5SN 151A E E D9j!/ i.27 6290 COO ELSON NUBV ,R 1 [ ROSA MARIA DE ANDRADE \IERY R EVSTADE DRETO PRIVADO CONSELHO C ENTÍFICO E A2 LIMA’ Ano ADRIANO FERRIANI Li z CRCLOS Lz Mvr Ao. EX DE A/E CUO M. MARAS GOrJCU EA MLA A ARO-TE MROLES DA SUVA FLAiO MARIA CEL LA 130010 DE JOUA AUGUSTO PASSAMAN Bu EU IN MARIA HELENA BRACEITO DANELUZZ CARLA TERESA MAR INS RUMAR MAU A RESINA PAO o Coos MARISTELA BA SO CARLOS ALBERTO FERRIAN CARLOS EDUARDO DE ABRES BOUCAU N LAIA TE ANBB.U. NETO LSO A-ONID PACHECO FIOTI O N-Js. L ES P,sES ENR 0GB ROSPIONO L VARS FERNANDO ANTONIO ALBINO DE OLIVEIRA IVE RA MARODES Fo L PAULO PAU O E. [ UDO Repositório de jurisprudência autorizado pelos Tribunais Regionais Federais das iR, 4 e 5V Regiões. Cr OLVIDO ARNOLUL SZLAT RESSA MALA A 1/ARES O- Sr VA To lO NEO-O LOBO PAU O RESTIFFE NEIO RALLLL lO H -.OFIALA VO-AVLLAS S LUA B. Rjo o [ o GUSTAVO SAAD DINIz HAM LEON ELL DE ABEL RONENIO JOSE HELIO B0R0H] ROLE IONACIO MARIA POVEDA (LEOAS LESOU CAM OS SALLES DE PAULO ROEES O FRANC SUO JOSE CAHALI GEOREES ABBOLD GISZLDA MARIA FEA.AUDES NOVAES Coordenação Nelson Nery ir. Rosa Maria de Andrade Nery ODETL NuA..’ CAE.u OLE RU DEBORA Gozzo GERA DO JOSE GUIMARAES DA BIOL NE000L o LI ELA CLALTo. [IVA M000J_S O JLIJ]u ‘r LA: -ri V1AUR CiO PESSOA CLos ROBEPTO HLSR FERNANDO DE out-dez. /2012 ç J :N 5 aV Eo NJtMORiAO.1) C 52 5100 . EI ASso ARA E 5 CARS’:N vol. ULAN ONIOR ZATOk LAS ANDRE 050Rlo GONDINHO ANOA’,iC JLNOLEPO TE ioo CIVNOOLC ANA LUIZA DE ANDRADE NERY 13 V ASCO S FEl AZ DONN N URNUR ROSA MAR A DE ANDBADU NERY BUF SES VJLLE.A JORGE LS,RO Ct, DOMO RUI GERALOO CAMARGU \JIANA o Ros-TO A AULIVE Jio SLSO O- FIGiALADO TESE EU JOSE GSSANR GONZAOA FRANCESCRC.I JosR G,.’LHLAMR MUSA TU X TU LRESA AFIO ii [LO-A Jos MANOEL DE ARREDA ALI 1H AUO R000VALHO JOSE OSOR O DE AZEVEDO JÚN 00 YUSSEF JAN SCHM DT JoAo R 5 LOGRA JGN DE AGRO CHRLLA O SA O CAHALI EDITORA REVLSTA DOS TRBUNAS r e. —— t REBELA CARdA tlnt’ei AY LSea igopropxse.a.asa o a o t .giaflas rao au or da idei tficardo o • otitie •beidad dcc pres.aoc rto’ 1i Xd” ‘Ot•’ tcl à P1 “X ferk .j) nindn • i ii ‘ a D’ e s C’.i ‘e. UEJ A%niad 4)GtiPtiTOC tsiii, .1 .‘a . •‘a. .“sr r— • D? a • — r didt da’ e p es’o — Di ei.i a ii Iurtricao iq4d flaW n di pa”. r i c’I’ ‘ — ‘o Cãitei’o dei t•pret cao. 4ø%HM* —‘ o% 4sswAcr: fli arfce proposts to a alyse the ca c of 1 e ror-au io(ed WogrâpYes, den t rg Lhe on íct bitwrri mc fre dom cf toes-cl d ia” rjI, t ifr,ry i 3r3aj tI a. i 4., Otsi’’ a fl1._ .iq’• i:r— .. d 1 101 a .ijit ai cd iiti 01 0” .ec ‘1’. .. EV’flOtiOS’ iI”a—’i i:.• iz..i ‘.i.pa’,a•( — do o of.)peccl R qt o iii oirra o. P ai, — “r’.n 1 gil... a qr ‘19 • tpi ‘t)’ ar ciLera ‘.‘ •‘Oct’cki -? 1 ibernaaie & p s...’. 4 ‘C O à• ‘I’OCÊu, o:sdor.r. o cave hiociaafibç i ao irnri-adç 2.1 a’ e tkub dcio ra un rodao Civ’. 2.2 ‘ar’r’va e •.. ac oi a :.3 (1 ‘ew R..n»i. flv,o; ‘r d”jfl.eç in:a yrcs: O fipi a.4 ii / “n ItL.ia i autoi zacao’ e o eteito pai i sante 5 — ; .2, te ior de pondt iacao 3 1 Notoiedade; 3. • oin d de obte’icao das inforrnaçoe.,, 33 Local do faro ou a e pec ativa de pivaCdadt. 3. ‘acdade do a o; 3.5 A ours cr lér os espcT cos ... o chamado c(téi o do .nLersçe P te na 4 vulgaçao cm La.X —1 Meodas e modaliCauc de tutel4 —5. A.. biograf as postumas • :.. 38 REvIsiA DE DIReTO PRIVADO 201 2 RDPniv 52 DIREITOS DA PERSONALIDADE e a proteção postmortem dos direitos da persona dade: 5.1 A questão da Iegitmidade; 5.2 O caso Estrela Solitário 6. Conclusão 7. Biblografia. — — “Que todo vida individual entre o nascimento e o morte pode eventuolmente ser contada como uma estória com começo e fim é o condição pré-político e pré-histórico do história, o grande está rio sem começo nem fim.” (Hannah Arendt, A condição humano). ‘1. NTRODUÇÃO A publicação de obras de carater biografico sem a autorização da pessoa retratada, ou de seus herdeiros, tem posto em relevo o conflito entre direitos fundamentais igualmente assegurados pela Constituição de umlado, essen cialmente, as liberdades de expressão e criação artistica e o proprio direito a informação; de outro, o direito a privacidade. A convivência entre acesso a informação e direito a privacidade parece revelar-se ainda mais dramática nos dias atuais; isto é, no cotidiano de uma sociedade que se tem classificado como “da informação’, “do consumo”, “do espetáculo”. Diz-se, a respeito, que a era da informação tem dado espaço a “ex plosão de informação onde a voracidade informativa (inclusive, talvez es pecialmente, o apetite por informações que tocam a sida privada das pssoas) é elevada à maior potência, a medida tambem que se desenvolvem a tecnologia e as formas de obtenção e projeção destas informações. ‘, e São vários os exeniplos de imbróglios envolvendo biógrafos, editoras, bio grafados, herdeiros. Entre os mais recentes e emblemáticos vale no sção o da biografia do cantor Roberto Carlos, escrita por Paulo Cesar d Araujo, —, cuja disputa terminou em acordo entre as partes e 10 eCrada de c culação do livro. Pode-se citar ainda, apenas para ilustrar a dime isáo do problema, os casos envolvendo a minissérie de televisão “Dalva e Hei ivelto ou a (possivcl) ‘,‘ 1. Ai DERMAN, Flien; 1<r\NFDS Caroljne. Privae) s. 1 hc Prcss. lhe ight (o ia iio York. Vintage, 1997. l 151. . Nos a 2. Os herdeiros de Mnucl Nuno Cnrpinteiro, ultO3o mai ido dc Dalsa, ajuizara o açao indenizatoria alegando uso nio autorizado e pe)oiatiso da ii lagel ele seu pai na minisserie “Dalva e Ilerivclto Os herdeiios, que buscivans tamhcin impedir a co mercialização da obra alegavam que o relacionamento do pai con a cantola nao teria sido retrai ado dc ma fiel cleixaiido dc abordar certos aspectos ensolvcndo o acidente com a cantoci O TjRj entcndeu que nao hasia qualqmr dano, eis IUC a mi‘. foi 3 Guimarães Rosa, publicação de obras de carater biográfico sobre Lampião, 4 Manuel Bandeira. nisserie evitou apresentar semelhanças entre a personagem e a pessoa real, apresen tando, por exemplo, profissao e nacionalidade distintas, “de tal sorte que seu nome e sua identidade restaram preservados diante da antinornia entre o tipo externo do que se tem por real e a ficção naquela minisserie. Dai porque, o publico e os veiculos de comunicação não reconhecetm na figura do personagem o genitor dos autores” (TJRJ, AC 0118642-75.2010.8.19.0001, 6. Cãm. Civ., j. 07.03.2012, mv., rel. Des. Pedro Freire Raguenet). 3. Expedita Ferreira Nunes, filha unica de Virgulino Ferreira, o Lampião, e Maria Bo nita, obteve na justiça sergipana a interdiçao do livro “Lampião O Mata Sete”. A obra tornou-se motivo de polémica ao retratar Lampião como homossexual, apon tando uru triangulo amoroso entre o popular cangaceiro, Maria Bonita e o tambem cangaceiro Luiz Pedro. Ao que se le da decisao que concedeu a medida liminar em novembro de 2011 (mantida abril de 2012), o livro parecia dedicar especial atenção aos aspectos sexuais da vida de Lampião. O julgador, baseando-se no que chamou de conhecida virilidade de Lampião, considerou esse aspecto de tal maneira ofensivo a honra e a intimidade da propria Expedita e Lambem dos falecidos, que proibiu a circu lação do livro: “Pois bem, entre evitar eventual prejuizo financeiro do requerido, com a proibição da publicaçao cIo seu livro e evitar ofensa à honra da requerente e de seus pais, deve o judiciario, por obvio, ficar com a segunda opção e proteger a honra e a intimidade da requerente e seus genitores. (...) Não e de ninguem novidade, a carac teristica de virilidade que sempre se tentou passar da historia de sida de Lampião, pai da requerente, tanto e assim que o mote do livro a ser publicado pelo requerido trata exclusivamente desta questão relativa a opção sexual do mesmo. (...) Então, percebe-se facilmente que a questão diz respeito exclusivamente a intimidade da requerente e de seus genitores, pois de forma expressa, segundo se infere do texto da entrevista concedida pelo requerido ao jornal Cinforni, o mesmo lança dúvidas, inclusive, a respeito da paternidade da requerente. Ora, uma simples ação de investigacao de pa ternidade e acobertada pelo manto do segredo da justiça, com muito mais razão deve ser protegida a intimidade da requerente, diante do conteudo do livro que o reque rido pretende publicar” (13SF, Processo 201110701579, 7.” Vara Civel de Aracaju, 24.11.2011, juiz Aldo Alhuquerque de Mel lo. — 4 Confira-se, a respeito, materia publicada na imprensa recentemente: MARTINF7, Lucia na; VeNTiles, Mauro. Biografias autorizadas. O Globo. Segundo Caderno, 19.02.2011, p. 1. As dificuldades sao aponiadas tambem na literatura estrangeira: “In practicing the craft, biographers have faced formal legal restrictions on their activities. Legal doctrines have placed powerful shields on the forearms of man subjects (and their farnilies) reluctant to have their lives examined and exposed by biographers. Vladi ruir Nabokov wrote to his biographer: ‘1 shall not hesitate to sue you for breach of contract, slander, libel, and deliberate attempts to damage rny personal reputation” (BILDER, Mary Sarah. The shrinking back: the law of biography. Stanford Law Review, n. 43, p. 302, jan. 1991). 39 40 REvIsTA DE DIREITO PRIVADO 2012 41 DIREITOS DA PERSONALIDADE RDPRIv52 A lista poderia ainda seguir adiante. E faz-se referência, aqui, apenas a casos 5 que, mesmo não levados às vias forenses, de alguma forma vieram a público. Pode-se supor, contudo, a existência de ainda outros tantos, que se encerram em acordos privados e confidenciais. E outros que nem mesmo chegam a ga nhar corpo, por conta do recuo prévio de editoras, produtoras, autores, diante do receio de custosas e demoradas disputas judiciais cujo desfecho, no atual 6 cenário, é de todo imprevisível. — que demandam do biógrafo pesquisas e análises mais minudenciadas, sobre tudo com o recurso a arquivos e registros históricos, a entrevistas quando possível etc. Esses elementos, é verdade, também se situam no âmbito da atividade jornalística tradicional, mas assumem, na confecção de uma obra biografica, proporções mais acentuadas. Sob esse aspecto, pode-se vislumbrar, nas biografias, um conteúdo e um papel historico de certa forma característico, que normalmente estimula, aliás, o interesse do autor na realização e na pu 8 ou, mais amplamente, o interesse do público de acesso a blicação da obra informações sobre aquela persona’em. Seguindo-se essa ordem de ideias, o presente estudo faz referência à bio grafia, por assim dizer, mais tradicional. É dizer, à narrativa histórica, normal mente de feições literárias, da vida privada normalmente veiculada em livros, mas também em outros meios. Lembre-se que a vida privada, numa vida de relações, forçosamente toca também a trajetória de outras pessoas, com maior ou menor intensidade. Por isso, o ângulo de mirada adotado neste estudo, bem como os casos selecionados do repertorio jurisprudencial brasileiro, diz respeito, sobretudo, a biografias como produtos editoriais bem-acabados os quais não deixam, afinal, de enquadrarem-se de fato num “gênero literário”. — — — — Antes, contudo, de avançar sobre o tema, busca-se delimitar o que se de signa, no presente estudo, como “biografia”. A preocupação não é meramente etimológica. Mais que mero gênero literario, as biografias constituem “gênero jornalístico reportagem vital, humana”. 7 Não devem, contudo, ser enfendidas como sinônimo de “notícia”, ou de “fato noticioso”, como aqueles diuturna mente publicados pela imprensa, e que, devido mesmo ao formato e ao maior dinamismo que envolve a atuação jornalística tradicional, em geral sujeitam-se a controles, por parte da imprensa, menos rigorosos. — Em síntese, biografia é a história de uma vida. Mas trata-se, aqui, de obras biográficas sejam elas veiculadas em livros, em filmes ou em outros formatos — 5. Ja se tem mesmo noticia de uma insólita categoria de obras biograficas: “A autobiografia não autorizada”. Trata-se de ,Julian Assange: the unauthorised autobiography, obra bio grafica sobre julian Assange, fundador do polémico site Wikileaks. Ele havia celebrado contrato com editora inglesa para escrever um livro de memórias. No entanto, depois de horas de entrevista ao jornalista responsavel por minutar o livro, Assange recuou e desistiu do projeto. A editora, que, segundo noticiado, ja lhe havia adiantado vultosa soma, publicou então o livro (LEIGH, David. Julian Assange: The unauthorised auto biography Review. Guardian. Londres. 26.09.2011. Disponivel em: Iwwwguardian. co .uk/books/20 1 1/sep/26/j uhan-assange-unauthorised-autobiography-review 1). — 6. E interessante considerar também que o conflito pode se verificar não apenas no caso das obras desautorizadas. Por vezes, mesmo as ditas biografias autorizadas podem revelar-se, no caso concreto, ofensivas a direitos da personalidade por vezes do pró prio biografado, que, a despeito da autorizaçao, pode ver-se ofendido, por exemplo, em sua honra. — 7. A definição e de lberto Dines, nome de destaque do jornalismo brasileiro. E o autor emenda: “Biografias podem ser publicadas em ]ivro, jornal, revista e mostradas em radio, cinema, televisão. l’azem parte do obituario mas nada tem a ver com elogios fu nebres. Não precism ser portadoras de tristezas, podem ser mensageiras de grandes proezas. De qualquer forma, em qualquer tamanho ou formato, a biografia não pode es capar da sua obrigação liminar: mostrar uma pessoa atraves dosfeitos e defeitos” (DINizs, A]berto. Leonel Brizola (1922-2004): o combate que valeu a pena. Observatorio da Imprensa. 29,06.2004. Disponivel em: [www.observatoriodairnprensa.com.br/artigos. asp?cod=283MLM00 1], grifou-se). — — Advirta-se também, desde já, que o objeto delimitado de estudo deixa de abarcar outras questões que o tema eventualmente suscita. É o caso dos debates envolvendo direitos de autor sobretudo quando entra em cena a utilização, em 9 obras biográficas, de escritos originais, cartas-missivas, diários, fotografias etc. — 8. A esse respeito, veja-se: “As a prisrn of history, biography attracts and holds the readefs interest in the larger subject. People are interested in other people, in the fortunes of an individual” (TUcHM XN, Barbara. Biography as a prisrn of histoiy apud Ksi MA’s, haura. The power ofbiography. Law & Social lnquíry. v. 23, n. 2, p. 481, Spring 1998). 9. Veja-se, por exemplo, o caso envolvendo a publicação de livro contendo cartas-mis sivas do pintor Di Cavaicanti para uma de suas amantes, alem da reprodução de foto grafias de alguns de seus quadros e mesmo o esboço de um perfil biografico do artista. O Tribunal, concentrando-se sobre a questão da utilização das cartas, inicialmente encarou a disputa sob o vies do direito autoral, entendendo ter havido contrafação com a publicacão da obra sem a autorização da cessionaria dos direitos patrimoniais de autor, outorgados pelo pintor. Depois, em embargos de declaração, a Corte retifi cou o entendimento, sem justificativas muito claras, afirmando não se estar diante de obra protegida pela propriedade intelectual, o que não descaracterizaria, contudo, a violação e a condenação que havia sido imposta desta vez, no entanto, a condenação se justificaria por conta da ofensa à privacidade do pintor. A destinatária das cartas, que as vendeu, e o socio da editora, que as comprou e promoveu a publicação, foram condenados solidariamente ao pagamento de indenização (TJRJ, AC 1996.001.05756, 7. Câm. Civ., j. 08.04.1997, mv., rei. Des. Aurea Pimentel Pereira, RTJERJ 34/218). — 42 REvaTA DE DiREITo PRiVADO 201 2 RDPêiv 52 DIREITos DA PERsoNALiDADE A analise de tais questões não menos importantes demandaria, no entanto, c 1 estudo dc maior fôlego. Também se passa, aqui, ao largo de situações conflituosas mais evidentes, que envolvem condutas tipificadas como crime (em smtese, os cimes contra a honra calúnia, difamação, injúria) e que já deixam claro que direito merecerá ser tutelado no caso concreto.” Concentra-se a atenção, mais propriamente, sobre os casos em que os contornos dos interesses em jogo são menos defini dos e por isso mesmo mais delicado o tratamento a ser dado ao problema. — — — — Com efeito, e não é demais lembrar, a ordem constitucional brasileira, ao tutelar, entre outros direitos, a liberdade de expressão e a privacidade, acena com a preocupação de assentar sobre bases sólidas um verdadeiro Estado De mocrático de Direito, que tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. Voltando-se o olhar para trás. a experiência brasileira antidemocrá tica de outrora ainda não esta distante; ao contrário, ainda parecem existir fe ridas históricas por cicatrizar. Isso talvez ajude a explicar a reação, comum na opinião pública, dc prontamente classificar como “censura” qualquer restrição á liberdade de expressão. 10. Outro tema palpitante, mas que tambem não é contemplado de forma especifica nesse estudo, pelas mesmas razões apontadas acima, diz respeito ao conflito entre priva cidade e liberdade de criacão artística na utilizacão de vidas reais na ficção. Embora o assunto escape aos 1imite definidos para este trabalho, faz-se referência, aqui, a dois casos interessantes. O primeiro deles, apreciado pelo Judiciario brasileiro, refere-se ao filme Cidade de Deus, cujo personagem Sandro Cenoura seria, em realidade. retrato de Adilson Batata, autor de um livro com histórias na comunidade carioca. O TJRJ, contudo, entendeu que eventuais coincidências não comprovavam se tratar da mesma pessoa (TJRJ, AC 2009.001.50660, 18:’ Cãm. Civ,j. 06.10.2009, v.u., rei. Des.Jorge Luiz Habib). O outro caso, que chegou ao Tribunal Constitucional alemão, e o do livro Esmo (BVerfG, 1 BvR 1783/05, j. 13.6.2007), que acabou sendo banido. A ex-namorada e a ex-sogra do autor reconheceram-se em duas personagens cio li vro, que contava detalhes relacionados a intimidade e mesmo a vida sexual das duas mulheres. A Corte alemã, em votação apertada (5 votos a 31, embora reconhecendo a importância da liberdade de expressão, e chegando mesmo a debater sobre o que seria arte, entendu que o livro violava a prim acidade e a intimidade das duas. A Corte asseverou ainda que a medida adequada seria a proibição total do lim ro. pois não seria atribuição dos magistrados edita-lo (confira-se, a proposito. CL.’.mcLK, Birgit. Freedom of art v personahtrights: ban upheld on the real life novel Esra. Jommnmal oJ 1,mtcllectuai Propertv Lan & Pi actice, ‘e 3, n. 4, p. 223). 11. Para além dos exemplos mais evidentes e extremados dc crimes contra a honra. ‘e preciso proteger a intimidade e o direito à informação na vida cotidiana, ainda quan do não se configure a hipotese dc crime’ (Trrrnso, Gustavo. Informação e privacida de. Ternas dc Direito Civil. 3. cd. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. vol. 1, p. 535). 43 No entanto, o problema demanda análise mais sutil e reações menos ener gicas. As situações de conflito entre direitos fundamentais devem ser encaradas e solucionadas, essencialmente, por meio da apreciação das situações concre tamente consideradas, cru todas as suas nuances. tendo-se sempre em mente a centralidade da dignidade humana no ordenamento brasileiro. Nessa atividade interpretativa, mostra-se essencial o recurso ao método da pondera ção, que pode, no caso concreto, conduzir à tutela preferencial tanto da liberdade de expressão/informação quanto do direito à privacidade sem com isso implicar um “retorno à cnsura”, de um lado, ou o fim da privacidade em nome de um pretenso interesse público. de outro. A ponderação, contudo, deve nortear-se por parâmetros seguros. que guiem a atuação não apenas do magistrado. mas do próprio “corpo jurídico das editoras e dos advogados de biografados. prevenindo-se futuros conflitos”. Como se vê, o cenário é de indefinições e incertezas, as quais, na prática, acabam por produzir um “efeito paralisante” ‘ Nesse ambiente em suspensão, muitas vezes opta-se, na prática, por não publicar nada, para não suportar os provaveis percalços econômicos e mesmo de tempo que um litígio normal mente traz consigo. Ou, em atitude ainda menos encorajadora, os autores se guem adiante na tarefa de produzir biografias, mas ao gosto do biografado (ou de seus herdeiros), ou explorando apenas o lado mais incisivamentejá exposto 4 Privam-se, assim, de um viés mais crítico como forma da vida do biografado.’ de evitar problemas, mas fazendo da biografia um panegirico. O que se propõe, nesta curta jornada, é trazer alguma contribuição para o debate, buscando pôr em evidência os problemas que o tema suscita’ e enumerar parâmetros de ponderação. Talvez, assim, se possam divisar eventuais caminhos que permitam movimentar-se nesse ambiente ainda desorientado. — — . — — Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2011. p. 145. 13. LEwmcKI, Bruno. Realidade refletida: privacidade e imagem na sociedade vigiada. In: TEPEDI\o, Gustavo; Fc rms, Luiz Edson (coords.). O direito co tempo: cmnbatesjurmdicos e utopias contemporâneas. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 109. 12. ScHRFIBEIm, 14. Nesse sentido: ‘To avoid potential litigation. the biographer vili explore only a sub jcct’s traditional public life the comnmonly accepted arca of accessibiliqe \enturmg into aspects sshich the law assumes are private’ sill be too clifficult” (BmLDER, Marv Sarah. Op. cit.. p. 358). 15. A proposito. conforme a perspicaz licão dc Perlingieri. é preciso ‘raciocinar por pro blemas e não por conceitos” (PERLINCIERr Pietro. O dirniw civil na legalidade constitu — cional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 371). 44 REVISTA DE DIREITO PRIVADO 2. 2012 • RDPoiv52 LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DIREITO À INFORMAÇÃO, PRIVACIDADE: O CASO DAS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS Como se apontou inicialmente, a publicação de biografias não autoriza das normalmente põe direitos fundamentais em rota de colisão em suma, liberdade de expressão, liberdade de imprensa e direito a informação (art. 5.°, 1V IX e XlV da CF/1988), de um lado, e direito à privacidade (art. 5.°, X, da 6 de outro. CF/1988),’ A questão não é simples. Com efeito, o exercício da liberdade de expressão e o aceso a informação constituem direitos essenciais à saude de um regime de mocrático. Isso não implica, contudo, uma prevalência abstrata sobre o direito à privacidade igualmente essencial. A arena democrática não implica o abandono de opacidades.’ que não ape nas preservam, mas promovem o pleno desenvolvimento e expressão da per sonalidade. Corno acertadamente lembra Tepedino, “o direito à privacidade consiste em tutela indispensável ao exercício da cidadania” 18 Deve-se, portan to, evitar conferir a priori urna densidade maior à liberdade de expressão e de 9 informação em relação ao direito à privacidade.’ Ao propósito, o direito à privacidade passou por profundas modificações ao ° desde a tradicional e limitada visão do “direito de estar só”, 2 longo do tempo, ’ até uma dimensão mais ampla e positiva; 2 preconizada por Warren e Brandeis, — — ló. “1V—e livre a manifestacão do pensamento, sendo vedado o anonimato: (...) IX — como registra Rodotà, a privacidade passa a ser compreendida no sentido de controle sobre a circulação das informações sobre a própria vida. Por outras palavras trata-se da autoconstrução da vida privada e proteção contra julga 22 Como se vê, não é o mesmo que afirmar um mentos descontextualizados. 23 direito absoluto à “história sobre a própria vida”. 2. 1 A criticada disciplina do Código Civil A celeuma em torno das biorafias não autorizadas, longe de parecer se aproximar de uma solução, parece acentuar-se com a aplicação do art. 20 do 24 que reforça embora em texto criticável (e de fato criticado) a CC/2002. tutela do direito à imagem da pessoa. Não e pacifica. contudo, a leitura que vem sido dada ao artigo. Segundo o texto legal, a utilização de imagem alheia, em princípio, depende da autorização do seu titular. Lida em sua literalidade, a norma confere ao titu lar do direito de imagem a possibilidade de proibir sua publicação, exposição ou utilização com fins comerciais, ou que lhe atinjam a honra abrindo-se exceção apenas quando o uso é necessário à administração da Justiça ou por exigência de ordem pública. É normalmente a este dispositivo que biografados ou herdeiros apegam-se para buscar, entre outras medidas, a proibição da cir culação de biografias não autorizadas. Não à toa, ele tem sido foco de atenção e de debates. inclusive no âmbito legislativo. — é livre O inovador conceito é-nos apresentado por Rodotà. Conforme se lê, tambem, na lição dc Maria Celina Bodin de Moraes, o direito a privacidade e expressão do “direito de determinar as modalidades de construção da própria esfera privada, bem como ao direito de manter o controle sobre as proprias informações. O direito a privacidade, visto assim, configura-se como um instrumento fundamental contra a discrimina ção e a favor da igualdade e da liberdade” (M0RAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 141-142). A perspectiva também encontra eco em autores norte-americanos: “It protects self-determination, rather than simply offering a ‘mere right to be alone’. Envisioning privacy this way suggests that a right to privacy requires not isolation, but rcspect for personhood” (BILDER, Mary Sarah. Op. cit., p. 359). — 17. Para recorrer a expressão de Rodota (A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Rio de janeiro: Renovar, 2008). 18. TermiNo, Gustao. Op. cit., p. 535. 19. Embora o texto nstitucional não utilize o vocabulo “privacidade”, referindo-se, no art. 5°, X, a “intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. empregam-se esses conceitos, aqui (por questões tambem de praticidade). situando-os no cam po mais amplo do direito à privacidade. 20. Nesse sentido: “De todos os aspectos da personalidade, a privacidade é certamente Maria Celina Bodin de. Am o que sofreu as transformações mais radicais” (Moe pliando os direitos da personalidade. Na medida dci pessoa humana: cswclos de direito ciiI-constiuicional. Rio de janeiro: Renovar, 2011. p. 140). WARREN, Samuel D.; BRSNDFIS, Louis. The right to privacy Han’ard Law Review, v Pv n. 5. — — a expressão da atividade intelectual. artistica. científica e de comunicação, independen temente de censura ou licença: X são inviolaveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral xiv — é assegurado a todos o acesso à informação e decorrente de sua violação; resguardado o sigilo da fonte, quando necessario ao exercicio profissional.” 21. 45 DIREITOS DA PERSONALIDADE AM0RIM, Jose Roberto Neves, Direito sobre a historia da própria s’ida. RT 749/133. 24. Eis a diccão legal: “Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se neccssarias à administração da justiça ou à manutenção da ordem publica, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber. se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Paragrafo unico. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legi timas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”. 23, 46 REVISTA DE DIREITO PRIVADO 2012 • RDPaiv DIREITOS DA PERSONALIDADE 52 25 já se notam iniciativas concretas para re Afora a crítica de alguns autores, há pelo menos dois projetos de lei rele legislativa, esfera ver o dispositivo. Na s’antes, e muito semelhantes. Trata-se do PLC 393/2011, do Deputado Newton Lima, e do PLC 395/2011, apresentado pela Deputada Manuela D’Ávila. Muito semelhantes, as proposições pretendem emendar o referido art. 20, para deixar claro que a mera ausência de autorização não impede a “divulgação de ima gens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão publica ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”. Outra frente de atuação atualmente em destaque é a judicial. por meio do controle abstrato de constitucionalidade. Em julho de 2012, a Associação Na cional dos Editores de Livros Anel ajuizou ação direta de inconstitucionali dade (ADIn 4.815), questionando no STF a constitucionalidade dos aris. 20 e 21 do CC/2002. A Anel pleiteia que se dê interpretação conforme a Constituição aos referi dos dispositivos, tornando dispensável a autorização do biografado ou demais retratados para a publicação de obras de caráter biográfico senão das obras em geral, ao menos daquelas a respeito de pessoas públicas ou envolvidas em acontecimentos de interesse coletivo. Segundo se lê da inicial, “os dispositivos legais em questão, em sua amplitude semântica, não se coadunam com a sis temática constitucional da liberdade de expressão e do direito à informação. Com efeito, a dicção que lhes foi conferida acaba dando ensejo á proliferação de uma espécie de censura privada que e a proibição, por via judicial, das bio grafias não autorizadas” ,22 Além disso, considerando-se a literalidade do texto legal, que prevê como exceções as hipóteses de administração da justiça ou manutenção da ordem — — pública além da hipótese, claro, em que haja autorização da pessoa retratada os dispositivos questionados, conforme argumenta a ou de seus herdeiros Anel, “acabam por violar as liberdades de manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5°, IV e IX, 28 Dado o CF), além do direito difuso da cidadania a informação (art. 5°, XIV)”. há pronunciamento do STF sobre aiiida não contudo, da ação, recente caráter a relevante questão. — —, A tentativa, hoje em evidênja de alterar o polêmico art. 20 do CC/2002 representa um passo importante. E razoável supor que ela estimula uma cul tura histórica e tambem criativa, em cujo contexto autores e historiadores não tenham receio (prévio) de retratar fatos e aspectos de vidas privadas, de narrar “estórias” que se inserem na história, a grande estória sem começo nem fim de qu.e falava Hannah Arendt. A medida, contudo, não parece representar so ” 2 lução final para o problema. — Independentemente, contudo, do posicionamento que o STF venha a ado tar no julgamento da ADIn 4.815, ou do resultado das alterações legislativas propostas, já se pode dizer que a falta de autorização da pessoa retratada ou de seus herdeiros quanto a obras de caráter biográfico ou histórico como nas publicações jornalísticas não é, a rigor, impeditivo da publicação da obra. Conforme o entendimento manifestado pelo juiz que, no primeiro grau da justiça paulista, apreciou a recente disputa entre o músico João Gilberto e a Editora Cosac Naif a “biografia é urna obra de informação e, como tal, devera ser admitida, ainda que sem consentimento do biografado. Somente sera ilícito o conteúdo e aí, sim, caberá intervenção judicial preventiva (in ° 3 terdital) ou de reparadora”. — 28. tdem,p.3. 25. Veja-se, por exemplo: “Tendo-se em vista a redação de seu art. 20, o Codigo Civil, neste ponto, constitui verdadeiro obstáculo a uma tutela da imagem condizente com 29. Nos termos em que formuladas, as referidas proposições legislativas, e mesmo a men cionada ADIn 4.815, parecem resolver se e que resolvem a questão apenas em a proteção integral da dignidade da pessoa humana. Com efeito, alem de sugerir, em parte. Por exemplo, o foco no carater público da pessoa retratada não parece dar conta dos conflitos suscitados quanto aos personagens coadjus antes, por exemplo, que fazem parte de qualquer obra biografica e nem sempre se enquadram na assim chamada categoria de pessoas -publicas”. Tampouco daria conta, ao que parece, dos casos envols endo obras ele ficcão, que poderiam situar o debate para alem do argtl mento relativo a importância historica das biografias, do acesso do publico a historia de seu meio sociaL Alem disso, a própria avaliação do caráter historico da informação e da pessoa retratada por dar margem a discussão. 30. TJSP Processo 583.00.201 2. 181 186-8, 9.” Vara Civel de São Paulo,j. 20.08.20 12,juiz Guilherme Stamillo Santarelli Zuliani. O músico ajuizou ação de busca e apreensão, sua parte final, a são autonomia da proteção à imagem, uma vez que a lesão so se concretizaria com a concornitante lesão a honra, ou caso se destinasse a fins comer ciais, pecando assim pelo excesso, o dispositivo peca ajuda por omissão. ao af ii moi que somente a ‘adnnnistrcão da justiça’ ou a ‘manutencão da ordem publica’ podem justificar a divulgação não autrizada da imagem, desconsiderando ouuos interesses merecedores dc tutela e que podem revelar—se, no caso concreto, mais relevantes” (MOR \E, Maria Cc una Bodin de. Op. cit., p. 139. grifou-se). 26. O texto aparece em ambas as proposições — grifou-se. 27. Petição inicial apresentada na ADIn 4.815/2012, p. 2. — — 47 48 REvIsTA DE DIREITO PRIVADO 201 2 • RDPRIv 52 DIREITOS DA PERSONALIDADE Além disso, é preciso lembrar que desde já “o intérprete e o magistrado têm, nos casos relativos ao uso indevido de imagem, o dever de suprir a omissão legislativa, verificando se a hipótese diz respeito ao exercício da ’ De todo modo, deve-se reconhecer que autores e 3 liberdade de informação”. editoras contarão com substratos mais consistentes para sustentar a publica ção de obras de caráter biográfico sem a autorização do retratado ou de seus herdeiros, o que, por si só, representa um avanço para a cultura e o acesso à informação. Nesse sentido, no atual ambiente paralisado parece positiva a proposta de alteração legislativa, como a proposta de interpretação conforme a Constituição. 2.2 Narrativa e vida relaciona! se pode perder de vista ainda o carater relacional da vida privada. A vida em sociedade implica uma vida de relações, naturalmente complexa. Esse viés de relacionalidade constitui fundamento do próprio sistema jurídico, ex pressando uma posição alinhada não apenas à ideia de vida em sociedade, mas 32 ao princípio da solidariedade. Não raro, os conflitos envolvendo biografias surgem justamente da referên cia a personagens coadjuvantes da trajetória do biografado mas não menos importantes para a obra. Com efeito, muitas vezes são as figuras chamadas secundárias que obstaculizam a edição de uma biografia. Mas, afinal, como narrar a “história da vida privada” sem tocar outras? Como indica a célebre frase de John Donne, “nenhum homem é uma ilha”. Mesmo uma biografia de Crusoé tocaria a trajetória de outras pessoas ainda que fosse, por exemplo, a de sua família ou a daqueles com quem o náufrago tenha encontrado durante o período de isolamento insular. Não — — pleiteando a apreensão de exemplares do livro “João Gilberto”, organizado por Walter Garcia e editado por Cosac Naify, ao argumento de que não autorizara a utilização de sua imagem, e de que a obra ostentava conteúdo ofensivo a sua imagem e intimidade. O caso e recente e ainda não chegou a um desfecho final. Mas o despacho proferido pelo juiz, que se deteve sobre as caracteristicas e finalidades da obra concretamente considerada, parece animador. 31. ScHREIBER, AndersonOp. cit., p. 105. 32. Pietro. Relações juridicas e suas vicissitudes. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 728-729. O direito, como ciência so cial, como expressão das relações sociais (cujos fatos não encontram diferença onto logica em relação aos chamados fatos jurídicos), é, mais que um direito do individuo, um direito das relações. PFRIINGJFRI, A este respeito, merece menção o caso, apreciado pelo TJRJ, relativo ao ex-Embaixador José Jobim e a autobiografia de Evandro Lins e Silva. 33 Na obra em questão, assim como em depoimento dado para os arquivos do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC), o advoga do carioca, que narrava sua trajetória (o que não significa que falasse apenas de si), mencionou o suicídio de seu amigo diplomata. As herdeiras dejobim, inconformadas com a referência, ajuizaram ação pleiteando a supressão do trecho, considerado ofensivo à memória do falecido. O tribunal carioca, entretanto considerou que a menção ao episódio era “de pouca significação, sem cunho injurioso ou sensasionalístico”, e que a referência havia sido feita em caráter apenas incidental. Os magistrados debru çaram-se sobre o caso com atenção, ponderando ainda que as circunstâncias da morte do diplomata haviam sido amplamente divulgadas, à época, nos princi pais jornais do país, e mesmo na televisão. Não vislumbraram, por fim, ofensa à honra ou à memória do ex-embaixador. 2.3 Ocaso Roberto Carlos em detalhes (ou antes: O Rei e eu) tema ora em estudo costuma remeter ao rumoroso caso, citado acima, envolvendo a biografia não autorizada de Roberto Carlos. O projeto editorial acabou cancelado pouco depois de sua gênese, diante da reação do artista. Ro berto obteve medida liminar de apreensão dos exemplares, levando a Editora a alinhavar um acordo, homologado pelo TJRJ, 34 e cujos termos específicos permanecem confidenciais. O cantor havia, além disso, apresentado ação penal no Juizado Especial Criminal de São Paulo contra Paulo Cesar de Araújo, mas o processo terminou O 33. TJRJ, AC 2000.001.02459, 17.” Câm. Civ.,j. 05.04.2000, v.u., rei. Des. Maria Inês Gas par, RTJERJ 46/287. A respeito dos conflitos envolvendo terceiros mencionados em bio grafias, ha decisão, cuja ementa vaie a transcrição: “Tratando-se de obra hteraria biográ fica de artista com quem a autora assumidamente tinha relacionamento muito próximo e constante, somado à questão de ambas serem figuras públicas e de grande fama, e natural que a apelante seja mencionada nos escritos sobre a cantora, justamente por ter feito parte de importantes episodios de sua vida. Não se vislumbra nos trechos destacados conteúdo que tenha capacidade ofensiva aos direitos da personalidade da autora, tanto em sua honra subjetiva quanto objetiva” (TJRJ, AC 0076030-64.2006.8.19.0001, 1.” Câm. Civ., j. 23.11.2010, rei. Des. Maria Augusta Vaz, grifou-se). O processo, contudo, tramita em segredo de justiça, não sendo possível conhecer o inteiro teor da decisão. 34. TJRJ, AgIn 2007.002.06253, 18.” Câm. Civ.,j. 03.05.2007, v.u., rei. Des. Pedro Freire Raguenet. 49 50 REvIsTA DE DIREITO PRIvADo 2012 e RDPRIv 52 51 DIREITos DA PER50NADDADE em transação penal. O biógrafo ainda ajuizou, posteriormente, ação em que pleiteava indenização e autorização para a publicação e a comercialização da obra, mas o caso, julgado em 2009, encerrou-se com decisão favoável a Rober to Carlos e a manutenção do acordo celebrado. A controversia envolvendo Roberto e biografias não autorizadas, contudo, não é inédita. Em 1979, ainda sob a égide da Constituição de um regime dita torial, os exemplares de O Rei e eu, livro de memorias escrito pelo “amigo ínti mo, secretário e mordomo”, > Nichollas Mariano, foram apreendidos e incine 3 rados por determinação judicial. O livro narrava supostos detalhes da vida do cantor, contendo, ao que parece, informações muito íntimas, inclusive sobre o acidente de trem na Cachoeiro de ltapemirim de Roberto Carlos fato então desconhecido do público e dos fãs do artista. — Embora não se tenha acesso ao conteudo dos dois processos, parece ra zoavel supor que a biografia mais recente constitui um trabalho revestido de maior seriedade por parte do biografo, que realizou grande esforço de pesquisa e investigação diferentemente do livro de autoria do mordomo. 36 Além dis so, muitos dos fatos que antes repousavam na esfera mais íntima da vida do cantor hoje são de conhecimento público como as manias do Rei. l de se questionar, portanto, se a obra Roberto Carlos em detalhes violava, de fato, di reitos de personalidade do artista, e se a medida de proibição da circulação do livro resistiria a uma ponderação minudenciada. A questão, porém, resolveu-se prematuramente e em termos confidenciais, de maneira que não se pode sair, aqui, do terreno da mera especulação. — 2.4 A ‘u/tura da autoriza ção”e o “efeito paralisante” Pode-se dizer que ainda predomina, no cenário atual, o que se identificou 37 na falta desta, prefere-se não arriscar a pu como “cultura da autorização”; blicar qualquer coisa. Não raro, contudo, a negativa é exercida sem qualquer justificativa razoável por vezes, pode-se dizer, mesmo de forma abusiva sobretudo por parte dos herdeiros, quando se trata da biografia de pessoa já fa 38 A postura acaba desencorajando a pesquisa e a divulgação lecida ou ausente. de obras biográficas, sedimentando o referido “efeito paralisante”. — —, Parece mais do que razoavel sustentar que a mera ausência de autorização, em regra, não caracterizaria, por si, ofensa aos direitos de personalidade do 39 Ao propósito, “basta interpretar o art. 20 a luz da Constituição biografado. para perceber que a ausência de autorização não impede juridicamente a edi 40 ção de biografias, do mesmo modo que não impede a circulação de jornais”. condição representaria não um obstáculo ou autorização Sob esse prisma, a prévia essencial (hoje, por vezes intransponível), mas, mais propriamente, si nal de colaboração e mesmo um maior compromisso, por parte da pessoa — — 35. Nichoilas. O Rei e eu: minha vida com Roberto Carlos. Rio de janeiro: Roberto Goldkorn, 1979. Mkmo, 36. Em razão da epoca, e do segredo de justiça que possivelmente cercava o processo, não se teve acesso aos autos ou a referencias mais precisas sobre o caso. Mas, em entrevista a Revista Veja, Saulo Ramos, advogado de Roberto Carlos a epoca, pontua que os casos situam-se em patamares distintos: livro do mordomo não tem um caso qu seja verdade. Era tudo mentira. Foi uma briga judicial grande para apreender e queimar o livro antes de ele sair. ja o livro mais recente e uma biografia perfeita. Não tem um ataque moral contra o Roberto. O Roberto me consultou e eu o aonselhei a não tomar nenhuma providência. Eu recusei a cau sa, e ele procurou utros advogados. Agora, não houve, nesse caso, condenação, mas um acordo. A Planeta, que e a minha editora, capitulou diante do desejo do Roberto” (TrIxEmA, Jerônimo. Entrevista: Saulo Ramos Jabuticabas juridicas. Veja. n. 3.026. São Paulo. Abril, 28.11.2007. Disponivel em: [http://veja.abril. com .br/28 1 107/entrevista.shtmlj). — 37. Lwicio, Bruno. Insegurança na cultura. O Globo, Cad. O Pais, 11.04.2010. 38. Atitudes, por exemplo, como a das herdeiras do festejado escritor Guimarães Rosa: “Para publicar algo de papai, é preciso pedir autorização a minha irmã e a mim. (...) Não existem biografias dele e não damos licença para ninguem” (MAchADo, Cassiano Elek. Diario arquivado. Revista Piaui, n. 3, p. 49). Ou ainda: “E tanta confusão para conseguir autorizações que as pessoas acabam mudando de ideia’. Vilma Guimarães Rosa reconhece que a ideia e exatamente esta: dificultar a vida dos pesquisadores” (idem, p. 50). 39. Embora se tenha afastado, na delimitação do objeto de estudo, a análise de questões envolvendo esse topico, revela-se util, aqui, traçar-se um paralelo com as discussões que cercam a reforma da Lei de Direito Autoral — ambiente onde a “cultura da auto rização” parece notadamente acentuada. Nesse sentido, vale menção a proposta de redação do art. 52-B do projeto dc atualização do referido diploma (PL 3.133/2012, em seu texto apresentado como Anteprojeto de Lei): “Art. 52-B. O Poder judiciário poderá autorizar o uso de obras literarias ou de artes visuais sempre que, ao exercer seus direitos patrimoniais, o herdeiro ou sucessor do autor da obra exceda inanifestainente os limites impostos pelo seu fim economico ou social, pela boa-fe ou pelos bons costumes, prejudicando o seu acesso ou fruição pela sociedade” (grifou-se). 40. Op. cit., p. 143. Rejeita-se, portanto, a noção de que “não ha biografia não autorizada, nos termos da norma constitucional” (TjRj, AC 2001.001.02270, 2. Câm. Civ., j. 17.07.2001, mv., rei. Des. Gustavo Kuhi Leite, Ementario 06.2002 n. 19 14.03.2002, RTJERJ 53/220). ScoREIBEIh, Anderson. 52 REvISTA DE DIREITO PRIVADO 2012 • RDPoiv52 DIREITOS DA PERSONALIDADE autorizada. Por outro lado, deve-se lembrar que mesmo a concessão de autori 41 zação não exime o autor da biografia do dever de responsabilidade. A jurisprudência, nos casos que passaram por seu crivo, mostra-se vaci lante, inclinando-se por vezes num sentido, por vezes noutro. O problema, contudo, não reside na diversidade de posicionamentos que, a rigor, se re puta até saudável. Como se disse, a ponderação entre os interesses em confli to, sem que se atribua, à partida, proeminência a um ou outro, pode conduzir a resultados distintos. Por vezes pode revelar-se mais importante a proteção à privacidade da pes soa (mesmo que isso implique, por exemplo, a proibição da publicação de uma obra); por outros, pode-se apresentar, no caso concreto, solução mais corre ta a que privilegia a liberdade de expressão e informação, embora afetando a privacidade do biografado. Problemático, contudo, é verificar o laconismo de muitos julgados, nos quais não fica claro o iter percorrido pelo magistrado para chegar a uma ou outra conclusão. Revela-se, portanto, fundamental encontrar diretrizes que orientem a ponderação. — 3. CRITÉRIOS DE PONDERAÇÃO À luz do panorama desenhado nas linhas anteriores, mostra-se fundamen tal, para enfrentar o conflito entre direitos fundamentais, indicar parâmetros que sirvam de norte à difícil tarefa de ponderação entre os diversos interes 42 Busca-se, assim, estimular “a coerência jurisprudencial, mas ses em causa. sem que se perca de vista a flexibilidade necessária para não aprisionar em fórmulas conceitos tão cheios de sutilezas como o interesse público e a per sonalidade humana” . Como se viu, a jurisprudência mostra-se por vezes reticente quanto aos critérios considerados na apreciação dos litígios que lhe são submetidos. Nou 41. A liberdade de expressão, como qualquer liberdade, aliás, deve ser exercida com res ponsabilidade (I\oRAEs, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 140). Não parece defen sável, assim, a ideia de que, por si só, o “consentimento retira a ilegalidade do ato” (AM0RIM, José Roberto Neves. Op. cit., p. 129). 42. A tarefa não é fáciI”e seu resultado varia conforme as circunstâncias do caso con creto, o que desperta quase sempre temores de insegurança ou tratamento desigual. Daí a necessidade sempre sentida de se enumerarem parâmetros que possam servir de guia ao magistrado na dificil tarefa de ponderar” (ScHRFIBER, Anderson. Op. cit., p. 105). 43. Lewici<i, Bruno. Realidade refletida... cit., p. 110. tras ocasiões, mostra-se “monotemática”, apegando-se a apenas um parâmetro, sem considerar outros elementos e nuances relacionados ao suporte fático em questão. Contudo, a despeito das eventuais (e mesmo prováveis) dificuldades, não se pode fugir ao dever de ponderação, essencial nas situações de colisáo entre direitos fundamentais. A análise do repertório jurisprudencial brasileiro e das contribuições da doutrina auxilia na identificação e sistematização de diretrizes interpretativas. Vale recorrer aqui, ainda, à contribuição do Enunciado 279, da IV Jornada de Direito Civil do CJ que buscadequar a interpretação do art. 20 do CC/2002 44 Também é interessante avaliar, sem perder de vista a necessi à Constituição. dade de servir-se do direito comparado de forma crítica, o exemplo do art. 79.° 45 e mesmo do Projeto de Código Civil argentino, do Código Civil português, atualmente sob a apreciação do Senado. A proposta de texto legal argentino, aliás, parece apresentar uma disciplina mais completa e consentânea à realidade, prevendo como exceções não apenas as hipóteses em que haja um interesse científico, cultural ou educacional prio ritário, mas também aquelas em “que se trate do exercício regular do direito de informar sobre acontecimentos de interesse geral”. Outro ponto muito in teressante e coerente com a preocupação histórica que normalmente cerca as obras de caráter biográfico (e informativo em geral), é a de que, decorridos 20 46 anos da morte da pessoa retratada, a reprodução não ofensiva passa a ser livre. 44. O enunciado prescreve o seguinte texto: “A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do di reito de amplo acesso a informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as caracieristicas de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações” (grifou-se). 45. “Artigo 79.° (Direito a imagem) (...) 2. Não é necessario o consentimento da pes soa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de policia ou de justica, finalidades cienttflcas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares publicos, ou na de factos de interesse publico ou que hajam decorrido publicamente” (grifou-se). 46. Confira-se o teor do dispositivo proposto: “Artículo 53.- Derecho a la imagen. Para captar o reproducir la imagen o la voz de una persona, de cualquier modo que se haga, es necesario su consentimiento, excepto en los siguientes casos: a) que la persona participe en actos públicos; b) que exista un interes científico, cultural o educacional prioritario, y se tomen las precauciones suficientes para evitar un daüo innecesario; e) que se trate dei ejercicio regular dcl derecho de informar sobre acontecimientos de interés general. En caso de personas faliecidas, pueden prestar cl consentimiento sus 53 54 Risr DE DREIT0 PRIvADo 2012 RDPov 52 r DRElios DA PER5OoALIDADE 1 Conjugando-se essas diferentes contribuições, é possível apontar alguns critérios básicos de ponderação: (a) notoriedade da pessoa e do fato; (b) forma de obtenção das informações; (e) local do fato; (d) veracidade do fato. Antes de passar ao breve exame de cada um deles, é preciso sublinhar a importância não apenas da ponderação em si, mas do recurso a múltiplos critérios, que não se excluem; antes, complementam-se. Permite-se, assim, apreciar com mais coerência e realismo as diversas facetas do caso. 3.1 Notoriedade A notoriedade da pessoa e do fato constitui elemento a que os tribunais normalmente se atêm nos casos em que se reconhece maior peso à liberdade de expressão e ao acesso à informação. Mas essas decisões em geral se limitam a asseverar que o fato, por ser de conhecimento publico, não teria qualquer conteúdo novo, 47 ou que, por ser notória a pessoa, não haveria problema na publicação de fatos a ela pertinentes a menos que a obra se revelasse ofensiva 48 a sua honra. — herederos o ei designado por ei causante en una disposición de ultima voiuntad. Si ha) desacuerdo entre herederos de un mismo grado, resuelve ei juez. Pasados veinte (20) aõos desde ia muerte. la reproducción no ofensiva es libre”. 4/. lese similar ja foi defendida com exito perante o Tribunal de Justiça paulista. em ação envolvendo o jogador Ronaldo Fenômeno: ‘Conforme as contrarrazões, a obra originou-se de informacões colhidas em reportagens e pesquisas efetuadas pelos escritores, sendo portanto resultado de entrevistas fornecidas pelo próprio atleta. amigos e familiares, não havendo material nos o que ja não estis esse a circular na imprensa. Ademais, não foi apontada nenhuma circunstancia falsa no contexto da obra; os empresarios são parte ilegitima para a causa, estando a postular interesse alheio em nome proprio; houve autorização do irmão do atleta (cf. f. 39); algumas informações anotadas pelos agravantes constam de obra prefaciada pelo proprio atle ta biografado. (...) Não ha sinais suficientes de bom direito e de grave risco para que se ordene, in lirninc a drastica medida dc busca e apreensão” (TJSE AgTn 004848775.1998.8.26.0000, 4.” Câm. de Direito Privado, j. 18.02.1999, v.u., reI. Des. Jose Osorio de Azevedo,inior), 48. Vale citar, a respeito da utili:acão de fotografias. caso recente envolx endo os herdeiros de Manuel Bandeira, que tentaram impedir a publicação de livro de fotojornalista contendo a reproduç,o de uma fotografia do poeta. O tribunal carioca, no caso, en tendeu inexistir violacão ao direito dc imagem do poeta. apegando-se, essencialmen te. no perigoso criterio da “figura publica”, acrescentando, ainda, que a imagem não expunha o poeta em situacão vexatoria ou ofensiva a sua intimidade, retratando-o apenas em seu cotidiano (TJRJ, AC 0269599-93.2007,8.19.0001, 6.” Câm. Civ, j. 01.12.2010, vu., rei. Des. Pedro Raguenet). 1 A notoriedade é comurnente traduzida na perigosa — quiçá equivocada — ex pressão “pessoa publica”, que sugere urna supressão da privacidade da pessoa famosa, em nome dc um “legitimo interesse da sociedade em conhecer a traje49 tona daqueles que mais se destacaram no cenario social”. As pessoas “públicas”, porém, têm vida privada, O vocabulo, empregado aqui entre merecidas aspas, deve ser rejeitado, para evitar-se a armadilha de 50 Embora se possa re supor que a pessoa famosa renuncie à sua privacidade. famosas acaba assumindo maior relevo, na pessas no caso dc que conhecer pratica, um interesse do publico no acesso a informações a elas relativas, não se pode afirmar que a celebridade implica supressão da privacidade. Não a toa. ’ 5 Schrciber considera este um falso pai’â inet co. Não se quer com isso dizer que o caráter mais ou menos notório da pessoa para a ponderação. Mas e menos decisivo do que à primeira vista irrelevante é pode parecer. O fato de a pessoa retratada ser famosa “pode, quando muito, sugerir que há algum grau de interesse do público em ter acesso à imagem, pela só razão de dizer respeito àquela pessoa. Isso não basta, contudo, para que se 52 Não se pode, em suma, conclua pela prevalência da liberdade de informação”. reduzir o problema — complexo — a uma mera verificação de notoriedade, No que respeita aos fatos, a notoriedade é normalmente identificada na queles já veicuiados pela imprensa, ou que de alguma forma já são de conhe cimento público (pela divulgação na Internet. por exemplo). Não é rara, aliás. a assertiva de que “os fatos são publicos e notórios e estão estampados nos 53 Mas a noção, jornais da época”, não havendo por que proibir-se a publicação. 49. Sxiuit’,io, Daniel. O direito a informação. O G(obo, Cad. Opinião, 26.02.2011, p. 7. 50. Nessa linha, seja-se: “E evidente que a notoriedade acarreta alguns fardos, ejustifica a incidencia de um interesse maior da opinião publica na vida particular das pessoas fa mosas. (...) O que não se deve, todavia, e resumir a questão a um primario binarismo que suprime qualquer expectativa de privacidade das pessoas notorias. Tampouco e saudavel o comportamento inverso” (Lr’,xtu, Bruno. Realidade refletida... cit., 108). Veja-se, tambcm. a respeito: S cuiu, Frederick. Can public figures have privatc lix es? In: PAi Elien Frankel et ai. Thc righi lo privacy Cansbrigde: Cambridge Uni xersitv Press. 2000. p 293-309. , 51. Sciimimi, Anderson. Op. cit., p. 107. 52. ldem, p. 108. 53. A expressão encontra-se no voto vencedor, ainda no TJRJ, sobre o caso envolven do a biografia do jogador Garrincha (TJRJ. AC 2001.001.02270. 2.” Cãm. Civ., j. 17.07.200 1, mv, rei. Des. Gustavo Kuhi Leite, Ementario 06.2002 n. 19 14.03.2002, RTJERJ 53/220). 55 56 REvIs1A DE DIREnD PRIVADO 2012 • RDPRÍv52 aparentemente objetiva, deve ser tomada com cautela, para não implicar solu ções simplistas. Veja-se, por exemplo, o caso envolvendo o livro Na toca dos leões, do jor nalista Fernando Morais, sobre a história da agência de publicidade W/Bra sil. O TJGO, apreciando o pleito do Deputado Ronaldo Caiado, que buscava a proibição da circulação do livro, acabou reformando a decisão de primeira instância, que havia concedido a medida, ao prático argumento de que não se poderia “fazer a busca e apreensão do referidos livros, não porque a medida seja abusiva, mas sim pelo fato de não ter mais praticidade diante da projeção internacional”. que ganhou o caso na mídia nacional e 54 3.2 Forma de obtenção dos informações Outro criterio a se considerar diz respeito à forma como as informações são obtidas. Aqui, será relevante indagar. em termos gerais. se o biógrafo utilizou-se de meios admitidos em direito para ter acesso ao substrato informativo acerca do biografado. Nessa linha, é importante considerar se o biógrafo teve acesso devidamente franqueado as informações, ou se, por exemplo, intercep tou correspondência do biografado, ou se utilizou câmeras, microfones ou ou tros dispositivos escondidos. Importante verificar, também, se as informações estão disponíveis em arquivos e registros públicos, ou se foram obtidas de 55 maneira abusiva, e assim por diante. 54. O deputado argumentava que a obra continha trechos ofensivos a ele. O trecho apon tado, nas quase quinhcntas páginas do livro, e o seguinte: “O cara era muito louco. Contou que era medico e tinha a solução para o maior problema do pais. a super populacão dos estratos sociais inferiores, os nordestinos’. Segundo seu plano, esse problema desapareceria com a adição a agua potavel de um remedio que esterilizava (TJGO, Agin 44485-0/180, Processo 200500880659, 4.” Câm. Civ, as mulheres j. 20.10.2005, v.u., rei. Des. Almeida Branco). Vale citar também decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos que negou medida, em carater definitivo, que visava a impedir a circulação de livro sobre François Miterrand (“Le Grand Secrei”). Pesou na decisão o fato c as informações contidas na obra, cujo autor havia sido medico do ex-presidente francês, ja haverem sido publicadas, e de o livro ja estar dispontvel na Internei (Edition Pino s: Franrc. Ap. 58148/00, j. 18.05.2004 apud Pi”7io, Timoth). Who controls the Noini Campbell information flow? A practical analysis of the law o[privacy.Journaloflnteiiectual Property Law &Practice, v. 1,ii.5, p. 359). 55. Embora possa ser importante para o biografo, no caso de pessoa ainda viva, o contato com o biografado, para relatar suas próprias memorias, esse não e elemento essencial a obra. Veja-se o exemplo do livro Hobalcila: a procura dc jocio Gilberto, do alemão Marc Fischer. recentemente lançado na Alemanha (e cujos direitos de publicação 1 DIRoTOS DA PERSONALIDADE Todas as circunstâncias envolvendo a captação das informações relativas à pessoa devem ser avaliadas, servindo para indicar, com o recurso também a outros critérios, quais interesses são merecedores de tutela no caso. É preciso cuidado, porém, para não encarar o fato de as informacões estarem disponíveis em arquivos e registros publicos como uma presunção de “que a divulgação desse tipo de informação não afeta a intimidade, a vida privada, a honra ou a 56 imagem dos envolvidos”. li 3.3 Loca/do fato: ou a expectativa de privacidade O local e a natureza do fato utilizado na narrativa biográfica também são relevantes na análise. No entanto, deve-se evitar, aqui, armadilha semelhante aquela relacionada à ideia de “pessoa pública”. O que releva considerar não é o mero caráter público ou privado, aberto ou fechado, do ambiente. Deve-se apurar, mais propriamente, se, no local, era de se supor que houvesse, por par 57 te da pessoa, uma expectativa de privacidade. O critério da (razoável) expectativa de privacidade foi levado em conta com especial atenção, por exemplo, pela House of Lords inglesa, em caso envolven 8 Concluiu-se, ali, que a publicação de detalhes do a famosa Naomi Campbell. do tratamento contra dependência química da modelo violava seu direito à privacidade. Também o faziam as fotografias tiradas por paparazi da modelo na rua lugar, a rigor. “público” que, em trajes simples, acabava de sair de reunião dos Narcóticos Anônimos. A decisão foi posteriormente mantida pela Corte Europeia de Direitos Humanos. 59 — —. foram comprados por editora brasileira). Na obra, o jornalista, diante das tentativas frustradas de entrevistar o recluso cantor, tenta percorrer o caminho trilhado pelo baiano, visitando lugares por onde joão passou, e entrevistando conhecidos e outros personagens ligados a ele, para traçar-lhe um perfil biografico. 56 BARROSO, Luis Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalida de. Criterios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Codigo Ci ii e da Lei de Imprensa. Revista liinicstivl dc Diivito Civil 16/89. 57. Quer-se, com essa perspecti\a. ao menos afastar a sensação de “medos prixados em lugares publicos’ para utilizar a eloquente expressão que deu titulo, em portugues. ao filme de Alain Resnais, Cocur.s (2006). — 58. Pi\Io, Timothy. Op. cit., p. 354-361. A Corte assinalou, ainda, que esse tipo de infor inação situava-se entre exemplos de informações, a rigor, obviamente privadas, assim entendidas aquelas relacionadas a saude, \‘icla sexual, relacionamentos pessoais. casa. [mancas da pessoa. 59. MG Limitcd v L’nitcd Kingdo;n. Ap. 39401/04. j. 18.01 .2011. 57 Rrvuiã DE D(REIIO PovAoo 58 2O 2 RDPav 52 3.4 Veracidade do tato O critério da veracidade não deve ser entendido corno equivalente de “ver dade mas, talvez, apenas de urna verdade submetida a um juízo dc plau sibilidade.” Isto porque o conceito pode revelar-se enganoso, especialmente quando se recorda que a biografia é, por excelência, urna narrativa hterária, 1 ainda que não ficcionalP Com efeito, ha muitas versões de um mesmo fato; e a própria memória, que Domas DA PERSUNALIDADE J acontecimentos os quais podem ja estar sedimentados em épocas distantes.° A dificuldade de se saber a verdade sobre qualquer coisa não dispensa, contu do, o compromisso em assegurar ou verificar os fatos, na tentativa de certificar-se de sua correção e exatidão. — 3.5 Alguns critérios específicas e o chamada critério da interesse pública na divulgação em tese O caso específico das biografias não autorizadas, ressalvadas eloquentes 53 ainda ressente-se, de certa forma, da enumeração de critérios mais exceções, especificos. Nesse sentido, parece útil, alem dos parâmetros enumerados aci ma, avaliar nos casos concretos, em especial, o comportamento do biografado em relação ao fato narrado; e o formato de apresentação do fato.hS Op. cit., p. 89. 61. Interessante ilustracão e aquela citada pela jornalista Janet Malcoim, acerca da morte de Tchekhov reproduzida de oito maneiras diferentes, em cada urna de suas oito biografias. O fato objetivo (de que o autor russo morreu) e um so, mas a forma como foi contada difere em todas as obras consultadas por Malcolm (FRIAS Ficuo, Otávio. janet Malcoim, a narrativa impossivel. Serrote. n. 7, p. 160). Ainda nessa linha, vale a ressalva do realista Sartre. em sua autobiografia: XVhat 1 havc just uru/co isfalsc. Titie. Neithe; troe orfalsc, like everi thing si ritten about madmen. about men. 1 have reported the facts as accurately as memorv perrnittcd me. Bui to what extent did 1 believe in niy delirium?” (SAia RE,Jean-Paul. les Mots apud Hsii, Franeis R. Notes for an anatomy of modern autobiogrphy New Litermy Flistoiy, v. 1, n. 3, p. 499, grifou-se). 60. Bsrroo. Luis Roberto. — 62. “Para recordá-las agora, e sem talento para inventar. so me restou ater-me aos fatos. recorrendo aos arquivos e a mernoria dos outros quando a minha falhava. Nada disso, porem, e garantia d fidelidade absoluta. Afinal. os Jcitos ã distancia SO existem conto versões, o que não deixa dc ser unia Jorma de ficção’ (VFN3 L Ri, Zuenir. Minhas histórias dos outros. São Paulo: Planeta, 2005. p. 13-14, grifou-se). 63. ScHREniFR, Anderson. Op. cit. 64. Há quem aponte ainda outros critérios especifleos que podem ser uteis: a repercu são emocional do fato sobre o biografado, a importãncia do fato para a formação da mostra-se ou mostrava-se mais ou menos reservada, e isso especialmente com relação aos fatos retratados na obra biografica. Em síntese, o magistra do, ao lançar-se a ardua tarefa de ponderação, deve buscar ater-se a visão de mundo do biografado, resistindo “a tentação de decidir segundo a sua própria concepção de vida privada. É a visão de inundo do biografado que deve ser ponderada com a liberdade de expressão do biografo”.ói Quanto ao formato de aprentação, assume relevãncia na ponderação sa ber se o fato e apresentado de forma mais ou menos seria, mais ou menos sensacionalista. Por exemplo, não são poucos os titulos, muitas vezes mal dis farçadas autobiografias,0 que buscam “pegar carona” na popularidade do ver dadeiro biografado, por vezes alardeando “segredos”, “detalhes”, na tentativa de seduzir os leitores. Tombem cabe avaliar, aqui, se a narrativa é veiculada por meios de maior ou menor alcance. Por exemplo, não tem a mesma repercussào em regra, uma produção cinematográfica sobre a vida de uma pessoa e um livro biográfico ou urna biografia de contornos mais acadêmicos. Tudo isso devera ser levado em consideração pelo intérprete. Há quem aponte, ainda, o criterio da existência de interesse público na pu biicacão em tese, no sentido dc que um direito do publico à informação teria maior peso sobe o direito da pessoa. A noção a que se filia parte dos consti tucionalistas brasileiros” e comum na tradicão americana, onde a liberdade de expressão consagrada pela l. Emenda assume ares quase nritologicos. E pode-se identificar algum reflexo dessa postura, em menor proporção. no re ferido Enunciado 279 do JE que recomenda o prestigio a ‘medidas que não restrinjam a divulgacão de informacões”, Contudo, reiteia-se aqui a premissa apontada no in’c’o deste trabalho: não e possii ei atribuir proeminência precipua à liberdade de expressão. O intér prete não pode furtar-se a ponderação, baseando-se numa si/posta e abstrata preferência pela liberdade dc expressão e de informaeão ni re!acão aos direitos — — — serve de importante suporte à narrativa, não é linear, nem exatamente fiel aos No que respeita à atitude do biografado, importa considerar se a pessoa 4 do biografado e es cntsial partd :p. cao dc (eTc ‘‘e san grau d iden relata (ijein p. 344) e5. Ideia. P 148-149. 6h. Pense-se, por exemplo, cm obras como A Vitia ((101 01111110 111110 lladowia, publicada cio 2008 pui Christoplicr Cicco iv, irmao da c o or sei ar utol izacão ou o proprio O Rei c eu, citado. 6,. Por exemplo Bsoio . Luis Robc [o. Op. ciL, p. 9d 1. .siida: \‘OIF O e Daniel. 0 Op. Cii p. 7. personalidade tiflcacao com o , , — 59 60 REVISTA DE DIREITO PRIVADO 201 2 RDPRIv 52 DIREITOS DA PERSONALIDADE de personalidade. Ademais, a tradicional dicotornia entre interesse público e privado adverte Perlingicri deve ser superada, na medida em que o interes se público, numa ordem constitucional que tem na dignidade humana o seu ccntro. consiste justamente na realização da dignidade da pessoa. o que, não necessariamente, coincide com um interesse dito “coletivo” — — .‘‘ 4. MEDIDAS E MODALIDADES DE TUTELA Os interesses postos em causa nas situações envolvendo a publicação de biografias não autorizadas podem ser tutelados de formas distintas e não so mente num momento patológico. Para além das medidas, deve-se pensar, tam bém. nas modalidades de proteção aos interesses em relevo nos casos. Como assinala Doneda. a respeito da tutela dos dados pessoais. pode haver comple mentaridade entre os diversos modelos possiveis de proteção, mesmo que um 69 eventual modelo ocupe posição dominante no sistema de tutela. A análise da jurisprudência, especialmente nos casos em que se conferiu tutela aos direitos da personalidade do biografado. indica serem comuns as medidas pre entivas de suspensão da circulação da obra, ou apreensão de exemplares já postos ou prestes a serem postos em circulação. Ainda mais co° — seja 7 muni é. num momento posterior a publicacão. a medida reparatória porque a obra já chegou a conhecimento publico e e inutil proibir a comercia ljzação, seja porque se prefere, na linha do Enunciado 270, adotar medidas que privilegiem a publicação. Com efeito, urna leitura ainda pouco dctida do capítulo do Código Civil dedicado a disciplina dos direitos da personalidade parece indicar, quanto às medidas de tutela, um prestígio ao remedio indenizatorio. No entanto, ao que se lê do proprio art. 12, não so em perdas e danos resolvem-se eventuais lesões; cuida-se também da possibilidade de se “exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, (...) sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. E, quanto ao direito a imagem, o citado art. 20, por sua vez, lambem trata da possibilidade de proibição do uso da imagem, “sem prejuízo da indenização que couber’. — — 08. PeRusco-lu, Pietro. (. cit., p. 143. ,rivocidaLlc a pwtccoo dc LIadOs pessoais. Rio de Janeiro: Rcno\ ar. 59. Doro . Dando. Do 1 2006. p. 362. 70 A questão do ressarcimento, alias, constitui problema que mereceria um estudo pro prio, ou analise mais aprofundada, especialmente no que respeita aos criterios utili zaclos para o arhitrarnen lo. Medida também possível, mas incomum e polêmica (mesmo perigosa), é a intermediária solução entre a permissão (indenizada) e a proibicão total da pu blicação: a restrição parcial no conteúdo da obra. A solução esbarra não só no risco caracterizar verdadeira censura. mas tambem no de encarar-se qualquer restrição como suposta censura (ainda quando não o seja), lançando dúvidas sobre a legitimidade da medida. Além disso, é razoável imaginar que a determi nação de cortes parciais pode comprometer a integridade da obra. O problema não é simples. É ossível que eventual supressão, por pequena que possa parecer, sacrifique toda a narrativa, desfigurando ou mesmo inviabi lizando a biografia. Por outro lado, pode ser que se esteja diante, no caso con creto, de um falso dilema, que pode ser ultrapassado com o recurso à razoabili dade — a titulo de ilustração, pode ser viável preservar a obra e a privacidade da pessoa lesada (um terceiro referido na obra, por exemplo) através de medidas intcrmedias, como a alteração apenas no nome utilizado, por exemplo. ’ 7 É de se pensar, ainda, na possibilidade de o biógrafo, diante de uma poten cial modificação em sua obra, sentir-se lesado na condição de autor, ao ter de modificar a biografia por ele elaborada — afinal, uma biografia não consiste em mero apanhado de dados históricos objetivos, mas em criação intelectual. A análise, entretanto, não pode ser feita em termos abstratos. Mais urna vez, fundamental o exercício de ponderação, realizado no caso concreto. Não nos parece adequado. contudo, atribuir ao magistrado poderes que ultrapas sem o de determinar, por exemplo, ligeiras supressões ou substituição de no mes, para descambar na alteração efetiva no conteúdo. Não cabe ao magistra do reescrever a obra; esta, parece, e tarefa reservada ao autor — em não sendo possivel. seria então o caso da medida aparentemente traumática da proibição da publicação. Como se vê, não há remédio único, cabendo ao juiz ponderar não apenas no momento de decidir que interesses merecem tutela, mas também no de de finir que medidas revelam-se, no caso concreto, mais adequadas à proteção da personalidade — à luz, é claro, do pleiteado pelas partes. 71. Cite-se, por exemplo, o caso de ‘XV. (por sezes referida por outros pseudônimos, como “Suzanne Bowen”), companheira da poetisa Elizabeth Bishop, Segundo se tem noticia, depois de conturbada ruptura, ela obteve na justiça americana o direito de não ter sua identidade (traduzida, de maneira simplista, como seu nome) menciona da nas cartas, relatos e demais escritos sobre a vida da festejada autora americana (cf. Toujio, Roberto Pompeu de. Uma casa para Elizabeth. Revista Piaui, n. 59, p. 59). A medida e semelhante ao procedimento adotado em processos envolvendo menores de idade, por exemplo. 61 62 REvIsTA DE DIROTO PRIvADo 2012 • RDPRIv 52 DIREITOS DA PERSONALIDADE Além disso, deve-se ter cuidado com uma preferência por sanções a pos teriori, na medida em que isso equivaleria a “atribuir um preço a intimidade do biografado, com efeitos bem mais nefastos dq que se pode perceber a 72 E vale novamente a ressalva: e preciso ter cuidado para não cairprincípio”. -se na armadilha de, em vez de contar uma historia, fazer apenas um elogio 75 e das quais participem. de preferência, não apenas cdi literário ou artístico, toras. É saudável que as iniciativas envolvam também os autores, que podem ter interesses distintos a serem tutelados, contribuindo para um debate mais completo. O incentivo à autorregulação, portanto, parece uma possibilidade util para a questão não única, é verdade evitando disputas judiciais, nor malmente demoradas e custosas. — —, 73 da vida privada. Embora se note, atualmente, especial atenção dedicada ao art. 20 do CC/2002, a ideia de que a mera alteração no texto legal pode solucionar de vez o conflito entre os interesses em questão parece, senão míope, ao menos ingênua. E bem verdade que a alteração legislativa pode ser util, não apenas por conferir certa sensação de segurança, mas também por prescrever de forma mais incisiva parâmetros interpretativos impondo ao juiz o exercício da ponderação. Como se disse, atualmente ha dois Projetos em tramitação no Congresso Nacional com vistas a modificar o dispositivo. Há quem elogie a iniciativa, que permitiria forjar um ambiente de segurança jurídica. Os Projetos, contudo, limitam-se a permitir obras de conteudo biografico a respeito de pessoas com dimensão publica ou insei’idas em acontecimentos de interesse da colrtividade: “erram, portanto. o alvo” Alem disso, os modelos de tutela não se esgotam. ou não devem se esgotar, na via legislativa. Assume particular importância o papel da autorregulação, como eficaz complemento e suporte a regulação estatal. Deve-se estimular a criação de um arcabouco deontologico definido, com a criação de regras especificas para o setor (especialmente, aqui, o editorial) e, quem sabe, também sanções disci plinares; um codigo de conduta elaborado por quem lida com esses problemas cotidianamente e conhece de perto as características e dilemas proprios da a ‘co como ja oco re, por exemplo, no âmbito ela publicidade ou da imprensa E útil, ii e usive, o estimulo a criacão ou a consolidação de entidades re presentativas que congreguem os principais agentes desse tipo de segmento 5. As BIOGRAFIAS PÓSTUMAS A PROTEÇÃO POSTMORTEM DOS DIREITOS DA PERSONALI DADE Os problemas que as biografias não autorizadas suscitam revelam-se, mui tas vezes, ainda mais dramáticos dluandlo o biografado e falecido ou ausen te. Trata-se, aliás, de hipótese, em regra, mais comum, quando se considera o papel histórico desempenhado pelo gênero em questão. Afora as dificul dades práticas normalmente enfrentadas pelos biógrafos. que muitas vezes se veem às voltas com as idiossinerasias e suscetibilidades de herdeiros,7b as biografias póstumas desencadeiam ainda outras delicadas questões essen cialmente no que respeita ao tratamento conferido à proteção post mortein dos direitos da personalidade. — ( ‘sara. \ndeon. Op. a.. p. 14I. eja-se ainda’ BsRIcur. Luis Robcra’. Op. rit p 91. 7 . — — O tema também se liga, no fundo, com a questão de se saber como seremos lembrados depois da morte. Por vezes, por tras da preocupação dos biografa dos ou de seus herdeiros com a utilização de sua imagem, ou de sua his toria, na narrativa biográfica, reside a tentativa de controlar ou de certa forma modelar sua trajetória aos olhos do público. 77 A indagação, que possivelmente — — 75. Veja-se, por exemplo, o exemplo do ativo Conselho Nacional de Autorregulação Pu blicitaria (Conar). 76. Dai o popular e tragicômico conselho dado a autores que se encorajam a traçar a biografia de pessoa ja falecida: Matc a \‘iuva” (Bitora, Mary Sarah. Op cit., p 348, trad. livre). — j 77. Parece ser essa a razão (ao menos a principal razão) pela qual Anita Leocâdia, primogemia de Luis Carlos Prestes, queixou-se da pubhcaçao de imagens de seu pai em cenas mais pessoais’ cenas, a rigor, banais para pessoas comuns. Anda contrapôsse à vi uva do hder comunista, Maria do Carmo Ribeiro Prestes, que doou ao Arquivo Nacional cartas, fotos familiares e outros objetos relacionados a Pres les. Nesse contexto, vieram a público aspectos menos conhecidos da embiematica figura como imagens de Prestes sentado descontraidarnente sobre uma cadeira de praia, em trajes de banho. A imagem destoa da figura austera do Luis Carlos Prestes em sua feição politica, como a conhecemos, motivando as reações da her — Com eleito, parece comun a tentação ele querei er a trajetoria pissoal narradi scfli aspectos uchatis o ou sem matizes riu possam sei negati\ amcnt sist s pela socie dada. Fxtmplo dessa postura se nota na declaraçao de Agnes. uma das herdeiras de ‘ au pudesse fazer uni e”pui go e publicar si 70 cosas que irita’ e Goiina”aes Roa. 5 do diario, a: pihliaa ia. zs as picuinias, os di:-que-me-di:, na’ Cd ti: os assanr FIel Op. et, p. 19). resaln . Se usam: a Ande ‘ou. Op. Cl, .,p. ‘1 — cleira de Prestes. O exemplo sers e para ilustrar como os embates cm olvendo obras 63 64 REVISTA DE DIREITO PRIVADO 201 2 • RDPRIv 52 passa pela cabeça de muitos, embora seja primariamente um assunto extrajurí dico (filosófico, até), pode vir a merecer a atenção e a tutela do Direito, como 8 se verá a seguir.’ DIREITOS DA PERSONALIDADE Mais apropriado seria, como bem aponta Schreiber, ampliar a legitimação para qualquer pessoa legitimamente interessada e interesse legítimo, aqui, apurado nas situações concretas. A medida permitiria uma tutela mais ampla dos direitos de personalidade do falecido sobretudo o de imagem. Deve-se reconhecer, contudo, que a possibilidade de que terceiros invistam-se na posição de interessados poderia estimular, não propriamente uma pro teção mais efetiva, mas a busca por satisfação, por vias obliquas, de interesses puramente econômicos, associaos a uma eventual indenização. A essa possi bilidade reage-se. porem. com a preocupação, de um lado, de que o magistrado tente, quando possível e mais efetivo à proteção da personalidade, recorrer a outras medidas que não (apenas) a reparatória. De outro, com iniciativas com vistas a esvaziar de motivações (puramente) econômicas a iniciativa judicial da tutela dos atributos da personalidade do morto.’ Alvo de merecida crítica e, tambem, o “erro de perspectiva” do legislador, ao adotar, na tutela dos direitos da personalidade, um viés típico do direito das sucessões, de cunho essencialmente patrimonial 80 reforçando, a rigor, a postura, não rara, voltada apenas para os interesses econômicos relativos à exploração da obra biográfica. Aliás, não raro se nota, em disputas envolvendo a utilização de imagem de pessoas falecidas, a confusão entre interesses deste e os de seus herdeiros, os quais por vezes, a pretexto de suposta violação à mernoria do de cujus, por vezes pleiteiam em nome deste uma proteção a inte — — 5. 1 A questão da legitimidade Os direitos da personalidade são, entre outras características, intransmis síveis. Não significa, porém, que cessa a proteção, por exemplo, a imagem da pessoa que morre. O legislador, contudo, não transmite aos herdeiros os direi tos de personalidade para que, em nome proprio, pleiteiem sua devida tutela; há apenas uma atribuição de legitimidade para a atuação em defesa da memória do falecido. Verifica-se, na disciplina legal conferida à proteção post mortcm dos direitos da personalidade, uma incoerência legislativa. Isto porque o legislador, aparen temente sem especial razão, exclui no parágrafo único do art. 20 o colateral do rol e legitimados (genericamente previstos no art. 12 do CC/2002). Mais criticável ainda, contudo, é a restrição estabelecida quanto à legitimi dade para promover, judicialmente, a tutela dos direitos de personalidade do morto o “cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou co lateral até o quarto grau”, segundo a dicção do parágrafo único do art. 12. ou “cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”, nos termos do paragrafo único do art. 20, No entanto, em se tratando da defesa de direitos da personalidade do falecido, a restrição parece excessiva, sem razão que a justifique. — — resses particulares. 5.2 Ocaso Estrela Solitária de caráter biografico estão cercados por interesses (por vezes diversos) cm torno do controle de uma determinada memoria, de uma determinada reputação: “Para Anita, Prestes será eternamente ‘a expressão maxima da luta revolucionaria pelo socialismo e o comunismo’. Para Maria, alcm disso, o pai dc seus filhos. o chefe da casa” (OlAsio, Chico. As delicadas relações entre os herdeiros de Prestes, O Globo, Cad. O Pais. 15.01.2012). 78. Sobre o chamado controle da reputação post mooern, confira-se, ainda, a obra de Ra>’ Madoff, especia’mente o capítulo sobre o controle de reputações, em que a autora trata da proteção a privacidade da pessoa apos a sua morte, apontando ainda as cli ferenças entre os sistemas juridicos dos Estados Unidos e da Europa (Mniorr, R. O. Inunortalitv and time 1(1w: the rising powei’ of time Amei’ican k’ad. New HavenlLonclon: Yale University Prss, 2010). Como lembra a autora, a reputação é dificil de ser con trolada, por ser produto de uma amplitude de informaçoes. A autora aponta ainda como a tradição americana, diferentemente da europeia (e da brasileira) não tutela a privacidade da pessoa apos a morte: “If offspring and relati\ es are upset, their remedy is to respond sith ihe true” (idem. p. 125). Nesse cenario, recorre-se a figuras como a do “right of publicitv” americano, ou ao direito autoral. Caso emblemático, no contexto da proteção post mortcm dos direitos da personalidade, é o da biografia do ícone do futebol, Garrincha, Estrela Solitá ria. O livro, escrito por Ruy Castro sem a autorização das herdeiras do jogador, rendeu uma disputa juchcial que se arrastou por anos. Alegando \‘iolacão ao 79. E o caso, por exemplo, da sugestão de atribuirem-se “os frutos pecuniarios de even tual indenização por dano a personalidade do morto a associações bencficentes de que o morto fosse associado ou com as quais guardasse algum vinculo juridico ou de afinidade” (ScHREIBER, Anderson, Op. cit.. p. 147-148). 80, Confira-se a critica.’” A privacidade, a imagem, a honra da pessoa não são ‘coisas’ qe se transmitam por herança. São diieitos essenciais cuja proteçao e inteiramente distinta daquela reservada ao Patrimônio. Solução mais adequada seria ter deixado as portas abertas a iniciativa de qualquer pessoa que tivesse interesse legitimo’ em ver pi’otcgida, nas circunstancias concretas, a personalidade do morto” 1 SC1IRFIFiER. ndcrson, Op. cit,. P 65 REvRTA DE Dmno PRvADo 2012 66 8 Dotiros DA PER50NAUDADE RDPaiv52 direito de imagem, ao nome, a intimidade, a honra”e a vida privada, as herdei ras sustentavam que a obra “execrava” a memoria do pai, e pleitearam vultosa indenização, a titulo de danos morais e patrimoniais. flexível, atenta aos interesses em jogo e às diversas circunstâncias a permear o caso concreto. Como adverte Tepedino, “a privacidade é direito casuístico por excelência, suscitando, por isso mesmo, proteção que seja dúctil”. 84 Causaram-lhe especie, principalmente, os trechos que faziam referência à relação de Garrincha com o alcool e as mulheres fatos e façanhas que, embm ra contrariassem, talvez, os pudores das herdeiras, eram não apenas de conhe cimento publico, mas mesmo alardeados pelo proprio jogador, quando vivo. Mais uma vez, demonstra-se a necessidade de apreciar-se o caso com os olhos postos na visão de mundo do biografado, e não dos legitimados que agem em seu nome. Buscou-se, aqui, lançar alguns feixes de luz sobre o problema e os diver sos interesses normalmente postos em causa nas situações envolvendo a pu blicação de biografias não autorizadas. A análise ora empreendida revelou o fundamental papel da ponderação e a necessidade de superação de armadilhas conceituais, como a de supor map importante, abstratamente, o valor da liber dade de expressão — No TJRJ, as herdeiras obtiveram vitoria parcial, tendo reconhecido direito 81 A decisão, apertada, levou a oposição de à indenização por danos morais, embargos infringentes, em que se admitiu a existência não de danos morais, mas apenas patrirnoniais, arbitrando-se indenização no valor correspondente a cinco por cento sobre o total do preço do livro a ser apurado em liquidação. A 82 decisão foi por fim mantida pelo STJ. Ë verdade que a discussão sobre a intransmissibilidade dos direitos de per sonalidade era, então, mais candente lembre-se que regia o caso o Codigo Ci vil de 1916, omisso quanto à disciplina dos direitos da personalidade. De todo modo, vale lembrar que o TJRJ reconheceu expressamente o caráter intrans missivel dos direitos da personalidade e que a hipótese era de legitirnacão legal para defesa da imagem e da honra da pessoa falecida, Mas o tribunal carioca lembrou que é possivel que os sucessores tenham interesse, também para agir em nome propno, quando a imagem do falecido projeta efeitos econômicos para além de sua morte, ’ 8 6. CONCLUSÃO Passadas mais de duas decadas desde a promulgação da Co stituição demo tica e quase uma decada da piomulgacào do novo Cocligo Civil, os contor mos do direito à privacidade e da liberdade de expressão/informação são cada vez menos rigidos as situações de colisão exigem uma analise igualmente e — 81. TJRJ AC 2001.001 02270, 2. Câm Civ, j. [7.07.2001, ma., rei. Des. Cusiavo KL1hI Leite. 82 STJ, REsp 521.697/RJ, 4. T., j. 16.02.2006, s.u., ic[. Mm, C csar Asfoi Rocha 83. TJRj, EI 2002.005.00058, 2. Cam. Civ., j. 15.05.2002, iho, Ernentario 26.2002 ii. 22 12.09.2002. iel. Diante do delicado conflito entre privacidade e liberdade de expressão, quando se trata de contar para o público a história da vida privada, revela-se importante a atuação do intérprete. Por ai já se vê como também é preci so empreender o esforço de não apenas identificar, mas tambem sistematizar critérios interpretativos que guiem, além do magistrado, os demais agentes envolvidos nesse tipo de situação (editoras, autores etc.). Afinal, é justamente nos casos mais nublosos que uma ponderação criteriosa se revela particu larmente relevante. Mas é preciso ter em mente, como se disse, que a mera falta de autorização da pessoa retratada ou de seus herdeiros não é, por si só, impeditivo da publicação de obras biográficas como já não é impeditivo de publicações jornalísticas. — Além disso, os modelos de tutela não se esgotam numa única via. A legisla ção não pode nem deve exaurir a questão, embora possa, é evidente, servir na tarefa de apontar critérios, mesmo que para assegurar um mínimo de seguran ça jurídica. l possível evitar, com isso, embates judiciais contraproducentes, resguardando-se ainda a coerência e mesmo a sobrevivência de um gênero lite rario. Talvez seja, ao menos, um aceno em direção a alguma segurança jurídica um alento, no atual ambiente de ainda total desorientação. 7. Buoo Elien; KLNNFm, Caroline. Privacy v. lhe Press. The right to privacy. Nova York: Vintage, 1997. AMoRrvl,Jose Roberto Neves. Direito sobre a historia da própria vida. Revista dos Ii3bunais. vol. 749. p. 124-133. São Paulo: Ed. RT, mar. 1998. BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da perso nalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente ade ALDFRMAN, Dcs. Sergio Cavalieri Ei 84. Tsproiao, Gustavo. 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