LEPRA: QUESTÕES IDENTITÁRIAS NAS FOTOGRAFIAS DE HERÁCLIDES CÉSAR DE SOUZA-ARAÚJO* SCHNEIDER, Silvia Danielle** As últimas décadas do século XIX viu imergir a Revolução CientíficoTecnológica, ocorrendo por volta de 1870. Ela representou, segundo Nicolau Sevcenko, uma grande mudança para a sociedade, como o desenvolvimento de inúmeras formas de energia, a indústria química, contínuos desenvolvimentos na área da bioquímica, microbiologia e da bacteriologia, resultando em transformações na vida cotidiana. Nesse momento presenciou-se o surgimento do telefone, dos veículos automotores, a iluminação elétrica, televisão, fotografia, cinema, a seringa hipodérmica, a esterilização e a pasteurização, e assim por diante. Com isso, os saberes científicos passam a assumir uma nova roupagem no meio social. Assim, os desenvolvimentos no âmbito da medicina seguem os mesmos caminhos, com a descoberta de inúmeros microorganismos que assombravam muitos indivíduos através dos tempos. Desta forma, houve uma crescente valorização do conhecimento médicocientífico, e nesse meio emergiu algumas correntes de pensamento que defendiam concepções eugenistas. De acordo com Nancy Leys Stepan1, eugenia está relacionada com uma idéia de “melhor reprodução”, “aprimoramento da raça humana”, “pureza”. A autora Lilia Moritz Schwarcz, na obra “O Espetáculo das Raças”, faz a citação de um artigo, de 1923, que foi publicado na Gazeta Médica da Bahia, onde o professor Mario Pontes de Miranda apontava para a “importância de uma luta „pela regeneração somática de nossa Raça como condição indeclinável de sobrevivência política entre as nações‟.”2 O professor se apoiava no argumento que a sociedade brasileira deveria ser “regenerada”. Segue a citação de Miranda: É fato que o Brasil está enfermo, mas nem todo. Parte e parte considerável de nossa gente apenas se acha envenenada pela preguiça, abatida pela ignorância dos preceitos elementares de hygiene.3 * Texto realizado para disciplina de História e Identidade. Mestranda da Universidade Estadual do Oeste do Paraná; bolsista da CAPES; [email protected] 1 STEPAN, Nancy Leys. “A Hora da Eugenia”: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2005. p. 9-28. 2 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 18701930. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p. 215. 3 Idem, p. 215. ** 1908 Ao lado dos preceitos eugenistas estavam os higienistas, que consideravam que deveria ser combatida a falta de higiene da população, o que resultaria no resolução de inúmeros problemas, entre eles, de várias doenças. A Revolta da Vacina, ocorrida em 1904, no Rio de Janeiro, é um exemplo que pode ser citado sobre essa questão. A cidade passava por uma política de urbanização, as ruas estavam sendo ampliadas, novos prédios construídos, e para isso, muitas casas da área central da cidade tinham necessidade, para que os projetos se concretizassem, de serem demolidas. Aliado a isso, veio a idéia da vacinação em massa para erradicar a varíola, e as habitações tidas como perigosas, que acarretavam riscos de ordem sanitária, eram vistas como ameaçadoras e deveriam ser demolidas, pois poderiam prejudicar as novas concepções de higiene. Desencadeando uma campanha maçica para a erradicação da varíola, foram criados os batalhões de visitadores que, acompanhados da força policial, invadiam as casas a pretexto de vistoria e da vacinação dos residentes. Se constatassem sinais de risco sanitário, o que naquelas condições era quase inevitável, tinham autorização para mandar evacuar a casa, cortiço, frege, zunga ou barraco, condenando-os eventualmente à demolição compulsória, e seus moradores não tinham direito à indenização. Foi a gota d‟água para a população pobre, despejada e humilhada. Num surto espontâneo, massas de cidadãos se voltaram contra os batalhões de visitadores e a força policial, dirigindo-se para o centro da cidade, onde as obras de reforma urbana prosseguiam.4 Retomando Schwarcz, a autora aponta ainda, que a partir do trabalho de Miranda novas propostas eugênicas são apresentadas, como a adoção da educação física para obter a “perfeição humana”. Em outro artigo publicado em 1918, no Brazil Médico, intitulado “Do conceito de eugenia no habitat brasileiro”, do professor doutor João Henrique, eram feitos apontamentos sobre as aplicações e vantagens da eugenia, diz o professor, Nova ciência a eugenia consiste no conhecer as causas explicativas da decadencia ou levantamento das raças, visando a perfectibilidade da especie humana, não só no que respeita o phisico como o intellectual. Os métodos tem por objetivo o cruzamento do sãos, procurando educar o instinto sexual. Impedir a reprodução dos defeituosos que transmitem taras aos descendentes. Fazer exames preventivos pelos quais se determina a siphilis, a tuberculose e o alcoolismo, trindade provocadora da degeneração. Nesses termos a eugenia não é outra cousa senão o esforço para obter uma raça pura e forte... Os nossos males provieram do povoamento, para tanto basta sanear o que não nos pertence.5 Com isso, podemos traçar inúmeras considerações sobre a relação entre as concepções eugenistas e higienistas com a questão da identidade. A citação acima aponta para 4 SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In. _____ (Org.) História da Vida Privada no Brasil: República, da Belle Èpoque à Era do Rádio. v. 3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 23-24. 5 SCHWARCZ, Op. Cit. p. 231. 1909 um tratamento dos males, e estes são vistos como algo que “não nos pertence”. Ou seja, a degeneração da nação brasileira havia ocorrido através do “outro”, mas quem são o “nós” e “eles”? Stuart Hall traça algumas considerações sobre o processo de produção da identidade – identificação - sendo que esta está relacionada com a diferenciação6. Ou seja, para construir uma idéia de quem somos, ou a qual identidade fazemos parte, temos que partir do pressuposto da identificação daquilo que não nos pertence. Assim, diante de uma doença, por exemplo, percebe-se esta como fruto de algo que veio de fora. A lepra era apontada por inúmeros autores7 como um mal que veio para o Brasil com os colonizadores portugueses. Para Hall, as identidades modernas estão sendo “descentradas”, “deslocadas” ou “fragmentadas”. Hall coloca três concepções de identidade; a primeira, aquela ligada a concepção iluminista de compreender o sujeito; a segunda, ao sujeito compreendido pelo viés sociológico; e a terceira, aquela que percebe o sujeito como pós-moderno. O sujeito do iluminismo é compreendido como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. Havia o entendimento que o indivíduo possuia um “centro”, o qual consistia num núcleo interior, que emergia quando o sujeito nascia e se desenvolvia com ele. Era uma concepção individualista do sujeito e de sua identidade. Para o sujeito sociológico, havia a compreensão que o “núcleo” interior do indivíduo se relacionava com o exterior, ou seja, havia uma relação com o mundo. Hall coloca, “A identidade é formada na „interação‟ entre o eu e a sociedade”8. Nessa concepção, essa relação entre o “interior” e o “exterior” é preenchida pela identidade. Assim, “a identidade, então, costura o sujeito à estrutura.”9 E por sua vez, a identidade do indivíduo passa a ser questionada. O indivíduo é percebido como fragmentado, possuindo várias identidades e identificações. As identificações são as projeções de nossas identidades culturais. Desta forma, Hall compreende que nessa fase, a identidade, o sujeito “(...)tornou-se mais provisório, variável e problemático.”10 6 HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: Silva, Tomaz Tadeu da (Org.) Identidade e Diferença: a perpectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. 7 A obra de Afranio Peixoto, Clima & Saúde: introdução bio-geográfica à civilização brasileira, de 1938, é um exemplo da descrição da doença como “um mal importado, e importado pelos brancos colonizadores”, p.204-205. 8 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 11. 9 Idem, p. 12. 10 Idem, p. 12. 1910 Já o sujeito pós-moderno é aquele que não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente. Hall coloca, A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de indentidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.11 Desta forma, para pensarmos sobre as questões de identidade e sua relação com discursos médico-científicos, será problematiza uma doença em específico, a lepra. Em fins do século XIX, o médico norueguês Armauer Hansen descobriu o agente causador da lepra, a bactéria Mycobacterium leprae. Porém, mesmo com a descoberta do bacilo, não se sabia como combatê-lo. Por muitos anos foi utilizado o óleo de chalmoogra, uma planta medicinal que não possuia o efeito curativo da doença. Assim como essa planta, utilizaram outros tantos meios para tentar medicar a lepra, até mesmo cauterizações que acabavam ferindo ainda mais as chagas dos doentes. Desta forma, como a cura da doença ainda não havia sido encontrada, passou a ser defendida a idéia que os doentes de lepra deveriam ser isolados do contato social. Já na 1° Conferência Internacional sobre a Lepra, realizada em Berlim, as recomendações propostas por Hansen e outros médicos foi o isolamento dos doentes. Assim, no começo do século XX, no Brasil, começaram a ser as feitas as primeiras campanhas visando a construção de locais apropriados, os chamados leprosários, para abrigar as pessoas atingidas pela doença. Esses hospitais eram construídos como minicidades, contendo tudo o que fosse preciso, para garantir que os pacientes internados não precisassem deixar o local. No Brasil, no ano de 1926, foi instituída uma lei que permitia que os doentes fossem internados compulsoriamente pelas autoridades sanitárias. A lei só foi revogada no começo da década de 1960, porém não de forma igual para todos os estados brasileiros. Diante disso, o presente trabalho utilizará um conjunto de fotografias para problematizar o papel da medicina, dos doentes e da doença na primeira metade do século XX, apontando para as questões pertinentes à identidade. Foram selecionadas fotografias de Heráclides César de Souza-Araújo, importante médico hansenologista que atuou na profilaxia da doença nesse momento. Essas imagens utilizadas estão presentes no segundo volume de sua obra, intitulada “História da Lepra no Brasil”, editado no ano de 1948. 11 Idem, p. 13. 1911 Heráclides César de Souza-Araújo nasceu no estado do Paraná no ano de 1886. Cursou farmácia na Escola de Farmácia de Ouro Preto e medicina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, concluindo no ano de 1915. O interesse pela área de leprologia logo viria a tona. Em 1926, concluiu o curso na Public Health at John Hopkings University, nos Estados Unidos, e de dermatologia na London School of Dermatology entre os anos de 1930-31. Souza-Araújo publicou inúmeras pesquisas e atuou na organização do Laboratório de Leprologia do Instituto Oswaldo Cruz, chefiando-o entre os anos de 1927 a 1948. Criou também, a Sociedade Internacional de Leprologia, exercendo a vice-presidência de 1932 a 1956. Foi chefe de serviço de saneamento rural, entre 1918 e 1924. Lecionou por vários anos, como na Faculdade de Ciências Médicas. Desta forma, o referido médico foi um importante pesquisador no tocante ao controle e tratamento da lepra, como formulador da política e como crítico de políticas e iniciativas públicas elaboradas para medicar a doença. Por essa razão, percebe-se a relevância de discutir como o referido médico construiu um discurso sobre a doença no início do século XX. A obra, é dividida em três momentos, fase precursora da moderna profilaxia (1900-1920), fase de inspetoria de profilaxia da Lepra no D.N.S.P. (1921-1930) e fase getuliana (1931-1945). Serão utilizadas três pranchas de fotografias que retratam doentes e filhos destes, os médicos envolvidos no processo de medicalização da doença e as estrututas dos leprosários. A questão da identidade do doente de lepra é refletida por Beatriz Olinto, percebendo a deteriorização do indivíduo que apresentava sintomas da doença. No momento em que a enfermidade aparecia, o sujeito deixava de ser o que era para a comunidade. A moléstia passava a denominar o sujeito, ou seja, este se tornava simplesmente um leproso. É a partir do problema identitário atravessando o ser/estar doente que se compõe o vínculo entre a desqualificação dos doentes pelo mal de Hansen e os discursos sobre a formação populacional paranaense durante o início do século XX.12 Desta forma, a obra de Olinto serve como principal referencial teórico para pensarmos sobre questões relacionadas a lepra. A pesquisa da autora perpassa pela identidade, e ainda, traça de forma rápida, algumas reflexões em torno das fotografias presentes na obra de Souza-Araújo. A autora apresenta, em seu livro, cinco fotografias da obra “A Profilaxia 12 OLINTO, Beatriz Anselmo. Pontes e Muralhas: diferença, lepra e tragédia no Paraná do início do século XX. Guarapuava, Unicentro, 2007. p. 36. 1912 Rural no estado do Paraná”, publicada em 1919 pelo médico. A proximidade dessas imagens e as do livro “História da Lepra no Brasil”, também do referido médico, são muito próximas. Dessa forma, os apontamentos feitos por Olinto servirão como base para pensarmos em torno das fotografias e as questões identitárias que envolvem os pacientes e médicos envolvidos no processo de profilaxia da lepra na primeira metade do século XX. As fotografias, ao apresentar os doentes e os médicos, colocavam cada qual de uma maneira. Os primeiros eram colocados simplesmente como doentes, portadores de lepra, as legendas ajudavam a construir essa idéia, referindo-os como, “grupo de leprosos”, “leproso”, a identificação não era feita, a doença passava a denominar o indivíduo. Já os médicos estavam em lugares que transmitiam limpeza e ordenação, sendo que, muitas fotografias foram tiradas no ambiente de trabalho, como no escritório e no laboratório. A identificação dos médicos retratados normalmente era feita. Desta forma, nota-se a diferenciação realizada ao se referir a um grupo e a outro. Assim, essas diferenças apontavam para a dicotomização, como Olinto coloca, de um lado estava o doente, “desordenado interna e externamente pela doença e pela falta de higiente”13, e de outro, o médico, “como sujeito ordenador das gentes e das coisas”14. Na prancha 1, na primeira fotografia lê-se a seguinte legenda: “Este grupo de leprosos mostra a predominância dos casos muito avançados, talvez os únicos que se internassem naquele tempo”. Esta imagem, do primeiro momento que Souza-Araújo apresenta, quando ainda não era adotada uma profilaxia da doença, ou seja, não havia uma intervenção da medicina para medicar a doença, demonstra um grupo de doentes sentados e outros em pé, sendo que nenhum deles é identificado, a espera da cura da doença. A outra fotografia traz várias crianças, filhos de doentes de lepra, os quais no momento em que nasciam eram separados dos pais para evitar o contágio, sendo levados para os chamados preventórios, que se encarregavam de cuidar dessas crianças. Através da legenda, pode-se compreender de que forma a doença era encarada e a imagem que estavam construindo dela. A legenda diz: “Cinco „ninhadas‟ de filhos de leprosos paulistas, cujo futuro está assegurado pelo patriotismo de D. Margarida Galvão”. Percebe-se, com a denominação “ninhada”, a tentativa de animalização dos doentes e filhos destes. Os leprosos deixavam de ser pessoas, perdiam a identidade, não possuiam nome, não eram identificados. Em inúmeras entrevistas lidas, através de artigos, 13 14 Idem, p. 19. Idem, p. 19. 1913 muitos pacientes que viveram ou ainda vivem nos ex-leprosários, apontam que no interior do hospital, muitos acabavam sendo chamados pelos números dos prontuários, ou seja, o indivíduo passava a compor “mais um” entre tantos outros. A historiadora Juliane Serres faz a seguinte menção sobre os filhos dos doentes, Outra face perversa do preconceito se estendia aos filhos sadios dos doentes. Conforme observa Luciano Curi, a descendência, mesmo saudável, também poderia ser atingida pelo estigma, „os filhos não-doentes nascidos nos asilos-colônias e aqueles que nesta situação se encontravam no momento do isolamento dos pais, tinham, da mesma forma, suas vidas marcadas, eram filhos de leprosos.15 Assim, o preconceito se estendia para essas crianças. Nota-se ainda, que muitas delas, devido a separação dos pais, o preconceito e todas as indagações provenientes da situação em que se encontravam, acabavam desenvolvendo problemas psicológicos. Segundo apontamento feito no Manual de Leprologia, editado pelo Ministério da Saúde no ano de 1960, tinha-se conhecimento que muitas crianças desenvolviam sérios problemas psicológicos. Percebia-se que as medidas adotadas não eram as melhores, mas eram as viáveis para o momento. No artigo “Isolamento Compulsório de portadores de hanseníase: memória de idosos”, das autoras Selma M. S. de Castro e Helena A. W. Watanabe, é feita referência a uma moradora do Hospital Francisco Ribeiro Arantes, anteriormente denominado Leprosário de Pirapitingui, localizado em Itu/SP. Esta conta sobre a filha, a qual foi mandada, por volta da década de 1960, para um Preventório. Depois de fugir inúmeras vezes do local, ela nunca mais soube notícias sobre a menina, que tinha 11 anos. Desta forma, muitas famílias foram separadas e nunca mais se reencontraram. A terceira fotografia retrata um grupo de doentes. A legenda nos informa: “Leprosário „Belisário Penna‟, em Paricatuba, margem direita do Rio Negro, a duas horas acima de Manaus. Vêem-se, em cima, entre os doentes, os Drs. Alfredo da Matta, SouzaAraújo e Flávio de Castro”. Na fotografia estão inúmeras pessoas, doentes, mas apenas três são identificadas, os médicos que vão medicalizar a doença. As fotografias médicas, segundo Olinto, “compõem tanto um tipo social do doente, como as características que o identificam.16 Eles são vistos e percebidos a partir da doença, e os médicos como portadores da eminente cura da doença. James Roberto Silva aponta, 15 SERRES, Juliane C. Primon. Memórias do Isolamento: trajetórias marcadas pela experiência de vida no Hospital Colônia Itapuã. Tese (História). São Leopoldo: UNISINOS, 2009. p.147. 16 OLINTO, Op. Cit. p. 161. 1914 O mundo da enfermidade estava cercado pela fotografia, desde as menores dimensões até o ambiente „promíscuo‟ no qual viviam os grupos considerados sob riscos: indigentes, trabalhadores, pobres e moradores de cortiços. Nem todas as enfermidades, porém, costumavam habilitar seu portador a ser fotografado; elas precisavam ter alguma visibilidade como sinais na pele, no corpo ou afetar a aparência ou a coordenação motora do paciente.17 Esta dicotomia é visível ao vermos como Souza-Araújo retratou os médicos. A pracha 2 traz três fotografias referentes aos médicos. A primeira delas está retratada nas primeiras páginas do livro de Souza-Araújo. O professor doutor Adolpho Lutz estampa uma das imagens. Outros médicos são representados, são eles, Dr. Oswaldo Gonçalvez Cruz, professor Dr. Carlos Chagas, e ainda o presidente Epitácio Pessoa, o qual, Souza-Araújo aponta, que sob seu governo houve a primeira grande preocupação com a lepra no Brasil. A forma com que aparece Adolpho Lutz demonstra a diferença entre os vários indivíduos que aparecem na obra de Souza-Araújo. Os doentes são tidos apenas como corpos doentes, ou seja, não são percebidos como indivíduos, mas como corpos aturdidos por um mal. A legenda da fotografia do Dr. Adolpho Lutz traz uma pequena bibliografia do médico, como local de nascimento, lugares em que estudou, o que realizou no tocante a profilaxia da lepra. A outra fotografia selecionada traz um grupo de cientistas, são os membros da Comissão de Profilaxia Rural. A legenda nos informa: “A primitiva Comissão de Profilaxia Rural, chefiada pelo Dr. Souza-Araújo, que, em junho de 1921, iniciou o censo intensivo dos leprosos no Pará. Na 1° fila vê-se o Chefe da Comissão no centro, tendo, à sua direita os Drs. Dias Júnior e Bernardo L. Rutowitz, e à esquerda Jayme Aben-Athar e Ausier Bentes”. Na imagem quase todos são identificados, dando enfoque para os mais proeminentes do grupo. Percebe-se, que a forma com que eles estão enfatiza um ar de ordenação e limpeza. Todos estão devidamente vestidos, ou melhor, de acordo com a construção social do indivíduo bem vestido, homens de termo ou jaleco, e uma única mulher, de vestido. James Roberto Silva apontou, a partir da pesquisa realizada nas Monografias do Serviço Sanitário, que as primeiras fotografias traziam o ambiente do laboratório, do posto SILVA, James Roberto. “De aspecto quase florido”: fotografias em revistas médicas paulistas, 1898-1920. Revista Brasileira de História. V. 21, n. 41, 2001. p. 205. 17 1915 médico, do escritório, ressaltando a limpeza, a ordenação e a organização18 A terceira imagem, mostra uma conferência entre médicos. O ambiente, novamente, em que estão inseridos os “doutores” traduz a organização, e ainda, enfatiza a diferença entre eles – médicos - e os doentes, retratando-os como detentores do conhecimento. A legenda diz: “Sessão de encerramento da conferência, na Liga de Defesa Nacional, em 3009-1933, vendo-se à mesa, 1) Prof. Ed. Rabello discursando; 2) Prof. Carlos chagas, Presidente Honorário; 3) D. Alice Tibiriçá, Presidente; 4) D. Marina Bandeira, Secretaria; 5) Dr. Theophilo de Almeida; 6) Dr. Joaquim Motta; 7) Dr. Oscar Silva Araújo; 8) Dr. Pedro Fontes; 9) Dr. Souza-Araújo; 10) Dr. Orestes Diniz e vários outros não identificados. Assim, nota-se a preocupação de Souza-Araújo em identificar quem estava presente, apontando para “vários outros não identificados”, mas que provavelmente tentaram ser identificados, mas por falta de conhecimento de quem eram acabaram não sendo referidos. Diferente do que ocorria com os doentes, que acabavam sendo referidos como um corpo só, ou seja, o corpo doente, identificado pela enfermidade. Essa mesma tentativa de mostrar a ordem e a higiene é percebida, novamente, através das fotografias que mostram a estrutura dos hospitais. Foram selecionadas duas imagens para refletir sobre esta questão. Na prancha 3, a primeira delas mostra a estrutura externa de um hospital, apontando para a organização das estruturas hospitalares que estavam sendo erguidas naquele momento. A imagem aponta para o momento em que a intervenção profilática sobre a doença estava sendo feita pelo estado e pelos médicos. A legenda da referida fotografia traz o seguinte: “Aspectos do leprosário no 1° semestre 1927: Pavilhão Feminino, Enfermaria, Refeitório Geral, Pavilhões dos Homens e Lavanderia. Estado do leprosário, quando o autor visitou, com o Dr. Ribeiro d‟Almeida, em 29-03-1927”. As estruturas dos leprosários, no momento em que a profilaxia passou a ser adotada, assume, através da percepção que se tem das fotografias reunidas por Souza-Araújo, uma organização que antes não se tinha. Assim, mesmo ainda não havendo a cura da doença nesse momento19, a necessidade de construir ambientes amplos e limpos era considerada a atitude correta para enfrentar a doença. 18 SILVA, Op. Cit. p. 207. 19 No decorrer da década de 1940 são intruduzidas as sulfonas, as quais iriam curar definitivamente os portadores do Mal de Hansen. 1916 A segunda imagem traz o interior de um dormitório. Diz a legenda: “Aspecto interno do dormitório acima”. A limpeza é visível. Mostra-se um hospital sem doentes, ou seja, sem problemas. A ordem mais uma vez é visível e se faz presente durante todo o momento, ao retratar indivíduos e estruturas. Assim, o trabalho realizado por Souza-Araújo é um importante meio para problematizarmos questões pertinentes a doença e a sua relação com a medicina. A construção do ideário do que deveria pertencer a nação brasileira e o que não deveria fazer parte, é um claro indício para persarmos como a idéia de uma identificação passou a ser construído. O doente percebido como fora do lugar, colocado como oposição dos sãos. As fotografias utilizadas apontam para um apoio as concepções isolacionistas frente a lepra, a separação dos membros doentes do convívio social. A questão da identidade permeia, durante todo o tempo, o debate acerca da doença. Para perceber um indivíduo, ou um grupo deles, como doentes, é preciso estabelecer uma correlação entre os indivíduos considerados sãos. Assim como demonstrou Michel Foucault20, é a partir de um momento histórico que uma enfermidade passa a ser vista como tal, e a partir disso, começa-se a combatê-la. E assim como Hall aponta, a identidade só é percebida tomando como ponto de apoio a diferença. Diferença e identidade, doença e sanidade, o que nos pertence e o que não nos pertence. A lepra, percebida como um mal vinda com o colonizador, ou seja, com aquele diferente do nós, deveria ser combatida. E assim o foi. Mais de 30 instituições foram construídas no Brasil para afastar os doentes da sociedade. Ainda hoje, existem 31 HospitaisColônias em funcionamento no Brasil21, demonstrando o quanto é importante problematizar a questão, visto que, as marcas desse momento histórico são vivenciadas até hoje. 20 FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978. 21 Segundo o site http://www.morhan.org.br/. 1917 Prancha 1 1918 Prancha 2 1919 Prancha 3 1920 Referências CASTRO, Selma M. S. de; WATANABE, Helena, A. W. Isolamento Compulsório de portadores de hanseníase: memória de idosos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. V. 16, n.2, abr,-jun. 2009, p. 449-487. FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. __________. Quem precisa da identidade? In: Silva, Tomaz Tadeu da (Org.) Identidade e Diferença: a perpectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. Ministério da Saúde. Manual de Leprologia. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Lepra, 1960. OLINTO, Beatriz Anselmo. Pontes e Muralhas: diferença, lepra e tragédia no Paraná do início do século XX. Guarapuava, Unicentro, 2007. PEIXOTO, Afranio. Clima & Saúde: introdução bio-geográfica à civilização brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 2002. 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