David Léo Levisky
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Adolescência na Idade Média Central
Uma análise histórico-psicanalítica da narrativa autobiográfica de um caso:
Guibert de Nogent1
David Léo Levisky2
A - Objetivos
O interesse em investigar a adolescência na Idade Média Central surgiu,
inicialmente, da necessidade de esclarecer a existência desta fase da vida no Ocidente
Medieval.
A dúvida emergiu a partir do trabalho de Ariès3, para quem as palavras latinas puer
e adolescens eram empregadas indiferentemente na Idade Média; a discriminação entre
enfance, jeunesse, vieillesse é mais recente. Este autor afirma que: “essa sociedade via mal
a criança, e pior ainda o adolescente. A duração da infância era reduzida a seu período mais
frágil[...]De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem
passar pelas etapas da juventude,[...]A transmissão dos valores e dos conhecimentos, e de
modo mais geral, a socialização da criança, não eram portanto nem asseguradas nem
controladas pela família. A criança se afastava logo de seus pais, e pode-se dizer que
durante séculos a educação foi garantida pela aprendizagem, graças à convivência da
criança ou do jovem com os adultos. A criança aprendia as coisas que devia saber ajudando
os adultos a fazê-las”4[...] “Ela (essa família)não tinha função afetiva”.5
Ariès não relativiza o procedimento vincular existente entre a criança e a família
como a forma possível relacional, dentro das mentalidades6 vigentes, através das quais
aqueles pais, mães ou substitutos, podiam e sabiam investir afetivamente seus bebês.
Refere-se às primeiras relações afetivas de forma pejorativa, e não dentro do contexto
Apresentado em Simpósio da SBPSP em maio de 2003.
Psicanalista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Doutorando do Depaertamento de
História- área de concentração:História Social da FFLCH da USP. 15/04/03.
3
Ph. ARIÈS, História Social da Criança e da Família, Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1978, p.41.
4
Idem, op. cit., p.10.
5
Idem, op. cit. supra, p.11.
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Mentalidade: A - adaptado da noção de arquitetura anímica de Freud, como maneira de sentir, pensar e agir
que faz parte do consciente ou inconsciente comum de determinado grupo. Em carta enviada à B’nei Brit pela
homenagem que lhe foi prestada pelos seus 70anos, referindo-se à sua ligação ao judaísmo, diz: “intensas
potências sentimentais obscuras, tanto mais poderosas quanto mais difíceis de expressar em palavras; a clara
consciência de uma íntima identidade, a secreta familiaridade de possuir uma mesma arquitetura anímica”.S.
FREUD, “ Discurso a los miembros de la sociedad B’ NAI B’RIT, Obras Completas, Madrid, Biblioteca
Nueva, vol.III, 1973, p.3229.
B - Corresponde à história psicossocial e “indica o primado psicológico nos seus aspectos mais profundos e
permanentes, mas sempre manifestados historicamente, dentro e em função de um determinado contexto
social, que por sua vez passa a agir a longo prazo sobre aquele conjunto de elementos psíquicos coletivos”.
Mais adiante : “os significantes (palavras, símbolos, representações) que o imaginário utiliza alteram os
significados ( conteúdos essenciais) da mentalidade, decorrendo disso a dinâmica dela”, H. FRANCO JR., A
Idade Média – Nascimento do Ocidente, São Paulo, Brasiliense, 1996, pp. 149-150.
C- Conjunto de elementos psíquicos inconscientes e conscientes que caracterizam um modo de sentir, pensar,
e agir. Elementos que são observáveis através dos tipos de raciocínio, do manejo e dos conceitos das palavras,
dos signos, dos significados das relações temporais e espaciais, que se preservam no longo tempo da história.
Mas, que sofrem uma transformação lenta e progressiva na sua transmissibilidade, resultantes das ações
recíprocas existentes entre o sujeito, o grupo social e a cultura.
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determinante das características relacionais na constituição do sujeito psíquico daquela
época e sociedade.
Ele afirma a existência de “paparicação” por parte da família e ao mesmo tempo
nega a função afetiva desta atitude. É preciso considerar que o contexto histórico-psicosócio-cultural era outro, e as características comportamentais deveriam ser correlacionadas
àquele contexto. O mesmo pode ser dito em relação ao lugar ocupado pelo adolescente
naquela família e sociedade.
As idéias de Ariès surpreendem, e serviram de estímulo para esta investigação, cujo
intuito é verificar a existência da adolescência naquela época e identificar algumas
características da transição infanto-juvenil, observadas pelas interfaces existentes nas
relações entre história, psicologia, medicina, e psicanálise.7
As indagações sobre a transição infanto-juvenil se ampliam quando se sabe da
existência de ritos de passagem em diferentes tribos indígenas e em outras culturas arcaicas,
na expressão de Levi-Strauss.
Judeus, cristãos e muçulmanos realizam cerimônias religiosas nesta época da vida;
são cerimônias, que apesar de seu cunho eminentemente espiritual coincidem com o início
da puberdade, e estão presentes em povos de várias nações e períodos históricos, inclusive
observados nos comportamentos dos adolescentes da era da informática e da globalização.
São fenômenos de expressão psico-social, todos eles, coincidentes com o surgimento da
sexualidade adulta.
Tudo faz crer que, seja qual for a cultura e a época, o surgimento da sexualidade
reprodutora, acompanhada de transformações corporais e comportamentais da transição
infanto-juvenil são perceptíveis de forma consciente ou inconsciente pelos povos,
identificáveis através de comportamentos sociais, religiosos, folclóricos, que marcam este
momento de passagem.
Através das Confissões,8 de Santo Agostinho, vê-se que na antigüidade a transição
infanto–juvenil já era chamada de adolescência no mundo de influência latina, e as
angústias eram perceptíveis e explicitadas. Aos 43 anos de idade aproximadamente,
escreveu sobre os seus dezesseis anos, à respeito de Os Pecados da Adolescência
focalizando as características desta fase da vida. Sua sensibilidade permitiu que
transcrevesse o sofrimento do jovem adolescente diante das forças das pulsões, da
sexualidade emergente, e do conseqüente enfraquecimento egóico, que na sua linguagem
era identificada como forças do mal, geradoras do pecado. Suas reflexões cristãs
conduziram-no a escrever uma teoria doutrinal e filosófica sobre o pecado e as dualidades
entre o homem e Deus, o bem e o mal, o mutável e o eterno.
“Quantas vezes, na adolescência, ardi em desejos de me satisfazer em prazeres infernais,
ousando até entregar-me a vários e tenebrosos amores! A minha beleza definhou-se e
apodreci a vossos olhos, por buscar a complacência própria e desejar ser agradável aos
olhos dos homens”.9
Em entrevista para WINOCK, L’Histoire, 19, 1980, p.85, Ph. ARIÈS reconheceu que a Idade Média era,
para ele, algo desconhecido, in P. RICHÉ et P. ALEXANDRE-BIDON, L’enfance au Moyen Age, Paris,
Seuil/Bibliothèque Nationale de France, 1994, p. 209.
8
SANTO AGOSTINHO, Confissões , São Paulo, Nova Cultural, 1999.
9
SANTO AGOSTINHO, “Livro II-Os pecados da adolescência” in Confissões, São Paulo, Nova Cultural,
1999, p. 63.
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Exarsi enim aliquando satiari inferis in adulescentia et silvescere ausus sum variis et
umbrosis amoribus, et contabuit species meã et computrui coram oculis tuis, placens mihi
et placere cupiens oculis hominum.10
É desejável identificar e compreender se esta fase da vida, hoje chamada
adolescência, tem correspondência no passado. Como o homem da Idade Média Central
percebia as várias idades da vida, e como as diferenciava? Existem elementos constantes e
mutáveis durante a transição infanto-juvenil que dão um colorido particular a esta etapa da
vida em diferentes épocas e culturas? Estes elementos podem ser caracterizados na Idade
Média Central?
B- Justificativa da investigação
Porque escolher a transição infanto-juvenil como objeto de estudo?
A transição infanto-juvenil é um objeto de estudo que me fascina pela sua
vitalidade, complexidade, energia, caráter evanescente, onde o inefável se faz presente.
Aspectos com os quais me identifico, talvez pela minha biografia, e pelas dificuldades e
conflitos que despertam tanto nos pais quanto nos profissionais das várias áreas que com
eles se relacionam. No jargão popular diz-se que “ a juventude é o futuro de uma nação”,
neste sentido, compreende-la melhor é fundamental.
Outro aspecto, deve-se ao fato de que esta fase da vida costuma ser vulnerável a
múltiplas influências externas e internas, estruturantes e desestruturantes da personalidade
em busca de uma identidade adulta. Fase propícia para a instalação de muitas patologias, e
considerada na atualidade como a segunda e última chance para a re-estruturação da
personalidade. Conhecer seu processo ao longo da história pode ser fator importante para a
compreensão do passado e melhor entendimento do presente; isto é, das influências que os
processos históricos desempenham na formação das mentalidades, na construção da
subjetividade individual e coletiva de cada cultura. É uma oportunidade para se estudar a
interface entre cultura e psicanálise, e suas repercussões na constituição do sujeito e da
coletividade.
Destas inquietações surgiu um profundo interesse investigativo de procurar
compreender através da análise histórico-psicanalítica as características do processo
identificatório da transição infanto-juvenil na Idade Média, condição que pode ajudar na
compreensão de aspectos da adolescência atual.
Surge como curiosidade científica a possibilidade de se investigar os fatores
intervenientes na composição da maneira de sentir, pensar, ser e agir dos adolescentes
medievos do Ocidente europeu, berço do pensamento ocidental contemporâneo.
Pode-se, do ponto de vista do desejo do investigador, descobrir pontos de referência
no passado longínquo que permitam caracterizar semelhanças e diferenças entre os
adolescentes atuais e seus companheiros de mil anos atrás. Diante dos controles sociais
existentes em cada época, indaga-se o que teria variado no psiquismo humano: a
constituição do aparelho psíquico, o significado simbólico dos desejos, a ética, nada
mudou, ou esta confrontação não é possível?
texto latino extraído de SANT’AGOSTINO, Confessionum Líber Secundus in Confessioni Fondazione,
Lorenzo Valla/ Arnoldo Mondadori Editore, 1997, p. 52.
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Reclama-se que os jovens de hoje são agressivos, barulhentos, mal educados,
arrogantes, instáveis, passivos, impulsivos, desinteressados em relação ao futuro, que só
querem se divertir e estão voltados para a vida sexual.
Seriam estes comportamentos tão diferentes daqueles dos jovens adolescentes
medievais? Quais seriam as motivações profundas em relação à sexualidade, à
agressividade naquela época? Haveria uma busca de definição de uma identidade adulta?
Teriam ambições e ideais, desejos ocultos, medos, coragem? A masturbação era um
fenômeno presente? Quais seriam seus mecanismos defensivos prevalentes diante das
ansiedades existenciais da época? Passariam pela resolução dos conflitos edípicos como os
jovens da atualidade? Qual a relação dos jovens com a família e com a sociedade? Que
semelhanças e diferenças poderiam existir naqueles adolescentes em função da cultura e das
mentalidades vigentes?
O estudo da adolescência na Idade Média é exíguo e dificultado pela carência de registros
documentais. Quanto mais se retrocede no tempo, menos os jovens escreviam, e se escrevia
sobre os jovens. Entretanto, sabe-se da importância que os gregos davam à Paidéia11
enquanto processo educacional, preparando seus jovens para integrar com eficiência,
sabedoria e estética a vida societária nas cidades.
David Léo Levisky
e-mail: [email protected]
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W. JAEGER, Paidéia - a formação do homem grego, São Paulo, Martins Fontes, 1995.
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