ARTE OU IMAGEM NA IDADE MÉDIA? UM DEBATE NO CAMPO DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Terezinha Oliveira1 - DFE/PPE/UEM Meire Aparecida Lóde Nunes2 - UNESPAR Sandra Regina Franchi Rubim3 - PPE/UEM Grupo de Trabalho: História da Educação Agência Financiadora: CNPq e CAPES Resumo Este texto tem como objetivo refletir sobre as diferentes intepretações da denominação dos objetos visuais na Idade Média. A proposta é construída pela observação de que não há um consenso entre os estudiosos da área com relação a sua definição, bem como a utilização do conceito imagem e Arte no Medievo. Supomos que os diferentes termos que definem os objetos imagéticos podem ser compreendidos como reflexo da capacidade interpretativa presente nos homens e não uma especificidade do objeto. Consideramos que, assim como a própria criação dos objetos visuais, as tentativas de teorizá-los constituem um fenômeno social relacionado com a totalidade da existência humana e aos processos históricos. Dessa forma, a construção de uma interpretação acerca de seu conteúdo, ou de sua denominação, pode ser entendida como os sentidos e significados criados por meio de diferentes analogias provocadas pelo objeto e as experiências individuais/coletivas pertinentes ao contexto histórico vivido. Nessa perspectiva, estudar as denominações dos objetos visuais nos aproxima das preocupações da História da Educação, que apresenta como uma de suas questões a compreensão do processo educativo por meio das ações sociais. Assim, destacamos que nossa abordagem se situa nas esferas da História Social e da História da Educação, as quais têm como uma de suas finalidades o estudo das origens das instituições, 1 Pós-Doutorado em Filosofia da Educação: Departamento de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Professora do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutorado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Bolsista do CNPQ-nível 2. Líder do Grupo de Pesquisa: Transformações Sociais e Educação nas épocas Antiga e Medieval (GTSEAM). E-mail: [email protected] 2 Doutora em Educação: História e Historiografia da Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professora da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), campus de Paranavaí. Grupo de Pesquisa: Transformação Social e Educação na Antiguidade e Medievalidade E-mail: [email protected] 3 Professora do curso de Pedagogia da Faculdade de Astorga (FAAST) e professora de História na Educação Básica. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (PPE/UEM). Mestre em Educação pelo mesmo Programa. Linha de Pesquisa História e Historiografia da Educação. Grupo de Pesquisa: Transformação Social e Educação na Antiguidade e Medievalidade. E-mail: [email protected] ISSN 2176-1396 5747 dos conteúdos e dos pensamentos que permeiam a esfera da educação. Essa trajetória metodológica nos oferece a oportunidade de compreender as produções humanas, em especial a Arte e a Educação, como resultantes das múltiplas vinculações sociais e não da ação de indivíduos isolados, independentes do contexto que os cerca. Palavras-chave: História da Educação. Idade Média. Arte. Imagem. Introdução Com a expansão do capitalismo no Ocidente, em fins do século XIX, constata-se a união de, em uma mesma teia de relações, povos diversos cujas especificidades observam-se nos diversos idiomas e formas peculiares de escrita. As transações comerciais e a industrialização aproximaram regiões, transpuseram oceanos e promoveram uma constante mobilidade de pessoas de um ponto a outro do planeta. Nesse panorama, nota-se que a revolução no conhecimento se concentrou não na escrita, mas no registro, reprodução e difusão de sons e imagens. A rapidez com a qual processamos informações visuais constitui um forte argumento em favor do uso das imagens na comunicação social. Vivemos em um mundo repleto de outdoors, de placas luminosas, de sons e imagens diversas. Nesse cenário, as imagens encantam-nos, seduzem ou passam despercebidas. A imagem, como uma linguagem visual universal, constitui-se em uma forma de entendimento afetivo do mundo. Nesse contexto, percebemos a circulação de pessoas, produtos e, principalmente, imagens, as quais nos transmitem, de forma explícita ou implícita, diversas informações e mensagens. Como temos que conviver, diariamente, com essa produção infinita, necessitamos aprender a avaliar esses elementos visuais, sua função, sua forma e seu conteúdo, suas especificidades, sua teorização, seus conceitos. Percebe-se que, no campo da Arte, não há consenso entre aqueles que se dedicam ao estudo de pinturas, fotografias, desenhos, esculturas. Podemos encontrar autores que usam arte, imagens, imagem-objeto e outros. Os diferentes usos constroem-se na tentativa de melhor expressar a sua compreensão sobre as especificidades do objeto. Dessa forma, as diferenciações que são apresentadas e que justificam nomenclaturas diversas, podem ser consideradas como reflexo da capacidade interpretativa presente nos homens e não nos objetos. Podemos ilustrar essa ideia por meio da explicação de Hegel (1996) sobre o belo natural e o belo artístico. Em relação ao conceito de estética, o autor afirma que estética é a 5748 filosofia, é a ciência do belo, do belo artístico, que exclui o belo natural. Para ele, o belo artístico é superior ao belo natural, pois o belo artístico é objeto do espírito (superior à natureza); tudo que passa pelo espírito é superior ao natural. Nesse sentido, o autor afirma que a Arte “[...] foi para o homem instrumento de consciencialização das ideias e dos interesses mais nobres do espírito. Foi nas obras artísticas que os povos depuseram concepções mais altas [...]” (HEGEL, 1996, p. 5). Para esse filósofo, o belo só assim é quando passa pela observação do homem. Caso contrário, não passará de um objeto. Do ponto de vista do autor, as diferentes representações pelas quais a arte se efetiva como a pintura, a escultura, a literatura, etc., contribuem e constituem-se no em elemento fundamental à sensibilização dos homens. De forma semelhante, podemos pensar sobre os objetos visuais, uma pintura somente será arte se olhada sobre essa ótica e o mesmo se aplica a imagem. O uso mais frequente de uma ou outra denominação pode ser devido a contemporaneidade daqueles que a aceita, mas existem interpretações diferentes entre os homens que vivem no mesmo tempo histórico e compartilham o mesmo grupo cultural. Nesse caso podemos supor que esses homens criam sentidos e significados por meio de diferentes analogias provocadas pelo objeto. A arte concebida como modo de ação produtiva do ser humano constitui-se como um fenômeno social e parte da cultura. Ela está relacionada com a totalidade da existência humana, conectada com o processo histórico e possui a sua própria história, a que correspondem estilos e formas definidas. Suscita questões de valor tanto na esfera coletiva quanto a existência individual, concernentes tanto ao artista que cria a obra de arte quanto ao contemplador que sente seus efeitos. Consideramos que um dos objetivos da História da Educação é entender o processo educativo por meio das ações sociais. Por isso, destacamos que nossa abordagem, nesse texto, situa-se nas esferas da História Social e da História da Educação, as quais têm como uma de suas finalidades a compreensão das origens das instituições, dos conteúdos e dos pensamentos que permeiam a educação contemporânea. Observamos que a imagem tem em si a probabilidade de transmitir a construção de uma interpretação de certo acontecimento e, concomitantemente, a projeção de uma intencionalidade daquele que faz o discurso. Podemos indicar que, em toda linguagem, escrita, falada ou imagética, há uma intenção de ensinar ou de aprender. Essa trajetória metodológica nos oferece a oportunidade de se compreender as produções humanas, em especial a Arte e a Educação, como resultantes das múltiplas 5749 vinculações articuladas pela dinâmica social, e não da ação de indivíduos isolados, independentes do contexto que os cerca. Assim, temos como o objetivo refletirmos sobre as diferentes intepretações sobre a denominação dos objetos visuais. Para tanto, dividimos nossa abordagem em dois momentos. Primeiramente introduzimos algumas informações sobre o conceito de arte e na sequência discorremos sobre a compreensão dos objetos visuais no período medieval. O sentido da arte: como teorizá-la? Ernest Fischer inicia o livro A necessidade da Arte com a seguinte frase de Jean Cocteau: “[...] A poesia é indispensável – se ao menos eu soubesse para quê [...]” (FISCHER, 1987, p. 11). Tomamos emprestada essa afirmação para ilustrar o ponto de partida de nossa reflexão sobre a ambiguidade inerente ao ato de pensar a Arte: Como uma coisa que não serve para a sobrevivência humana pode permanecer por tanto tempo na história do homem? A resposta a essa questão pode ser encontrada na argumentação de Cristo para negar os reinos ofertados pelo demônio, caso aceitasse desobedecer à vontade do Pai: “[...] Não só de pão vive o homem” (MATEUS, cap. 4, v. 4). A resposta de Cristo ensina-nos que há outras necessidades na existência humana e que estas ultrapassam as margens da materialidade. Procurando pensar a Arte e sua relação com as necessidades humanas para além da sobrevivência material do homem chegamos a seguinte inquietação: Sobre o que estamos nos referindo ao falar de Arte? Muitos estudiosos já se empenharam em responder a essa questão, mas os resultados nem sempre foram consistentes. Tampouco nós temos a pretensão de fazêlo. Comecemos por afirmar que o debate teve início no mundo grego antigo, onde vemos germinar o que, posteriormente, foi denominado de teorias da Arte. Pautando-nos nas proposições de Cauquelin (2005b) verificamos que no campo filosófico podemos encontrar as bases para a determinação dos domínios da atividade artística. Nesse sentido, Cauquelin (2005b, p. 17) afirma que: “No que diz respeito à arte, essa ação fundadora existe, pertence àquela atividade do pensamento que reinou na Grécia antiga e deu o poder de ação inicial à razão, à ciência, à sabedoria e à Arte, e que se chama filosofia”. Cauquelin (2005b) explica que essa ação criadora não surgiu pronta e explicitamente e que os filósofos se referiam esporadicamente a uma ou outra questão sobre a Arte. As abordagens concentravam-se no objeto e, obedecendo aos ditames metafísicos, visavam 5750 eliminar os acidentes de forma a identificar os princípios que poderiam distinguir o elemento artístico dos demais. Prevalecendo até o século XVIII e tendo Platão e Aristóteles como seus grandes representantes, essa forma de pensar a Arte foi denominada de teoria essencialista. Embora tenha permanecido durante muito tempo, essa teoria apresentava uma significativa lacuna. Moura (2009), nesse sentido, afirma que para os estudiosos dessa teoria: [...] na sua tentativa de impor condições a que os objectos teriam de obedecer para poderem ser classificados como obras de Arte e, ao mesmo tempo, pretender que a reunião de tais condições bastaria para transformar um objecto numa obra de Arte, todas as teorias essencialistas da Arte tendiam a ser ou demasiado exclusivistas ou demasiado tolerantes (MOURA, 2009, p. 6). A diversidade das atividades humanas não nos permitiria chegar a uma ideia geral. Teríamos sentidos ou significados para a Arte tanto quanto fossem as práticas concretas do fazer artístico. Produziu-se, assim, um discurso, uma preocupação sobre a natureza, os poderes, as funções da Arte. Com o advento do Renascimento verificou-se uma reflexão filosófica em torno da Arte, da qual tinha a apreciação da beleza como tema fundamental. Foi nesse período que ocorreu a união teórica do belo com a arte. Passou-se a valorizar, além do universo material, o sensível. Aumont (1993) destaca que Shaftesbury (1671-1713), pioneiro da estética, já falava que o belo se revelava, além das impressões visuais e auditivas, por intermédio de uma visão interior. Para ele, a dimensão do belo estava aberta ao espírito por meio da sensibilidade. O belo captado por intermédio da visão e da audição era relacionado imediatamente com uma ordem de sentimentos, de emoções. Dessa tendência, surgiu no século XVIII outro entendimento de Arte: o de que esta teria autonomia como área do conhecimento, como o comprova o uso do termo estética para se referir aos estudos em Arte. Foi nesse século, de acordo com Cauquelin (2005b), que se utilizou o termo Aestetica, pela primeira vez, como a ciência do sensível, relacionado com a percepção, os sentimentos e a imaginação. Nascia, assim, uma nova disciplina filosófica, responsável pelo estudo do belo e suas manifestações na Arte. Esse termo, estética, se estabeleceu de acordo com o sentido da palavra grega aisthesis, que significa ‘faculdade de sentir’ ou ‘compreensão pelos sentidos’; a palavra tem a mesma origem de aistheticon, que significa ‘o que sensibiliza’, ou seja, o que é sensível ou o que se relaciona com a sensibilidade. 5751 Cauquelin (2005b) salienta, porém, que essa designação da estética vem de longe, desde a Antiguidade. Seus elementos foram preparados no passado, constituindo-se como seu fundo genético antes de ser apresentado nesse século. Se aceita, pois, que ao século XVIII seja atribuída a gênese da estética como ciência da Arte e da Arte em uma dimensão autônoma, que permite desvendar nos seres e nas coisas certa inteligibilidade, “[...] na busca da verdade, do bem e do belo, as formas ou idéias que são a fonte e ao mesmo tempo o fim de toda a presença no mundo” (CAUQUELIN, 2005b, p. 31). O termo foi proposto, enfim, com o objetivo de abarcar diferentes pesquisas, ensaios, diálogos filosóficos que tinham por objeto as noções de belo, de estilo, de gênero. Primeiramente, restringiu-se ao estudo das sensações e dos sentimentos produzidos pela obra de arte. Empregado com esse conceito, o termo estética passou a ser relacionado com qualquer sensação proveniente dos órgãos dos sentidos. Rapidamente sofreu mudanças, passando a designar o estudo da fonte das sensações agradáveis concebidas pela obra de arte, ou seja, o belo. Propondo, assim, uma teoria da sensibilidade, Baumgarten apresenta a estética como substantivo, ou seja, uma área que pode acolher as pesquisas, reflexões e estudos que tenham como objeto a sensibilidade. Entretanto, o uso do substantivo estética não elimina a confusão a respeito da abrangência e das delimitações desses estudos. Para Cauquelin (2005b), mesmo que: [...] Baumgarten tenha tentado construir uma espécie de órganon do pensamento sensível com sua Aestetica (termo utilizado então pela primeira vez como ‘ciência do sensível’) e o de Kant com a Critique Du jugament de goût (uma teoria) tenha conferido uma base a esse conjunto fluido, o termo ‘estética’ mantém ainda um uso confuso (CAUQUELIN, 2005b, p. 14). Portanto, mesmo com a criação da estética, ou seja, de uma área específica para designar os estudos acerca da Arte, a imprecisão continua a permear as tentativas de teorizála. Talvez, essa dificuldade tenha contribuído para o surgimento, no final do século XX e início do XXI, de um movimento marcado pela anti-teoria da Arte. Segundo esse movimento, no qual constam nomes como os de Umberto Eco, Jean-Francois, Lyotard, Michel Maffesoli, Gilles Deleuze e Anne Cauquelin, o conceito de Arte como ‘feito a mão’ não é mais apropriado. Os ready-mades de Duchamp, como Roda de Bicicleta e A Fonte, são os principais exemplos dessa nova forma de pensar. A Arte já pode estar pronta, é o local onde ela é colocada e a capacidade do apreciador para estranhar o trivial que a constituem como Arte. Assim, Cauquelin (2005a, p. 98) lembra a proposição de Duchamp: “É o observador que 5752 faz o quadro” e explica que “[...] o observador faz parte do sistema que observa; ao observar, ele produz as condições de sua observação e transforma o objeto observado”. A obra de arte possui sentidos 4, ou seja, uma apreensão entre a intenção e o resultado, que, de imediato, mostram-se ininteligíveis, ocultos no seu interior. Entretanto, embora consideremos que o tempo, a história, os contextos sociopolíticos e culturais estejam, por questões históricas, distantes de nós, existe a possibilidade de se transpor esses obstáculos que perpassam acontecimentos tanto individuais quanto públicos. Introduzimos, assim, algumas informações sobre o conceito de Arte, pois, esse campo de pesquisa nos faz depararmos com uma gama de possibilidades. Na sequência, focando ainda o nosso objetivo - pensar sobre as diferentes intepretações sobre a denominação dos objetos visuais -, discorreremos sobre esses, fundamentados nos estudiosos de nosso período histórico selecionado, a Idade Média. Imagem ou arte na idade média? A história das representações na Idade Média foi marcada pelo embate entre as instruções de Deus à Moisés, bem como as palavras de Cristo aos homens. No primeiro caso, Deus teria dito: “[...] Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Ex 20, 4), e ainda declarou que a ele que “[...] Não fareis outros deuses comigo; deuses de prata ou deuses de ouro não fareis para vós” (ÊXODO, cap. 20, v. 23). No segundo, Cristo, quando surgiu para estabelecer uma nova aliança, afirmou aos homens: “[...] Quem me vê, vê o Pai” (JOÃO, cap. 14, v. 9). As interpretações de contradições como essas, que se multiplicam nas leituras do Antigo e do Novo Testamento, conduziram à aceitação ou à negação das imagens pelos cristãos, ou seja, às disputas iconoclastas5. Em razão disso, a aceitação das imagens no mundo Cristão Ocidental foi moderada. Bensançon (1997) explica que a Igreja, em especial os papas, “[...] tinham em vista sobretudo os ganhos em termos pastorais, as possibilidades que oferecia a imagem no sentido de educar e de empolgar a devoção” (BENSANÇON, 1997, p. 13). 4 Cauquelin (2005b, p. 95-96) define sentido como “[...] a apreensão de uma unidade entre intenção e ‘resultado’. O sentido é produzido, ele não habita simplesmente a obra bruta, ele é construído pelo trabalho de quem procura estabelecê-lo, tornando-o apreensível”. Nesse trabalho a compreensão é o fenômeno humano por excelência. 5 Sobre iconoclastia ver Bensançon (1997). 5753 Sobre esse assunto, Baschet (2006) ilustra o posicionamento da Igreja Romana, referindo-se ao Papa Gregório (590-604), O Grande, que, no ano 600, escreveu uma carta ao bispo Serenus de Marselha, recriminando-o pela destruição das imagens. A justificativa do Papa foi a da utilidade didática das imagens. Para ele, as imagens: [...] permitem aos iletrados compreender a história sagrada (‘nelas, podem ler aqueles que ignoram a escritura’). Elas são um substituto do texto sagrado, que implicam, como este, uma operação de leitura, mas desvalorizada pelo estatuto subalterno de seus destinatários. Desenvolvendo os propósitos de Gregório, os clérigos qualificarão muitas vezes as imagens, a partir do século XII, de letras dos laicos (litterae laicorum, litteratura laicorum). Mas isso autoriza a considerar as imagens medievais a Bíblia dos iletrados (BASCHET, 2006, p. 484, grifos do autor). O autor destaca o fato de que essa passagem, usada tradicionalmente para justificar a importância das imagens na cultural medieval, pode não ter tal abrangência, já que é apenas um recorte de carta. Segundo ele, é preciso entendê-la em seu contexto. O Papa Gregório viveu a preocupação com a conversão do pagão, por conseguinte, a legitimação das imagens se fazia com essa perspectiva e, como as Escrituras eram a grande autoridade, as imagens deveriam se aproximar delas. Todavia, o Papa tinha consciência das abrangências afetivas das imagens, o que fica explícito em outra carta escrita ao “[...] eremita Secundinus, na qual uma passagem acrescida no século VIII compara o desejo de contemplar a imagem sagrada ao sentimento amoroso” (BASCHET, 2006, p. 485). A tríade, com que os clérigos justificam a valorização imagética, sofre algumas alterações no decorrer do tempo, a exemplo de Honorius Augusto Dunensis, que apresenta mais uma razão: “[...] a necessidade de conferir às igrejas uma ornamentação digna de Deus (uma função que poderíamos qualificar de estético-litúrgica)” (BASCHET, 2006, p. 485). Contudo, o que se manteve como principal argumento era a função emocional que favorecia a fé fervorosa, a qual propiciava compreensões como a de Tomás de Aquino, que “[...] admitem até que a devoção é mais facilmente suscitada pelas imagens que vemos do que pelas palavras que escutamos” (BASCHET, 2006, p. 485). Dessa forma, as imagens passaram a ser cada vez mais valorizadas na cultura Ocidental, desenvolvendo-se nos séculos XII e XIII a ideia de que elas seriam transitus. O culto não é pela imagem, mas pelo que elas representam: o fiel pode contemplar o invisível pelo trânsito da imagem visível. Schimitt (2007), reportando-se ao século XII, assinala que a “[...] teoria da imaginatio renova-se numa ‘pneumofantasmologia’ em que se agregam saberes 5754 que só depois viriam a se separar: o da teologia mística, da cosmologia, da psicologia, ótica e medicina” (SCHMITT, 2007, p. 17). Nesse processo, de justificação das imagens, Baschet (2006) destaca que Tomás de Aquino “[...] dá o passo decisivo, afirmando que a imagem de Cristo merece a honra de latria tanto quanto o próprio Cristo: a partir daí o culto prestado à imagem torna-se inseparável do culto prestado ao protótipo que ela dá a ver” (BASCHET, 2006, p. 486). Desse modo, as imagens e seus cultos são justificados teologicamente, sendo importante frisar que seus significados, nesse momento, eram diferentes dos que observamos na contemporaneidade. Retomemos Schmitt (2007), nesse debate, no intuito de clarificarmos o entendimento de imagem. Para o autor, a ‘imagem’ seria: [...] a representação visível de alguma coisa ou de um ser real ou imaginário: uma cidade, um homem, um anjo, Deus, etc. Os suportes dessas imagens são os mais variados: fotografia, pintura, escultura, tela de televisor. Mas o termo imagem concerne também ao domínio do imaterial, e mais precisamente da imaginação. Não é necessário ver a representação material de uma cidade para imaginá-la (SCHMITT, 2007, p. 12, grifo do autor). Nesses termos, podemos inferir que o termo imagem pode ser considerado tanto na dimensão material quanto no mental. Observamos que a constituição de uma imagem mental e material é precedida por uma construção mental. O termo latino imago, que deu origem a imagem, tinha na Idade Média uma conotação mais profunda, relacionada com a própria designação do homem como imagem e semelhança de Deus. Reportamo-nos ao texto bíblico de Gênesis, no qual essa ideia se faz explícita: E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou (GÊNESIS, cap. 1, vs. 26-27). A imagem confere aos homens a superioridade sobre as demais criaturas de Deus, mas torna-se deformada quando o homem comete o pecado e cai. Nesse sentido, a queda afasta a imagem do homem da imagem de Deus. Schmitt (2007) declara que “[...] Devido a Falta, o homem encontra-se decaído, vivendo num estado de dissemelhança” (SCHMITT, 2007, p. 13, grifo do autor). As imagens medievais assumiram essa perspectiva de representar as dissemelhanças o que explica a grande produção de imagens da queda, da paixão de Cristo e do juízo final-. 5755 Representavam não a semelhança real dos fatos e, sim, no sentido de ‘presentificar’ a relação homem/Deus, uma epifania. As imagens agiam como mediadoras entre o invisível e o visível, tornando-se reguladoras da formação moral dos homens medievais. Schmitt (2007), nesse sentido, afirma que: “O mundo, a natureza, as instituições humanas, a própria vida moral são pensadas como reflexos, imagens refletidas por um grande espelho (speculum) [...]” (SCHMITT, 2007, p. 13-14, grifo do autor). Consideramos importante ressaltar que, apesar da distância entre o sentido da imago medieval - que caracteriza a relação entre o homem e Deus - e o da imagem contemporânea, aquela nos legou produtos materiais, objetos que atualmente estão inseridos em classificações de uma área denominada de Arte. A denominação de Arte medieval contempla um conjunto de imagens produzidas nesse período, as quais constam entre os produtos designados por imago. Portanto, quando o período é o medievo, por que não usar imagem em lugar de Arte? Schmitt (2007) auxilia-nos a compreender essa questão quando analisa a divisão feita por Hans Belting entre Arte e imagem (Bild e Kult), bem como apresenta seu posicionamento com relação ao uso dos termos. Belting separa a imagem medieval da Arte que, para ele, surge no início do século XV com o advento dos quadros. A partir desse momento, percebe-se um desenvolvimento cada vez maior das preocupações estéticas e profanas. Schmitt (2007) concorda com Beting por caracterizar quase totalmente as imagens medievais de acordo com sua função cultural, de forma a não negar a função religiosa e ritualística das imagens desse período. Todavia, ressalva que nem todas as imagens tinham esse caráter, assim como as imagens contemporâneas não estão livres dos ritos. Para o autor, as imagens modernas “[...] não são alheias a todas as formas de ‘culto’ religioso ou profano; a visita a um museu ou uma grande exposição de arte assume por vezes em nosso tempo o aspecto de um ato ritual ao qual a pressão social confere um caráter de obrigação” (SCHMITT, 2007, p. 44). Com efeito, a distinção com base na função ritualística parece não ser suficiente, razão pela qual é apresentado outro critério: o do valor estético. Esse argumento também não possibilita diferenciação porque é impossível negar que nas imagens medievais não havia Arte. Observemos, pois, a explicação do autor concernente a essa questão: mas, sobretudo, negar o valor de arte (Kunst) às imagens medievais apresenta muitas dificuldades. O preço dos materiais e do trabalho, o brilho dos dourados, das gemas e das cores, a afirmação da beleza da obra concorriam simultaneamente para engrandecer a obra de Deus e o prestigio de um rico e poderoso financiador: todas essas qualidades realçam o valor estético da obra, que era considerada inseparável de suas funções religiosas e sociais (SCHMITT, 2007, p. 44, grifo do autor). 5756 Diante dessas questões, o autor pondera que não é conveniente opor imagem à Arte, cabendo ao historiador considerar a função estética das obras – ou seja, as obras em si como Arte - e entendê-las em seu papel social, político e ideológico. Assim, ele não nega que tenha Arte nas imagens medievais, mas afirma que prefere usar o termo imagem para designá-las, porque isso atribui maior abrangência ao objeto. Essa ideia do autor deve-se à problemática a respeito da necessidade da relação unívoca entre época, imagem e função. Consideremos: por isso é que, de minha parte, prefiro usar também o termo imagem a propósito da Idade Média, não para opô-la ao termo arte, mas pelo contrário, para restituir-lhe todos os seus significados e ter em conta os três domínios da imago medieval: o das imagens material (imagines); o do imaginário (imaginatio), feito de imagens mentais, oníricas e poéticas; e enfim o da antropologia da teologia cristãs, fundadas numa concepção do homem criado ad imaginem Dei e prometido à salvação pela Encarnação do Cristo imago Patris (SCHMITT, 2007, p. 45, grifo do autor). Nesse excerto, percebemos o pensamento do autor a respeito de que o uso do termo imagem propicia um alargamento do trato com o objeto em comparação com a forma tradicional com que os historiadores da Arte o fazem. Para ele, sem negar a contribuição dos historiadores da Arte, é possível “[...] recolocar as imagens no conjunto do imaginário social, com suas implicações de poder e de memória [...]” (SCHMITT, 2007, p. 45). Nesse debate, torna-se pertinente inserirmos o pensamento de Baschet (2006). Esse estudioso do medievo, assim como Schmitt (2007), prefere usar o termo imagem. Segundo ele, a noção de Arte e Estética não é pertinente à Idade Média porque, nesse momento, os objetos não tinham uma autonomia estética. A justificativa de Baschet (2006) estende-se aos artistas, que não se distinguiam dos artesãos (artiex, opifex); mesmo que alguns fossem prestigiados, eram anônimos. Dessa forma, para ele, o uso o termo imagem é uma forma de fugir ao anacronismo que a Arte pode propiciar, embora isso não elimine os problemas com a denominação. a palavra imagem não deixa, entretanto, de apresentar perigos e seria lamentável se ela fizesse esquecer a dimensão estética das obras, pois existe, na Idade Média, uma atitude estética e uma noção do belo que são partes integrantes das concepções e das práticas das imagens (BASCHET, 2006, p. 281-282, grifos do autor). Ciente dos problemas que o uso apenas do termo imagem pode acarretar, esse intelectual propõe o conceito de “[...] imagem-objeto, quer dizer, objetos ornados e sempre em uma situação, participando da dinâmica das relações sociais e das relações entre os homens e o mundo sobrenatural” (BASCHET, 2006, p. 481-482). O autor oferece essa 5757 proposta por entender que esse termo composto contemplaria a totalidade da imagem medieval, favorecendo a relação entre o aspecto visual e o material do objeto. Mediante essas considerações, faz-se importante não nos esquecermos de que, mesmo que o termo seja mais conveniente para os historiadores da Arte medieval e demais investigadores que se preocupam com a História Cultural, como afirma Pereira (2010), as imagens medievais não são desprovidas de Arte. O autor deixa isso claro, ao alegar que: “[...] Poderíamos mesmo afirmar, com Jérôme Baschet e Jean-Claude Schmitt, que, se a imagem naquele período histórico não significava o mesmo que arte, de toda forma havia arte nela” (PEREIRA, 2010, p. 7). Talvez seja pela evidência de que não seria possível negar a Arte nas imagens medievais e que seu aspecto artístico deve ser considerado nos estudos imagéticos que muitos autores, mesmo cientes do distanciamento dos conceitos, utilizem o termo Arte para se referir às imagens, ou aos objetos produzidos na Idade Média. Esse revezamento de termos que pode expressar, algumas vezes, anacronismo revela, a nosso ver, a riqueza de conhecimento que esses produtos imagéticos podem nos propiciar, indiferentemente da área de estudo. Entendemos, assim, que o trato da ‘Arte’ requer sempre uma interdisciplinaridade. O diálogo entre diferentes domínios do conhecimento parece condição para uma, possível, aproximação e uma compreensão desses objetos construídos pelos homens que acreditamos revelar um pouco da complexidade humana. Considerações finais Face ao exposto, fica-nos evidente que o objeto imagético, entendido como produção do homem que pode expressar as questões presentes em seu momento de criação, permanece o mesmo indiferente no contexto histórico. Como uma atividade orgânica, ele expressa as mudanças temporais que se efetivam em seu conceito e em sua forma material. Portanto, sua interpretação, teorização e denominação refletem o conhecimento do homem sobre si mesmo e as questões que compõem o seu entorno. Aceitando essa ideia, podemos compreender que denominações como imagem, para a Idade Média, e arte, para a Moderna, por exemplo, expressam as mudanças que ocorrem em essas sociedades e seus homens. Assim, o estudo desses conceitos não se limita a uma análise de nomenclatura, mas uma compreensão das mudanças e permanências históricas. 5758 Postulando que a linguagem imagética representa uma rica fonte para estudo, pois, como testemunha do desenvolvimento do espírito humano em épocas passadas, nos auxilia a ler as estruturas de pensamento e representação em um universo histórico, social e cultural datado e peculiar. Nesse sentido, a Arte como construção de conhecimento, necessita, para a intelecção de sua sistematização, que o sujeito desenvolva certas competências que o auxiliem a sentir e a significar a obra de arte. Acreditamos que o olhar e o gosto podem ser transformados pelo conhecimento. Quanto mais e conhece mais se aprecia. Por considerar a Arte como constitutivas do humano, acreditamos que a apreciação e análise de imagens artísticas tornam o olhar dos homens mais atento às representações e aos seus significados. Essa sensibilidade pode resultar em um maior entendimento de sua realidade histórica e social, do drama que vive sua época. Nessa perspectiva, partimos da premissa de que a Arte, assim como todos os demais produtos da criação humana, a exemplo dos costumes, das leis, convenções sociais, mitos, é eminentemente histórica e social, ou seja, nasce na e para a sociedade, sendo datada historicamente. Tanto no processo criativo quanto no ato de fruição, ela é uma fonte de humanização e educação do homem; por meio de seu universo simbólico, leva-o a formas diferenciadas de sentir, perceber e expressar sensivelmente o mundo e as dimensões humanas. Como atividade do espírito e socialmente datadas, a Arte, além de produzir os objetos artísticos, produz também o artista, um ser que sente, percebe, conhece, reflete e toma posição diante do mundo em que está inserido. Constatamos, pois, que o indivíduo deve ser capaz de perceber, refletir, ponderar, sintetizar as informações ofertadas pelo mundo, bem como de elaborar novos conhecimentos sobre esse arcabouço, ser capaz de se deslocar do senso comum para a consciência filosófica, utilizando tudo isso em sua prática social, transformando sua realidade. REFERÊNCIAS AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 1993. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. BENSANÇON, Alain. A imagem proibida: uma história intelectual da iconoclastia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 5759 BÍBLIA DE JERUSALÉM. 1.ª ed. 9. reimp. São Paulo: Paulus, 2013. CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005a. _________. Teorias da arte. São Paulo: Martins, 2005b. FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1987. HEGEL, Georg Wilhelm Friedric. Curso de estética: o belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 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