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Vulnerabilidade: a pessoa ameaçada
Roberto Bartholo Jr1
Queria começar essa minha breve colocação com uma referência à mística judaica.
Encontramos na tradição cabalista uma narrativa do ato criador divino, descrito pelo
termo hebraico zimzum Somos apresentados ao ato instaurador de toda realidade
criatural como sendo uma contração, um encolhimento, um dobrar-se-sobre-si do
Criador. Ou seja o ato primal é um ceder espaço, um d, lugar, um permitir presença ao
diverso, ao não mesmo, ao outro, pensado teologicamente como criatural.
Comitês de Ética em Pesquisa, Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1999.
In: Carneiro, F. (Org.). A Moralidade dos Atos Cientificos – questões emergentes dos
Filósofo e Teólogo
Vejo extrema beleza nessa formulação, que nos remete aos prolegômenos de toda ética.
To ética e ponto. Prefiro ignorar todas renovadas qualificações, setorizações da ética:
ética isso, ética aquilo, ética aquilo outro e também bioética. O que a mística do zimzum
não nos deixa esquecer é que falar em ética é falar de limites. Da experiência de limites
e finitudes, e de sua teorização: Ética para quê e por quê? Porque é preciso que uma
determinada limitação valorativa não transgredida. Por isso precisamos de ética.
É necessário para que um ato seja eticamente condenável, que ele possa ser praticado. E
é u dilema grave de nosso tempo vivermos numa situação onde novos atos, há muito
pouco tempo completamente impensáveis, se transformaram em possibilidades que já
invadem nosso cotidiano. Não nos confrontamos apenas com sinalizações
propagandísticas, mas com fatos grávidos de futuro. Experienciamos novas
possibilidades (no campo da biologia molecular, e outras), com respeito às quais nossos
regulativos éticos são, no mínimo, precários. Via de regra, inexistentes.
Trazemos em nós uma ainda inelutável experiência da finitude: nossa mortalidade. Uma
experiência da qual modernamente fugimos com todo empenho, anestesiando a
consciência de nossa comum mortalidade, essa experiência do limite que trazemos nas
vísceras da alma. Nos recusamos a olhar nos olhos da "irmã Morte", recusamos a com
ela co-habitar em vida, e talvez aqui resida a raiz de um embotamento crucial que nos
faz alheios a experienciar outros tipos de limite. Olhar nos olhos da "irmã Morte" não é
querer morrer. Não é tampouco o exercício fácil de falar da morte do outro. É conhecer
minha/nossa mortalidade. Meu/nosso limite. E selar nesse conhecimento, um pacto.
Pactuar com a finitude da minha/nossa vida é condição de possibilidade de um desejo
amoroso de vida. Não um desejo de instrumentalizar a vida, capturando-a em cadeias
de causalidade, mas um desejo de fruir a aventura de possibilidades surpreendentes.
Não o reino do previsível. Não a capacidade preditiva como critério de verdade. Não o
contrato entre partes. Sim o pacto entre inteiros.
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Coordenador do Programa de Engenharia de Produção COPPE/UFRJ.
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Reencontramos assim a tão falada questão da autonomia do sujeito e do consentimento.
E faço desse reencontro ocasião para uma paráfrase bíblica. O tão belo versículo do
Evangelho de João: "No princípio era o Verbo", pode ser transmutado em "No princípio
era a relação". Salvo a belíssima metáfora do zimzum judaico para o ato criador primal,
que instaura a alteridade (e a não ser que sejamos crentes na Trindade Divina, quando o
próprio Deus já a traria em si), podemos sempre humanamente dizer que a alteridade
nos antecede a existência, ou como costumo falar brincando: "... já estava assim quando
eu cheguei".
A discussão sobre a autonomia do sujeito deveria ser vinculada a um esforço para que
mentes tão adestradas a pensar a partir do primado do sujeito, ousassem migrar para
um outro "lugar do pensamento", construído sob o primado de duas outras categorias:
alteridade e vulnerabilidade. Pois se no princípio estivesse apenas o outro, a relação
não se constituiria. A relação não é só a presença do outro. É preciso que também haja
minha vulnerabilidade a essa presença. E isso não se deixa identificar com uma
perspectiva contratual-individualista-utilitária-instrumental, que postulasse simetria
nessas relações. Elas são fundamentalmente díspares, assimétricas.
Aqui remeto-me a um dos mais importantes pensadores de nosso século: Martin Buber,
que pensa essas relações a partir de dois modos relacionais fundamentais, numa
formulação genialmente simples: as dualidades EU- TU e EU-ISSO. A primeira coisa a
ser colocada aqui é não pensar que uma é um bem e a outra um mal. Essa polaridade é
intrínseca à antropologia filosófica buberiana. Vivemos nessa e dessa polaridade.
Os modos relacionais referidos dizem respeito a todas as possibilidades relacionais, não
se restringindo portanto ao domínio do inter-humano, mas a todo e qualquer entre dois.
Significativo é que em alemão, língua original da obra-prima de Buber, Eu e Tu,
publicada no início da década de 20, as palavras que designam "entre" (zwischen) e
"dois" (zwei) possuam um mesmo radical. Buber sempre afirma que os coletivos são
tecidos de relações dois a dois para terem face humana. E uma vez perguntado sobre
caso se visse forçado a dar uma resposta curta e direta à pergunta "o que é o homem?",
disse que responderia: - que é o entre que está face a face.
Isso significa dizer que para Buber o padrão relacional Eu-tu corresponde ao que há de
mais distintivo na condição humana. Nele se instaura a possibilidade da relação face a
face, imediata, direta, na inteireza da presença e na vulnerabilidade à alteridade,
morada do diálogo e do encontro. O padrão relacional Eu-Tu prescinde das
intermediações das certezas dos conceitos. Quando me relaciono com um Tu, eu me
arrisco numa aventura desconhecida, sem as garantias das definições, das
classificações, das tipologias.
Quando me relaciono com um Isso, tenho sempre diante de mim algo que sei, que sei
que é Isso, e que posso querer saber mais através de meus atos de conhecimento.
Quando me relaciono com um Tu tenho sempre diante de mim uma pessoa que não sei
nunca em sua total inteireza quem é, nem nunca saberei, se não ouvir o que sua
presença me diz de si, me deixa saber.
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Enquanto vigir a relação Eu-Tu, estou face a face com um ente que me é irredutível, e
veda-me a possibilidade de capturá-lo no sabido por meu próprio saber. Mas os padrões
relacionais Eu-Tu e Eu-Isso não são estados absorventes. São transitórios e podem ser
revertidos. É parte de nossa liberdade tal possibilidade. Mas uma questão crucial é que
Eu- Tu se estabelece sempre entre pessoas. Eu-Isso, não.
Nesse ponto parece-me significativa uma rápida digressão teológica. A teologia cristã
conhece duas formulações sobre o que seja a pessoa. A primeira delas é a da tradição
ocidental, que identifica na pessoa a persona, a máscara que o ator usa na dramaturgia
para representar um papel. A tradição oriental identifica por sua vez a pessoa com a
hypostasis, que poderíamos livremente traduzir como o suporte da presença da
alteridade. Pessoa nesse contexto é o suporte da presença de um outro que se me
apresenta. Suporte da alteridade, de toda e qualquer alteridade, portanto a pessoal
idade não é um atributo restrito ao âmbito do inter-humano, mas uma possibilidade
latente em todo entre dois.
O lugar onde nasce a ética para Buber é esse entre dois. É dessa recíproca (mas não
simétrica) experiência de limites que o exercício, a ascese, das virtudes éticas se nutre.
É no horizonte do entre dois que o agir ético atua. A ética, buberianamente concebida,
pertence ao Entre das relações Eu-Tu, onde toda escolha é sempre um risco e uma
prova. Querer escolher com segurança, querer fazer do sucesso, da eficiência, da
produtividade, critério do Bom, do Belo e do Verdadeiro é eliminar esse horizonte: é
despersonalizar. É fazer do cálculo utilitarista juiz.
Adestrados a pensar que o "livre arbítrio" cabe inteiro nessa roupa apertada do cálculo,
utilitária conseqüência de cursos de ação, perdemos de vista a diferença entre
necessidade e desejo. A escolha que se dá nas relações Eu-Tu é comovida de desejo. É
moção em direção ao não sabido, à surpresa de ser. Necessidades são algo que eu posso
aplacar em mim. Posso sair de mim, trazer para mim algo e saciar-me. Necessidades
são, assim, algo que pode ser enquadrado na lógica de um cálculo utilitarista das
conseqüências, de cursos alternativos de ação.
Não o desejo. Que é migração. Que é travessia rumo ao outro. Incerto. Desconhecido.
Sem garantias de retorno.
Outro grande pensador judeu de nosso século, Emmanuel Lévinas, aponta para o
enraizamento em nossa pessoal idade humana de um "desejo meta físico do outro",
Afirmá-lo contra os totalitarismos da política, da economia, da tecnologia é tarefa
nossa.
Gostaria de encerrar minha colocação com uma última menção à mística judaica. O
desejo metafísco pode ser simbolizado cabalisticamente pela árvore invertida, que tem
suas raízes no céu.
Isso foi o que de melhor pude lhes apresentar.
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A vida no Comitê e seus paradoxos