UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de História
Textos e documentos
Idade Média, uma impostura
[2. A Idade Média, um fantasma bem vivo]
Jacques Heers
Os abusos da linguagem; as palavras cúmplices
Os tempos de transição
O fato de se acreditar em períodos históricos nitidamente diferentes e caracterizados, e, portanto
em ruptura no curso dos tempos, conduz inevitavelmente a dirigir um olhar particular para épocaslimite, apesar de estabelecidas com a parte de arbitrário que se sabe. É forte a tentação de considerar
os anos situados entre a Antiguidade e a Idade Média, e em seguida entre essa Idade Média e os
tempos modernos, como tempos de “de transição”. Esta idéia, tão perniciosa quanto a que preside à
feitura da periodização, impõe à investigação e ao ensino uma certa óptica, de que não é fácil
libertamo-nos.
Em primeiro lugar, estas divisões arbitrárias, artificiais e quantas vezes tirânicas, criaram
durante muito tempo um forte desequilíbrio nos estudos, uma verdadeira falha nos discursos
científicos. Ao restam dúvidas de que esses tempos intermédios, que, ao que se pensava, não
podiam oferecer senão imagens incertas, sem valor demonstrativo, foram frequentemente
descurados. A leitura e a investigação incidiram mais nos séculos “clássicos” do Império romano do
que nos seus derradeiros momentos. Por outro lado, em França, os reinados de Carlos VII e Luís IX
retinham sem dúvida a atenção, por alguns dos seus aspectos: a personalidade dos soberanos (de
que todos os livros, sem exceção, ofereciam imagens incisivas, um tanto compostas à moda
romântica), a vida política, o reforço do Estado e a luta contra a casa de Borgonha. Mas os fatos de
civilização, tento no plano material como no plano cultural, estão longe de ter suscitado o mesmo
interesse, pelo menos até há pouco tempo; a vida econômica do século XV era muito menos
estudada, por exemplo, do que a do tempo das feiras da Champanha e da primazia parisiense.
Além disso – o que é sem dúvida mais grave-, esta exploração do conceito de periodização
acabou por falsear a interpretação dos fatos e até por ditar hipóteses de trabalho que os autores se
sentem compelidos a verificar. Perece evidente que o tempo que marca a passagem de um período
ao seguinte, não pode deixar de ser “de transição”. Não se trata apenas de palavras e de ninharias,
Fonte: HEERS, Jacques. A Idade Média, uma impostura. Lisboa: Edições Asa, 1994.
Tradução: António Gonçalves
A reprodução para fins educacionais não comerciais é permitida desde que citada a fonte.
mas da orientação da pesquisa, e até da interpretação dos resultados. As hipóteses de trabalho têm
sempre um grande peso, e são sempre numerosos aqueles que se empenham, sobretudo em ilustrar a
idéia dominante, em vez de prosseguirem uma investigação liberta de apriorismos. Disse-se e
escreveu-se em demasia que, no século XV, o mundo ocidental se viu confrontado com graves
incertezas, que a sociedade deixou de se sentir solidamente implantada nas suas bases habituais. O
quadro de conjunto impôs-se; bastava ilustrá-lo até aos mínimos pormenores. Desejosos de se
manterem fiéis a essa linha técnicamente aceite, foram muitos os historiadores de boa fé que se
lançaram em perseguição dos sinais de uma profunda evolução das estruturas socioeconômicas, das
relações humanas, das partilhas dos poderes e das fortunas. Exumaram assim inúmeros indícios
mais ou menos claros, mas sempre interpretados no mesmo sentido. Estes tempos de transição
continham inevitavelmente a marca de transformações, e portanto das formas de enriquecimento; e
também de desordens e, de motins e de “revoluções”. Estes mesmos esquemas aplicavam-se
naturalmente a outros domínios: devoções e sentimentos religiosos, preceitos do viver, expressões
culturais. Tudo isso conduzia a imagens de mal-estar e de desequilíbrio.
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A Idade Média, uma impostura - Fafich