Os impasses na vida amorosa e as novas configurações da tendência masculina à depreciação Maria José Gontijo Salum Em suas Contribuições à Psicologia do Amor, Freud destacou alguns elementos que permitem orientar a clínica psicanalítica, no que diz respeito à eleição do objeto amoroso. Para Freud, o modo como os neuróticos se comportam em relação ao amor pode ser localizado a partir de alguns tipos que são construídos no Complexo de Édipo. No presente artigo, interessa-nos especialmente destacar a segunda contribuição, intitulada “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor”, pois, de acordo com Freud (1912/1969), trata-se de uma forma tipicamente masculina para a escolha dos objetos de amor e de desejo. Embora Freud lance no título a advertência de que se trata de uma tendência, ele ressalta seu caráter universal. Por isso, podemos presumir que, de acordo com ele, a depreciação seria a forma tipicamente masculina de abordar a parceria. Esta tendência universal pode ser resumida da seguinte forma: existem duas correntes que devem ser combinadas para assegurar um comportamento amoroso normal, nos dizeres de Freud – a corrente afetiva e a sensual. A afetiva é a mais antiga e se forma nos primeiros anos de vida. Ela se dirige aos familiares da criança, àqueles que dela cuidam. Nesse mesmo texto, Freud (1912/1969) afirma que, desde o início, essa corrente possui componentes da pulsão sexual, embora sua base sejam as pulsões de autoconservação. Portanto, a corrente afetiva corresponde à escolha de objeto primária da criança, os objetos primitivos serão fixados e persistem por toda a vida infantil. Na puberdade, um novo destino poderá ser dado à corrente sensual, pois ela não deverá permanecer como um componente da corrente afetiva. Ao contrário, a partir da puberdade, a corrente sensual deverá encontrar um objeto próprio. Freud afirma que, devido à barreira do incesto, os objetos familiares terão que 1 ser abandonados e, desta forma, a criança deverá encontrar um caminho para novos objetos. Porém, esses novos objetos serão escolhidos segundo o modelo dos objetos infantis e, da mesma forma, deverão atrair a afeição. O complexo de Édipo e o laço amoroso Freud (1912/1969) relembra o preceito bíblico que profere que o homem deixará pai e mãe para se unir a uma mulher. Com isso, afeição e sensualidade deverão se associar. Combinar as correntes afetiva e sensual decorre do Édipo. Melhor dizendo, do destino deste complexo, como nos mostra Lacan (1995). É preciso que se possa erigir o pai como real – aquele que soube transmitir a castração. Esta operação equivale à transmissão do falo para a criança e decorre dessa transmissão que se possa fazer do uso deste significante na puberdade. Como afirmado acima, a puberdade permite o acesso à satisfação da corrente sensual. Somente a partir dessa transformação, será possível abordar uma mulher como objeto de satisfação sexual. Todo o desafio será conseguir combinar, no mesmo objeto, a corrente sensual e a afetiva, estabelecendo o que chamamos de laço amoroso com o outro. A dificuldade de estabelecer o laço decorre do fato de que a corrente afetiva, até então, era satisfeita pelos objetos familiares. Assim, entra em ação a estratégia da depreciação. Para amar o objeto de satisfação sexual é preciso que ele porte traços daquela que ocupou o lugar da mãe, mas, é também preciso que o novo objeto não fique no mesmo lugar idealizado: é necessário que, em comparação com a mãe, ele seja depreciado, que tenha um ponto de falta. O pai terá uma função crucial nesta operação. Uma divisão deve ser operada para a criança, em relação ao objeto de afeto: embora seja sua mãe, este objeto também é a mulher de seu pai. Freud adverte que a tendência à depreciação, levada às últimas conseqüências, acarretaria em impotência psíquica, em decorrência da separação das correntes afetiva e sensual. Os homens dominados por essa clivagem quando amam não desejam e, quando desejam, não podem amar, é o que conclui Freud. 2 Na clínica psicanalítica, cada vez mais encontramos exemplos de sujeitos embaraçados com esta clivagem apontada por Freud – a dificuldade na combinação das correntes afetiva e sensual. Interessa-nos destacar os casos que apresentam dificuldades na vertente do afeto, diferente dos exemplos freudianos, os quais demonstravam a impotência na satisfação da corrente sensual. Assim, gostaríamos de discutir uma forma de impotência mais contemporânea: a impotência no amor, impedindo o estabelecimento do laço com o outro. A impotência no amor: um fragmento clínico Foi diante de uma situação como essa que um paciente, nomeado como Sávio, procurou um tratamento psicanalítico. Ele chegou à entrevista queixandose de impotência sexual com a namorada; diz não sentir desejo algum por ela e, quando acontece de terem relação sexual, é de uma forma forçada. A perda de interesse sexual já acontecera antes com outras mulheres e, novamente, estava se repetindo, por isso estava bastante preocupado. Sávio conta que quase não namora. Abriu uma exceção para esta moça, comenta rindo. Aos dezesseis anos, iniciou sua vida sexual com uma vizinha um pouco mais velha. Os dois passavam as tardes juntos, mas ela, às vezes, lhe dizia que havia transado com outro homem. Ele fingia que não estava escutando e não falava nada. Seus namoros de juventude foram marcados por muito ciúme. Vigiava as namoradas, verificava os horários, vasculhava suas agendas. Depois de alguns fracassos amorosos decidiu que não teria mais ciúmes e começou a desenvolver uma estratégia para isso: não só fantasiava a traição, o que era feito através do ciúme, mas passou a atuar esta fantasia mantendo relacionamento “abertos”, “só para transar”, sem estabelecer vínculo afetivo. À medida que as entrevistas se sucederam surgiram as primeiras explicações para o contexto no qual se dava a impotência. Ele perdia o interesse sexual com um tipo específico de mulheres, justamente aquelas que ele poderia estabelecer um relacionamento mais sério, a ponto de pensar na possibilidade de se casar. Foi isso o que aconteceu com a referida namorada: 3 passou por sua cabeça que aquilo poderia dar em casamento e, depois desse pensamento, não conseguiu desejá-la mais. À primeira vista, este seria um caso típico descrito por Freud no artigo sobre a depreciação. Contudo, o que nos interessa nele é verificar como uma escolha amorosa orientada edipianamente, uma escolha clássica, pode-se dizer, assume feições novas. Principalmente, porque Sávio recorre às ofertas contemporâneas no mercado do gozo a fim de não estabelecer o laço amoroso. Quando namora, se dedica a convencer a moça a freqüentar locais onde se pratica a troca de casais, como fez com a referida namorada. Tudo indica que se trata de uma estratégia para transformar uma mulher que seria “para casar” em uma “prostituta”1. Sávio tem por volta de 40 anos, é bem sucedido profissionalmente e, desde muito jovem, decidiu que não queria se casar e nem ter filhos. Por isso, submeteu-se a uma vasectomia. Ele explica o motivo de uma intervenção tão radical aos 23 anos de idade: naquela época não se usava camisinha e, para não correr o risco de que uma mulher engravidasse dele, resolveu que essa seria a melhor solução. A paternidade constitui para Sávio em um impasse e ele se defende da possibilidade de procriar, através de um ato. É interessante questionarmos seu estatuto: trata-se de uma passagem ao ato ou um acting-out? De todo modo, fazendo uma vasectomia, ele se preveniu da possibilidade de desejar ser pai, caso se deparasse com um possível chamado à paternidade. Com esta atuação ele retirou de si uma qualidade fálica por excelência. O ponto crucial deste caso é, justamente, a anulação do falo diante do embaraço no campo do amor no encontro com uma mulher. Através da atuação, ele corta a possibilidade de laço com o outro sexo. Ele tem uma vida sexual intensa, várias “amizades coloridas”, vários grupos de trocas de casais. Isso não lhe causa nenhum problema, pois a copulação não faz laço. Contudo, a possibilidade de encontro que o laço amoroso apresenta, retorna para ele como 1 Na edição standard das obras de Freud o termo alemão Dirne foi traduzido por prostituta. Há um inconveniente no termo prostituta, já que ele denota uma relação financeira. Um equivalente em português para Dirne poderia ser a vadia. 4 impotência. O tratamento psicanalítico pode permitir que ele encontre o desencontro amoroso, colocando palavras onde estavam os atos. Desta forma, ele poderá ter acesso ao falo para abordar uma mulher e tomá-la como sua. Bibliografia: FREUD, S. Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (Contribuições à Psicologia do Amor II). (1912). In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. 11. Rio de janeiro: Imago editora, 1969. p. 159-173 LACAN, J. O Seminário: livro 4, A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1995. p. 220 – 236 LAURENT, E. De Tel Aviv à Rome, entre ombres et lumières. In: Quarto nº 87. Belgique: revue de psychanalyse - Ecole de la Cause freudienne – ACF. 2006. p. 19-24. MILLER, J.A. A teoria do parceiro. In: Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: editora contra capa, 2000. p. 153 – 207 ___________ Logicas de la vida amorosa. Buenos Aires: ediciones Manantial. 1991. ___________ (y otros). La pareja y el amor.Buenos Aires: Paidós. 2003. 5