1 “Isto não é um Cachimbo nem um Objeto de Comunicação”: Notas sobre o Estado Atual da Teoria da Comunicação no Brasil e Algumas Convergências Interessantes com os Estudos Literários Erick Felinto Professor Adjunto Departamento de Teoria da Comunicação Universidade do Estado do Rio de Janeiro Resumo: O objetivo deste texto é questionar a preocupação quase obsessiva com as definições precisas e acabadas sobre a natureza do objeto da comunicação que tem assolado o campo recentemente. Busca-se definir as origens e motivações desse impulso classificatório, ao mesmo tempo em que se sugere procurar no horizonte dos estudos literários algumas lições valiosas para a teoria da comunicação. A convergência entre diferentes saberes, a tentativa de encontrar interdisciplinidades autênticas expressam-se assim em nossa aproximação entre manifestações recentes dos estudos literários e o campo da comunicação. A meta final é fazer uso dessa aproximação para sugerir a passagem de uma preocupação com o objeto para a aceitação de múltiplos objetos, analisados a partir de metodologias e abordagens caracteristicamente comunicacionais. Palavras-chave: objeto da comunicação, estudos literários, materialidades da comunicação. Os últimos anos parecem ter trazido uma avalanche de incertezas para a área da teoria da comunicação no Brasil. Como se a disciplina estivesse se recriando, o campo foi tomado pela questão essencial de seus fundamentos e objeto. Como definir esse objeto, como recortá-lo de maneira precisa e oferecê-lo ao escrutínio de uma teoria que se pretenda minimamente científica? O desejo de obter uma visão clara e segura do objeto manifestou-se, nesse período, de diferentes formas: na discussão sobre a crise de paradigmas, na busca de novos modelos curriculares, na definição de novos objetivos e até mesmo no delineamento de novas ideologias de fomento à pesquisa. Todas são indicativas de uma preocupação que parece originar-se de um sentimento de desorientação. Sintomática desse processo foi a escolha do tema da conferência de abertura da Compós neste ano – “A constituição do campo da comunicação: desafios e tendências” - debatido ardorosamente entre os professores Muniz Sodré, Gabriel Cohn e José Luiz Braga. A questão em pauta, com efeito, era a 2 definição do objeto da comunicação, sua classificação, seus limites, seus horizontes teóricos. O debate acabou refletindo o fato de que não parece haver muita concordância quanto à natureza desse “objeto” da comunicação. Porém, o sentido de urgência em encontrá-lo e descrevê-lo tem se apresentado de maneira quase unânime. A frase “isso não é um objeto de comunicação!” tornou-se uma das maneiras mais seguras de desqualificar artigos e trabalhos de pesquisa apresentados ao julgamento de especialistas da área. Isso, curiosamente, sem que até hoje tenhamos obtido nenhuma espécie de consenso real quanto à natureza de nosso objeto. Qual seria a origem desse retorno tardio de uma preocupação que tradicionalmente se manifesta nos primórdios da constituição de um campo científico? (ou será que nunca, até agora, chegamos a abordar seriamente a questão do objeto?). Que fatores, culturais, ideológicos, científicos ou de outra natureza teriam motivado o ressurgimento desse desejo classificatório? A questão do campo e do objeto aparecem, assim, como fantasmas para nos assombrar. Para compreender as causas dessa assombração, é preciso pôr entre parêntesis a discussão sobre o objeto e debruçar-se antes sobre os sintomas da insegurança que nos tem atormentado. Não se trata de simplesmente esquecer o problema fundamental do objeto, mas de abandoná-lo temporariamente e deslocar o discurso para aquilo que constitui seu “ponto cego”. Trata-se, portanto, de perguntar a partir de que lugar se enuncia o discurso. Entre as razões das incertezas que se abatem sobre o campo está, sem dúvida, a crise generalizada do discurso das ciências humanas. Buscarei traçar algumas analogias relevantes nesse sentido com um domínio que possui muitos pontos de contato com o da teoria da comunicação: os estudos literários. Também irei sugerir, a partir do campo literário, alguns caminhos que podem oferecer alternativas interessantes para a pesquisa em comunicação. Finalmente, proporei uma mudança de perspectiva que se desloca da preocupação com o objeto para a constituição de questões e abordagens comunicacionais de múltiplos objetos. No setor da literatura comparada, tornou-se palavra de ordem nos últimos anos a discussão sobre a decadência da crítica literária. Muito tem se falado sobre a “morte da literatura” e a conseqüente desintegração dos estudos literários. A literatura é, provavelmente, o campo de estudos em que mais nitidamente tem se manifestado a crise pós-moderna dos paradigmas epsitemológicos tradicionais. Em um livro de título bastante revelador, Criticism in the Wilderness: the Study of Literature Today, 3 Geoffrey Hartman situa-se no âmbito dessa discussão ao confessar que propõe uma apologia da crítica literária contra as forças que atuam no sentido de sua desintegração. Hartman chega a destacar a “cientificidade” da teoria, adquirida a duras penas através de iniciativas como o estruturalismo e o formalismo russo. Mas o “deserto” a que se alude no título é um destino inevitável: o esgotamento dos discursos, a fragmentação das ciências humanas, a crise da scholarship já fazem parte do cenário pós-moderno e não parece haver muitas expectativas de redenção. Melhor seria, portanto, tomar o deserto como uma Terra Prometida, fazendo da crítica uma parte essencial de seu objeto, a literatura. “A arte, em conjunção com a crítica, não é um luxo supérfluo, mas essencial para a comunicação em um sentido humano”, afirma o autor (1980: 2). Nobre tentativa de recuperar o sentido humano da literatura e da crítica em uma época eminentemente anti-humanista. Identificar disciplina e objeto como peças articuladas que não funcionam corretamente sem a cooperação mútua é uma estratégia tentadora, mas inviável no campo da teoria da comunicação. O objeto da comunicação não apenas é de natureza inteiramente diversa de sua teorização, como também absolutamente independente desta. Se a crítica literária pode aspirar à condição de “complemento” necessário da obra, característica que um grande pensador como Benjamin já identificava, de fato, nas tarefas do tradutor e do crítico (basta lembrar do conhecido A Tarefa do Tradutor), a teoria da comunicação tem de se contentar com o estatuto de apêndice. Mais que isso: os meios de comunicação de massa, que para alguns constituem mesmo o objeto por excelência da teoria da comunicação, dispensariam esse apêndice incômodo sem pestanejar. Mas é preciso que se diga que mesmo no campo dos estudos literários, a posição de Hartman não é inteiramente confortável nem de fácil sustentação. Abandonando toda espécie de romantismo, Hans Ulrich Gumbrecht admite, sem consternação, que “está se tornando cada vez mais difícil localizar o campo de objetos [dos estudos literários], pois o conceito de literatura que presidia a emergência dessa disciplina dificilmente pode continuar a ser utilizado” (1992: 248). Esta, sim, é uma noção que pode ser facilmente transportada ao campo atual dos estudos de comunicação. A emergência de nossa disciplina produziu um conceito de comunicação que, em vista da tremenda velocidade da transformação das técnicas e meios, já não consegue mais dar conta de seu objeto. Essa inadequação é destacada 4 por Ciro Marcondes Filho em um estudo dedicado à exposição das teses inovadoras de Lucien Sfez: A nova era que se descortinou a partir da expansão dos meios técnicos de comunicação e informação e através da virada que estes provocaram em relação ao domínio do homem, fazendo-o fixar-se na posição de mero componente deste contexto, exigiu uma completa reformulação e reordenação dos estudos de comunicação (1993: 22). A “evolução” dos meios, aliás, constitui parte fundamental das causas da morte da literatura e da crítica. Os novos meios de comunicação colaboraram para o surgimento de um mundo dotado de múltiplas realidades perceptivas, no qual a literatura precisamente já não pode mais exercer a função cultural de oferecer outras versões da mesma realidade (Gumbrecht, 1992: 269). A multiplicidade de realidades destacada por Gumbrecht deveria nos alertar também para a natureza polifacetada do objeto da comunicação. No desejo de se recortar um objeto estável e definido, esquece-se freqüentemente dessa potencialização e complexificação do real. De qualquer modo, entre os vários pontos de convergência que se pode apontar entre teoria literária e teoria da comunicação hoje, um dos mais significativos parece ser o apego à instituição da disciplina. Em um cenário onde se discute a própria fragmentação da ciência e dos saberes, a questão de justificar a sobrevivência da instituição teórica é fundamental. De um lado, assistimos ao abrangente questionamento das formas tradicionais de produção do conhecimento científico, do outro a penetração decisiva de uma racionalidade mercadológica, imediatista e pragmática no âmbito mesmo das instituições de ensino e pesquisa. literários Wlad Godzich explica que muitos dos atuais programas de estudos (literacy programs) “evidenciam uma profunda desconfiança da interpretação e outras funções críticas relacionadas à linguagem, e proclamam a competência e domínio de habilidades como seus objetivos” (1994: 14). No campo dos estudos de comunicação no Brasil, essa desconfiança manifesta-se há longa data na tensão permanente entre os setores técnicos e os de reflexão teórica nas faculdades de comunicação. Que fazer da teoria? Que resultados “concretos” se podem auferir de suas investigações? Como justificar investimentos em programas ou projetos de pesquisa que não produzam soluções verificáveis de aumento de competências e domínio de tecnologias? Nos últimos anos, com o agravamento da crise financeira e o recrudescimento das agências de fomento, a teoria passou a sofrer ataques mais 5 impiedosos, ainda que muitas vezes velados e implícitos. Dominar as tecnologias e usá-las produtivamente tornou-se cada vez mais importante, suplantando assim a necessidade de interpretá-las criticamente. A obsessão pelo “objeto” da comunicação parece encontrar uma de suas origens precisamente numa reação ao discurso tecnicista dos resultados. Contudo, talvez se trate de uma reação que acaba funcionando em favor dos acusadores da teoria. As tentativas de desenhar um rosto nítido para o objeto produzem invariavelmente multiplicidades e discordâncias que alimentam o arsenal das denúncias tecnicistas. O discurso da teoria é vazio, acusam eles, pois não consegue produzir uma estabilidade conceitual. Desse modo, percebe-se o surgimento de um paradoxo: o tecnicismo almeja unidade, coerência, concordância, ao mesmo passo em que a teoria – a quem em princípio caberia gerar diferenças e heterotopias – conforma-se em buscar a mesma unidade na definição de seu objeto. Porém, o resultado da busca é o oposto do desejado: a natureza construída do objeto teórico termina sempre por se manifestar na diversidade de visões obtida. O problema, como assinala Daniel Bougnoux, é que a comunicação constitui “a parte maldita, ou mal dita, de nossas trocas, aquela que não se deixa quantificar, tecnicizar, nem descrever objetivamente” (1998: 18). Desse modo, o desejo do objeto presentifica, por um lado, a insegurança honesta do pesquisador que se confronta com um universo polimórfico e instável, onde seu campo de estudos nunca aparece com clareza. A questão da identidade aqui é fundamental: como definir meu papel social, minha identidade como intelectual quando a vacuidade de meu domínio o torna indefinível? Qual de nós já não enfrentou a terrível angústia de ter explicar (e vindicar) a natureza de nosso trabalho? Por outro lado, esse desejo constituiria também reação aos mandamentos do mercado, à necessidade de justificar a rentabilidade (econômica e social) da teoria pela delimitação de um objeto apreensível e manipulável. Não é questão, advirta-se desde logo, de se apagar o objeto da comunicação. Como afirma Eduardo Neiva, também em uma reação aos imperativos do tecnicismo, “existe um objeto de comunicação digno de ser teorizado” (1991:20, grifos do autor). Contudo, é preciso aceitar e acolher o caráter polimórfico desse objeto. Se para Neiva, a essência do objeto são os problemas lógicos, não será menos válida, por exemplo, a perspectiva de Umberto Eco, para quem todo ato de comunicação é um ato cultural. Lógica, linguagem, cultura e imagem são apenas algumas da intercessões 6 que surgem no interior do campo múltiplo da comunicação. Reduzir suas dimensão à esfera de apenas um desses setores resultaria em um injustificável empobrecimento. É bem verdade que no que diz respeito às publicações e conferências da área o partido da multiplicidade, do reconhecimento do objeto da comunicação como complexo e transdisciplinar consegue encontrar expressão. Contudo, no plano mais amplo do delineamento de políticas de ensino e pesquisa, delimitação e definição são as palavras de ordem. É como se existisse um desnível entre essas duas esferas e, na segunda, fosse necessário expurgar do campo da comunicação uma série de extrapolações indevidas, de elucubrações injustificáveis, no sentido de devolver-lhe a pureza e objetividade que merece. O domínio ocasional de diversas modas culturais no campo da teoria certamente colaborou também para facilitar o trabalho dos puristas. Uma dessas modas mais recentes, a apropriação de conceitos oriundos da ciências duras e da natureza, proveu os defensores da coerência e objetividade com um material de valor inestimável. Por mais maniqueístas que possam ser as críticas de Alan Sokal e Jean Bricmont a essa moda tão em voga no campo das ciências humanas, não é possível desconsiderar os abusos gerados por tal prática. Analogias inconsistentes, metáforas despropositadas e hermetismos desnecessários têm resultado continuamente disso que os dois físicos chamaram de fashionable nonsense (1998). Mas o reducionismo que se oferece em troca faz ainda menos juz à complexidade do objeto da comunicação. Que a necessidade de apresentar resultados visíveis seja uma das motivações básicas da obsessão pelo objeto preciso parece-me evidente. Ela se expressa com freqüência nos discursos que tentam conciliar teoria e prática, geralmente submetendo a primeira à segunda. Teixeira Coelho, por exemplo, afirma a necessidade da inserção dos fundamentos teóricos “na realidade social imediata, em detrimento, se necessário, dos aspectos acadêmicos dessas disciplinas” (1979: 46, grifos meus). Defende-se, desse modo, o contato direto dos estudantes com o fato em lugar da informação sobre o fato (ibid.), esquecendo-se, porém, de que o “fato” é uma ficção mais abstrata do que nossas possíveis construções teóricas sobre este. O que significa, com efeito, uma categoria como “realidade social imediata”? O campo das comunicações é precisamente o campo das mediações, e ali todos os fatos são mediados. Sua apresentação nunca é transparente, mas sim produzida segundo mecanismos que não podem ser explicados apenas pelo “aqui-e-agora social” (ibid.). 7 Não há dúvida de que o campo da comunicação exige um envolvimento profundo com o social, com o cultural e com o presente histórico. Mas nenhuma dessas instâncias é imediata. Se afogar os estudantes em apresentações históricas de conceitos filosóficos, psicológicos ou sociológicos é improdutivo, apresentar-lhes fatos “puros” ou produtos culturais desvinculados de contextos históricos e sociais mais amplos seria ainda mais trágico, para não dizer em última instância impossível. É precisamente no setor de ensino – o ensino de graduação – que a questão do objeto da comunicação se coloca com força total. Nesse campo, a acusação da vacuidade das abordagens teóricas parece apresentar argumentos esmagadores. A tendência é a redução das disciplinas de caráter teórico ou humanista a um mínimo, de modo a abrir cada vez mais espaço para a transmissão e domínio das técnicas. Na verdade, a meta final parece ser a própria diminuição do tempo de formação. Eliminando-se a sobrecarga da disciplinas teóricas, racionaliza-se o investimento universitário de modo a se garantir a preparação de um número máximo de profissionais em um mínimo de tempo. Talvez seja o momento de se oferecer uma perspectiva de inversão radical: em lugar de tentar justificar sua existência pela conciliação entre teoria e prática, pela demonstração de sua “necessidade” para as práticas, pode ser que agora caiba à teoria afirmar sua inutilidade essencial. Em confronto com uma lógica utilitarista e mercantil, a teoria abdicaria precisamente dos elementos que essa lógica procura impor-lhe: a criação de produtos e resultados “concretos”, a definição de um objeto unificador, a submissão aos imperativos tecnicistas. Como argumenta Bougnoux, “a comunicação resiste (… ) às tentativas prematuras de fazer dela uma área fechada, universitária ou profissional. É uma disciplina desconfortável para o estudante se este espera um programa, objetos ou perspectivas, pois como a filosofia, ela compensa sua ausência de fundamentos ou de teoria dominante circulando entre os saberes e requestionando estes últimos” (1998: 14). A especificidade da teoria da comunicação está precisamente em sua não-especificidade. Sua “utilidade” está em não ser útil. Ainda que o desconstrucionismo de um crítico como Paul de Man me pareça, em última instância, prejudicial ao universo do sentido (fundamental, creio, para o campo da teoria da comunicação), preciso concordar com ele quanto à definição de teoria como uma força que resiste: resiste a sistematizações totalitárias, resiste às tentativas de torná-la uma ferramente da ideologia utilitarista. Como no domínio da teoria literária, também a resistência que os críticos pragmáticos oferecem à teoria da 8 comunicação só contribui para fazê-la florescer, e “quanto mais lhe resistirem mais ela floresce, visto que a linguagem que fala é a linguagem da auto-resistência” (de Man, 1989: 41) Há ainda uma última lição, a mais interessante de todas, que acredito ser possível extrair do atual campo dos estudos literários. Recentemente, na Universidade de Stanford articulou-se um grupo de pesquisas dedicado ao estudo do que se descreveu como “materialidades da comunicação”. O campo epistêmico e os objetos com os quais se defrontam as obras dos pesquisadores desse grupo – especialmente as de Hans Ulrich Gumbrecht e Friedrich Kittler – atingem de maneira direta o domínio da comunicação. Partindo de um princípio que já aparecia embrionariamente em McLuhan e que também se tematiza, de algum modo, no pensamento de Derrida, esses estudiosos propõe abandonar o paradigma tradicional da atividade hermenêutica. Em lugar de concentrar sua atenção na busca pelo espírito, pelo sentido pré-dado, do “texto”1, sugerem que seja necessário agora investigar o papel das materialidades, dos meios, na constituição dos sentidos. Como define o próprio Gumbrecht, a mudança epistemológica sugerida pela pesquisa sobre as materialidades da comunicação consiste em passar “da interpretação como identificação de estruturas de sentido dadas para a reconstrução dos processos pelos quais tais estruturas de sentido podem emergir” (1994: 308). Em outras palavras, busca-se compreender de que modo a materialidade dos diversos meios condiciona a produção de diferentes sentidos, e como o sentido, acompanhado de suas formas e estruturas, emerge da acoplagem entre diferentes sistemas ou materialidades - de forma elementar, como no célebre esquema da acoplagem entre susbtância da expressão e substância do conteúdo em Hjelmslev; de modo mais complexo, na acoplagem entre um sujeito e um objeto de comunicação. A investigação sobre as materialidades da comunicação apresenta duas perspectivas importantes: 1) ela se constitui como um conhecimento que não exclui outros instrumentais de análise, que recusa o aporte totalitário, manifestando-se assim como uma metodologia aberta, contingente, debruçada sobre “fenômenos extremamente fugazes e sem qualquer conceito geral ou estável para sua descrição” (1994: 402); 2) ela permite superar a pergunta pelo “objeto” da comunicação como uma entidade absolutamente delimitável, como uma realidade pré-dada. A variedade dos temas e “objetos” de estudo do volume Materialities of Communication, editado por Gumbrecht e Karl Ludwig Pfeiffer, aponta para essa flexibilidade. Objetos do 9 campo de pesquisa da teoria da comunicação seriam assim todas as articulações entre sistemas e materialidades capazes de produzir sentido. A primeira perspectiva permite lançar mão de métodos que não abandonem a dimensão do sentido, mas que, paralelamente a este, trabalhem com a dinâmica das materialidades da comunicação, uma esfera fundamental da atividade comunicativa que tem sido freqüentemente menosprezada pelos pesquisadores. Essas breves notas não têm como função mais do que indicar algumas convergências possivelmente produtivas entre dois campos teóricos que parecem aproximar-se cada vez mais. O diálogo aqui sugerido entre teoria da comunicação e estudos literários pode representar precisamente o tipo de interdisciplinaridade real e produtiva que muitos pesquisadores da área têm procurado alcançar. Mais que tudo, esse diálogo constitui uma arma eficaz no combate ao impulso classificatório que tenta hoje demarcar de forma absoluta o território da comunicação, e que talvez termine por produzir mais malefícios do que benefícios para o campo. Ao se aceitar a comunicação como campo complexo, como lugar de intercessão privilegiado de diversos saberes, abriremos mão de recortar a figura de nosso objeto como uma entidade pronta e acabada. A frase que recentemente tenho visto associada, como instrumento de crítica, a muitos trabalhos e projetos da área – “isso não é um objeto de comunicação” – perde assim seu valor intrínseco. A comunicação recobre, de um modo ou de outro, todas as esferas da cultura e da atividade humana. Nesse sentido, a frase feita passa e me soar como aquela advertência da célebre obra de Magritte. Abaixo de uma reprodução quase fotográfica de um cachimbo lemos “ceci n’est pas une pipe”. A representação, assim como a reflexão sobre a comunicação, evidentemente não se confunde com seu objeto. Mas ela tematiza, em um mundo marcado pelas instabilidades, precisamente a flexibilidade das fronteiras e limites entre diversas representações e seus objetos, entre objetos e campos do saber. Deslocando o problema da pergunta pelo objeto específico para a utilização de uma abordagem comuninacional na análise dos vários objetos culturais, fazemos juz à complexidade da comunicação. Complexidade que, na prática, assistimos aparecer na obra de vários críticos da comunicação, como Maffesoli, Baudrillard, Morin e Umberto Eco, entre outros, mas que ainda nos assusta quando temos de enfrentá-la em nossos artigos, dissertações e projetos de pesquisa. 10 Nota: 1. Naturalmente, a palavra “texto” remete aqui a qualquer objeto que possa constituir uma materialidade comunicativa 11 Bibliografia: Bougnoux, Daniel. Introdução às Ciências da Comunicação. Bauru: Edusc, 1999. De Man, Paul. A Resistência à Teoria. Lisboa: Edições 70, 1989. Filho, Ciro Marcondes. “Por uma Nova Teoria da Comunicação”, em VVAA. Comunicação e Cultura Contemporâneas. Rio de Janeiro: Notria, 1993. Godzich, Wlad. The Culture of Literacy. Cambridge: Harvard University Press, 1994. Gumbrecht, Hans Ulrich. Making Sense in Life and Literature. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1992. Gumbrecht, Hans Ulrich & Pfeiffer, Karl Ludwig. Materialities of Communication. Stanford: Stanford University Press, 1994. Hartman, Geoffrey H. Criticism in the Wilderness: the Study of Literature Today. New Haven: Yale University Press, 1980. Mattelart, Armand & Michèle. História das Teorias da Comunicação. São Paulo: Loyola, 1999. Neiva, Eduardo. Comunicação: Teoria e Prática Social. São Paulo: Brasiliense, 1991. Netto, J. Teixeira Coelho. “Da Cultura Esquecida à Prática Política”, em Marques de Melo, José & Fadul, Ana Maria & Lins da Silva, Carlos Eduardo (coordenadores). Ideologia e Poder no Ensino da Comunicação. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979. Sokal, Alan & Bricmont, Jean. Fashionable Nonsense: Postmodern Intellectuals’ Abuse of Science. New York: Picador, 1998.