - Vai lavar a loiça e não nos chateies - despachou-o Américo. Amontoados à porta de armas, à torreira do sol, a garotada da sanzala esperava pacientemente a chegada do jipe do lixo para depois irem à lixeira recolher as magras sobras da refeição. - Em que pensas? Mendes apontou o magote das crianças. - Será para isto que andamos para aqui nesta guerra? - Se começas a preocupar-te com essas coisas vais dar em doido ou na cadeia. É perigoso pensar certas coisas, quanto mais dizê-las, bem sabes. O que eu quero é acabar a comissão. Na minha terra diz-se que na tropa não devemos ser muito espertos nem muito burros. 24 - Vou falar ao capitão - decidiu Mendes. - Os garotos poderiam pelo menos vir aqui recolher a comida antes de ser atirada para a lixeira. - Vê lá no que te metes. - O capitão parece-me bom tipo. Levantaram-se. A parada estava branca de tanta luz. Sem vivalma. A bandeira desfalecera no mastro, ansiosa pela brisa da tarde. - Vou falar com o capitão - repetiu Mendes. - E tu? - Vou escrever à família. 25 Mendes entreabriu a porta da messe dos oficiais. A sala estava deserta, envolta numa penumbra fresca. - Queres alguma coisa, pá? Estremeceu àquela voz inesperada. Semicerrou os olhos e conseguiu focar o vulto do Malacão, regaladamente estendido no sofá. - O nosso capitão? - Pode falar comigo que é a mesma coisa. - Deixa-te de parvoíces. Sabes dele ou não? - Tá no gabinete. - Obrigado. Ia cerrar a porta quando Malacão o chamou. - O que há? - Vem cá para te passar uma carta de apresentação. Malacão ria como um perdido até que se engasgou e começou a tossir. - Vê lá, não vomites o osso que os teus donos te deram ao almoço. Malacão, passado o ataque de tosse, veio à porta ripostar: - É melhor comer os ossos dos oficiais do que feijão frade com atum, meu palerma. Aliviado, tornou a refastelar-se no sofá, a digerir o bife com ovo a cavalo e as duas cervejas geladas do almoço. - Palerma - ainda grunhiu antes de cerrar os olhos. * - O meu capitão dá licença? ` - Entra. 26 O capitão Rosado olhou-o, intrigado, por detrás da secretária. As bolsas, sob os olhos azuis, meio turvos, estavam roxas. “O capitão mama uisque como quem bebe água”, propalava-se pelo aquartelamento. - Há problemas? - Queria falar pessoalmente com o meu capitão sobre um assunto. - Despacha-te lá, tenho mais que fazer. De pé, decidido, Mendes enfrentou o superior. - Tenho observado o que se passa e é um crime atirar com tanta comida para o lixo quando na sanzala há crianças a morrer de fome. O capitão espalmou as mãos na secretária e ergueuse, furioso. - Quem és tu para vires para aqui com essa conversa? Estás a armar em esperto ou a provocar-me? - Longe de mim tal ideia, meu capitão. - O tom de voz era conciliante. - Seria uma obra de caridade ajudar esses infelizes. O capitão deixou-se cair na cadeira. Passou a mão cansada pelo rosto e pelos cabelos. - Isso é outro falar. Vai lá embora que eu vou pensar no assunto. - As crianças poderiam vir ao refeitório recolher as sobras, depois das refeições. - Já compreendi, basta. - Os olhos cansados mediram Mendes de alto a baixo. - Não gostas muito desta guerra, pois não? - Confesso que gosto mais de mulheres. Rosado soltou uma risada, divertido. - Podes ir. Obrigado pela ideia. Mal Mendes partiu, Rosado retirou a garrafa de uísque da gaveta da secretária e sorveu uma longa golada. 27 - Cabrões ! - Com um piparote bem medido, Américo espalmou o mosquito contra o pescoço. - Já não me lixas mais. Sentia-se chegar ao limite da resistência, os tornozelos e os nós dos dedos dolorosamente inchados de tanta ferroada. Prestes a desatar aos berros. Ao redor do aquartelamento, à volta dos postes de iluminação, os mosquitos saíam da noite em hordas cerradas. "Maldita terra, malditos mosquitos. Não bastava este calor de morrer." Pousou a G3 no parapeito do posto de vigia e pôs-se a espiar o negrume. Múltiplos ruídos, indestrinçáveis, de todos os timbres, elevavam-se para além do anel de luz das lâmpadas da periferia do aquartelamento. Era um bramar soturno, hostil, prenhe de suspeições. Por instantes esqueceu-se dos mosquitos, percorrido por um arrepio. Mas o ressonar dos dois camaradas de posto, mesmo a seus pés, serenou-o. "Se estivesse sozinho morria de cagaço." Olhou o relógio de pulso. Os ponteiros fosforescentes indicavam as três horas da madrugada. Dentro de três quartos de hora despertaria o Mendes para o render. Seria a sua vez de ferrar o galho, se fosse capaz. Apetecia-lhe fumar um cigarro mas a imagem ameaçadora do capitão sobrepôs-se ao desejo. Não lhe apetecia mesmo nada apanhar uma porrada e ir parar ao Leste, que era bem pior do que o Norte, segundo diziam. - Sentinela, eh sentinela ! 28 Emaranhado nos seus pensamentos, levou tempo a recompor-se. - Estavas a dormir, logo na primeira noite? Pela voz, reconheceu o furriel Neves. - Aqui no poleiro, não dá o sono a ninguém, meu furriel. - Podia passar por aqui um regimento de turras que não davas por nada. Vamos lá a ver se abres mais os olhos. Américo sentiu os passos do furriel perderem-se na noite. Enervado, tornou a olhar o relógio. Estava na hora. Até já passavam cinco minutos. - Acorda, Mendes, está na hora. O camarada soergueu-se da enxerga, estremunhado. - Já ? Não me estás a tramar ? - Vá, levanta-te. Não acordes o Fernandes. - Logo agora que estava a sonhar com uma miúda muito boa lá da terra. Vou convidá-la para ser minha madrinha de guerra. - Mas já tens três ou quatro. - Quantas mais melhor. Tens um cigarro? - Cuidado com o capitão! - O capitão que vá bardamerda. Dá cá o cigarro. O clarão do fósforo iluminou dois rostos terrosos. Depois, ficou a ponta vermelha do cigarro a fazer arabescos na noite. - Não te deitas? - Não tenho sono. Fico contigo um bocado. - Saudades? Deixa lá que qualquer dia já chega o correio. Falavam em surdina, para não acordar o Fernandes. Os mosquitos tinham acalmado e para além dos morros começava a assomar o clarão da madrugada. 29 - Sabias que o meu filho fez ontem um ano? - disse Américo, com tremuras na voz. - É verdade, fez ontem um ano que ele nasceu em França. - Tu estavas na França, não é? Que maluqueira foi essa de voltares para fazer a tropa? - Sei lá! Comecei a pensar que nunca mais poderia regressar a Portugal, que o meu filho nunca poderia conhecer os avós. A mulher também se sentia triste sem a família. Resolvemos regressar. Mas quando acabar esta merda, volto para a França. - Dizes bem, esta merda. Subitamente, um estampido acordou a noite. - Ouviste? - Foi no posto 3. Soou outro tiro, logo seguido duma rajada. O aquartelamento encheu-se de sobressalto : luzes, vozes alteradas, correrias, o latir do Fantasma. - Será um ataque? aventou Américo de dedos crispados na G-3. Fernandes despertara. - O que é que a gente vai fazer?- balbuciou. A pergunta fê-los sentir como galinhas aprisionadas. - Terá morrido alguém? - E nós aqui sem saber de nada. - Que porra de situação. - Calma - aconselhou Mendes. - Não me parece coisa grave. - Sentinela! - gritaram lá de baixo. - Quem está aí? - perguntaram em coro. - É o furriel Meneses. Estejam tranquilos que ainda não é desta que vão morrer. Foi o parvo do Costa que julgou ter ouvido um ruído estranho e desatou às rajadas como um maricas. Algum javali. 30 - Que cagaço, meu furriel! - Américo soltou uma risada nervosa. - Já pensávamos que os turras tinham atacado. - Ponham-se mas é a pau com os ataques dos mosquitos. - Que susto aquele gajo nos pregou - desabafou Fernandes. - Ia-me borrando todo. - O furriel disse que eram os javalis mas podiam muito bem ter sido os turras. - Nunca se sabe. - Afinal, quem é que está de sentinela? Eu ou vocês? - galhofou Mendes. A parada enchia-se de vida com as primeiras pinceladas da manhã. O segundo pelotão vai sair para a mata - suspirou Fernandes. - Já é de dia. - Graças a Deus - benzeu-se Américo, olhos postos na luminosidade que acobreava o dorso dos morros. 31 Noite de consoada. Pouco passava das dez horas da noite e na caserna do 1o pelotão já se bebera até chegar como o dedo. Fernandes sacou do realejo e largou a tocar modinhas do Minho. Todos se puseram a dançar, os dorsos nus cheios de reflexos acobreados. - Puxa pela garganta, Fernandes. Mostra a esta malta quem são os nortenhos - gritou o Pacaça. Levou uma cerveja à boca e a maçã-de-adão começou a subir e a descer no pescoço de touro. - Cinco segundos, hem! Quem é capaz de fazer este tempo? Alguém tem peneiras? - desafiou ao redor, de olhos envinagrados. Mas ninguém lhe ligou. Dançava-se e bebia-se por entre guinchos ululantes. O odor dos corpos suados misturava-se com o cheiro azedo da cerveja entornada. O Pacaça agarrou outra cerveja e recomeçou a sua corrida contra o tempo: um.. . dois. . . três... quatro segundos. Ufano, os olhos negros incendiados, desafiava a malta. - Hei-de chegar aos três segundos ainda esta noite taramelava, numa dança de ébrio. O Barão começou a cantar: «Estou farto deles» E o pelotão acompanhou-o em coro: «Da chicalhada, Esses pançudos, Que não fazem nada». 32 Américo segurou Mendes por um pulso. - Quero-te mostrar uma coisa - ciciou-lhe ao ouvido. Nos olhos já lhe bailavam meia dúzia de cucas. - Anda daí. A malta continuava a cantar: «Vai prá mata Ó meu malandro. Por tua causa É qu’eu aqui ando». Mendes acabou de beber a cerveja e deixou-se conduzir. Américo tirou a mala de debaixo da cama e abriua. - Olha! Tá lindo, não tá? Mendes pegou na fotografia. O rosto traquinas do filho do Américo fê-lo engolir em seco. - Tá lindo, não tá? - insistia a voz cheia de lágrimas do Américo. «Abre a cantina, Ó cantineiro, Anda co’a malta Caga no Primeiro». - Quando penso que hoje é noite de consoada! soluçava Américo. O Fernandes estava fantástico nessa noite, quase fazia o realejo falar. Os corpos contorciam-se, alucinados, ululantes. O Barão saltou para cima duma cama: - Meus senhores, vamos beber em honra da malta que está nos postos de sentinela esta noite. Foi então que uma ideia genial chispou naquele mar de álcool. 33 - E se lhes fôssemos levar uma pinga? - juntou uma voz. Como que por magia, uma garrafa de bagaço nasceu das mãos do Pacaça. - Em frente, marche! - comandou o Barão. À aproximação daquele mar proceloso, as sentinelas gritavam, alarmadas: - Quem vem lá? - É o pai Natal que te traz um presente - respondialhe o pelotão. E sem tempo para uma resposta, a garrafa de bagaço começava a gorgolejar garganta abaixo dos felizes contemplados. 34 O Pacaça esqueceu-se que era um grande bebedor. Já nem mesmo uma boa partida de lerpa o fazia esquecer a imensidão exasperante dos dias. - É um caso perdido - comentava, descorçoado o Barão. - Eu que tinha tantas esperanças neste rapaz! O Pacaça sorria, o carão inundado por um fogaréu que lhe crescia nas entranhas. Impreterivelmente, todas as noites, antes de se escapulir do quartel para a cubata de Maria, passava pela cozinha buscar os restos do jantar. - Lá vem o rapa-tachos - galhofavam os cozinheiros. Quando havia faltas, chegava ao ponto de repartir com a rapariga a sua ração. Estirado no catre, qual ritual, gostava de vê-la comer, silenciosa, cheia de olhares idólatras. No final, olhos semicerrados, o rosto crispado de desejo, chamava-a: - Anda cá. Naquela noite estranhou-a. Não lhe achou o ardor habitual. O olhar turvou-se-lhe ciumento. - O que tens? - Nada - respondeu Maria, abraçando-o. O Pacaça repeliu-a com brutalidade. - O que tens? - repetiu, sondando-lhe os olhos baixos. – Andas com outro? - Tenho um filho na barriga - anunciou, com simplicidade, Maria. - Um filho!? - gritou o Pacaça, sentando-se de repelão no catre. - Meu!? 35 Apanhou as calças e vestiu-as atabalhoadamente. Sentia o estômago às reviravoltas como quando estava com a ressaca. Maria continuava sentada na beira do catre, esfíngica estátua de ébano. O Pacaça calçou as botas e pegou na camisa. - Um filho!? Velou noite fora. “Um filho!?”. Era algo de insólito que se incrustara subrepticiamente no seu mundo simples e que, à traição, o socara no estômago, como um copo de bagaço em jejum. Ouvia o ressonar dos camaradas. A lua ocupou, gorda e enfarinhada, o rectângulo da janela, pincelando a oca a caserna. Depois, tranquilamente, desapareceu. “Que diabo posso fazer? Levar o garoto comigo? Abandoná-lo?” A esta última alternativa. o coração confrangeu-selhe. Na sanzala, em todas as sanzalas por onde passava, as crianças mulatas constrangiam-no. - Eh filho duma lata de conserva! - Eh café com leite! Nunca deixara de repreender os camaradas, quando estes troçavam dos garotos. Certa vez ia jogando à porrada com o Barão. Não tinha estômago para ouvir aquelas coisas. “Iria o seu filho ser um dia alvo de troças idênticas?” Sentia-se acalorado. Com os pés. atirou o lençol para o fundo da cama, indiferente aos mosquitos. “E se ficasse em Angola?” Arrepiou-se e cobriu-se de novo com o lençol. Na sanzala, os galos já cantavam. Em breve despontaria a alba. 36 Passou ao de leve pelo sono. Um sono prenhe de pesadelos e de reviravoltas na cama. A uma reviravolta maior a espertina regressou. Contou os meses pelos dedos. “No fim da comissão já o miúdo teria um ano. Já lhe chamaria pai.” A ideia de ficar, qual monstro libidinoso, enroscouse-lhe no cérebro. “E por que não? Já ouvira dizer que davam terras lá para o sul. Não tinha medo ao trabalho. Afinal, se regressasse, não teria também que ir cavar o seu pão na Alemanha ou na França? Pelo menos em Angola compreendia as pessoas, falava-se língua de gente. Por que não? Ficar com a criança, com Maria”. O Pacaça sorriu e fechou os olhos, apaziguado. Não tardou a adormecer. Pela janela já escorria uma claridade diáfana. 37 A mensagem, captada pelo pessoal do posto de transmissões, propalou-se rapidamente pelo aquartelamento: "Caiu uma catrefada de turras nas armadilhas do trilho Luvo." As casernas esvaziaram-se e a parada encheu-se de frenesim. Os cozinheiros largaram os tachos e correram a engrossar os magotes efervescentes. O pessoal da limpeza desenvencilhou-se das vassouras e embicou direito ao posto de transmissões. Para aumentar a balbúrdia, o jipe da água com o autotanque a reboque irrompeu pela parada a grande velocidade, quase cilindrando um dos grupos. - Querem trancar o jipe? - refilou o condutor, envolto numa nuvem de poeira. O furriel mecânico Reis apercebeu-se do incidente e saiu disparado da messe dos sargentos, de rosto apopléctico por quatro ou cinco nocais. - O que há? - Estes gajos atravessaram-se diante do jipe desculpou-se o condutor. - Quantas vezes já te disse para andares mais devagar dentro do aquartelamento? - gritou o furriel, assanhado. O condutor achou por bem bater em retirada e o jipe começou a rastejar de rabo entre as pernas para a cozinha. Só então o furriel Reis se apercebeu da agitação reinante. - Passa-se alguma coisa? - perguntou ao redor. - Parece que caiu um exército de turras nas nossas armadilhas - respondeu-lhe o básico Malacão, feliz por esclarecer um furriel. 38 * O furriel Meneses estava estendido na cama, embrenhado na leitura duma revista quando se levantou a balbúrdia. Depois ouviu o derrapar do jipe. ''São os fângios do Reis” pensou, mas como a agitação persistia pousou a revista e foi abrir a porta. - O que há? - perguntou ao Reis que regressava agitadíssimo à messe. - Caíram uns gajos nas armadilhas do Luvo. - Nossos?! - Turras, parvo. Meneses começou a ver tudo à roda. Parada, homens, casernas, céu, bandeira, num turbilhão alucinante. Encostouse à parede para não cair. - Sentes-te mal, pá? - assustou-se Reis. Lentamente, tudo foi reocupando o seu devido lugar. Ficou só o coração a estraçalhar o peito. - Queres um copo de água? Meneses abanou a cabeça. - Não, obrigado. Já estou bem. - Devias ir medir a tensão, aconselhou Reis. Deves andar a precisar duns copos. Anda dai. - Vai tu. Já estou bem. Reis ainda duvidava. - Vê lá se te dói alguma coisa. Meneses reentrou na camarata. Atirou-se para cima da cama. “Caídos nas armadilhas que ele e o alferes Vasconcelos tinham montado.” Vozes, saídas das próprias entranhas esmagavam-lhe as têmporas. “Assassino... Assassino...” Afundou a cara na almofada, as mãos crispadas nos ferros da cama. 39 Um rugido animal subiu-lhe à garganta. As lágrimas saltaram, por fim, a ferver, rosto abaixo. 40 Na messe dos oficiais, a digestão do jantar estava demorada. Malacão sentia-se ferver por dentro. Combinara com o Pinto ir à sanzala e a oficialada não dava sinais de se apressar, pregados às cadeiras, a palrar pelos cotovelos. - Serve-nos o café, Malacão - ordenou o capitão Rosado. – Inesperadamente teve um ataque de generosidade: vai ao meu quarto e trás a garrafa de napoleão que lá tenho aberta, estás a ouvir? - Ena! - exclamou, atónito o alferes Silva. - Perdeu a cabeça? - É para não me chamarem sovina, pelas costas. - Deviam ser duas garrafas - insinuou o alferes Vasconcelos. - Uma em exclusivo para mim. Afinal, não sou eu o herói? Digam lá quem é que montou as armadilhas para os patos? Já pensou em me propor para uma medalha, capitão Rosado? Ou quer os louros só para si? O capitão estava capaz de encaixar tudo e mais alguma coisa. - Pela minha parte, enchia-lhe o peito de medalhas replicou, sorridente. - Só que não o vejo com arcabouço para tanto peso. Nesse instante, Malacão chegou com a bandeja dos cafés e a garrafa. - Ainda precisam de mim? - perguntou, esperançoso, colocando tudo sobre a mesa. - Já te queres pirar? - carregou o sobrolho o capitão. Malacão bateu as pálpebras, impregnado de ingenuidade. 41 - Eu, meu capitão!? - exclamou, magoado. Os seus olhitos esverdeados escorriam mel. - Tenho de ir à sanzala saber se as lavadeiras já têm pronta a roupa do senhores oficiais. É por isso que estou tão apressado. - À grande Cheveik! - gargalhou o alferes Coelho, sorvendo o café. - És impagável. És o melhor faxina do mundo. - Vai lá, salafrário - assentiu o capitão. Malacão pisgou-se lestamente, não sem antes envolver a garrafa num olhar amoroso. “Logo, no regresso, vou-te dar uma arrombadela. Contando que estes filhos da puta não a espremam até à última gota. Capazes disso são eles.” 42 A coluna chegou cedo a S. Salvador, mal passava das dez horas da manhã. - Meus senhores, regressamos à Calambata às quatro horas da tarde. Às três e meia quero-vos a todos em cima das viaturas. Aviso-vos de que se causarem problemas não terei contemplações com ninguém. Alferes Vasconcelos, já montou o sistema de guarda às viaturas? - Já sim, meu capitão. Ficam dois homens de guarda, rendidos de hora a hora. - Óptimo. Ah, outra coisa, sempre de quicos na cabeça e camisa abotoada. O nosso comandante do sector não perdoa. Já muito menino apanhou uma porrada das grossas por muito menos. Também estou a ver alguns de vocês com os camuflados muito rasgados. Vejam se, pelo menos quando vêm a S. Salvador remendam as roupas. Não quero que considerem o pessoal da Calambata um bando de maltrapilhos. Podem destroçar. E juízo! S. Salvador era pouco mais do que a rua principal. Nela se congregava toda a vida da cidade: estabelecimentos comerciais, cafés, cinema, correios, serviços administrativos, umas tantas ou quantas vivendas. Ao redor, os aquartelamentos e a sanzala. E, como um anel estragulador, para nao esquecer a guerra, arame farpado e postos de sentinela. O pessoal dispersou rapidamente. Alguns apressaram o passo logo direitos ao café onde os esperava um mar de cerveja gelada. Outros, olhar transtornado, encaminharamse, furtivos, para o local, numa rua mais disfarçada, onde lhe constava ter chegado uma puta branca vinda de Luanda. 43 * Costa não perdeu tempo e entrou rapidamente no estúdio fotográfico. - As fotografias do furriel Reis já estão prontas? disparou. O fotógrafo levantou a cabeça calva do jornal. Tinha faces cavadas e amareladas pelos trópicos e uns olhos azuis amargurados. - Da Calambata. - Ah, já me lembro. Tirou da prateleira um envelope. - Foi ele que o mandou cá vir buscá-las? - Foi sim. Aqui tem um bilhete. Costa tirou o papel do bolso da camisa. - Veja. O homem fez um gesto de enfado e ignorou o bilhete. - Tudo bem. Costa, mal se apanhou na rua, abriu o envelope e pôs-se a folhear as fotografias. Riu-se, baboso, quando encontrou a que procurava. Ficara porreiro, com a a jibóia que o Pacaça matara, enrolada à volta do pescoço. Grande fotografia aquela! Iria fazer pelo menos cinco cópias para enviar para Portugal. Aquela já iria direitinha numa carta para a Maria da Luz. A caminho dos correios, a passo estugado, ia mastigando a prosa que acompanharia o retrato. Talvez assim: “Aqui te envio a fotografia da jibóia que matei à catanada numa operação. Estava de sentinela durante a noite e pressentia quando ela se preparava para atacar a tenda de três camaradas. Se não tivesse agido rapidamente não sei o que seria. Nem quero pensar nisso. Uma menina destas quando se enrosca num um homem já não há nada a fazer. É trigo limpo, os ossinhos todos partidos...” 44 Os três unimogs voavam na picada. O capitão andava sempre a martelar: nada de velocidade excessiva, nunca perder de vista a viatura da retaguarda. Mas qual quê, o acelerador era para ser pisado, desdenhavam os condutores. Principalmente nestes regressos de S. Salvador, com a cerveja a fazer das suas. A secção do furriel Neves viajava na viatura da retaguarda, a comer com a poeira toda em cima. - Afasta-te mais, gritou o furriel Neves ao condutor. - O quê? - Afasta-te por causa do pó - repetiu o furriel. O condutor rodou a cabeça para gritar. - O nosso capitão não gosta disso - lembrou mas desacelerando de imediato. - O nosso capitão que vá ter um menino - gracejou o cabo Madeira. - Se precisarmos de ajuda, mandas logo um verylight, não é verdade, ó Madeira? Deve ser para o que essa merda serve. O cabo Madeira acusou mais uma vez o toque. Era o seu ponto fraco. Enquanto a outra malta empunhava as esbeltas G3, ele andava sempre com o morteiro às costas, além das munições que lhe vergavam a espinha. - Só espero que nunca precisem de mim. - Távamos bem tramados. - Pacaças! - gritou o Costa, apontando o dedo. - Pára, pára - gritou o furriel Neves, às sapatadas às costas do condutor. 45 O unimog, com os travões a fundo, arrastou-se na picada como uma jibóia até se imobilizar. - Onde estão? - Ali, ali - apontava o Costa, vermelho de excitação. - Não vejo nada. - Ali, ali, junto às árvores. - Já vejo...já! - Porra, ainda não vejo nada... - Grande cegueta... - Já vejo...já vejo. Encavalitavam-se nos bancos, aos empurrões. Pouco a pouco, todos foram avistando os bichos. Eram duas pacaças. Pastavam, pachorrentas, a cerca de duzentos metros da picada, num vale de capim rasteiro e verdejante.. - Vão três gajos comigo - ordenou o furriel Neves, saltando lesto do unimog. - E a coluna? – inquietou-se o condutor. - Que esperem. * O capitão, que viajava no unimog do meio, ao lado do transmissões, regulava laboriosamente a distância entre as viaturas. - Mais depressa. - Mais devagar. - Façam sinal à viatura da frente para abrandar. - Transmissões, comunica a nossa posição para a Companhia. -Eh pá, põe a arma em cima dos joelhos, pensas que isso é um cajado? Numa curva, perdeu de vista a viatura da retaguarda. Esperou pela recta seguinte para ver se a avistava, mas nada. Eclipsara-se. - Façam sinal à viatura da frente para parar. 46 Nos primeiros tempos da comissão fazia logo o pessoal descer das viaturas para o capim. Era uma estopada fazer uma coluna com ele. Presentemente, já estava um pouco mais razoável. - Onde se terão metido? - Devem-se ter atrasado, por causa do pó - opinou o alferes Mendonça. Têm muito medo do pó, esses meninos. Quando chegar a época do cacimbo é que vão saber o que é pó. Já comunicaste com a Companhia? - perguntou ao operador de transmissões. - Não respondem. - Patrão fora, dia santo na loja. - Vamos ver o que se passa? - sugeriu o alferes Mendonça, já apreensivo. Um tiro, logo seguido por um cacharolete deles, ecoou pelos morros. Depois, mais um tiro solitário e o silêncio. - Vamos voltar atrás - ordenou o capitão. Os unimogs roncaram nervosos na manobra. O Fantasma levantou a cabeça e latiu, inquieto, de orelhas espetadas. - Mais depressa. Cobriram seguramente dois quilómetros de picada sem encontrar vivalma. - Vamos voltar, não podem estar mais para trás disse o capitão, com voz insegura. A estupefacção pincelava todos os rostos. Ninguém se atrevia a aventar qualquer explicação. - Inverter a marcha - ordenou o capitão. Os unimogs tornaram a roncar. Todos se seguravam com força aos bancos para não serem cuspidos. Fernandes deu um pontapé ao Fantasma, que não parava de latir. 47 O cão ganiu dolorido e enfiou-se debaixo dos bancos, junto ao caixote das fitas de balas da metralhadora. - Parece bruxedo - exclamou, banzado, o Fernandes. Os unimogs voavam, de prego a fundo. Um quilómetro a frente, Mendes, que seguia no primeiro unimog, ao lado do condutor, julgou aperceber-se de qualquer coisa estranha mais à frente. Soergueu-se no banco, para fixar melhor, e só teve tempo de soltar um grito de alerta: - Trava! O condutor esmagou o travão e a viatura foi da rastos uma dúzia de metros. Imobilizou-se, por fim, a dois dedos travessos do unimog desaparecido que, vindo do capim, reentrava tranquilamente na picada. Logo depois, surgiu o unimog do capitão também na eminência de se enfeixar nos outros. Ficou atravessado na picada, num arremedo de pião. Os insultos choveram de todo o lado. - Cabrões! - Iam-nos matando a todos. - Bando de inconscientes. - Filhos da puta. O capitão saltou do unimog e correu, a espumar, para os prevaricadores. - Quem comanda esta viatura? - disparou. - Eu - respondeu o furriel Neves, calmamente. - Você vai ter de achar uma boa explicação, caso contrário vou tramá-lo, sem dor nem piedade. O pessoal já descobrira a pacaça morta em cima da viatura. A excitação era uma onda avassalante. - Fizeram para a coluna por causa duma pacaça? continuou, encolerizado o capitão. - É o cúmulo da bandalheira. Alferes Mendonça, é esta a disciplina do seu grupo? 48 O capitão apercebeu-se de que estava a falar para o boneco. Em catadupa, contavam-se detalhes da caçada. - Caiu que nem um tordo! Tenho a certeza que foi o meu tiro. - Deixa-te de bazófias. Toda a gente viu que foi o meu. - A bala no coração é minha, apostava a vida. - A outra também levou chumbo. - Vai morrer lá mais à frente. - Grande bicho. Custou a subi-la para o unimog. - O nosso furriel vagomestre Máximo é que vai gostar. - Todos para as viaturas. No aquartelamento tratamos do caso - concluiu, impotente, o capitão, com a voz já amolecido pela certeza dumas boas arrobas de carne fresca. 49 Américo pensava no filho quando a explosão o atirou ao ar. Caiu de costas na cama fofa do capim. Por um bom lapso de tempo não conseguiu raciocinar, os ouvidos numa zoada tremenda. Gradualmente, foi recuperando a lucidez. “Meu Deus! O que teria sido? Meus Deus, meu Deus, devo estar ferido. Será grave?” Vozes alvoroçadas subiam ao redor. “Meu filho, nunca mais te torno a ver”. Após mais uns minutos de imobilidade, apercebeu-se que não sentia dores. Ousou mexer um pé, depois o outro, as mãos, o pescoço, o suor a cegá-lo. Sentou-se. “Meu Deus, estou vivo”. Pôs-se de pé. A zoada nos ouvidos parou. Finalmente, compreendeu que não estava ferido. Na picada sobrepunham-se ordens, gritos, correrias. “Foi uma mina, foi uma mina. Onde estará a minha G3? Se o capitão me apanha sem a arma dá-me uma descasca.” Reentrou na picada. - Há feridos? Ninguém lhe respondeu. O capitão, na berma da picada, acocorado sobre o rádio de transmissões, comunicava com a Companhia, numa voz despropositadamente alta. O Barão fumava um cigarro, com a G3 a servir de cajado. O enfermeiro punha um penso na testa do Costa. - Estou muito ferido? - perguntou este, pálido como um cadáver. 50 - Nem deita sangue. Feriste-te numa folha de capim. - Qual folha de capim, qual carapuça, isto foi um estilhaço, bem senti. O unimog atingido afocinhara, com os pneus da frente rebentados. Um cheiro intenso a borracha queimada pairava no ar. - Vem já aí o 2° pelotão socorrer-nos - anunciou o capitão, largando o rádio. - Alferes Mendonça, mande já os homens sair da picada e monte a segurança. Que bandalheira é esta? Só então Fernandes sentiu a falta do Fantasma. - O Fantasma? Onde tá o Fantasma? - Cagou-se todo com o medo e cavou por esses morros acima - troçou o Barão. Fernandes emitiu um assobio e esperou. Nada, do Fantasma nem sombras. - O Fantasma tá aqui. Em cima do unimog. Fernandes correu para a viatura danificada. Um grande novelo, branco e peludo, jazia sob os bancos. O animal não se moveu. - Fantasma! - tornou o dono, a voz sumir-se. Pegou-lhe por uma pata inerte e puxou-o. Estava morto. Um estilhaço perdido fizera um rombo na caixa da viatura e perfurara-lhe o peito, ao nível do coração. Fernandes continuou a puxar e o corpo tombou na picada com um baque surdo. Uma roseta de sangue alastrava pelo peito do cadáver, humedecia a terra esfarelada. Mendes pousou a mão no ombro do Fernandes. - Tem calma. . - O que há aí? - interpelou-os o capitão. - Não ouviram as ordens? - O Fantasma morreu - disse Mendes. - Atirem-no para o capim. Antes o cão do que um homem. Mexam-se. 51 - Ficaste viúvo, Fernandes - troçou o Barão. Surdo a tudo, Fernandes debruçara-se sobre o corpo do animal, os lábios lívidos agitados numa prece. 52 - João Moreira. - Pronto! - Carlos Afonso. - Estou aqui. Empoleirado numa mesa do refeitório, qual deus louco, o cabo-cripto Ruivo semeia, às mãos-cheias, a alegria e a tristeza, as lágrimas e os risos. - Pedro Antunes. - Eu... - José Fernandes. - Dá cá. Mãos nervosas como gadanhas. Dedos hirtos que se engalfinham nas cartas e aerogramas. Ruivo era o tipo mais importante da Companhia. Ou, pelo menos, assim o cria. Na verdade era ele que estava incumbido da distribuição do correio que o avião trazia duas vezes por semana de S.Salvador, juntamente com os frescos. O avião chegava geralmente por volta das onze horas da manhã e rasava duas ou três vezes o aquartelamento, com as goelas abertas, a dar tempo que se montasse a segurança à pista. Enquanto o furriel vagomestre Máximo procedia à conferência da carne e do peixe, o Ruivo recebia das mãos do piloto o saco do correio. Aquele saco era um coração gigantesco, palpitante, poderoso. O principal sustentáculo da Companhia.Mais do que as G3 e a cerveja, as metralhadoras e os cigarros, os morteiros e as negras da sanzala. - Hoje pesa - dizia invariavelmente o piloto. 53 - Deve vir cheio de cornos - gracejava por sua vez o Ruivo. Concluída a transacção do correio e dos frescos, a D.O. começava a deslizar pela pista e dentro em pouco não era mais do que um mosquito zumbidor rumo a S. Salvador. O pessoal da segurança saía do capim e saltava lesto para o unimog que arrancava de prego a fundo para o caldeirão ao rubro do aquartelamento. - Américo Pereira. - Aqui. - Carlos Marecos. - Viva! Restam três cartas. As unhas cravam-se nas palmas das mãos. Os rostos contorcem-se em esgares doloridos. Ruivo passeia um sorriso displicente por aquele mar de olhos esgrouviados e acaricia o magro monte de correspondência que resta com artifícios de amante sabido. - Despacha-te... pá! - Calminha..., tens tempo de saber que o teu filho já chama pai a outro. - Vai gozar com a tua avó. O litúrgico deu lugar ao burlesco. Ruivo procura escamotear o tempo, prolongar o seu reinado. - Daqui a nada tás a apanhar um borracho nos óculos. Atingido o ponto crítico de ruptura. É perigoso ir mais além. - José Mendonça. - Até que enfim. - Pedro Moreira. - Uf...! - Manuel Augusto. - Mas... não há mais nada...? - pergunta uma voz incrédula. 54 - Nada mais. Começa a procurar outra que essa já te pôs os cornos. Há rostos lívidos de angústia, sorrisos rasgados de orelha a orelhas, dorsos quebrados de solidão, olhos refulgentes de alegria. “Sou o tipo mais importante da Companhia” conclui, mais uma vez, Ruivo. 55 - Acorda, Mendes, acorda! Como que vinda de muito longe, uma voz agreste, misturada com o ruído da chuva e o ressonar da caserna, martelava-lhe o cérebro. - Acorda, pel’amor de Deus. Voltou-se para o outro lado e meteu a cabeça debaixo da almofada. - Acorda, acorda! Só quando se sentiu violentamente sacudido é que emergiu do sono, atarantado. - Acorda, Mendes! Finalmente, reconheceu a voz do Américo. Uma voz trémula, cheia de maus presságios. - Deixa-me dormir, pá. Vai chatear outro. - Mendes, vem depressa. É o Fernandes. Sentou-se na cama, num repente, assaltado por negros pressentimentos. Na escuridão, adivinhou o rosto transtornado do Américo, cheirou a tragédia. - O que foi? - O Fernandes está doido, quer matar o capitão. - O que é feito dele? - Sei lá! Levou a G3. Está perdido de bêbado. - Grande maluco. Às apalpadelas, enfiou as calças e calçou as botas. - Vamos depressa. A parada era um mar de lama. Na messe dos sargentos ainda havia luz. Deviam estar a jogar ao póquer ou simplesmente a embebedarem-se. 56 Agachados, encharcados até aos ossos pela chuva que tombava em catadupa, rodearam o pavilhão da enfermaria, cosidos à parede. A correr, atravessaram o descampado até ao edifício dos oficiais. A violência da chuva fazia-os bailar. Américo perdeu uma bota e ficou a praguejar, ao pécoxinho, até que lá conseguiu encontrá-la. Quando a enfiou no pé, a lama espichou por todos os lados. Do quarto do capitão não se soltava o mínimo sinal. Devia estar a dormir a sono solto. - Onde estará metido o gajo? - Vamos pelas traseiras - opinou Américo. Tornearam o edifício. Finalmente, avistaram o vulto do Fernandes, espalmado contra a parede, junto à janela do quarto do capitão. - O que fazes aqui, pá? - interpelou-o Mendes, em surdina. - Girem - ordenou Fernandes. - Separava-os uma distância de três metros. - Vai-te deitar, Fernandes - gemeu Américo. - Desapareçam! Mendes fez menção de avançar. Fernandes deu um salto felino para o lado e alçou a arma. - Se dás mais um passo, estoiro-te os miolos. - Não te desgraces - implorou Américo. - Vão - se embora, isto não é da vossa conta. - Nós somos teus amigos, só queremos o teu bem continuou Américo. Subitamente, deixou de chover. Ficaram as cascatas de água a jorrar dos telhados. - O capitão não é o culpado da morte do Fantasma insistiu Américo. - Não teve nenhum respeito pela sua morte. Vai pagar por isso. 57 - Estás a ver mal as coisas. Mendes avançou mais um passo. Já distinguia, com nitidez, o vulto transtornado do Fernandes. - Nem mais um passo. Fernandes fez um gesto brusco e desequilibrou-se. Mendes não perdeu a oportunidade e atirou-se. Gritou de dor quando o ombro chocou contra a G3. Mesmo assim conseguiu filar a camisa do outro. - Vou-te matar, maldito - rosnou Fernandes. Rolaram na lama. Mendes sentia o hálito azedo do Fernandes escaldar-lhe o rosto. O ombro doía-lhe terrivelmente e já lhe faltavam as forças para afastar as mãos que lhe buscavam o pescoço como víboras. Nos baldões da luta, Fernandes escarranchara-se-lhe em cima. Mendes estrebuchou, tentava desalojar o adversário mas a lama não o deixava aplicar toda a sua força. A tenaz, à volta do pescoço, apertava cada vez mais. Subitamente, as mãos afrouxaram a pressão. Depois, Fernandes caiu para o lado, como um gemido débil. - Estás bem? Mendes abriu os olhos e compreendeu. Américo ainda conservava na mão o toro de madeira com que derrubara o Fernandes. - Levanta-te, este brutamontes quase te ia asfixiando. No quarto do capitão acendeu-se a luz. - Estamos perdidos - gaguejou Américo. Mendes recuperou imediatamente, não havia tempo a perder. - Vamos embora daqui. Vamos carregar o gajo. Não te esqueças da G3. Pega-lhe pelos ombros que eu pego pelos pés. Já se ouviam passos no quarto. - Rápido! 58 Fernandes, coberto de lama era uma autêntica enguia. Aos tropeções, lá o foram arrastando. Mal tinham dobrado a esquina, a janela abriu-se e a voz do capitão esbofeteou-os. - Quem está aí? Está aí alguém? Os segundos escorriam como horas. Finalmente, sentiram o ruído da janela a fechar-se. Deixaram o corpo tombar como um saco e, amparados à parede, escorregaram até ao chão. A água da chuva já não jorrava dos telhados e as estrelas brilhavam. Uma paz cálida cobria tudo. - Que grande sarilho. - Mendes sorriu. - Quem é que depois iria tocar realejo nas nossas farras? 59 A canícula calcinava. A luz crua do dia reverberava no capim, feria os olhos. A patrulha serpenteava morro acima. Era penoso. Por vezes, o capim, grosso como canas, encobria os homens e só se ouvia o espadanar da catana rasgando caminho. Chegados ao alto do morro, toucado por árvores raquíticas, o alferes Mendonça deu voz de descanso. Os homens, arfantes, olhos congestionados, cegos pelo suor, desenvencilharam-se das mochilas e estenderam-se sobre o capim aqui mais ralo. - Vamos almoçar aqui. Passem a palavra. - Um rumor de regozijo percorreu o grupo. Todos procuraram as magras sombras. As rações de combate surgiam do fundo das mochilas. - Quem quer trocar lata de sardinhas? - perguntou o Barão, abrindo o saco. - Vai chatear a tua avó - respondeu uma voz agreste. - Duas latas de sardinhas por uma de chouriço reforçou o Barão. - Passa cá - aceitou o Pacaça. - Quando chegar a Portugal, nunca mais quero ouvir falar de conservas - lamuriou-se outro. - Cala a cloaca! Na tua terra só comias bolota troçou o Barão. - Vamos lá calar - admoestou o furriel Neves. - Isto não é um bordel. - Antes fosse - suspirou Fernandes. - Cardoso! - chamou o alferes. - Diga, meu alferes. 60 - Quando acabares de comer, comunica com o aquartelamento. - Ok, meu alferes. - Pede que mandem um helicóptero com duas grades de cerveja fresquinha... - E umas garotas... - Leão...leão...águia chama. Leão...leão...águia chama. Diga se me ouve. Escuto. - Estão a dormir a sesta. - Leão...leão... À medida que iam acabando a refeição, cada qual se estendia para o seu lado, a cavaquear e a fumar. - ...Águia chama. Diga se me ouve. Escuto. - Deixa lá, Cardoso. Tornas a chamar mais tarde decidiu o alferes. - Como queira. O alferes encostou-se a uma árvore e pôs-se a estudar a carta. As vespas zumbiam, em nuvem, ao redor das latas vazias. Uma águia planava lá no alto. - Cinco minutos para preparar - bradou o alferes. - Quem é que teria inventado a guerra? - filosofou uma voz aborrecida. De má vontade, puseram-se a apertar as bocas dos sacos e a afivelar as cartucheiras. Sacos às costas, as G3 no ombro, davam as últimas fumaças. - 1ª secção à frente - ordenou o alferes. Começaram a descer o morro. A meia encosta principiava a mata que debruava o rio, segundo a carta e as contas do alferes. Em breve, o calor ficou para trás, sob o tecto verde. Era uma transição brusca, de quem passa subitamente do inferno para o céu. A princípio, foi preciso cortar algumas lianas mas logo o caminho ficou 61 desimpedido, as árvores mais espaçadas, o chão atapetado de folhas mortas. Alguns rasgos no tecto verde entremostravam o céu azul, puro, distante. Pairava no ar um ténue cheiro a matéria em decomposição. O rio, corria gordo, turvo, largo. Na outra margem, a mata era cerrada, insondável. * Seguiam ao longo do rio, sem pressas. Por vezes era preciso tranpor um ou outro riacho que vinha desaguar no rio e aproveitavam pata atestar os cantis e para refrescar os rostos. À cabeça da coluna, o Pacaça, de catana em punho, por desenfado, cortava uma ou outra liana mais atrevida que tombava das árvores. Sentia-se a rebentar de energia, a passada larga. - Mais devagar, Pacaça - implorou Fernandes. O Pacaça deitou-lhe uma mirada trocista e abrandou o passo. Inclinou-se para a frente para vencer uma pequena elevação. Ao chegar ao alto, arregalou os olhos, boquiaberto. Lançou-se imediatamente ao chão. Bateu com o queixo no manobrador da G3 e engoliu a dor. Sentiu a restolhada do pelotão imitando-o. O alferes Mendonça rastejou até junto dele. - O que há? - Veja. Lá à frente, numa clareira mais folgada, sob o cerrado tecto das copas de árvores de grande porte, amontoavam-se meia dúzia de palhotas. Ao redor, uma pequena plantação de mandioca e de tomates. Não se vislumbrava vivalma, num silêncio sem pássaros. A separálos, por entre juncos, corria um ribeiro manso a caminho do rio. O furriel Meneses juntou-se-lhes. 62 - Há problemas? O alferes limitou-se a esticar o queixo. - Não se vê ninguém, o que vamos fazer? - ciciou Meneses. - Por precaução, o melhor é uma secção ir fazer o envolvimento - decidiu o alferes. Não estejam os gajos emboscados do outro lado. Nós ficamos a protegê-los. Avance com a sua secção. Meneses retrocedeu até junto dos seus homens. Uma mescla de ansiedade e curiosidade saltava de todas as caras. - Há um acampamento ali à frente. Parece abandonado mas, por questão de segurança, a nossa secção vai fazer o envolvimento. Os homens do furriel Neves tomaram posição, cosidos às irregularidades do terreno, as armas apontadas ao acampamento. - Preparados? Vamos! - ordenou Meneses. Correram agachados, ziguezagueantes, por entre as árvores, os dedos a formigar nos gatilhos. Ao chegarem ao regato, hesitaram, alapardaram-se nos juncos. - Vamos atravessar por equipas. Primeiro a tua, Nunes - comandou Meneses. Os homens entraram na água, resolutos. A meio do leito, a água dava-lhe pelos joelhos. Costa escorregou numa pedra, deu três ou quatro passos em falso e foi-se esborrachar contra as costas graníticas do Pacaça. - Queres uma bóia, pá? - troçou este. Chegados à outra margem, espalharam-se, cosidos às árvores. Nunes fez sinal à outra equipa para avançar. A pequena plantação de tomateiros estendia-se até às palhotas, vinte passos adiante. Tudo estava calmo, num sereno contraste de luz e sombras. Os tomates avermelhavam na ramagem verde. Para a esquerda, as folhas serrilhadas do mandiocal vergavam-se frescas para o 63 chão. Por um rasgão no tecto vegetal, o sol jorrava poalhas de ouro na prata do ribeiro. - Como isto é tranquilo - embebeu-se Américo, a arma apontada ao bojo da mata. * Passaram as palhotas a pente fino. - Deserto! - desabafou, desapontado, o alferes Mendonça que chegara com os restantes homens do pelotão. A tensão acumulada começou a esboroar-se e as conversas irromperam em balbúrdia. - Calados! - bradou o alferes. - Furriel Neves, espalhe os homens. - O que vos parece isto? - perguntou, dirigindose aos furriéis. - Parece-me que isto é um acampamento de passagem - disse Neves. - Estava abandonado quando chegámos, não há indícios de fuga precipitada. Não há pegadas frescas. - Acampamento de passagem? - estranhou Meneses. - Uma espécie de estalagem a meio da viagem esclareceu Neves. - descansam aqui e prosseguem a viagem. Mendonça levantou os olhos para o tecto vegetal. - Os aviões podem passar por aqui milhares de vezes que não topam nada - observou. Costa aproximou-se, esbaforido. - Meu alferes, descobrimos um trilho. - Vamos ver. Atravessaram a lavra de tomates a correr. Os tomates esparramavam-se em manchas sanguinolentas. - Veja, veja! – dizia Costa, agitado. Na verdade, um trilho bastante batido, saía da mata para o capinzal. 64 - Isto deve levar a algum lado - entusiasmou-se o alferes. - Barão, Fernandes, deitem fogo às palhotas. Rápido que vamos prosseguir. - Vai ser um espectáculo em grande - rejubilou o Barão. - Vai dar para assar sardinhas como na noite de S. António. - Qual é o seu plano? - desconfiou o furriel Neves. Devíamos comunicar com a Companhia e explicar o que se está a passar. - Quem é o comandante do pelotão? Eu o vocês? Havia um brilho estranho nos olhos do alferes. Neves voltou costas, desabridamente. As chamas irrompiam, vermelhas, tentaculares, num estrelejar de ramos e folhas secas. Envoltos na fumarada, archotes em punho, o Barão e o Fernandes saltavam de palhota em palhota. - Quem quer estrelar ovos? - ouvia-se a voz do Barão. - Saiam daí, seu burros - gritou-lhes o furriel Meneses -, ainda acabam feitos frangos de churrasco. Os incendiários emergiram do braseiro, chamuscados, a tossicar. Quem não tem fósforos pode aproveitar para acender o cigarro - ainda teve forças para pilherear o Barão. Primeira secção à frente. Vamos seguir o trilho gritou Mendonça. * - Avança, rebenta-minas - troçou o Barão. Pacaça investiu trilho fora. Sentia-se fresco, estuante de força. A balançar contra a coxa, o cantil atestado de água fresca, redobrava-lhe o vigor. 65 A meio da coluna, atrás do transmissões, Américo cismava na quezília do alferes Mendonça com o furriel Neves. Dava razão ao furriel. Era, na verdade, um suicídio seguir o trilho. Lá mais para diante, a luz intensa indicava que em breve sairiam da mata para o inferno do capinzal. Foi quando a explosão estrugiu os ares. O Barão sentiu um bafo quente aflorar-lhe o rosto e qualquer coisa, talvez um seixo, bateu-lhe no peito. Atirou-se ao chão como os demais. Lá à frente reinava a confusão. - Enfermeiro! Ó Grilo! - gritavam. Américo levantou-se e correu para a cabeça do pelotão. Um pouco ao lado, o buraco da mina anti-pessoal ainda fumegava. O Grilo chegou nesse instante. - Afastem-se! Deixem o rapaz respirar - ordenou, alijando rapidamente a mala dos medicamentos. O alferes Mendonça, pálido, olhar alapardado, começou a dar ordens, raivoso: - Vocês dois, montem a segurança ali à frente. Vamos a dispersar, grande corja. Aqui não há maricas. - É grave? - perguntou Américo ao enfermeiro. O Pacaça gemia, desfalecido. - Se é grave? Tem os pés esfacelados. Vou-lhe fazer torniquetes para estancar a o sangue. Segurem-me aqui no frasco do soro. Meneses voltou-se resoluto para o alferes. - Peça imediatamente a evacuação do rapaz. Não há tempo a perder. - Antes que o alferes ripostasse, ordenou. O Cardoso que venha imediatamente aqui. Cardoso acorreu, meio desequilibrado pelo sacolejar do rádio. Ajoelhou-se e alijou o aparelho do ombro. Mendonça sentiu que o comando lhe estava a escorregar das mãos. Ia repor tudo nos eixos, relembrar a 66 hierarquia mas o olhar feroz do furriel Neves secou-lhe as ordens na garganta. - Certo - concordou. - Contacte a Companhia, Cardoso. - Leão...leão...diga se me ouve, escuto. - Que tal está ele? - voltou a interrogar Américo. Grilo abanou a cabeça, descoroçoado. - Tá a perder muito sangue. Vai ser difícil estancá-lo. - Leão...leão...águia chama. - Vais aguentar, não é Pacaça? - encorajou Américo. O ferido sorriu, lívido. - Não me dói muito...é grave? - Qual quê! Estás para lavar e durar. Pacaça cerrou os olhos, inane. - Aqui não consigo apanhar a Companhia - queixouse Cardoso. - Tenho que sair da mata. Mendonça aquiesceu com um aceno de cabeça. - Meneses, acompanhe o Cardoso com a sua secção.Rascunhou a mensagem codificada numa ponta de papel. Rápido. * - Consegui - rejubilou Cardoso, limpando com as costas da mão o suor que o cegava - Atenção, leão, tenho uma mensagem urgente. Mandem cerveja, temos sede. Na mata, Grilo afagava a cabeleira empapada em suor do Pacaça. - Aguenta, rapaz, aguenta... Apertou os torniquetes e passou uma gaze embebida em água pelo lábio ressequidos do ferido. - Põe o frasco do soro mais alto, cabrão - gritou para o Costa. Américo tirou a faca de mato da bainha e pôs-se a rasgar a casca duma árvore. Rasgões profundos e longos por 67 onde escorria uma seiva escura. Como sangue. Estremeceu e embainhou a faca, com dedos trémulos. O alferes Mendonça passeava para trás e para diante. O olhar do furriel Neves perseguia-o, feroz. - Então? - perguntou, detendo-se junto do ferido. - Está com o pulso muito fraco - murmurou Grilo. - Mantém-no vivo, homem. Faz o impossível. A restolhada da secção do furriel Meneses sobressaltou-os. - Vão enviar um helicóptero - anunciou o furriel Meneses com uma pincelada de esperança na cara. - Vamos sair da mata - comandou o alferes. Improvisem uma maca para o ferido. - Já não é preciso, meu alferes - soluçou Grilo. - Já não é preciso. Mendonça ficou boquiaberto, um braço petrificado no ar. - Cabrões, apareçam - ululou Américo. - Alçou a G3 e despejou-a, de rajada, para o ventre da mata. - Covardes! Venham lutar cara a cara. - A baba escorria-lhe pelos cantos da boca contorcida. A mata uivou ferida de mil ecos. Esvaziado o carregador, atirou a arma contra uma árvore e lançou-se ao chão com um urro feroz. Ninguém se mexia. Como se o tempo se tivesses esvaído naquele recanto do mundo. Por fim, o Barão enfrentou a morbidez do instante: - Merda, somos algumas crianças? Parece que nem os temos no sítio. 68 Malacão entrou no gabinete do capitão para dar a habitual sacudidela à poeira. - Dá licença, meu capitão? Sentado à secretária, o capitão Rosado não despregou os olhos da fotografia que segurava na ponta dos dedos. - Entra. Espicaçado pela curiosidade, Malacão rodeou, dissimuladamente, a secretária. O rosto bonito da mulher incendiou-lhe os olhos de gato com cio. - Malacão! - Diga, meu capitão. - Esta semana vais fazer uma limpeza geral ao meu quarto. Uma limpeza esmerada, ouviste. - Os olhos dos dois homens continuavam pregados no rosto fresco do retrato. – Na próxima semana a minha mulher chega à Calambata e quero tudo a brilhar. Estás a ouvir? - Sim, meu capitão – assentiu Malacão sem mexer um músculo do rosto afilado. Só os olhitos faiscavam. * Malacão entrou na cantina, sem fôlego. - O que vens aqui cheirar, pá? - estranhou o Chico cantineiro. Tens a cerveja fresca que queres lá na messe. - Mete a tua cerveja no cu - ripostou Malacão escostando as costas arfantes ao balcão. Espraiou o olhar pela malta que beberricava, amorfa, as nocais e as cucas meio chocas. Tudo malta que lerpara. Aqueles que tinham recebido correio estavam a estas horas nas casernas, cada qual no seu casulo, a ler e a reler os aerogramas. 69 - Quem não recebeu carta não precisa de ficar com essa cara de batata esborrachada - mofou. - Tenho notícias frescas, muito melhores do que as da santa terrinha. Até vão saltar. Só vos peço cuidado para não furarem o tecto com os cornos. - Não tarda nada tás com uma garrafa na fuça ameaçou um tipo do 4º pelotão. - Então segurem-se com força. Prá semana vamos ter a visita duma senhora branca, de carne e osso, boa com’o milho. Num repente, Malacão viu-se envolvido por uma dúzia de caras atónitas. - Ah, conta...conta. - Diz, pá, diz...ui...se tás a reinar rebento-te a mona. - Poça! Isto é melhor do que receber dez cartas. Chico meteu uma cerveja gelada nas mãos do Malacão. - Bebe, bebe que bem mereces. - Deixem-me ganhar fôlego - pediu Malacão, saboreando a cerveja. - Todo eu tremo. - Não é para menos. Uma branquinha! Ui, Jesus! Malacão pousou a cerveja no balcão e desafiou: - Adivinhem quem é! - Mau! A malta conhece-a? - Não me digas que é a Flora, aquela valente puta velha de S. Salvador? - Essa já aviou cem batalhões. - Com aquele bandulho já deve ter feito para cima de mil abortos. - Qual Flora! Frio, muito frio. - Deixa-te de rodeios e diz lá quem é. Malacão tornou a pegar na cerveja. Bebeu uma valente golada e percorreu as caras com os olhitos amarelados a transbordar de luxúria. 70 - Meus senhores, brevemente teremos cá, na Calambata, a mulher do capitão. O grupo ficou de olhos arregalados, os pedregulhos das palavras atravessados nas gargantas, incapazes de sair. - A... - A mulher... Malacão acabou de sorver a cerveja antes de atirar para o ar mais um punhado de detalhes. - O capitão mandou limpar o quarto a preceito para quando ela chegar. Disse-me: quero tudo a brilhar. - E és tu que vais fazer a cama todos os dias? - Pois. - Vais mexer nos lençóis onde ela se deitou? - Vê-la descascada... - Até talvez te peça para lhe esfregar as costas depois do banho...essas senhoras são assim... Malacão crescia como um deus. - Que sorte. - Nem me obriguem a pensar nessas coisas, até se me turva a vista. Chico saiu de trás do balcão e esgueirou-se para a porta, a mão na algibeira. - Eh, onde vais Chico? Uma onda de risadas acompanhou-o até à porta. - Mais um aborto, eh Chico! 71 Mendes contemplava, babado, a fotografia da oitava madrinha de guerra, acabada de chegar. - Para que queres mais uma madrinha? - estranhou Fernandes. - Dizias que era uma para cada dia da semana e, que eu saiba, a semana só tem sete dias. - Mendes beijou o retrato, regalado. - Sempre é bom ter uma suplente - esclareceu. Supõe tu que uma delas morre. Ficava descalço. - Tás mesmo cacimbado. * Costa recebera carta do irmão. Ficou inquieto, vagamente perturbado. O irmão não era homem para lhe escrever, só por escrever. Alguma coisa séria seria. Sentou-se no beliche e rasgou o envelope, ansioso. Mal leu as primeiras frase, as mãos começaram a tremer-lhe, os olhos a saltar as linhas, cegos de lágrimas: “Querido irmão, peço a Deus que te encontres de boa saúde, nessas terras do diabo. Resolvi escrever-te para te contar certas coisas tristes que por cá se passam, pois é melhor ser alguém da família a a contar-to do que um estranho. A tua mulher, a Maria da Luz, não se tem portado nada bem. Anda de cabeça perdida desde o teu embarque, metida com um gajo casado, lá na fábrica...” Amarfalhou a carta, o peito esmagado por uma mão enorme que apertava, apertava, a cabeça a chocalhar, tudo a girar em turbilhão. 72 A carta soltou-se dos dedos enferrujados. Tombou na cama e enterrou a cabeça na almofada, numa quietude de morto. * O Barão lerpara mais uma vez. Com um cigarro nos lábios, deambulava pela caserna, envenenado. - Eh Mendes, essa madrinha de guerra tem cara de bota da tropa. - Ó Américo, o teu filho já chama pai a outro? Ao rés da cama do Costa, a carta amarrotada despertou-lhe a atenção. Deu uma olhadela intrigada ao Costa, que continuava imóvel, e agachou-se para apanhá-la. Afastou-se um pouco, por precaução, e alisou meticulosamente a folha antes de a começar a ler. Um sorriso sardónico atravessou-lhe a cara de orelha a orelha, os olhos a saltarem das órbitas, os lábios a enrolarem gulosamente as palavras. Deus dois saltos para o meio da caserna. - Prestem atenção, meus senhores - bradou como um arauto. – Tenho a honra de vos anunciar que o nosso querido pelotão tem mais um cornudo nas suas fileiras. Prestem atenção, por favor: querido irmão, peço a Deus que te encontres...Aiiii! O uivo medonho do Barão rasgou os ouvidos atentos do pelotão, ribombou pelo telhado de zinco, rastejou parada fora, sobressaltou as sentinelas nos postos de vigilância. Com o Costas às cavalitas, caiu de joelhos, a grunhir como um porco na matança. A carta planou por instantes e aterrou suavemente na cama do Fernandes. - Ai que ele mata-me..ai...ai...acudam-me. Costa não deixava a presa, os dentes bem cravados no pescoço do adversário. 73 - Ai Jesus - gemia o Barão, lavado em lágrimas -, este gajo mata-me. Ai..ai... Ninguém dava mostras de intervir, as gargalhadas a estoirar por todos os cantos, até que, por fim, Mendes pôs cobro ao espectáculo: - Deixa-o, Costa! Larga o gajo. Costa rilhou os dentes com um rugido feroz e soltou a presa, por fim. Mudo, correu para a cama e voltou à letargia anterior. Barão gemia lastimosamente, agarrado ao pescoço. Mendes ajudou-o a erguer-se e arrancou-lhe a camisa. A mordidela saltou sanguinolenta. - Isto está feio, vai já à enfermaria. - Tás tramado, pá. O Costa tá com a raiva. E as gargalhadas tornaram a rebolar caserna fora. 74 - Sinto-me o culpado da morte do rapaz. Foi um capricho meu, uma birra de criança. É um loucura rematada seguir um trilho do inimigo, até os manuais mais rascas dizem isso. Não chego a perceber o que me passou pela cabeça. - Esquece - atalhou Vasconcelos, pegando na ballantines e tornando a encher os copos. Já passava da meia-noite e o aquartelamento mergulhara no silêncio. Só estavam os dois na messe. O capitão recolhera cedo ao seu quarto. O alferes Coelho andava no mato. E o alferes Silva estava acamado com um forte ataque de paludismo. Com o uísque a roer as inibições, Mendonça experimentava um desejo galopante de desabafar, de desenterrar fantasmas. - Até ando com medo de me deitar. Na escuridão começo a pensar no rapaz, a bombardear-me com perguntas. - Já te passou pela cabeça que também me posso pôr as mesmíssimas perguntas? - Não percebo. - Os gajos das armadilhas. - Isso é outra história. Morreram quatro gajos, é verdade. Mas eram inimigos. Além disso, nunca os viste nem mais gordos nem mais magros. Nunca lidaste com eles, nunca lhes falaste. É como ler no jornal a notícia da morte duma centena de pessoas num cataclismo qualquer. Não nos afecta praticamente nada. O meu problema é diferente. Eu conhecia o pacaça, tinha-o como um excelente rapaz, era uma força da natureza. Não preciso esforçar-me muito para 75 reconstruir a sua imagem. E isso dói. Não percebo como procedi daquela maneira. Havia qualquer coisa malígna a empurrar-me. O próprio furriel Neves estranhou a minha atitude e eu, sem lhe der ouvidos, cheguei até a irritar-me com as suas reticências. Nem tenho coragem de enfrentar o pelotão. Todos me consideram o culpado. Sinto os olhos cheios de rancor daquela malta a rasgar-me cá por dentro. A nossa relação futura nunca mais será a mesma. Tudo será diferente doravante. Mendonça calou-se. Encostou a nuca à parede e fechou os olhos. - Passo horas seguidas a tentar interpretar a minha reacção - prosseguiu depois. - Era óbvio que aquela decisão era uma loucura e eu não me vi, estava cego. Vasconcelos desabotoou a camisa, acalorado, acariciou o estômago. Um sorriso perverso alongou-lhe o bigode. - Queres que te faça o diagnóstico? Mendonça continuava encostado à parede, agora com os olhos fixos no tecto. - Mais uma brincadeira das tuas? Mas diz lá. - Há quanto tempo não estás com uma mulher? Mendonça endireitou-se, irritado. - A que propósito vem isso? - Na mouche! - A palmada na mesa fez saltar os copos. – Aí está a causa de toda essa impulsividade. - Qual causa? Vasconcelos bebeu o uísque dum trago e afagou o bigode antes de cravar o olhar trocista no outro. - Perturbações psíquicas causadas pela ausência prolongada de relações sexuais. Terapêutica: uma hora na palhota duma preta. - Queres acabar com a brincadeira? 76 Vasconcelos soltou uma gargalhada. Deu mais uma palmada na mesa. - Acertei mesmo no alvo, certo? Mendonça levantou-se com brusquidão. - Se preferes continuar nesses termos, vou-me deitar. Não estou para te aturar. - Eu não digo? Como explicas essa irritação crónica? - Queres conversar a sério ou não? Mendonça tinha-se levantado, crispado. - Senta-te, estava a reinar. Ainda não acabámos o uísque. Mendonça aquiesceu. Reatou a conversa. - Vou alterar as minhas férias. Quero gozá-las o mais depressa possível. Em Lisboa, longe disto tudo, talvez me consiga reencontrar. - Fazes bem, quando regressares já muita água terá corrido. Esta solidão, no meio de muita gente, é terrível, deixa as pessoas confrontadas com as suas contradições. Põe a nu a pergunta crucial: o que fazemos aqui? Faz-nos compreender o absurdo desta guerra. Inesperadamente, Vasconcelos desistiu de encher os copos. - Vou-me deitar. Não bebo mais. Merda pró uísque. - Eu vou fazer a ronda - disse Mendonça com voz tremida. O facto não passou despercebido ao outro. - Problemas? - Não...não é nada. Vai lá deitar-te. Vasconcelos insistiu: - Queres que te acompanhe? Mendonça enrubesceu, a boca arrepelada num tique. - Se queres... - Se começas a recear os teus homens dessa maneira, estás liquidado. 77 Mendonça enterrou a cara nas mãos. - O que queres que faça? É superior às minhas forças. Quando me aproximo dos postos de sentinela estou sempre à espera dum tiro. Não consigo controlar-me. Começo a pensar: esta malta odeia-me, à mínima oportunidade espetam-me um tiro. Não consigo arrancar esta obsessão da cabeça. - Que porra esta! Estou a ver que nem a terapêutica da preta te pode valer. Estás metido numa grande alhada. 78 A noite estava negra. As nuvens negras e pesadas. De tempos a tempos, ouvia-se o ribombar dum trovão lá longe. Fugazes relâmpagos recortavam contra o horizonte as silhuetas das casernas. O calor, carregado de humidade, asfixiava, fazia as têmporas latejar. Mendonça saiu do quarto furtivamente. Passou rente à messe dos sargentos, rodeou o edifício da enfermaria esbatido contra o céu de chumbo como um pagode e aproximou-se do posto de sentinela. - Sentinela – chamou. Lá do alto, chegou-lhe um arrastar de pés pouco apressados. - Hei! Quem vem lá? É o alferes Mendonça. É para te avisar que vou à sanzala. - Compreendido. Não há problemas. Mendonça enrubesceu no escuro. Deplorou o tom cúmplice que a voz do soldado velava. - Vou falar com o soba. - Comigo não há problemas. – retorquiu, embrulhada numa pequena gargalhada, a voz lá do alto. Mendonça sentiu-se impotente para ripostar. Embrenhou-se na noite. Mais do que uma vez teve a tentação de retroceder para o quartel que, envolto pela iluminação periférica, era rutilante jóia engastada na noite. Reminiscências fustigavam-no: farrapos de juras de fidelidade feitas à namorada, estilhaços de normas morais que pertenciam a outro mundo, tão distante e brumoso. 79 ` Entrou na sanzala. Novelos de fumo subiam dos telhados. Sombras, vozes, percorriam a noite. Um cão pôsse a ladrar. Procurou a cubata de Ana. Uma pálida claridade coava-se pelas frinchas da porta desconjuntada. Hesitou. Coseu-se à parede.. O ridículo da situação incutiu-lhe coragem. Tamborilou na porta. - Quem é? - Alferes Mendonça. O vestido escarlate de Ana recortou-se no umbral. ` - Posso entrar? O assentimento veio mudo. Um candeeiro a petróleo bruxuleava, cobrindo de sombras as paredes descarnadas de adobes. Mendonça sentou-se no catre, na rigidez do colchão de capim. No chão, de terra batida, ainda fumegavam uns restos de lume. A um canto um monte de camuflados sujos à espera dos braços da lavadeira. - Vim-te fazer uma visita. Senta-te junto a mim. Ana obedeceu às ordens do alferes, com um olhar manso. O vestido subiu mostrando as coxas fortes e jovens. A mão do rapaz acariciou a coxa, tacteou o ventre, subiu ao encontro dos seios. - Despe-te. O corpo nu da rapariga era uma estátua esculpida em ébano. Mendonça despiu-se rapidamente e estendeu-se ao lado dela. Foi quando a imagem do Pacaça se entrepôs. - Veste-te! Um esgar de contrariedade arrepelou o rosto de Ana. Enfiou o vestido com mal contida irritação. - O nosso alferes tá a brincar. - Se eu te explicasse não compreenderias. 80 Mendonça vestiu as calças. Sacou da carteira e tirou uma nota. - Toma! - Não quero. - Não precisas de dinheiro? Amuada, Ana não respondeu. Sentou-se na cama. De pé, Mendonça passeou o olhar pela miséria que o rodeava. Pousou-o no vulto silencioso da lavadeira. - Ouve, Ana, gostas de cá estar? - Não, lá para o sul, na nossa terra, era melhor. Por que nos trouxeram para aqui? Mendonça pensou, constrangido, em toda aquela gente arrancada brutalmente às suas terras ancestrais e espalhada, como gado, pelas diferentes sanzalas: Calambata, Madimba, Tamboco, Cuimba... Sob o pretexto de os furtar à influência dos movimentos independentistas. - É a guerra, Ana. - Nós não fizemos mal a ninguém. - Aqui estão protegidos dos terroristas. Logo se arrependeu de ter proferido tais palavras capciosas. Com certeza Ana tinha amigos, familiares, talvez o noivo entre os guerrilheiros. Era ridículo falar-lhe em protecção, em terroristas. Olhou-a nos olhos e, pela primeira vez, viu um estendal de privações a bailarem-lhe nos olhos. Atirou a nota para cima da cama. - Sabes, Ana, no fundo, embora não pareça, estamos no mesmo barco. Um barco em risco de ir ao fundo. Com a diferença de que eu viajo nos camarotes e tu no porão. No regresso ao quartel, a decisão estava tomada. Já não regressaria das férias. O salto para França, os caminhos do exílio esperavam-no de braços abertos. 81 Pinto mastigava lugubremente o guisado. Nos últimos tempos, a alegria de viver parecia abandoná-lo. Já nem mesmo o privilégio de ser faxina na messe dos sargentos lhe levantava a moral. A cerveja sabia-lhe a mijo e os bifes a sola. Estava no ponto de invejar os operacionais. Pelo menos esses andavam no mato, visitavam outros aquartelamentos. Desopilavam. E ele? Era como se estivesse numa prisão. Os dias eram intermináveis e das noites nem era bom falar. - Tás cacimbado de todo - atiçava-o Malacão. - Não posso continuar assim - resmungou, afastando da frente o prato quase intacto. Descascou uma manga e enterrou os dentes na polpa resinosa. Os fios da manga enredaram-se –lhe nos dentes e, chateado, atirou o fruto para o balde do lixo. Com a ponta da faca, pôs-se a palitar os dentes. O monte de loiça suja atulhava o lava-loiça. “O Malacão não pense que vou lavar esta tralha sozinho.” Na verdade, nos últimos dias, mal acabava de servir o almoço aos oficiais, o Malacão eclipsava-se sem comer nada. Só reaparecia passado um bom pedaço, silencioso, esbranquiçado, com um apetite voraz como nunca tivera. Atirava-se à comida a ponto de rapar o fundo aos tachos. Para o obrigar a levantar da cadeira e colaborar na lavagem da loiça era um castigo. Só à força de palavrões. - Andará o gajo a pirar-se para a sanzala? - cogitava. - Mas assim à luz do dia? 82 Nesse instante, Malacão entrou sorrateiro como uma sombra. Agarrou o tacho e vazou o guisado para o prato. Começo a engolir fartas colheradas. A maça de adão subia e descia vertiginosamente. - Queres que vá à cozinha buscar outra tachada? – troçou Pinto, começando a lavar a loiça. Malacão nem levantou os olhos do prato. - Outra tachada? - repetiu. Depois compreendeu: Vai bardamerda. Continuou a devorar o guisado. - Estou à tua espera para lavar a loiça. - As cadelas apressadas parem os filhos mortos ou malucos. - A tua mãe devia ser das apressadas. - Já tu não tens problemas desses, foste feito dum monte de merda. Pinto alvejou-lhe a cabeça com o esfregão. Malacão esquivou-se e o projéctil esparramou-se contra a parede. - Cegueta. Pinto bufava, congestionado`. - Tás a ficar cacimbado de todo – comentou Malacão com um olhar compreensivo, sem deixar de mastigar. – Tens falta de uma coisa que eu cá sei. - Se és tão esperto, diz lá o que é? - Chicha. - E tu, não tens? - Eu? Eu...pois claro...ou julgas que sou de pau? - Onde costumas ir à hora à hora do almoço, mal sais da messe? – não deixou arrefecer Pinto, com um ar velhaco no carão bonacheirão. Malacão encolheu-se como um coelho bravo. Suspendeu a colher entre o prato e a boca aberta. - Que paleio é esse? 83 Pinto compreendeu que jogara uma cartada certeira e abocanhou logo a oportunidade. - Sei tudo - martelou. - Tudo...o quê? - Tudo. A colher regressou cheia ao prato. - Tudo!- repetiu Pinto. - A gaja é mesmo boa – confessou Malacão. Pinto teve a percepção de que estava no limiar duma descoberta mirabolante. Enxugou as mãos e sentou-se defronte do camarada. - Conta lá. - E tão branquinha! O sangue tingiu o rosto redondo do Pinto. - Tu...tu andas com a mulher do capitão!? Só então Malacão compreendeu que caíra numa esparrela. - Não sabes de nada – gritou, furioso. - Estiveste a tirar nabos da púcara. - Vai lá lavar a loiça e deixa-me em paz. Pinto regressou ao lava-loiça, cabisbaixo. Os olhos matreiros do Malacão perseguiam-no. - Se continuares a lavar a loiça sozinho, talvez um dia te conte tudo. Já agora, traz-me um café e um conhaque. 84 - Traz-me uma cerveja, Pinto - berrou o furriel Magalhães. - Há mais arroz? - perguntou o sargento Martins. - Não há, não, meu sargento. - E na cozinha? - insistiu o sargento. - Eu queria trazer mais, mas o cozinheiro não deixou – explicou Pinto. - Só quando chegar o 3º pelotão da Madimba é que sabem se sobra ou não. - Ó Máximo, você está a cortar a ração? - Só assim é que ele pode comprar um carro quando chegar à metrópole - espicaçou o furriel Reis. O furriel Máximo ficava fulo com estes apartes. O suor borbutava-lhe na fronte e os olhos verdes agitavam-se nos óculos de míope. Ripostou com voz trémula: - O que me consta é que tu tens intenção de levar um unimog. Os unimogos estão sempre avariados porque estão a desaparecer peças constantemente. - Mais vale isso do que matar a malta à fome. - Lá isso é verdade – corroborou o furriel Magalhães. - Olha quem fala. Ainda esta manhã não havia nenhum rádio operacional para o 3º pelotão sair intrometeu-se o furriel Pinho. A discussão generalizou-se a toda a messe. A eterna guerra entre operacionais e especialistas. Gritava-se e gesticulava-se o que deu tempo para o Pinto emborcar uma cerveja. - Vocês, os operacionais só servem para andar com a mochila às costas - gritava exasperado o furriel Reis. 85 - Cala-te, rodinhas. És mecânico porque tiveste uma cunha maior do que uma berliet. Nunca tinhas visto um motor na tua vida. Vocês são todos meninos das cunhas. - E vocês nem essa esperteza tiveram - saltou o furriel enfermeiro Ribeiro. - Deus me livre de um dia cair doente. Este seringas era carniceiro na vida civil. Pinto já não estava a gostar nada da brincadeira. Aproveitara para dar um espreitadela à messe dos oficiais e estes estavam prestes a terminar a refeição. A mulher do capitão até já pedira o café. “Mau, mau, se estes gajos não se largam, tou tramado”, cogitava, apreensivo, vendo a discussão cada vez mais acesa. Logo quando, vencendo medos e fantasmas, decidira avançar com o arrojado plano de apanhar o Malacão e a mulher do capitão em flagrante delito. Quando já via tudo perdido, Malacão veio em seu socorro. Avançou messe dentro em passo desenvolto, com o ar circunspecto que sempre afivelava em tais circunstâncias. - Meus senhores - bradou. - O nosso capitão pede o favor de fazerem menos barulho. - Vêm? - exasperou-se o 1º sargento Matos. - Estão sempre a dar oportunidades aos oficiais de nos pregarem raspanetes. - Eles que vão à merda - resmungou o furriel Máximo, ainda exaltado. - Ouvir raspanetes de garotos - lamentava-se o 1º sargento. - Tenho filhos mais velhos do que eles. Malacão piscou um olho ao Pinto. “Nem sabes o que te espera, grande sacana” - sorriu este. - Hoje não escapas. * 86 Teresa despira-se a aprontava-se para se estender na cama. Habitualmente, aproveitava aquela paz depois do almoço, enquanto o marido e os alferes ficavam na messe a beber e a fumar, para saborear uma boa hora de repouso. Aquela incursão no teatro da guerra, que a princípio tanto a excitara, estava a tornar-se fastidiosa. O único atractivo que ainda perdurava naquela aventura era o prazer de ser o centro das atenções, de se sentir cobiçada por centenas de olhos esfomeados. - Isto é um campo de concentração - desabafava para o marido. - Eu bem te avisei. Mas não me deste ouvidos. - Sou caprichosa, bem sabes. - Foi isso que me atraiu em ti. Sorriu à evocação do galanteio do marido quando, repentinamente, a porta escancarou-se e um soldado com o quico enterrado até aos olhos esgazeados irrompeu quarto dentro. - Ei, o que é isto? - exclamou assustada, cobrindo-se com o lençol. Pinto estacou como um boi na arena. Resfolegava, desorientado, alagado em suor. - Quem é o senhor? - tornou Ana, já recomposta. Pinto soltou um urro de animal ferido de morte e fugiu, tombando na carreira cega, uma cadeira que se lhe atravessou no caminho. Teresa franziu a testa, intrigada, e foi cerrar a porta. “Há cada coisa!”. * Empoleirado na sanita, recomposto da estupefacção inicial, Malacão estava prestes a rebentar de riso. Pulmões em brasa, as lágrimas saltavam-lhe dos olhos em catadupa. “Ai que eu rebento, ai que eu rebento” 87 “Por fim, a gargalhada explodiu em ondas fragorosas que lhe deixaram as pernas a tremer como vimes. Pelo orifício, que abrira na parede entre a casa de banho e o quarto do capitão, por onde todos os dias espreitava a mulher, assistira, do princípio ao fim, ao monumental espectáculo do Pinto. Indefeso, deixou-se submergir por nova avalanche de hilaridade. “Ai que eu rebento, ai que eu rebento.” No quarto, de olhos arregalados, assustada, Teresa vestiu-se apressadamente e correu a refugiar-se na messe onde os oficiais travavam animada partida de póquer. 88 Formada na parada, a Companhia derretia sob a explosão do sol a pino. Tudo era branco, duma brancura que entrava pelos olhos e fritava os miolos. - Que será desta vez? - interrogavam-se todos. Coisa boa não é. O sol mordia as costas e o suor encharcava as camisas. Os alferes e os furriéis passeavam frente à formatura com caras de caso. Até o primeiro-sargento Matos levantara o nariz dos calhamaços da contabilidade e seguia o decorrer dos acontecimentos encostado à ombreira da porta da secretaria. Só o alferes Vasconcelos é que arvorava um sorriso trocista, francamente divertido com o espectáculo. Centenas de olhos permaneciam cravados na porta do gabinete do capitão, ansiosos por vê-lo surgir. - Tá a fazer render o peixe - murmuraram na última fila. - Silêncio - berrou o alferes Silva. - O chicalhão tá a precisar dum aperto - rosnou uma voz. Contudo, a expectativa suplantava todos os rancores. Para o capitão ter mandado formar a companhia o caso devia ser grave. Ninguém escapara, desde os cozinheiros aos enfermeiros, passando pelos básicos e faxinas. Somente as sentinelas permaneciam nos postos. Quando todos já começavam a desesperar, o capitão, irrompeu do gabinete em passo marcial. Sob a boina, apercebia-se o rosto severo, impenetrável. 89 - Atenção, Companhia, senti..DO - rugiu o alferes Silva. - Mande descansar - sibilou o capitão. - Companhia, descan..SAR! À vontade. O capitão postou-se frente aos homens, verrumandoos um a um. - Meus senhores, a primeira coisa a dizer é que me sinto profundamente magoado. Há entre vós gente que não soube merecer a confiança que vos concedi. É a pior ofensa que me podiam ter feito. A Companhia não piava, esquecida a voracidade do sol. O capitão deu dois ou três passos, rodou nos tacões e prosseguiu a sua diatribe: - Ontem, alguém se introduziu nas instalações dos oficiais com ignóbeis intuitos. - Alçou o dedo - Quero o culpado. Terá este a hombridade de dar um passo em frente? Quem foi? Ninguém se moveu. Os olhos do capitão passeavam, perfurantes, pelos rostos congestionados. - Ninguém se apresenta? Pensei que estava a lidar com homens mas enganei-me. Já que é assim, ficam desde já suspensas as colunas a S. Salvador e proibidas as visitas à sanzala. E a ração de cerveja será cortada para metade. Até ao fim da comissão, se for preciso. Podem estar certos de que o culpado não irá escapar. Mande destroçar, alferes Silva. - Ai, Jesus - gemeu Malacão. Apesar do calor, os dentes do Pinto batiam como castanholas. - Atenção, Companhia, direita...ER - grasnou o alferes. - Destro...ÇAR. 90 A malta ficou surpreendido com a inesperada entrada do alferes Mendonça na caserna. - Boa noite. Ninguém se mexeu, as conversas adiadas nos lábios. Mendonça aventurou-se até ao meio da caserna, vigiado por olhares de soslaio. Largou em chorrilho as palavras estudadas: - Como devem saber, por em breve para férias. Não quero partir sem vos dar uma explicação, esclarecer certas coisas. - As palavras pareciam esmagar-se contra os rostos sombrios, precocemente adultos. – Quero, em primeiro lugar, dizer-vos que lamento tanto ou mais do vocês a morte do...vosso camarada...do Pacaça. - Lamentar não chega - falou Mendes, logo coadjuvado por um murmúrio cavo. Mendonça atirou-se com sofreguidão àquela brecha: Como vos queria dizer, não me limito a lamentar. Sei que não poderei restituir a vida ao vosso camarada mas irei fazer os possíveis por atenuar o meu erro. Era isto que vos queria dizer. - Fazer o quê? – tornou Mendes. Já havia rostos interessados, olhares curiosos. - Mal chegue à metrópole, irei procurar de imediato os pais dele. Sei que vivem com dificuldades mas a minha família é, felizmente, bastante abastada e poderá apoiá-los nesta situação tão difícil. Mendonça olhou ao redor, com as lágrimas nos olhos. 91 - Talvez vos custe a a acreditar mas tenho-vos em grande estima. Foi no vosso convívio que compreendi muitas coisas. Recebi grandes lições. Nunca, nunca mais poderei esquecer o tempo que passámos juntos. Brevemente, compreenderão melhor o sentido das minhas palavras. Fernandes saiu do seu canto com uma garrafa nas mãos. - É bagaceira do Minho. Beba que é de estalo. Mendonça abraçou-o. - Obrigado. Obrigado por tudo.. - Eh, meu alferes, não beba tudo, deixe uma pinga prá malta - alarmou-se o Barão, saltando da cama. E logo a caserna explodiu em algazarra. 92 Para espanto geral, Pinto passou a usar óculos de sol e deixou crescer um bigode que lhe dava um ar façanhudo que desvirtuava completamente a sua índole de pacato aldeão minhoto. - Mas, ó Pinto, até de noite? - estranhavam. Pinto desfazia-se em explicações, evocava a sua galopante alergia à luz, à mais ténue claridade. - Andas a treinar para toupeira? - ria Malacão. - És o culpado de tudo - enfurecia-se Pinto. - Nunca mais te hei-de perdoar. - Deixa lá que ela já vai embora dentro de dias. acalmava-o Malacão. - Pelo que oiço lá na messe, só olhou para a tua ferramenta em pé. Não tenhas medo que não te poderá reconhecer. Logo uma gargalhada irreprimível o sacudia de alto a baixo e lhe enchia os olhos de lágrimas. Pinto ficava com vontade de lhe saltar em cima mas logo o medo de dar nas vistas reprimia o impulso. Aconchegava os óculos na cara e rosnava por baixo do bigode: - Ainda mas hás-de pagar. Malacão fazia-lhe peito, destemido, ameaçador. - Queres que dê com a língua nos dentes? Já te esqueceste que é por tua causa que a malta não pode ir à sanzala nem a S. Salvador? Que é por tua causa que andamos todos com as mãos gastas de tanto esfregar o pau? - Fala mais baixo - assustava-se Pinto. - Olha que te podem ouvir. Sempre fomos amigos. 93 Apaziguados, lá iam beber mais uma cerveja que, criteriosa e alternadamente, carregavam na conta quer dos sargentos quer dos oficiais. - A gaja é mesmo boa - suspirava o Malacão. Pinto acariciava o bigode, sonhador e, sem palavras para exprimir o que lhe lavrava a alma, deixava a cerveja escorrer garganta abaixo a acalmar o fogo que lhe devorava as entranhas. 94 Teresa e Mendonça partiram para Luanda no mesmo táxi-aéreo. À última hora, tiveram um inesperado companheiro de viagem: o Barão, a contas com uma hepatite de quatro cruzes. - Tens que nos dizer como isso se arranja, ó Barão despediam-se os camaradas. Pela primeira vez, desde que se conheciam, o Barão não teve forças para ripostar. Limitou-se a um simulacro de sorriso amarelado. No dia seguinte, inesperadamente, num acesso de brandura, o capitão Rosado levantou o racionamento da cerveja e a proibição de irem à sanzala. A Companhia reencontrou rapidamente a rotina habitual: patrulhas, bebedeiras, caçadas, paludismo, saudades, solidão. Os dias as esgotarem-se lentamente na clepsidra daquele tempo suspenso. A época do cacimbo estava à porta. Mais clemente o calor e amansadas as chuvas, os morros começavam a amarelecer, à espera das queimadas que iluminavam as longas noites estreladas dos trópicos. 95 ENTRE MORROS E CAPIM O aquartelamento encarrapitado no cimo do morro. A meia encosta, a sanzala. Ao redor, a omnipresença dos morros verdes de capim. Nas vertentes, as manchas escuras e densas da mata. Finalmente, após longa espera, os maçaricos chegaram. À porta de armas, uma enorme bandeirola de pano branco, letras garrafais pintadas em vermelho vivo, fazia as honras da recepção: «A RAZÃO DA VOSSA TRISTEZA É A RAZÃO DA NOSSA ALEGRIA.» Os velhinhos, em polvorosa, rodearam a coluna. Troçam, hílares, do ar aparvalhado dos recém-chegados. - Estes maçaricos ainda cheiram a sal. - Estávamos com medo que se tivessem perdido na picada. - Aqui não podem chamar pela mamã. Mas logo a saudade desponta. Abruptamente, a fachada rude esboroa-se. - Vem alguém de Viana? - De Chaves? - De Leiria? Reencontros. Abraços. Corações a estoirar na boca. Um tropel de emoções a rasgar caminhos largos de ternura, a correr como sombras pela imensidão do capinzal. ISBN 978-2-9813189-3-0 96