Bolhas de ar, cristais de gelo e glóbulos de gordura: não há quem não adore! Muitas pessoas são doidas por sorvetes, uma das mais gostosas invenções da humanidade. Embora possa ser encontrado em qualquer esquina, o sorvete é um verdadeiro fenômeno químico: diversas fases heterogêneas que, macroscopicamente, formam uma deliciosa massa homogênea e cremosa. Uma coisa é certa, e todos concordamos: sorvete é gostoso. Mesmo o imperador romano Nero, no século IV antes de cristo, era um adepto: costumava enviar soldados até as montanhas para conseguir neve misturando sucos de frutas, neve e mel, Nero tinha um protótipo do que hoje chamamos de sorvetes. Dentre as várias novidades trazidas pelo aventureiro Marco Polo quando foi para a China, estavam várias receitas de sorvetes - e isto foi antes de 1300! Entretanto, foi somente lá pelo século XVII que o sorvete passou a ser feito sem o auxílio da neve; com a descoberta de que o sal pode abaixar a temperatura de fusão da água o advento da fabricação do sorvete surgiu. Já por volta de 1800, vários restaurantes e cafés da Europa, principalmente na França, passaram a oferecer sorvetes no seu menu. E, em 1851, a primeira fábrica de sorvete, em Baltimore, foi fundada. Poucos anos depois, a refrigeração mecânica (os freezers) foram introduzidos, e sorveterias se proliferaram pelo mundo inteiro. Quem já fez sorvete em casa provavelmente usou gemas de ovos, leite, creme de leite e açúcar, assim como frutas ou suco destas para dar o aroma. Nas grandes fábricas, o sorvete é feito com gordura, proteínas, água, leite, açúcar, estabilizantes e emulsificantes. Não há, de fato, grandes diferenças em relação à composição do "home-made" sorvete. Um alerta: não se deixe enganar pela simplicidade dos ingredientes. A mera existência do sorvete já é uma ameaça aos conceitos fundamentais da química. Num bom sorvete, gotas de gordura, bolhas de ar e cristais de gelo são igualmente dispersos em uma espessa solução de açúcar para formar a matriz semi-sólida, congelada e aerada que conhecemos. Repare, na figura abaixo, como as micelas sempre ficam próximas aos glóbulos de gordura. Fazer o sorvete "dar certo" é uma arte. Se você colocar os ingredientes acima em um liquidificador, bater e depois levar ao freezer irá obter uma meleca: enormes placas de gelo envoltas em um creme irregular e desuniforme. Para fazer o sorvete com um freezer, a mistura deve ser agitada manualmente e, mesmo durante o resfriamento, continuamente. Somente a agitação regular pode evitar a formação de grandes cristais de gelo. Agora, se você for um químico, a tarefa pode ser muito mais simples: basta misturar os ingredientes ainda quentes e jogar uma boa quantidade de nitrogênio líquido. Instantaneamente, o sorvete (de ótima aparência) fica pronto. O nitrogênio líquido esfria a mistura tão rapidamente que não há tempo para grandes cristais de gelo se formarem, criando um sorvete fino, cremoso e homogêneo. Parte do nitrogênio, na forma de gás, é aprisionado dentro da mistura, fazendo o sorvete ficar particularmente aerado. Perfeito, em apenas 30 segundos. No leite, a gordura é aprisionada em membranas protéicas, sob a forma de glóbulos. Estes glóbulos são bastante estáveis no leite, mas esta não é uma qualidade desejada para o sorvete: para formar um bom sorvete, estes glóbulos devem ser menos estáveis. Para isto, os fabricantes adicionam emulsificantes (surfactantes), como mono ou diglicerídeos, que diminuem a tensão superficial dos glóbulos, permitindo a formação da emulsão coloidal. Um sistema coloidal é definido como um sistema que tem um ou mais componentes com um tamanho variando de um nanômetro a um micrômetro em pelo menos uma dimensão. Se agitarmos uma mistura de água, óleo e surfactante teremos uma emulsão coloidal. Como visto na figura, o aumento da concentração de emulsificante faz com que mais glóbulos de gordura possam ser vistos na interface com o ar, ou seja, uma maior interpenetração da gordura nas bolhas de ar - uma qualidade ideal para a estabilidade do sorvete. Isto também é importante para a retenção da forma do sorvete com o aumento da temperatura. Entretanto, para fazer com que o sorvete não colapse e ainda tenha derrete-na-boca características, as concentrações de mono- e diglicerídeos precisam ser meticulosamente selecionadas. Se forem muito altas, os glóbulos de gordura colapsam em grandes blocos gordurosos, fazendo o sorvete parecer uma manteiga. O sorvete deve permanecer por horas a 4oC, num processo chamado envelhecimento, onde os glóbulos são estabilizados e a viscosidade da emulsão aumenta, devido à hidratação dos emulsificantes. Os fabricantes evitam o supercrescimento dos cristais de gelo através de grandes pás rotatórias, que quebram os cristais em pedaços menores do que 50 micrômetros. A aeração é muito eficaz: um sorvete regular contém mais de 50% de ar! Sem isto, a textura de um sorvete não seria tão diferente de um cubo de gelo, e daria uma péssima impressão ao paladar. Um quadro abaixo ilustra a importância de uma boa aeração. O ar no sorvete é um tema constante de pesquisas químicas. Mais que um desafio para os cientistas, é uma arte para os fabricantes. As bolhas devem ser pequenas e uniformes, finamente dispersas. Se colapsarem, saem da mistura e o sorvete não retém mais sua forma. De uma maneira geral, as bolhas de ar não podem ter mais do que 100 micrômetros de diâmetro. Se forem maiores, o sorvete derrete muito rapidamente. Aí entram as proteínas: são elas que estabilizam as bolhas de ar e os glóbulos de gordura! A principal é justamente a caseína, uma proteína micelar, abundante no leite. São as micelas de caseína que ficam em volta dos glóbulos de gordura, tornando-os estáveis dentro da emulsão. E os sacarídeos e polissacarídeos presentes também têm um papel importante: impedem esta de congelar completamente, pois diminuem o ponto de fusão do líquido. O resultado é uma viscosa solução, que faz com que o sorvete seja macio - e não duro como um iceberg! Esta solução saturada de sacarose é chamada de plasma ou serum. Num bom sorvete, o serum está sempre no estado líquido. Na aeração, o creme é batido juntamente com o ar. O tempo é um fator importante; na primeira figura, com apenas 30s de agitação, as grandes bolhas de ar escapam da mistura, restando apenas pequenas bolhas na emulsão Após 75s de agitação já observase a existência de bolhas maiores. A melhor situação parece ocorrer a 105s, onde os glóbulos de gordura e as bolhas de ar estão bem dispersos na emulsão e bastante estáveis. Se o tempo for maior, como vemos na foto a 120s, há demasiada coalescência dos glóbulos de gordura, formando grandes fases gordurosas. O sorvete recebe os ingredientes finais: sucos ou aromas artificias de frutas, com o sabor requerido, além de corantes e outros aditivos. No caso de pedaços de frutas ou castanhas, o cuidado é especial: estes elementos são tratados quimicamente antes de serem adicionados, pois podem carregar bactérias e outros contaminantes, capazes de destruir a emulsão. O sorvete, então, é armazenado em temperaturas inferiores a 30oC; acima de 25oC os cristais de gelo continuam a crescer e as bolhas de ar se expandem. Alguns modelos de sorvete vêm com uma cobertura de chocolate ao redor. O processo para fabricação destes sorvetes não é muito complicado, e envolve o uso de nitrogênio líquido, conforme descrito no quadro ao lado. Como é feito a cobertura de chocolate ou de sucos no sorvete? Utilizando banhos sucessivos de nitrogênio líquido, os fabricantes são capazes de desenvolver uma "casca" de chocolate ou de suco no sorvete de palito. Devido ao aprisionamento de micro-bolhas de ar entre as camadas de cobertura, o resultado é um sorvete crocante. Há várias formas de monitorar a estabilidade de um sorvete. Uma delas é a medida da taxa de derretimento: os químicos colocam o sorvete sobre uma grade, dentro de uma cabine de temperatura controlável. Hoje, milhões de toneladas de sorvete são consumidas anualmente. Além de ser um bom negócio, o sorvete também é um vasto campo de pesquisa para os químicos: a ciência está sendo convidada a participar das várias etapas da fabricação do sorvete.