José Carlos Zeppellini Junior: Especialista em Psicopatologia pelo NAIPPE/USP, Mestrado em Psicologia Clínica realizado no Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUCSP e Segundo Secretário da Associação pela Paz e Estudos da Violência APEV. End: Rua Itacolomi, 333, conj. 64, CEP 01239-020. São Paulo, SP. Tel: 71519341. Mesa – Redonda – Eros na maturidade: violência, poder e criação. Eros e Violências – Encontro Marcado com a Envelhescência Estive, por 4 anos, realizando atendimentos clínicos no Setor de Psicologia da Geriatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Realizei atendimentos em enfermaria, tanto com os pacientes como com seus familiares, acompanhamentos ambulatoriais e grupos semanais com idosos em grau inicial de demência e seus cuidadores. As experiências clínicas que frutificaram destas vivências foram extremamente enriquecedoras, porém, intensamente violentas. Transitar por uma enfermaria e se defrontar com pacientes em estados completamente heterogêneos e, algumas vezes opostos, produzia um impacto em minha própria vitalidade. Era perceptível que meu corpo estava perdendo o ânimo. Minha capacidade associativa estava diminuindo, minhas representações a respeito de meu próprio estado e dos pacientes perdiam gradativamente a coloração. A velhice, o jogo entre a vida e a morte, a constatação contratransferencial do meu próprio envelhecimento e a percepção deste nas pessoas com as quais convivo, e que me são queridas, exigiram que meu corpo se anestesiasse. O encontro com a natureza do envelhecimento humano produz pathos. Produz um excesso que demanda do aparelho psíquico a ativação de sua função imunológica, defensiva. A natureza sempre assustou o Homem. Era necessário produzir uma narrativa desse Pathos; colocá-lo em discurso, em palavras, era uma forma de organizar e representar o excesso de violência que perturbava o Ego. Até que ponto, contudo, seria fácil assumir a violência inerente ao contato com a velhice? Tão mais fácil negá-la e manter o discurso de amor e de respeito ideológico ou moralista para com os idosos. Não é muito fácil assumir o ódio contra a natureza do humano quando ele se refere à velhice. Existe uma tendência a infantilizar o processo de envelhecimento. “Ele já está velho, agora voltou a ser uma criança”. Essa frase, tão comum em nosso cotidiano, aponta a dinâmica de negação das características angustiantes que a velhice impõe. Criar um paralelo entre infância e velhice descaracteriza e empobrece o idoso. O transforma em um “estranho”, sem a força e sem a vitalidade das crianças e sem o acúmulo de experiências que só o tempo provê. Esse olhar protege o observador, porque nega a finitude que a natureza impõe aos seres e, ao mesmo tempo, aniquila o sujeito que é observado e negado radicalmente. Um outro discurso comum é o da pena. “Coitado, ele(a) já está velho”. A velhice estimula o compadecimento, como se contasse um segredo ao observador a respeito de algo que não fica dito em palavras. É como se “cochichasse” ao pé do ouvido que aquele outro tem pouco tempo de vida. É muito mais sereno a apaziguador manter o discurso de amor e respeito à velhice. Contudo, ao negarmos a violência estimulada pelo contato com o simbólico que dela advém, este discurso fica empobrecido pela impossibilidade de se traduzir em comportamentos genuínos. O idoso não precisa ser respeitado de maneira diferente de qualquer outro cidadão e nem faz questão de não ser odiado. Amor e ódio fazem parte da vida social. A questão é mais delicada e mais complexa. Durante o tempo no qual estive clinicando na Geriatria do Hospital das Clínicas, me encontrei diversas vezes com o desejo de interromper o trabalho. De procurar um outro lugar, outras pessoas, outros grupos. Ao mesmo tempo, entretanto, havia a presença de Eros. Havia a vontade de continuar, de cuidar, de me debruçar sobre a narrativa daquelas pessoas e construir uma escuta clínica que produzisse um encontro clínico enriquecedor. A relação entre pulsão de vida e pulsão de morte e a presença de ambas na transferência são fundamentalmente necessárias para que um trabalho clínico possa ser construído. Tolerar os investimentos de amor e ódio, na transferência e na contratransferência, é condição vital para o estabelecimento de uma relação psicoterapêutica que reconheça a natureza humana do encontro clínico. Isabel da Silva Kahn Marin (2002) apresenta o termo “violência branca” para apontar o caráter sedutor das instituições que ao negarem a violência inerente as mais variadas fases da vida, acabam por desamparar completamente o sujeito que elas visam atingir. Isso se dá não só com os jovens, mas também com os idosos. A sociedade tende a excluir o idoso de seu lugar coletivo, ao negar a violência que é proveniente do encontro com a finitude que a velhice objetivamente apresenta. A “violência branca” entra em marcha e o idoso é colocado apartado do convívio social. Um exemplo desta violência encontra-se no número de queixas a respeito do transporte público no Brasil (Diário de São Paulo, Caderno do Idoso e Bem-Estar, 25 de abril de 2004). As reclamações são várias: o motorista não espera o idoso entrar completamente na condução antes de partir, o acesso aos ônibus são impróprios, não há acentos para todos e etc. Este exemplo é vital porque nos coloca uma questão importante: se o sujeito não pode transitar pelo espaço social, o que lhe resta? Assim como a cidade não é tolerante com os deficientes físicos, visuais, auditivos e tantos outros que nela vivem, não é tolerante com os idosos. O declínio das funções corporais é um ataque ao ideal de ego narcisicamente constituído e o impacto que esses encontros produzem é intensamente evitado. O estado de desânimo, de apatia e diminuição da capacidade associativa que vivi na época do trabalho no hospital foi fundamental para a organização de uma série de idéias a respeito do trabalho clínico com os idosos e do impacto da velhice na sociedade em geral. Era evidente que o pathos, que se derivava do encontro com a velhice, exigia uma dinâmica psíquica que me preservasse e me protegesse do excesso que me afetava. A sensação de “anestesiamento” pode ser melhor compreendida através do processo denominado por Fédida (2002) como “depressividade”. A depressividade é de caráter vital, e podemos entendê-la como um movimento psíquico, econômico, que visa à proteção, o equilíbrio e o constante trabalho de regulação da vida diante do pathos. A depressividade, portanto, é um trabalho psíquico que pode ser compreendido como eminentemente imunológico. A possibilidade de desenvolvimento de um estado letárgico, mais insensível aos afetos, faz do humano uma espécie capaz de adaptar-se às mais diversas situações. A depressividade apresentou-se, portanto, como um instrumento clínico necessário para o gradual e legítimo encontro com a velhice do outro e com a minha própria. A organização do amor e do ódio, das frustrações e da recusa do ideal de ego à idéia de finitude faz com que a velhice possa ser vista e reconhecida em seu conjunto. Nem maniacamente idealizada como melhor-idade, nem melancolicamente percebida como o que sobrou de uma vida. Aqui, torna-se importante apresentar o conceito de envelhescência proposto por Berlinck (2000) da seguinte forma: “Pensar a envelhescência como um desencontro pode ser frutífero. O desencontro entre o inconsciente atemporal e o corpo, âmbito da temporalidade.” (p.193). A envelhescência seria, desta forma, um trabalho psíquico no qual este desencontro será organizado de forma a constituir uma identidade diante da e na velhice, bem como para garantir a permanência de Eros tanto no que diz respeito aos investimentos voltados ao próprio ego como aos objetos externos. Este trabalho, contudo, não é facilmente realizado. O declínio do tônus muscular, da velocidade juvenil, do fôlego de outrora e de tantas outras características que se alteram com a velhice, são vividas como uma ameaça brutal ao ideal de ego. O corpo, como fonte de frustração e privação, reativa as angústias relativas ao temor da castração. Temor este que se atualiza na objetividade da natureza humana e se desloca do falo ao corpo todo. O risco da castração que é vivido na infância como uma ameaça de aniquilação, se estende, na velhice, à concretude do corpo temporal. O corpo pode passar a ser um objeto ameaçador, que colocaria em risco a integridade dos ideais narcísicos. Desta forma, existe a possibilidade de uma cisão radical entre psíquico e somático. O corpo pode passar a ser visto como um objeto externo ao aparelho psíquico, pode ser negado, recusado, tanto pelo idoso como pela sociedade que deve reconhecê-lo como cidadão. No livro “Violências” (2002), Marin faz um comentário sobre a origem do ódio que pode nos auxiliar a respeito deste ponto da envelhescência: Provém do repúdio primordial do ego narcisista ao mundo externo com seus extravasamentos de estímulos” (MARIN, pg 23). Portanto, o ego narcisista pode vir a recusar o corpo, como se este fosse aterrorizante. A violência que a velhice apresenta ao ego narcisista é radical porque rompe com a busca de equilíbrio sustentada pelo ideal de ego, rompe com a promessa de paz em vida, de estabilidade onipotente e infinita. Esta expulsão do corpo poderá ser expressa através de diversos quadros sintomáticos. Dentre vários, podemos destacar os desenvolvimentos demenciais. Em alguns casos de demência, o idoso sustenta sua identidade narcísica dentro de uma reserva mnêmica que vai do presente para o passado, recolhendo e re-vivendo as experiências anteriores e recusando radicalmente o presente e futuro. Aprofundei o estudo a respeito das demências em minha dissertação de mestrado (ZEPPELLINI JUNIOR, 2008). Retornando à questão da recusa ao corpo na velhice podemos pensar no impacto social deste trabalho psíquico. Se a velhice coloca em risco a manutenção do ideal de ego do sujeito que a vive, o faz, também, em quem convive ela. Desta forma nos defrontamos com a emergência do desejo de exclusão do idoso, de destruição da velhice através de sua negação total ou de sua distância. Este desejo se apresenta nas mais variadas situações, inclusive na clínica. A depressividade pode ser um recurso para enfrentá-la, ou para recusá-la. Entretanto, nem o clínico nem o idoso estão livres do trabalho necessário chamado: envelhescência. É a possibilidade de elaboração da própria velhice que faz com que o psicoterapeuta possa colocar-se diante da velhice do outro, e da sua própria, e estimular, assim, a construção de um laço afetivo que, por meio da transferência, estimule Eros a manter-se investido nos aspectos positivos e enriquecedores da velhice e, consequentemente, da vida. Durante os atendimentos com pacientes idosos, muitas vezes, sinto-me receoso. Será que uma interpretação a respeito da velhice será recebida de forma violenta? Suscitará ódio? Aceitação? Estarei me vingando daquele sujeito que está me fazendo ter saudades da minha paz perdida, ou estarei auxiliando a elaboração de uma situação em particular? Por meio da transferência, as exigências pulsionais produzem uma inquietante perturbação, que deve ser acolhida, tolerada, para que ache espaço para o surgimento do amor, do ódio, do conforto, do desconforto, enfim, para a estruturação de um encontro clínico que legitime a humanidade e a integridade dos envolvidos. Torna-se, desta forma, extremamente importante o trabalho de envelhescência por parte do próprio clínico. A recusa do envelhecimento, da violência e dos sentimentos hostis, pode fazer com que o clínico reaja contratransferencialmente de maneira que recuse, também, o idoso que lhe dirige uma narrativa a respeito de seu pathos. Essa recusa, que é uma recusa da natureza humana, pode alienar ainda mais o sujeito que está trabalhando para fortalecer a relação de Eros com o corpo e com a identidade na velhice. O idoso, que se dispõe ao trabalho de envelhescência, não quer ou não aceitará o clínico como um ouvinte ingênuo, que procura viver uma fantasia de recusa da castração, traduzida na tentativa maníaca de suavizar os sofrimentos intrínsecos ao envelhecimento. Esse tipo de jogo defensivo não pode ser compreendido como “flexibilização” dos ideais egóicos. Ampliar a tolerância do ego ideal e diminuir a tirania do ideal de ego diante da fragilidade imposta pelo envelhecimento, assim como tornar perceptíveis as conquistas e os aspectos positivos da idade passa, necessariamente, pela via da aceitação da condição natural do Homem. Passa, portanto, pela elaboração da temporalidade e do caráter finito da experiência chamada “vida”. Orientar-se diante dessa condição finita e, a partir disso, continuar encontrando possibilidades de prazer e satisfação no dia-a-dia são os ganhos do trabalho contínuo chamado envelhescência. Referências Bibliográficas: BERLINCK, Manoel Tosta. Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Escuta, 2000. FÉDIDA, Pierre. Dos benefícios da depressão: elogio da psicoterapia. São Paulo: Escuta, 2002. MARIN, Isabel da Silva K. Violências. São Paulo: Escuta, 2002. ZEPPELLINI JUNIOR, José Carlos. Demências: Identidades que Adoecem. Considerações sobre os aspectos psicopatológicos do envelhecimento. 2008. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica)-Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.