A IMAGEM DA PAISAGEM LITORÂNEA: uma Investigação através da Pesquisa Qualitativa ARAUJO, ANDREIA M. B. Universidade de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo Rua Dr. Amando Franco Soares Caiuby, 250, apto 61-A, São Paulo/SP [email protected] RESUMO A construção da paisagem acontece a partir da referência dos próprios homens que nela vivem e envolve emoções e sentimentos que brotam por meio das experiências, da vivência de cada ser. A imaginação, neste caso, é fundamental na construção de uma paisagem que, por depender da rede de referências de cada um, é única, individual, e só acontece se houver uma intenção de busca pela paisagem. Por outro lado, a paisagem registra a existência humana em seu habitat, é todo o espaço envoltório do homem como ambiente terrestre, em que sua leitura atenta revela os costumes humanos. Trata-se do resultado da interação do ser humano no espaço em que ele vive, sendo experimentado, sentido, vivenciado e, em uma relação fenomenológica, uma imagem de paisagem se apresenta. Dessa forma, preconiza-se a construção da paisagem cultural como um processo da sociedade nessa interação, onde se deflagram e se trabalham valores. Com o passar do tempo, a imagem da paisagem do litoral sofreu um processo evolutivo seja em função de um imaginário respaldado em preconceitos ou mitos históricos, seja pela busca desenfreada por refúgio pelos turistas, longe da vida agitada da cidade, resultado de um imaginário humano que busca a visão do paraíso. A paisagem no litoral brasileiro vem sofrendo constantes alterações, cujos ecossistemas foram os mais impactados pela ocupação e pelo extrativismo. Através dos processos metodológicos que norteiam a pesquisa qualitativa, analisa-se Barra de Catuama, praia do litoral norte do estado de Pernambuco, em uma investigação sobre quais sentidos a paisagem desse lugar tem afim de se compreender a relação do homem com o lugar e da formação do processo de construção daquela paisagem cultural. Palavras-chave: litoral; paisagem; percepção; imagem do litoral; natureza O conceito de paisagem tem passado por vários momentos na história e guardado várias definições nas diferentes situações e contextos da sociedade. Desse modo, falar sobre paisagem se mostra polêmico na medida em que uma definição para o termo “paisagem” é buscada constantemente. Sob a perspectiva geográfica, a paisagem acontece sobre uma base física, um suporte biofísico, que é influenciada por fatores geomorfológicos e climáticos, responsáveis por sua conformação ao longo do tempo (GRIGORIEV, 1986), mas no entanto, parte de um acontecimento existencial, resultado da ação do homem sobre a natureza, sobre o meio em que vive. Este artigo, no entanto, se propõe a tratar sobre a imagem da paisagem litorânea a partir do princípio da noção de paisagem enquanto apreensão estética da natureza, fazendo uso da percepção e enquanto abrigo de uma imagem única e individual, formada a partir da rede de referências de cada ser. A noção de paisagem, sob esse ponto de vista, passou por vários momentos na história, sendo ignorada, apreendida, contemplada. O papel da natureza na determinação conceitual dessa noção de paisagem, pode-se dizer, é indiscutível. Mas, da mesma forma que a noção de paisagem encara as diversas lentes da sociedade, o conceito de natureza também enfrenta uma diversidade de olhares, funções e papeis na humanidade. Diferente do ‘gosto pela paisagem’, o ‘sentimento da natureza’ está presente de um modo muito profundo desde as religiões das épocas mais primitivas, próxima dos filósofos da antiguidade em uma coerente aproximação com os deuses, em uma reflexão de que o 'cosmos' é a 'ordem do mundo'. Com o nascimento da filosofia, nasce também o seu primeiro conteúdo, a cosmologia, o “conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza” (CHAUI, 2000, P. 28). O homem era ser constituinte, estava imerso na totalidade, representava a unidade no Todo. A relação Divina estava presente no modo como a natureza era considerada, pela transcendência, em que para se elevar ao ser invisível de Deus, o homem ultrapassa o limite dos fins práticos, transcendendo através do conhecimento livre da filosofia. A noção de paisagem como apreensão estética nasce da contemplação da natureza em um ato de aproximação com o Divino, a teoria filosófica, que designa a visão contemplativa como celebração, uma prática de homenagem aos deuses, elevando o ser ao Todo da natureza, à divindade, à ordem do mundo. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro Para Besse (2006, p. 1 e 2), o marco inicial de um novo olhar à paisagem acontece na experiência de Petrarca na subida ao Monte Ventoux, quando abandona seu cotidiano e, atraído pela natureza, pela busca do inexplorado, um sentimento compartilhado pelo espírito viajante dos italianos, abraça uma empreitada para se entregar à contemplação, e defende que é "na contemplação desinteressada do alto, do mundo natural aberto ao olhar", que reside sua "modernidade". A partir daí, a contemplação passa a apreender a natureza como paisagem através do sentimento estético, em que o homem é liberto do sentimento da grande natureza em sua totalidade e passa a ser cativado pelo conjunto formado por elementos da natureza e, através de um olhar artístico, capaz de identificar e recortar a paisagem na natureza, a paisagem é criada pelo artista com o nascimento da pintura. O pintor exerce papel fundamental na interpretação da natureza através de seu olhar aguçado, artístico. Sob o ponto de vista da geografia, Besse (2006) nos leva ao entendimento de que a representação cartográfica e a representação artística da paisagem possuíam o mesmo vocabulário no século XVI, uma comparação entre geografia e a pintura, em que ambos, geógrafo e pintor, compartilhavam semelhantes olhares, uma mesma "atitude cognitiva", mas que não se confundiam. Trata-se de uma competência visual compartilhada que propiciava a leitura da paisagem através da percepção dos signos do mundo, da observação da natureza. Landschap, landschaft, paese, eram termos que, até os séculos XVII e XVIII, se referiam a um significado territorial e geográfico, “num sentido sobretudo jurídico-político e topográfico [...] a província, a pátria, ou a região”. (BESSE, 2006, p. 20) O autor relata que, diferente da perspectiva histórica da pintura estabelecida a partir do século XVII, que considera a paisagem “como a extensão de um território que se descortina num só olhar desde um ponto de vista elevado”, o olhar geográfico define Landschaft como “um lugar que se define por vizinhanças, humanas e naturais” citando o autor da “Crônica de Misnie”, 1580, Peter Albinus: “[...] em que parte do mundo, em que país, em meio a que povos, junto a que vizinhos, montanhas, cursos d’água, florestas e outros lugares notáveis, se encontra aquilo que em latim se chama o sitium”. (in BESSE, 2006, p.21) É então que, com o entendimento geográfico mais detalhado de cada região através da corografia, que compartilhava das mesmas convenções iconográficas da representação paisagística da natureza e reconhecendo o espaço como o horizonte do habitat humano, surge a nova “paisagem do mundo” e a nova representação cartográfica do ecúmeno. (BESSE, 2006) 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro Nesse aspecto, o mapa-mundi e o atlas constituíam suportes que se permitiam ter uma visão global, proporcionando a organização da experiência da diversidade das coisas terrestres para o olhar, em que o mapa se torna um vasto quadro da paisagem. A apresentação cartográfica e pictórica da paisagem passa a adquirir valor filosófico da contemplação: o locus amoenus, o lugar ideal, a paisagem ideal. A atividade contemplativa encontra, na visão da paisagem, seu meio e sua riqueza. A Terra passa a ser apresentada como um todo do qual o ser humano participa, em que ela é a imagem e o homem é aquele que a contempla, promovendo a relação mantida com sua superfície através de uma estrutura de percepção e de pensamento. O dispositivo teatral, onde a terra é vista e o homem vê e também é visto, é representado na série “Grandes Paisagens (1560)” de Peter Bruegel, em que são incluídos elementos dos detalhes corográficos e topográficos, físicos, construídos ou naturais, e culturais, como experiência visual do mundo terrestre. Bruegel mostra a terra constituída como espetáculo observado, objeto contemplado, em que os personagens das pinturas são observadores da paisagem. Coloca em cena uma “relação visual entre o mundo e um olhar”, um recurso teatral. A superfície da terra é claramente uma imagem a ser contemplada (BESSE, 2006). Em suas pinturas o observador está disponível para a observação da paisagem, com um ângulo de visão favorável (afastado ou elevado). É o que une o mapa-mundi e a representação artística da paisagem, ou seja, é preciso afastar-se, desprender-se para percebê-la como um todo. Segundo Besse (2006), a comunicação entre a cartografia e a experiência paisagística pode ser direta, através da contemplação, ou indireta, através da pintura. Trata-se da relação entre sujeito e objeto, dispositivo formal da percepção e pensamento. O mapa-mundi e a pintura são condições, suportes para a apreensão e percepção da paisagem – função da representação paisagística e suas relações com a geografia, que evidencia a experiência sensível da terra como espaço aberto, a ser percorrido e descoberto. A paisagem registra graficamente o novo pensamento e experiência da Terra como solo da existência humana. Para Besse (2006), Ritter analisa o mapa e a visão da paisagem como portadores de um novo gênero de experiência do mundo Terrestre. A representação moderna da paisagem passa a ser a consciência estética da natureza. Mas, para tanto é necessário ir até à natureza, contempla-la, e a partir daí, perceber a paisagem. A representação paisagística é o prolongamento e a transformação da contemplação da ordem do mundo. A contemplação estética é própria da concepção moderna da paisagem. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro De todas as formas de ver, de encarar a paisagem, fica evidente que o sentimento da paisagem surge a partir do olhar do homem, quer seja através de um recorte, um enquadramento, um olhar artístico na pintura, quer considerando a Terra seu habitat humano, o ecúmeno, que vem a repercutir, inclusive, no modo de representação cartográfica, mas sempre o homem experimentando um novo olhar da natureza, o da apreensão estética. Segundo o filósofo Georg Simmel, em seu texto Filosofia da Paisagem, a apreensão estética, através da capacidade artística que existe em cada um, é formada segundo cada vivência, uma síntese cultural que constitui nossa imagem do mundo. Quanto à paisagem, à atmosfera da paisagem, ela depende do espectador, do seu estado de espírito, e reside no seu reflexo afetivo, uma relação entre causa e efeito, uma formação espiritual. O DIVÓRCIO ENTRE O HOMEM E A NATUREZA A medida em que o homem passa a explorar novos horizontes com a mercantilização, a capitalização, ele se ‘divorcia’ da natureza. Trata-se da cisão do homem e da natureza; uma ruptura que alcança seu apogeu na época moderna, rumo ao processo cultural. A paisagem na sociedade moderna comporta a condição de desalienação do homem com relação à natureza. Se o homem do campo, o homem não-tecnológico, é prisioneiro da natureza, no sentido de ser parte constituinte, o homem da cidade, livre, tecnológico, é alienado, desconhece a natureza. O homem não-tecnológico envolve sua própria imersão na natureza, a sua harmonia com ela, o equilíbrio cósmico (NORTHROP, 1956). Trata-se de um momento em que o homem se desvincula, se liberta da natureza, coisificando-a, fazendo uso de seu recurso em benefício próprio. No entanto, o ‘divórcio’ tem uma nuance positiva, pois ao mesmo tempo que afasta o homem da natureza, o aproxima, quando promove um momento de apreciação estética através da arte, que passa a ter a função de resgatar a essência da natureza perdida, principalmente com o acelerado desenvolvimento social e urbano. A sociedade moderna liberta o homem e, através da mediação estética, mantem a possibilidade de uma relação entre o homem e a natureza, pois permite perceber e exprimir essa coexistência. Mas, para que, em sua grandeza, a natureza seja representada, é preciso que seja vista como ela reflete na interioridade dos homens. Ela é retomada de forma estética pela literatura e pela arte a partir das relações que ela estabelece com a sociedade. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro Os artistas, portanto, se veem representantes da natureza, que se comunicava com eles como se pudesse transmitir sua ameaça de desaparecimento; eles eram responsáveis pelo registro e conservação de sua lembrança. O divórcio entre a sociedade e a natureza propiciou esta condição da representação como forma de retomada da totalidade da natureza perdida, promovendo a condição de sujeito e objeto. O homem é liberto da totalidade da natureza como ser constituinte, mas faz uso da arte, da percepção sensorial, da forma estética da arte para manter presente essa totalidade; é o surgimento da paisagem a ser contemplada pelo sujeito, o homem. UMA CONTRIBUIÇÃO FENOMENOLÓGICA PARA A PAISAGEM Segundo Chaui (2000, p. 65), uma corrente filosófica foi iniciada pelo alemão Edmund Husserl no século XX através do “interesse pela consciência reflexiva ou pelo sujeito do conhecimento”, a “fenomenologia”. Ela considera inseparáveis sujeito e objeto; para esse campo o objeto sempre é percebido através de uma relação interdependente, uma inter-relação das coisas sensíveis, um entrelaçamento, trabalho de diferenciação que vai se dando entre sujeito e sujeito. Segundo Chaui (2000, p. 153), fenomenologia e Gestalt (configuração, figura estruturada, forma) trouxeram algumas modificações para a filosofia, principalmente no que diz respeito às ideias, antes defendidas pelos empiristas e intelectualistas, acerca da percepção e da sensação que, para Husserl, eram indistintos. Para ele, “sentimos e percebemos formas, isto é, totalidades estruturadas dotadas de sentido ou de significação”. A forma é uma estruturação com base na qualidade, quantidade e significação, em que se evita ter uma visão formalista ou racionalista, pois esta esgota todas as outras possibilidades de vivência, enquanto que na fenomenologia, a formação do sentido da percepção está o tempo todo sendo refeita; se percebe uma forma organizada ou uma estrutura, pois “a percepção não é causada pelos objetos sobre nós, nem é causada pelo nosso corpo sobre as coisas: é a relação entre elas e nós e nós e elas; uma relação possível porque elas são corpos e nós também somos corporais” (CHAUI, 2000, p. 157). A identidade é formada sob determinado prisma que, com o movimento pode ser confirmada ou alterada, e neste caso, a visão é reestruturada. Assim, a noção de paisagem surge da percepção, pois, a totalidade que se estabelece na percepção tende a fortalecer a totalidade do campo visual. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro Desse modo, a paisagem acontece ‘entre’ sujeito e objeto; é a mediação entre o homem e o ambiente. Não se trata de uma avaliação somente sob o ponto de vista geomorfológico, dado objetivo, ou simplesmente uma ilusão subjetiva, mas de um evento único, permeado por um sentido também singular, que é formado pela história, vivência, valores, ou seja da rede referencial existente em cada ser. A paisagem, portanto, surge à medida em que há uma intenção de busca pela paisagem e está relacionada à afetividade, no sentido de ser afetado de alguma maneira, seja ela positiva ou negativa, envolvendo emoções, sentimentos. Dessa forma, o ambiente vai registrar objetos e costumes de sentimentos, de visão comum entre membros de um mesmo grupo, que vão compor uma identidade coletiva. A IMAGEM DO LITORAL Na busca de se entender a imagem atribuída ao ambiente litorâneo, passando pelos caminhos percorridos pela sociedade para se alcançar a noção da paisagem através da apreensão estética associada à imagem formada através da rede referencial de cada ser, vale passar um pouco pela imagem que se forma culturalmente a partir de mitos e símbolos deixados por gerações passadas que se impregnam no imaginário coletivo. Várias foram as teorias surgidas acerca da Terra em que situavam todos os homens sobre o mesmo continente e os oceanos eram vistos como “vestígios diluvianos” (CORBIN, 1989, p. 15). Ratificando Corbin, Carvalho (1997, p. 15) afirma que “o mar estava ligado ao desconhecido, aos mistérios, às punições diluvianas”, atribuindo à tradição religiosa este simbolismo. O imaginário do homem na época clássica sobre o mar fazia referência ao temor, aos mistérios do “elemento indomável”, cuja ausência de forma se mostra estranha, representa “o inacabamento da criação, [...] simboliza a desordem anterior à civilização”. Ao mesmo tempo em que não fazia uma profunda referência “ao retorno ao ventre criador, o desejo de absorção que atormentará os românticos” (CORBIN, 1989, p. 12). Com base nas teorias de Burnet, Corbin (1989, p. 14) afirma que o mar e suas bordas eram considerados desprovidos de qualquer estética, não podendo ser originados da Criação, “não poderiam resultar do trabalho original da natureza”. Para ele “o mar […] sua bacia, seus litorais, as montanhas que o delimitam [...] constituem o mais pavoroso espetáculo oferecido pela natureza” (CORBIN, 1989, p. 14). 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro Todos esses conceitos foram desenvolvidos com base na interpretação bíblica acerca do dilúvio, que depois passam a ser considerados antiquados. No entanto, a literatura religiosa exerceu importante papel no simbolismo do mar e de suas praias. Um exemplo citado por Corbin (1989, p. 18) a respeito da representação do oceano é através da literatura francesa que apresenta o “mar muito amargo”, em que “descobrem o oceano, quase totalmente ausente das paisagens risonhas do Renascimento”. E na pintura Romana do século XVII, cita Claude Lorrain, que apresenta o simbolismo religioso do mar. Muito embora os avanços científicos realizados pela Inglaterra, a partir do século XVII, tenham motivado o lançamento de um novo olhar sobre o mar, até metade do século XVIII, “predominam o temor do mar e a repugnância em permanecer em suas praias” (CORBIN, 1989, p. 64). Segundo Corbin (1989, p. 65), “o irresistível despertar do desejo coletivo das praias” vem surgir entre o século XVIII e XIX, como alternativa à nova forma de vida das civilizações, um refúgio. No Brasil colônia, mesmo sendo o litoral considerado fonte de recursos naturais e minerais, os costumes e modos de vida se reproduziam com base no que acontecia na Europa através da entrada de estrangeiros pelos portos, localizados na costa como maneira mais rápida de comunicação. Segundo Carvalho (1997, p. 69-71), entre poucas das cidades brasileiras, Recife apresentava “um modo de vida particularmente urbano” decorrente do domínio holandês, que transformaram “numa das mais modernas e esplendorosas cidades do Continente”. Elevada à condição de Capital de Pernambuco apenas em 1825, Recife foi fruto da necessidade de repouso de viajantes e de armazenamento da produção açucareira em porção de terra próxima ao encontro dos rios Capibaribe e Beberibe que se unem ao mar. Sette (1948) relata a preferência holandesa pela ocupação à beira-mar em detrimento àquela pioneira, Olinda: “os homens práticos da Holanda haviam ensinado como era robusta tolice encarapitar-se uma povoação em montes quando poderia se estabelecer à beira-mar com um ancoradouro que a própria natureza riscara” (SETTE, 1948). No entanto, a não valorização da praia no século XIX é registrada pelo cronista Mário Sette (1948) em trechos de seu livro “Arruar: história pitoresca do Recife antigo”, como por exemplo: “Cais do Apolo, vaidoso de ter deixado de ser praia”. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro Nesse contexto, o local buscado para contemplação, para veraneio, embora ainda com muito preconceito, era “o mato”, como cita Sette (1948): “Coqueiros, jaqueiras, um ar de quietude, de ‘passar festa’, de distância. De ‘mato’. Ainda se tinha muito o preconceito, se não o pavor, do mato. O mato era o subúrbio. Ia-se para o mato quando se procurava um arrabalde para morada ou vilegiatura [...] No mato, cada um metido no seu sítio como bichos...”. Aqui o ambiente litorâneo, embora referindo-se àquele distante do centro urbano, também se mostra presente em suas palavras. No século XIX, nas grandes cidades litorâneas brasileiras haviam os chamados “tigreiros”, escravos que carregavam barris (tigres) com os excrementos humanos a serem lançados em rios e praias (SANTOS, 2008). Impulsionado por questões de saúde pública, surgem sistemas de coleta de lixo e de esgotos, dando condições de se olhar a cidade sob um novo ponto de vista: “1858 [...] A vasilha do lixo à porta, farejada pelos cães vadios, demonstra que já existe uma carroça coletora dêsses restos de varreduras e de cozinha. Não é preciso mais enterrá-los no fundo do quintal ou mandar o escravo atirá-los à maré [...] os negros que carregam nas barricas mal cheirosas os dejetos humanos deixarão de transitar à noite pelas ruas” (SETTE, 1948). Os banhos de mar passaram a assumir uma conotação de ascensão social, uma evolução do caráter terapêutico que anteriormente adotava, como diz Sette (1948): “...os banhos salgados fizeram verdadeira revolução social. Até então seriam apenas ‘terapêutica’, agora passaram a ‘elegância’. Inventavam-se doenças como nervoso, chiliques, bambeza nas pernas, tédio, para se ir passar a festa na praia. [...] Vinha o médico, e para estar na moda receitava banhos salgados”. Em uma abordagem acerca da transformação da cidade após a Revolução Industrial, em que “efetivava-se a renovação das estruturas oligárquicas antes apoiadas no monopólio da terra, além da acumulação de inventos mecânicos que multiplicavam a produtividade do trabalho humano”, Carvalho contextualiza a dinâmica de uma nova sociedade “estressante do trabalho rotineiro e especializado” e classifica a cidade como “o lugar dos homens cansados”, da qual se precisava fugir para renovar suas fontes de energia (CARVALHO, 1997, p. 73-74). Esse modo de ver a cidade é semelhante à considerada pelos ingleses nesse mesmo contexto histórico, cuja preferência paisagística remetia à tradição rural. Segundo Lowenthal e Prince (1972), os ingleses consideravam a cidade “uma prisão da qual se foge em qualquer 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro oportunidade”. Defensores de um modo de vida rural, cuja essência da nação se baseia no campo, “com exceção dos recantos litorâneos, há poucas coisas na Inglaterra em que um ambiente rural não é geralmente preferido”. (LOWENTHAL e PRINCE, 1972, p. 82-83) (tradução nossa). Em nosso caso, Carvalho (1997, p. 73-74) faz uma referência acerca da “carência de espaços diversificados de lazer” e da “estratificação social” e apresenta o litoral “como um grande parque” que “oferece um imenso espaço de lazer democrático”. A visão atual que se tem a respeito do ambiente litorâneo é resguardada pelas sensações, absorvidas pelos sentidos dos vivenciadores, o “domínio do visível ou de tudo aquilo que a visão abarca, sons e movimentos” (SANTOS apud CARVALHO, 1997, p. 13-14). São “capazes de interferirem na maneira de se perceber o lugar” (CARVALHO, 1997, p. 14) e de formar uma imagem de paisagem, um juízo de valor que agrega uma conotação de qualidade de vida, relacionada inclusive pela proximidade com a natureza, que são alimentados pela condição urbana, onde a maioria da população exerce suas atividades cotidianas. O imaginário popular promove a criação de paisagens artificiais na tentativa de se reproduzirem seus signos, em que se relaciona o ambiente litorâneo à visão do paraíso. Segundo Carvalho (1997, p. 45), isso é responsável pela criação de “espaços destinados ao turismo onde busca-se o exótico”, uma vez que “onde não há natureza, ela é fabricada” e “assim são construídos paraísos artificiais com a finalidade de atrair turistas”, espaços totalmente dissociados de vida, de vínculo com o lugar, de identidade própria, ligados apenas a um imaginário. UMA INVESTIGAÇÃO ATRAVÉS DA PESQUISA QUALITATIVA A pesquisa qualitativa veio a atender às necessidades das ciências humanas em investigar fenômenos que não são mensuráveis, não sendo, portanto, questões que se possam ser avaliadas através de um procedimento quantitativo. Segundo Martins e Bicudo (2005), a pesquisa qualitativa difere da pesquisa quantitativa por trabalhar com fenômenos ao invés de fatos, objetos de trabalho da lógica positivista que defende que todo conhecimento precisa ser provado pela observação empírica, sistemática. A ideia de trabalhar através da análise com base em fenômenos, por sua vez, é a busca pela essência, pelo sentido que se manifesta, que se mostra a si mesmo. Trata-se do significado que se mostra estando situado em um contexto que promove o acontecimento do fenômeno. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro Essa busca se dá através da “compreensão particular” do que se estuda, indissociável de tempo, de espaço e de indivíduo. Trata-se de um método que se concentra em focalizar a essência do fenômeno estudado através das descrições individuais e interpretações das experiências vividas através da “intuitividade” e da “habilidade” do pesquisador e da busca incessante por fazer surgir a teoria e a prática concomitantemente. A metodologia da pesquisa qualitativa, portanto, faz aflorar “os objetos da percepção na sua origem social, histórica e de funcionamento” (MARTINS e BICUDO, 2005, p. 25). O litoral de Pernambuco, assim como todo o Nordeste, foi alvo turístico na busca do lazer próximo da natureza, do local para se passar férias, diante de tamanha exuberância, de águas mornas, clima quente e gente hospitaleira. No caso dos próprios pernambucanos, embora morando a minutos da orla, também buscam um ambiente mais rústico, afastado da agitação urbana para veranear. Inicialmente, essa busca foi intensa no litoral norte do estado, “que antes se destacava nacionalmente como pólo náutico”, em especial a Ilha de Itamaracá, se tornando posteriormente a opção mais popular para a prática do veraneio, mesmo abrigando três estabelecimentos prisionais do estado. Devido a este fato, grande parte da ilha foi ambientalmente preservada, no entanto, o interesse para este fim tem se mostrado estagnado, senão em decadência, devido, inclusive, à “imagem de degradação, decadência e violência que hoje estão associados a Ilha [...] (um) problema que atinge não apenas a Itamaracá, mas todo o litoral norte do Estado”, conforme Diagnóstico Situacional desenvolvido em novembro de 2006 para o processo de revisão do Plano Diretor do Município da Ilha de Itamaracá (PERNAMBUCO et al, 2006, p. 12 e 13). Situada na mesma área estuarina da Ilha de Itamaracá, a praia de Barra de Catuama, no município de Goiana, foi considerada, na sequência, como a opção de busca por aquele ambiente, que guarda grande reserva de mangue – área de grande importância do setor pesqueiro do estado. Este interesse resultou em uma ocupação maciça da faixa litorânea, impedindo, inclusive, a livre circulação de forma confortável à praia daqueles que moram em casas localizadas mais no interior do local. A situação se mostra agravada pela ampliação do parque industrial no município, com a chegada de grandes indústrias do setor automotivo, além da implantação do Polo Farmacoquímico, que vem a representar a ‘chegada do desenvolvimento’, ou seja, a libertação econômica da vida rural e pesqueira, em que as tradições de costumes e formas de vida dos nativos, como a pesca do marisco, por exemplo, cujas habilidades passam de pais 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro para filhos, desaparecem e, em um processo de inversão de valores, dão lugar à agitação urbana. Através da pesquisa qualitativa, buscou-se a compreensão da experiência daqueles que convivem com o litoral em seu dia a dia ou daqueles que buscam este ambiente como segunda residência na tentativa de se entender quais são os sentidos existentes naquela paisagem. Em ambos os casos, a imagem do litoral está relacionada à calma, à paz. Este sentimento, no entanto, encontra-se ameaçado pela supracitada chegada da vida moderna na região. Para a moradora da praia de Catuama, residente há aproximadamente cinquenta anos, a chegada dos veranistas, ao mesmo tempo que representa a vinda da agitação destoante da vida pacata com a qual estava acostumada, traz também uma oportunidade de sustento sem o labor pesado do trabalho agrário. Essa imagem de calma – “meu cantinho no paraíso” – também está presente nas palavras da veranista que, diferente de quem tem naquele lugar seu cotidiano, busca o ambiente de praia como refúgio da vida urbana. Figura 1: Imagem ilustrando uma praia urbana indeterminada, componente restringe cujo vegetal aos se coqueiros alinhados na calçada, onde vegetação de restinga é inexpressiva. Fonte: Google Imagens Para a primeira, embora surjam momentos de memória afetiva com relação à vegetação autóctone, em que a salsa de praia fazia parte de suas brincadeiras da infância – “brincávamos de pular corda” – ao ser apresentada às diferentes imagens de praias, algumas mais rústicas e outras mais urbanas, o desejo demonstrado para um futuro próximo de seu ambiente é para a ordenação da praia urbana (Figura 1), no entanto, demonstrando o temor 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro para todos os aspectos negativos que irão afastar a imagem de paz e calma com as quais sua casa está relacionada, ou seja, “a violência, o barulho do som alto dos carros”. Figura 2: Foto tirada no litoral baiano, ilustrando ambiente de praia um mais rústico, em que o cômoro da praia é vegetado espontaneamente com espécies típicas do ambiente de restinga. Fonte: CAP Para a veranista, sua relação com a paisagem se concentra nos atributos naturais do lugar. Ao ser apresentada às mesmas imagens diferentes de praia, a mesma demonstra seu interesse pela mais rústica (Figura 2) para o seu reduto paradisíaco, porém, em uma relação ambivalente, prefere manter afastada a possibilidade de aproximação dos animais locais no período de sua estada. Figura 3: Imagem ilustrando um ambiente de coqueiral. Fonte: Google Imagens Ainda referente às imagens, reconhecendo o Recife como uma cidade litorânea e o coqueiral (Figura 3) como a referência de imagem de praia – embora corresponda a fazendas de plantação de coco, típicas de grande parte do litoral brasileiro – deseja que esta composição 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro esteja presente na capital pernambucana para um passeio, uma fuga momentânea da agitação da cidade. Através da Pesquisa Qualitativa, pôde-se perceber a existência de uma ambiguidade nos sentimentos expressos pelos entrevistados. Se por um lado a calma, a rusticidade e atributos naturais promovem uma conotação de paraíso, por outro lado o conforto, a praticidade da vida urbana e dos acessos mais rápidos à cidade, a chegada dos veranistas para intensificar a economia de seu negócio local, são aspectos almejados, mesmo que para isso seja necessário abrir mão de seu sossego. Não se trata de uma contradição ou de uma incoerência enquanto desejo, mas de um sentimento ambíguo presente desde o surgimento das cidades até os dias atuais, quiçá mais vigoroso visto a pouca opção de uma paisagem natural, rústica e íntegra cada vez mais rara. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BESSE, J. M. Ver a Terra: Seis Ensaios sobre a Paisagem e a Geografia. Tradução Vladimir Bartalini, São Paulo: Editora Perspectiva, 2006. CARVALHO, M. B. M. Mutações na Paisagem do Litoral Paraibano. São Paulo: Dissertação de Mestrado, FAU USP, 1997. CHAUI, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000. Versão web disponível em http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/convite.pdf CORBIN, A. O Território do Vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GRIGORIEV, A. A. The Theoretical of Modern Physical Geography. In: The Interaction of Sciences in the Study of the Earth. Moscow: Progress Publishers, 1986. p.77-91. LOWENTHAL, D.; PRINCE, H. C. English Landscape Tastes. 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