o1 de novembro de 2010 Golegolegolegoelgah! Marcio Renato dos Santos Pela janela tudo são gotas que caem sem parar nesta tarde cinza. A cidade está encoberta por nuvens. Aqui, do décimo quarto andar, não vejo o asfalto lá embaixo. Isso não é ruim. Imagino que ninguém me veja, o que é razoável. Tenho saído cada vez menos deste apartamento, apesar de sentir uma vontade cada vez maior de circular pela cidade, de gritar e dizer que estou cansado de tudo, mesmo não fazendo nada. Vivo em Goiânia, mas a informação pode ser falsa. Não acredite em tudo o que estou dizendo. Posso estar em Maringá, Florianópolis, Caxias do Sul ou Campinas. Que diferença faz? Vim aqui pra me esconder. Dos outros e principalmente de mim. Nasci, cresci e parecia estar condenado a permanecer por toda a existência em uma mesma cidade. Mas fugi. Lá, mesmo em liberdade, me sentia dentro de uma prisão. Aqui a sensação não é muito diferente. A cada 15 - Marcio Renato dos Santos Pode esperar uns instantes? Vou até a cozinha. Estou com sede, preciso beber água. Na realidade, levanto da cadeira e caminho por outro motivo. Por que comecei o texto sem saber pra onde ir? Agora, quero pensar um pouco. Já estou na sala. Ligo o som. Desligo. Se eu ouvir uma canção, é capaz de eu seguir na mesma onda do texto do cantor. Um tema instrumental pode fazer com que eu abandone este texto para ficar apenas ouvindo, ouvindo e ouvindo. Tudo era limitado na cidade onde nasci. Tive notícias de que muito mudou durante esses anos, depois que abandonei aquele lugar. Mas quando eu vivia lá, só havia espaço pra uma pessoa atuar em determinada área. Só tinha um pintor, um arquiteto, um jornalista, um cirurgião, um delegado, um poeta, um professor, um cozinheiro e assim por diante. Quando cheguei no planeta, já não havia mais oportunidade pra eu fazer nada. Havia sim apenas uma opção, sobre a qual falarei daqui a pouco. No entanto, o problema maior era que apenas uma única família dominava toda aquela terra. Muitos, como eu, também tentaram fugir. A maioria foi capturada e teve um final trágico. Lembro, mas queria esquecer, que tudo naquele lugar era vigiado. Toda carta, conferida. Ninguém entrava ou saía da cidade sem pedir autorização. Os donos daquele pedaço de terra mandavam e desmandavam em tudo. Até os casamentos dependiam do sim, ou do não, dos humores dos sujeitos daquela família que controlava do consumo de pão ao vocabulário permitido nas ruas. Um dos homens da família mais rica da cidade se deitava com todas as mulheres quando elas completavam 19 anos. Até e principalmente com noivas. Solteiras, casadas e viúvas também eram obrigadas a passar pelo menos uma noite na casa grande. Não havia segredos naquela terra. Uns diziam que o nome da cidade era inferno. Agora vivo em outro local, mas tenho medo de circular. Tem um bar ali embaixo. No térreo. Ás vezes almoço o prato do dia, bebo duas ou três cervejas, o dono puxa conversa, apenas sorrio. Não quero falar nada. Quando perguntam onde nasci, mudo de assunto. Estou bem assim, sozinho. Evito problemas. Tenho dinheiro, que entrou na minha vida por engano ou acaso. Guardei quase tudo e pelas contas que fiz dá e sobra pruma uma vida de 90 e tantos anos. Não fiz nem 50 e não preciso mais trabalhar. Mas tenho me cansado dessa folga e desse silêncio, que era tudo o que eu buscava naquele tempo barulhento daquela cidade onde nasci e de onde sempre quis fugir. o1 de novembro de 2010 Vou interromper novamente a narrativa. Comecei faz seis parágrafos e já estou com vontade de encerrar. Ah, não me apresentei ainda, ou já? Mas, faz diferença dizer que o meu nome é Abel, Douglas, João, Marcio, Noel, Salomão ou Tavares? O nome, onde estou, de onde vim, o que vivi ou suponho ter vivido, tudo isso é secundário ou mesmo irrelevante. Será que coloco um ponto final no texto? Já estou no banheiro. Abro a torneira. Molho o as mãos. Olho no espelho. Isso que vejo não pode ser o que penso que sou. Isso, o que está fora do espelho, deve ser ficção. Aqui onde estou agora, se é que estou mesmo aqui, não tenho certeza, mas este lugar também parece ser controlado, nem tanto como aquele povoado onde nasci. Lá, os donos de tudo, que eram poucos, sabiam o que os outros todos comiam, bebiam, se cantavam, brigavam ou faziam planos. Aquela pequena família poderosa estimulava o ódio entre a comunidade, não sei de que maneira. Mas o fato é que vizinho desconfiava de quem vivia do outro lado do muro, trabalhador alimentava ódio em relação a seu colega de trabalho, filho articulava o extermínio do pai, e parecia até haver um ambiente propício para eliminar as mães. Chega. Quero interromper a narrativa. Será que paro agora? Não. Ainda vou seguir, nem que sejam apenas mais dez parágrafos. A lembrança do passado faz com que eu tenha vontade de matar os donos do local de onde vim. Mas nem isso posso fazer. Anos depois que fugi, houve uma revolta e mataram, com gestos violentos, todos os integrantes da família que comandava a cidade. Dizem que enterraram o patriarca ainda vivo. Mas enquanto estiveram no poder aqueles sujeitos provocaram muito estrago. Lembro que eles exigiam até exames de sangue de toda a população para saber quem consumia carne de porco em excesso. Inventaram necessidades absurdas, que endividavam a todos e isso inviabilizava uma eventual tentativa de fuga. Uma noite, sem avisar, fiz uma visita. Sim, retornei ao local de minhas origens. Poderia ser preso, mas me disfarcei. Mudei a cor dos meus cabelos, coloquei óculos escuros. Caminhei pela rua principal, dei uma volta pela praça, mas tive de evitar qualquer contato. Passei até pela rua da casa de minha família, onde nasci e cresci. Mas antes do amanhecer, já tinha saído daquele lugar, pra onde não pretendo voltar. Que vontade de parar esse texto e sair, beber um, dois, três ou mais goles de cerveja, e contar isso que tento escrever prum desconhecido. Isso mesmo. Talvez se eu falasse, numa dessas passava a vontade, sumia o impulso e eu me resolveria de vez. Já não estou mais sentado digitando o texto. Chego A cada 15 - Marcio Renato dos Santos na cozinha, abro a porta da geladeira. Só tem água. E essa sede de cerveja. Olho pra esta, praquela e pra outras janelas, agora o tempo está nublado, mas quando tem sol ou pelo menos quando não tem nevoeiro, é sempre a mesma paisagem. Nem poderia ser diferente. Mas é que não saio daqui. Estou com vontade de colar nos vidros umas reproduções que tenho de quadros de Van Gogh, Munch, Picasso e outros. É que cansei de ver as mesmas imagens de todo dia, do que passa e até do que parece não passar lá embaixo. A vida não deve ter graça lá, mas aqui em cima tudo também é muito chato. Vou contar algo que preferia esquecer. Tem noites, e mesmo tardes, em que acordo, pulo da cama e corro em direção ao computador. Começo a escrever sem parar, e penso que não tenho controle sobre o que digito. Não reviso. Depois dou um tempo de uma ou duas horas. E é sempre o mesmo texto. O mesmo que escrevi há dez anos, semana passada, ontem, hoje, este, o que você está a ler. Vim para cá por que aconteceu um erro. Recebi um dinheiro que não era pra mim. Mas não reclamei. Não falei nada. Muita grana. Uma herança que se desviou de seu destino. Subornei umas poucas pessoas e, somente assim, consegui sumir daquela terra de onde nasci. Desde então, nunca mais tive de fazer nenhum esforço pra conseguir comida, bebida, repouso, brisa e sobremesa. Mas faço sim alguma força para viver. Afinal, cansa não fazer nada, sabia? Vou contar outro fato, se é que não falei anteriormente: só escuto uma canção. Isso mesmo. Uma única música. Não vou falar qual é. Também só leio e releio um livro. Tenho e uso modelos de uma mesma calça, e isso vale para camiseta, blusa e sapatos. Não surpreende, nem a mim, ou a qualquer pessoa, o fato deu beber apenas água e vinho. Surpreende? Acima de tudo, escrevo e reescrevo todos os dias, já faz tempo, este texto, mas isso eu havia comentado há uns parágrafos, não é mesmo? Olho praesta, praquela e proutras janelas, e os meus olhos começam a cansar de tanto ver as mesmas imagens. A minha cabeça dói. Meus dedos também, de tanto escrever, apagar, reescrever, apagar de novo, e assim todo dia, toda tarde, toda noite, uma insônia permanente, um sonho que não termina ou como chamar isso aqui, alguém tem uma pista? Já não estou mais sentado digitando o texto, caminho pelo corredor do apartamento e lembro que fugi da cidade onde nasci num momento de mudança de tecnologia. Será que foi quando a máquina de escrever foi substituída pelo computador? Ou na época em que dizem que o jornal o1 de novembro de 2010 impresso iria acabar? Não lembro, faz tanto tempo e tenho apenas a certeza de que escapei de um processo de adestramento pra fazer as velhas tarefas de umoutra maneira. Vivo em Goiânia, Maringá, Florianópolis, Caxias do Sul ou Campinas? Faz diferença saber onde? Se me chamam de Abel, Douglas, João, Marcio, Noel, Salomão ou Tavares é uma questão? Pela janela tudo são gotas que caem sem parar nesta noite. Ou já amanheceu? A cidade ainda está encoberta por nuvens? Aqui, do décimo quarto andar, vejo o asfalto lá embaixo. Acho que vou dar uma volta. Sim. Circular pela cidade. Se algum funcionário do departamento de controle solicitar meus documentos, terei problemas, mas tudo está muito calmo e começo a sentir falta de tremores de terra. Marcio Renato dos Santos, curitibano, acaba de ter publicado o livro de contos Minda-Au, pela Ediora Record. Marcio tem 36 anos, vive dos textos que escreve, é jornalista da Gazeta do Povo e lê e escreve enquanto cuida de seu filho Vitor, que tem 2 anos e gosta de Beatles e dos sons do Carlos Santana, Cartola e da cantora Céu. Golegolegolegoelgah! é um conto inédito.