Artigo 15/43 | 1 Dezembro 2015 Contraditório Think Tank Artigo Libertar Atena Farghadani, ou as Consequências de um Aperto de Mão | Maria Inês Teixeira As opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade do(s) autor(es) e não coincidem necessariamente com a posição do Contraditório. Internacional, durante o seu período de Introdução liberdade, a artista enviou cartas ao líder Atena Farghadani, artista iraniana de vinte Supremo do Irão, Ayatollah Ali Khamenei, ao e nove anos, sofreu a sentença de doze anos e Presidente Hassan Rouhani e ao Responsável nove meses na prisão após publicar um cartoon de Serviços Prisionais, com a intenção de satírico no Facebook, retratando membros expor o tratamento desumano a que fora oficiais do governo com corpos humanos e submetida na prisão de Evin, no Teerão – sem cabeças de macacos e cabras1. A artista resposta. Farghadani não ficaria longe da criticava então um projecto de lei após o qual, prisão por muito mais tempo, pois publicara se métodos testemunhos no YouTube no qual descrevia as contraceptivos seria bastante mais restrito. suas condições na prisão: fora submetida a Detida durante nove meses na prisão, foi então violência verbal e espancamentos. Fora acusada de disseminação de propaganda, também despida e revistada incontáveis vezes. insulto a membros do parlamento e insulto ao Após numerosas tentativas de sensibilizar o Líder Supremo do Irão. Farghadani foi presa mundo para a sua situação, Farghadani foi em Agosto de 2014 e libertada em Novembro presa de novo em Janeiro deste ano. Iniciou do mesmo ano. De acordo com a Amnistia uma greve de fome, e sofreu um ataque de aprovado, o acesso a 1 Figura 1: A caricatura de Atena Farghadani, devido à qual a artista foi acusada, detida e condenada a 12 anos de prisão. www.contraditorio.pt 1 Artigo 15/43 | 1 Dezembro 2015 coração em Fevereiro. Hoje, continua encarcerada em lugar incerto, no que se No Irão, o ano de 2015 tem vindo a revelar- presume ser a prisão de Gharchak localizada se trágico na área de direitos humanos. Num no deserto nas periferias de Teerão. Um período de seis meses, entre Janeiro e Julho, segundo evento no processo do seu julgamento 694 indivíduos tinham sido executados – causaria uma onda de revolta por parte de assim, apenas na primeira metade deste ano, o jornalistas e activistas dos direitos humanos a número quase igualava o de 2014 na sua nível internacional: a 13 de Junho deste ano, totalidade. Said Boumedouha, director do quando o advogado Mohammad Moghimi programa do Médio Oriente e Norte de África visitou Farghadani na sua cela, ter-se-ão na Amnistia Internacional, afirmou: “Se as despedido com um aperto de mão. O gesto, autoridades iranianas mantiverem esta taxa banal na cultura ocidental, conduziu a terrível de execuções, o mais provável é que cartoonista a ser novamente acusada, desta vez vejamos mais de mil mortes promovidas pelo por “conduta indecente” e “relações sexuais estado até ao final do ano. A pena de morte é ilegítimas próximas de adultério”. O seu sempre abominável, mas levanta preocupações advogado também foi acusado. adicionais por ter lugar num país como o Irão, O presente artigo pretende divulgar o caso no qual os julgamentos são evidentemente de Atena Farghadani a leitores portugueses e injustos” (The Guardian, 2015). A maioria dos inspirar um leque de questões sobre a relação condenados foi executada devido à posse de entre arte, a privacidade e a intimidade, a drogas, mas “as penas de morte foram condição de ser mulher e a lei. Pretende-se que impostas por ofensas vagamente definidas ou a história relatada inspire mudança, reflexão e demasiado abrangentes, ou por causas que não uma nova postura relativamente ao tema da deveriam ser criminalizadas de todo, quanto liberdade de expressão, hoje fortemente mais atrair a pena de morte. Julgamentos no ameaçada um pouco por todos os continentes e Irão são profundamente defeituosos: os detidos punida de modo bárbaro. Direcionamos hoje o são frequentemente impedidos de ter acesso a nosso olhar para Atena Farghadani. um advogado, e os procedimentos são desadequados no que toca a recurso, graça e Direitos Humanos no Irão: relato de uma queda www.contraditorio.pt comutação.” (BBC News 2015). Entre os presos políticos do Irão contam-se jornalistas, 2 Artigo 15/43 | 1 Dezembro 2015 advogados, activistas (entre os quais qual as autoridades iranianas atiram tantas estudantes), membros de minorias religiosas e acusações espúrias quanto possível, de modo a étnicas, bem como activistas dos direitos das assegurar múltiplas sentenças. As acusações mulheres. De acordo com a Reporters Without são Borders e o seu Índice de Liberdade de abrangentes”. Imprensa Global de 2015, a República considerar o modo como a artista foi detida: Islâmica do Irão ocupa o 173º lugar numa lista regressava do hospital devido a uma lesão na de 180 países, continuando a representar “uma mão. A sua casa foi revistada por doze polícias, das cinco maiores prisões para as organizações que confiscaram diversos bens, entre os quais de notícias e informação”. A Freedom House, livros, um computador, um tablet e o telemóvel organização não-governamental que conduz – ferramentas prioritárias para exercer o direito pesquisa nos temas de democracia e liberdade à liberdade de expressão na actualidade. frequentemente A vagas situação e demasiado agrava-se ao política a nível mundial, confirma: numa À defesa pela libertação de Farghadani, que escala de 1 a 7, do mais para o menos livre, o varre as redes sociais como uma imparável Irão encontra-se no nível 6, com restrições corrente, juntam-se vozes contra a detenção do intensas de liberdades civis e direitos políticos. jornalista Jason Rezaian, correspondente do As consequências são desastrosas, e o caso Washington Post no Irão, e a sua esposa particular de Farghadani inspira um leque de Yeganeh Salehi, que seria a correspondente questões sobre a relação entre arte e Estado iraniana para o jornal dos Emirados Árabes (Teixeira 2015), mas também sobre a relação Unidos The National. Presos desde o dia 22 de entre a arte, a lei e os direitos da mulher no Julho de 2014, foram impedidos de contactar mundo islâmico. De acordo com a Fundação um advogado durante os primeiros cinco Fahmy para a Liberdade de Imprensa: “Sob a meses de detenção e foram sujeitos a lei iraniana, a pena máxima que Atena isolamento prolongado, bem como negação de Farghadani poderia enfrentar para as suas acesso a cuidados básicos de saúde – ambos ofensas seria oito anos e seis meses. Contudo, considerados uma provisão no novo código penal do Irão Internacional Portugal na sua campanha STOP permite a imposição de sentenças que excedem Tortura. Enquanto escrevo, o grito pela o máximo permitido quando existem mais de libertação três crimes. Origina-se uma nova tendência na Mohammadi, activista iraniana de direitos www.contraditorio.pt de tortura Jason pela continua. Amnistia Narges 3 Artigo 15/43 | 1 Dezembro 2015 humanos e mãe de duas crianças, foi presa do Paquistão ou pertencentes à comunidade novamente em Maio deste ano após um longo cigana, como é o caso em Portugal); historial de detenções que teve início em 1998. adicionalmente, o debate sobre a legalização Os casos de presos políticos no Irão da prostituição continua, com perspectivas multiplicam-se e comprovam que Farghadani conflituais relativamente ao que a indústria não está sozinha no seu encarceramento sexual representa para a posição feminina na injusto2. sociedade (Hansen e Philipson 1990; Gerhard 2001; O'Neill 2001). Analisando o caso de Sobre a Lei e o corpo de Farghadani Farghadani, a relação entre lei e corpo é dolorosamente evidente e revela-se no seu Atena Farghadani escolhera o tema do seu cartoon em resposta – e em protesto – a uma política iraniana de bloqueio de acesso a métodos anticoncepcionais e de obstáculo ao pedido de divórcio por parte das mulheres. Se é evidente que o direito e a religião têm, desde sempre, regulado a interacção entre géneros e a relação entre os seus corpos, a pertinência do tema é real: na Irlanda debate-se o tema da legalização do aborto, que é percepcionado como uma violação do direito à vida; por outro lado, as controvérsias em relação ao vestuário muçulmano feminino persistem na Europa e no Médio Oriente; casamentos forçados são ainda uma realidade, principalmente na Ásia do Sul e em África, mas também no interior de comunidades imigrantes na Europa e nos Estados Unidos (principalmente provenientes pior. A Atena Farghadani foi imposto um teste de virgindade forçado, que conhecemos devido a uma nota que a artista fez passar em segredo desde a sua prisão e que foi revista pela Amnistia Internacional EUA. A nota referia que autoridades judiciais a forçaram a submeter-se a um teste num centro médico externo, bem como a um teste de gravidez devido a ter apertado a mão ao seu advogado em jeito de cumprimento. De acordo com uma declaração por parte da Amnistia Internacional nos Estados Unidos da América (2015), “Os testes de virgindade coercivos são internacionalmente reconhecidos como uma forma de violência e discriminação contra mulheres e meninas. Também violam a proibição absoluta de tortura e comportamento 2 Figura 2: Retratos de quatro prisioneiros políticos no Irão. Atena Farghadani encontra-se no canto superior esquerdo. www.contraditorio.pt 4 Artigo 15/43 | 1 Dezembro 2015 cruel, desumano e degradante sob a lei seu acto de liberdade de expressão através da internacional, incluindo o artigo 7 do Pacto humilhação corporal? Pode o mundo permitir Internacional dos Direitos Civis e Políticos3, que uma suposta ofensa intelectual seja punida que o Irão ratificou.” Tipicamente, um teste de com uma grave ofensa física? Pode uma nação virgindade forçado envolve a inspecção do como o Irão, membro de organizações para a hímen da vítima ou um teste que pretende protecção de menores, igualdade de género e verificar o grau de flexibilidade e abertura de acesso a cuidados básicos de saúde como o vaginal utilizando os dedos (evidentemente de Alto Comissariado das Nações Unidas para os terceiros, desde médicos a potenciais noivos ou Refugiados, a Confederação Mundial do a própria avó da vítima), sob a dúbia presunção Trabalho ou a Organização Mundial da Saúde de que tais factores indicarão se uma menina continuar a propagar uma mensagem de teve ou não relações sexuais. Entendemos desigualdade, tortura, invasão da intimidade e portanto que esta prática viola profundamente de silenciamento? Até que ponto uma prática o direito à privacidade, ao próprio corpo e à retrógrada como um teste de virgindade pode intimidade, assumindo que as escolhas íntimas ser aplicada como consequência de um aperto femininas podem e devem pertencer à esfera de mão – sem consequências ou sanções? pública, enquanto a intimidade do elemento masculino não sofre o mesmo escrutínio – o objectivo, portanto, é certificarmo-nos de que Conclusão: #Draw4Atena, o Mundo em reacção ambos são respeitados no seu direito ao corpo e à privacidade do seu íntimo. O ano 2015 viu uma revolta geral nas redes Enquanto a prática do teste de virgindade é sociais a favor da artista Atena Farghadani, aplicada num contexto pré-matrimonial para exigindo a sua libertação, demonstrando comprovar a “qualidade” da noiva, o caso de solidariedade para com a sua situação e Atena Farghadani não deixa de invocar as denunciando uma história muito real que ainda seguintes questões: foi a artista castigada pelo não viu o seu desfecho. Por um lado, a 3 célebre Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos Sociais e Culturais. O Pacto em questão entrou em vigor em 1976. Entre os países que nunca chegaram a assinar o pacto encontram-se a Malásia, o Qatar, a Arábia Saudita, Singapura ou os Emirados Árabes Unidos. De acordo com o Gabinete Português de Documentação e Direito Comparado, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, (em inglês International Covenant on Civil and Political Rights) é um dos três instrumentos que constituem a Carta Internacional dos Direitos Humanos, a par com a www.contraditorio.pt 5 Artigo 15/43 | 1 Dezembro 2015 Amnistia Internacional deu início a uma elementos que condenaram a artista foram petição internacional pedindo a libertação de insistentemente utilizados sem censura pelos Farghadani, apresentando-a na embaixada caminhos das redes mundiais: as autoridades iraniana em Londres no mês de Maio e iranianas são representadas constantemente fazendo-se acompanhar de um protesto como animais, principalmente macacos, burros público. Na rede social Twitter, as hashtags e bovinos. É significante que o movimento #freeatena (libertem a Atena), #draw4atena tenha (desenhem pela Atena) e #atenafarghadani cartoonistas continuam a somar participantes, alguns internacional e até por amadores. Uma das denunciando a situação, outros publicando caricaturas mais populares é a da ilustradora caricaturas em sua defesa. No Facebook, uma Sophia Zarders, que criou a série “The heroes página foi criada apenas em apoio à artista, we deserve” (as heroínas que merecemos), redigida 12.402 representando activistas e prisioneiras políticas seguidores.4 Talvez o aspecto mais crucial e do mundo em formato de super heroínas7. apelativo do movimento para a libertação de Também Atena Farghadani foi incluída na sua Farghadani seja o seu carácter artístico5. A série, com a arma mais poderosa que poderia Internet permitiu a divulgação de caricaturas ostentar – uma caneta, representando a pessoais em defesa da liberdade de expressão e liberdade de expressão. De igual modo, as ruas claramente referenciando o caso de Atena, de Nova Iorque e Nova Jersey converteram-se divulgados através de redes sociais como o em telas para os Street Art Anarchy, um popular Instagram. Cartoonistas de todo o projecto de arte urbana online que actualmente mundo reuniram-se, manifestando-se através coordena a iniciativa “Not a Crime” (não é um do mesmo formato de crítica visual que levou crime), em defesa de jornalistas e artistas na língua persa, com sido largamente pouco sustentado conhecidos a por nível Atena à prisão6. Ironicamente, os mesmos 4 Dados de 25 de Novembro de 2015. Figura 3. Caricatura publicada pela organização Journalism is not a Crime, evidenciando a obra que levou Atena Farghadani à prisão na tela, e recriando as autoridades iranianas com cabeças animalescas. Atena Farghadani está representada ao centro. A caneta que segura é um símbolo da liberdade de expressão. 6 Figura 4. O cartoonista Tim Wilson publicou o seu manifesto pela libertação de Atena: uma vez mais, as 5 www.contraditorio.pt autoridades iranianas surgem em corpos de animais, representação que levou a artista a ser condenada. 7 Figura 5. A ilustradora Sophia Zarders manifestou-se contra a situação de Farghadani representando-a enquanto super heroína na sua série “Heroes we deserve”. A sua arma, uma caneta; o seu poder, a liberdade de expressão. 6 Artigo 15/43 | 1 Dezembro 2015 detidos injustamente. A primeira cara do seu mural em Brooklyn foi Atena Farghadani8. Após mais de um ano de prisão e a contar, Atena Farghadani recebeu o Prémio de Maria Inês Teixeira, Investigadora e Activista de Direitos Humanos Coragem em Cartoon Editorial. Despertando consciências através de uma história que reúne a violação dos direitos de liberdade de expressão, de privacidade e de igualdade de Citação: Maria Inês Teixeira, 2015, Libertar Atena Farghadani, or as Consequências de um Aperto de Mão, Artigo 15/43, Contraditório Think Tank, www.contraditorio.pt género, poderemos caminhar na direcção de um maior entendimento sobre as tensões Copyright: Este artigo é disponibilizado de acordo actualmente presentes nos países islâmicos e com os termos da licença pública creative diminuir o distanciamento a que tanto commons recorremos, por vezes justificando políticas (http://creativecommons.org/licenses/by-nc- governamentais desastrosas com o carácter nd/2.5/pt/deed.pt). cultural ou religioso: o Médio Oriente é ainda uma das regiões mais multiculturais e complexas do mundo que conhecemos, apresentando-se num leque de tons de cinza, e menos como uma região definida a preto e branco. Por detrás da realidade de uma política Referências Amnesty International (2015). Iran: Serious health fears for artist on prison hunger strike (online). Acessível em: conservadora, expressa-se um colectivo de https://www.amnesty.org/en/latest/news/2015/03/i jornalistas, artistas, ateus e agnósticos, liberais mprisoned-iranian-artist-atena-farghadani-on- e feministas árabes, turcos e iranianos cuja hunger-strike/. Data de acesso: 18.10.2015. liberdade – se não a própria vida - se vêem fortemente ameaçadas: e este colectivo não BBC será mais ignorado. Porque futuramente, 'unprecedented afinal, mais refletiremos sobre as consequências de um aperto de mão. News (2015). spike' Iran – executions Amnesty see (online). Acessível em: http://www.bbc.com/news/worldmiddle-east-33635260. Data de acesso: uma evidente 18.10.2015. 8 Figura 6. O projecto de arte urbana Street Art Anarchy não ficou indiferente à hashtag “draw4atena”: o www.contraditorio.pt primeiro mural em Brooklyn é homenagem à artista. 7 Artigo 15/43 | 1 Dezembro 2015 Freedom House (2015). Freedom in the World The Guardian (2015). Executions in Iran could top Report. 1,000 this year, says Amnesty International Acessível em: https://freedomhouse.org/sites/default/files/01152 (online). 015_FIW_2015_final.pdf. http://www.theguardian.com/world/2015/jul/23/ex Data de acesso: 01.12.2015. Acessível em: ecutions-iran-1000-this-year-amnestyinternational. Data de acesso: 18.10.2015. Gerhard, Jane F. (2001). Desiring revolution: second-wave feminism and the rewriting of American sexual thought, 1920 to 1982. New York: Columbia University Press. ISBN 0-23111204-1. Hansen, Karen Tranberg;; Philipson, Ilene J. (1990). Women, imagination: class, a and the feminist socialist-feminist reader. Philadelphia: Temple University Press. ISBN 087722-630-X. O'Neill, Maggie (2001). Prostitution and Feminism. Cambridge: Polity Press. Reporters Without Borders (2015). 2015 World Press Freedom Index (online). Acessível em: http://index.rsf.org/#!/. Data de acesso: 18.10.2015. Teixeira (2015). “Para uma Arte mais Livre? Análise de Tendências Internacionais e a Ameaça da Autoridade do Estado Sobre a Cultura”, Policy Paper 15/35, Contraditório Think Tank. Acessível em: http://www.contraditorio.pt/estudo.php?id=3384. www.contraditorio.pt 8