Magnitude do Problema e os Factores Contribuintes do Erro e dos Eventos Adversos Escola Nacional de Saúde Pública Universidade Nova de Lisboa Autores: Maria João Lage Paulo Sousa, Vanessa Rodrigues Curso Internacional de Qualidade em Saúde e Segurança do Paciente 2 Principais questões a discutir Os eventos adversos nos cuidados de saúde são frequentes? Qual a sua tipologia? Que metodologias se podem utilizar para os conhecer? Quais os principais fatores implicados na ocorrência de eventos adversos? Como funciona e o que se pode aprender com um sistema de notificação de eventos adversos? Como podemos saber se os cuidados de saúde são seguros para o doente? 3 Frequência e tipologia dos eventos adversos relacionados com os cuidados de saúde 4 Eventos adversos: frequência e tipologia “Individualmente, nenhum de nós entraria num avião se o sistema de controle de qualidade atualmente em vigor nos cuidados de saúde fosse adoptado pelas empresas de aviação” KPMG International 2013. The more I know, the less I sleep: Global perspectives on clinical governance. Available at kpmg.com/healthcare Concorda com esta afirmação? Na sua prática clínica ou no seu contacto com os cuidados de saúde já se apercebeu de algum erro medicamentoso, atraso diagnóstico, infeção relacionada com os cuidados de saúde ou erro de identificação? Estes “eventos adversos” são excepcionais? Como podemos saber? 5 Eventos Adversos (EA): frequência e tipologia Nos últimos 25 anos foram realizados muitos estudos de incidência e prevalência, na sua maioria baseados em informação contida nos processos clínicos hospitalares As taxas de incidência de EAs em hospitais atingem valores que variam entre os 3,7% e os 16,6%, sendo que desses a maior fatia (40% a 70%) são considerados evitáveis. MILLS, 1978, LEAPE, 1991, THOMAS, 2000, BAKER, 2004, SCHIOLER, 2001, MICHEL, 2004, WILSON, 1995, DAVIS, 2001, VINCENT, 2001, ARANAZ, 2008 MENDES, 2009, SOOP, 2009, ZEGERS, 2009, SOUSA, 2011, LETAIF, 2011; MENDES ET al 2013 Nos vários estudos referidos, a tipologia de EAs mais frequentes foram os EAs relacionados com: o medicamento (desde a prescrição até à administração); a cirurgia as infeções adquiridas durante os cuidados de saúde os danos por quedas nas instituições de saúde as úlceras por pressão o atraso ou falha no diagnóstico ou tratamento. 6 Eventos Adversos: frequência e tipologia Lesão do doente associada aos 914.124 incidentes notificados voluntariamente no Reino Unido entre Abril 2008 e Março 2009 7 National PatientSafety Agency Report 2009 Métodos de deteção de eventos adversos 8 Métodos de deteção de eventos adversos Podemos conhecer a incidência de Eventos Adversos de várias formas: Retrospectiva (avalia melhor problemas latentes) Análise de reclamações Revisão de processos / prontuários clínicos Conferências de mortalidade / morbilidade Sistemas de notificação de incidentes Prospectiva (avalia melhor falhas ativas e a repercussão no doente) Observação direta dos cuidados prestados ao doente Estudos de coorte 9 Métodos de deteção de eventos adversos – sua utilidade Adaptado de: THOMAS, E. J.; PETERSEN, L. A. - Measuring Errors and Adverse Events in Healthcare. Journal of General Internal Medicine. 18 (2003) 61–7. 10 Métodos de deteção de eventos adversos Observação dos Cuidados (direta ou por vídeo) Utilidade Procedimentos cirúrgicos (ex: distrações, interrupções, comunicação) Unidades de Cuidados Intensivos – procedimentos complexos Simulação e aprendizagem Limitações Confidencialidade Experiência requerida para a análise Efeito de Hawthorne 11 Métodos de deteção de eventos adversos Análise de Reclamações Utilidade Informação disponível em (relatórios, depoimentos, entrevistas) maior quantidade Múltiplas perspectivas, incluindo a do paciente Avaliação de custos Limitações Pequena parte dos EA Informação pouco padronizada Enviesamento (procura de compensação, perspectiva legal) 12 Métodos de deteção de eventos adversos Conferências / reuniões de mortalidade e morbilidade Utilidade Reavaliação de diagnósticos e decisões terapêuticas com recursos a resultados de autópsias* Contribuição multidisciplinar para a discussão de casos Dão origem a medidas de melhoria concretas Limitações Abrangem poucos casos (ex: em pediatria) Avaliam melhor problemas latentes *Alguns estudos sugerem que devido à análise dos resultados das autópsias, foi possível confirmar que os diagnósticos incorretos potencialmente fatais ocorrem em 20% a 40% dos 13 casos (HIGGINSON; WALTERS; FULOP, 2013). Métodos de deteção de eventos adversos Informação do tipo administrativo Utilidade Informação recolhida sistemáticamente e de forma generalizada Informação padronizada, menos susceptível a enviesamento Limitações Pouco informativa em relação ao contexto Influenciados por políticas de reembolso ou incentivo Dependentes de um sistema de codificação 14 Métodos de deteção de eventos adversos Revisão de prontuários / processos clínicos Utilidade Método mais utilizado e reproduzido internacionalmente Revisão sistemática com recurso a “triggers” * reconhecidos Resultados consistentes nos vários estudos realizados Limitações Depende da qualidade da informação registada Sub estima os eventos ocorridos Não considera a perspectiva do paciente *critérios de positividade para a ocorrência de EAs,habitualmente os definidos pelo Institute for Healthcare Improvement (IHI), designados Global Trigger Tool for Measuring Adverse Events (landrigan et al. 2010) 15 Métodos de deteção de eventos adversos Sistema de vigilância activa – notificação de incidentes Utilidade Informação fornecida a partir de experiência ou observação direta de um incidente (janela para o sistema) Potenciador de uma cultura de segurança e melhoria contínua Informação sobre falhas do sistema potencialmente causadoras de EA (possibilidade de prevenção) Limitações Informação subjectiva e voluntária Podem não ser relatados incidentes graves (exposição do profissional que relata) Informação pouco padronizada 16 Métodos de deteção de eventos adversos - particularidades Os EA em Pediatria De acordo com a NPSA (Reino Unido, 2009), as crianças são três vezes mais afectadas do que os adultos pelos incidentes relacionados com a medicação. A revisão de processos/prontuários clínicos num hospital pediátrico mostrou que 15% das crianças hospitalizadas são vítimas de um EA, ou seja, sofrem um dano relacionado com os cuidados aos quais são submetidos. (MATLOW, 2011) A revisão sistemática de processos clínicos para a deteção de EA em crianças tem sido pouco utilizada. 17 Métodos de deteção de eventos adversos As características da população pediátrica que a tornam mais vulnerável são: a dependência de um profissional para os cuidados habituais de sobrevivência e para os cuidados médicos; a comunicação mais difícil e dependente do grau de desenvolvimento; “a imaturidade anatómica” e fisiológica que implicam a adaptação de equipamentos; a realização de cálculos de acordo com o peso; a maior repercussão fisiológica dos EAs medicamentosos a maior prevalência de doença aguda em relação à população adulta FREY, 2010; AMERICAN ACADEMY OF PEDIATRICS, 2011 18 Fatores que contribuem para a ocorrência de eventos adversos 19 Fatores que contribuem para a ocorrência de eventos adversos Um Evento Adverso no Serviço de Urgência Pediátrico Hospital de Dona estefânia, Lisboa Uma criança de quatro meses com bronquiolite e hipersecreção brônquica encontra-se na sala de tratamentos de um serviço de urgência pediátrico a fazer um aerossol com soro fisiológico. Ao seu lado está outra criança de dois meses com vómitos. Ambos têm um acesso venoso. 20 Fatores que contribuem para a ocorrência de eventos adversos Neste hospital, por ter elevada afluência de doentes à urgência, não é colocada pulseira de identificação na criança se esta não for admitida ao internamento. No corredor, o médico informa oralmente a enfermeira: “ É para dar 3 mg de furosemide endovenoso (diurético) à criança que está na sala dos aerossois” Na sala de aerossois, a criança com bronquiolite é levada pela mãe ao banheiro para trocar a fralda. A enfermeira administra o furosemide à criança de dois meses com vómitos (doente errado)". O que deu origem a este incidente? O que faria para que não voltasse a acontecer? 21 Fatores que contribuem para a ocorrência de eventos adversos Do sistema /ambiente Do doente No lactente com 2 meses o diurético causou poliúria e desidratação (menor peso, maior sensibilidade) Dos profissionais Urgência sobrecarregada Doente sem pulseira de identificação Dois doentes com acesso venoso na mesma sala Prescrição oral sem identificação do doente (médico) Administração de medicação sem identificação ativa do doente Da equipa Fraca interajuda. Deficiente comunicação. Não foi feita dupla confirmação (dose, identificação) 22 Fatores que contribuem para a ocorrência de eventos adversos A análise dos incidentes relatados e a determinação dos fatores contribuintes, pode originar informação útil sobre problemas existentes no sistema, detetando quebras de segurança na prestação de cuidados. O modelo de investigação de incidentes mais conhecido foi desenvolvido a partir do estudo de Reason dos fatores humanos implicados no erro e adaptado por Charles Vincent e Sally Adams com a elaboração do London Protocol em 2004 (JAMES REASON,1990; TAYLOR-ADAMS; VINCENT, 2004) 23 Fatores que contribuem para a ocorrência de eventos adversos Um dos aspetos mais importantes na análise de um incidente é uma boa descrição dos factores que contribuiram para a sua ocorrência e a sua classificação de acordo com as várias categorias os relacionados com o paciente (idade, diagnóstico, tratamento, factores pessoais); com o profissional (competência, experiência, stress); com a equipa (comunicação, supervisão, ajuda mútua); com a tarefa (concepção, protocolos e normas disponíveis); com o ambiente de trabalho (horários, sobrecarga, treino, equipamento) com a organização (liderança, cultura de segurança, recursos, políticas). 24 Fatores que contribuem para a ocorrência de eventos adversos Exemplo de propostas de melhoria, tendo em conta os fatores contribuintes detetados no incidente descrito: Confirmação com a mãe da identidade do doente, caso não seja possível a utilização de pulseiras; Prescrição escrita de todas as terapêuticas não emergentes Repetição oral pela enfermeira da prescrição efectuada com confirmação da identidade do doente Informação pelo médico à mãe da medicação prevista para o seu filho (possibilidade de duplo controle pelo acompanhante) … 25 Sistemas de notificação de eventos adversos 26 Sistemas de notificação de eventos adversos Segundo a OMS (2005), o principal objetivo dos sistemas de notificação de incidentes é: investigar e analisar os dados obtidos (notificação+análise) disseminar e implementar recomendações que promovam mudanças nas organizações de saúde, com vista à redução ou eliminação de ocorrências semelhantes no futuro. Os sistemas de notificação devem ser considerados como uma forma de aprendizagem e de melhoria continua da segurança e da qualidade dos cuidados prestados. A sua implementação a nível local e nacional é recomendada (World Alliance for Patient Safety, 2004) 27 Sistemas de notificação de eventos adversos Em alguns países europeus, como a Inglaterra e o País de Gales, a Dinamarca e a Escócia, foi implementado um sistema centralizado a nível nacional, associado necessariamente a uma vasta estrutura para a análise, divulgação, informação de retorno (feed-back) e intervenção, face aos problemas detetados. Estes sistemas nacionais foram rapidamente confrontados com um volume considerável de relatos: De outubro de 2003 a dezembro de 2012 foram recebidos pela NPSA no Reino Unido 8.166.871 relatos. 28 Sistemas de notificação de eventos adversos Dados recolhidos pelo Sistema Nacional de Notificação de Incidentes nos Cuidados de Saúde na Dinamarca entre 2004 e 2011 (122 hospitais e 6000 práticas privadas, acessível ao público desde 2011) 29 Danish National Board of Health, RLSolutions, 2011 Sistemas de notificação de eventos adversos Quando se pensa em implementar/caracterizar um sistema de notificação várias questões se devem colocar: se a escala deve ser local, regional ou nacional; se deve ser de carácter obrigatório ou voluntário; como é que se garante a confidencialidade da informação que é notificada (quais os graus de acesso num sistema electrónico) anonimato – o profissional que notifica pode fazê-lo de forma anónima ou não; qual o grau de envolvimento que o paciente e seus familiares devem ter no processo de desenvolvimento/implementação e acompanhamento do sistema de notificação. 30 Sistemas de notificação de eventos adversos A implementação de um sistema deste tipo obriga à criação de um sistema eficaz de análise, informação de retorno e aprendizagem (melhoria) Uma taxa elevada de notificação de EAs poderá indicar uma cultura organizacional assente no compromisso de identificar e reduzir os erros e EAs, e não um mau desempenho dos profissionais ou da organização, como um todo. Apesar das suas limitações, este método identifica EAs que não seriam considerados através de outros métodos 31 Sistemas de notificação de eventos adversos A implementação de um estratégia de Segurança do Doente não pode no entanto ser baseada apenas num sistema de notificação e análise de incidentes. Apesar da sua capacidade de alerta para perigos insuspeitados no sistema, é necessário considerar as suas limitações mais relevantes: Amostra não representativa (apenas 5% dos incidentes ocorridos são notificados) Informação com pouca qualidade (subjectiva, incompleta) Ausência de um padrão de referência (denominador?) Sabedoria retrospectiva Abordagem reactiva Donchin, 2003 32 Como podemos saber se os cuidados de saúde são seguros para o doente? 33 Os cuidados de saúde são seguros para o doente? Conseguiria responder a esta pergunta na instituição onde trabalha? 34 Os cuidados de saúde são seguros para o doente? O que precisaria de saber: Os doentes são lesados pelos cuidados? Os profissionais realizam intervenções baseadas na evidência? Os planos de ação são monitorizados? Como é mantida uma cultura de segurança? Existem procedimentos padronizados e indicadores? A instituição aprende com os erros? Existe alguma medida para a lesão? Acreditação / Gestão de Risco? Qual é o custo dos eventos adversos e das medidas de melhoria implementadas? 35 Conclusão 36 Ideias principais a reter Os Eventos Adversos (EA) são frequentes e acontecem em qualquer local ou sistema prestador de cuidados de saúde O conhecimento da magnitude (frequência) dos EAs e sua natureza é crucial para a implementação de estratégias com vista à melhoria da segurança do paciente (nomeadamente em países onde esse conhecimento não existe, ou é escasso). Só com base nesse conhecimento local se podem definir as mais adequadas estratégias de intervenção (só se gere o que se conhece) e estabelecer prioridades de atuação. 37 Para saber mais 38 Para saber mais American Academy of pediatrics, Policy Statement—Principles of Pediatric Patient Safety: Reducing Harm Due to Medical Care. Pediatrics; originally published online May 29, 2011; DOI: 10.1542/peds.2011-0967. Aranaz-Andrés JM, AIbar-Remón C, Vitaller-Murillo J,Ruiz-López P, Limón-Ramírez R, Terol-Garcia E, ENEAS workgroup. Incidence of adverse events related to health carein Spain: results of the Spanish National Study of AdverseEvents. J Epidemiol Community Health. 2008;62:1022–9.13. BAKER, G. R. [et al.] - The Canadian Adverse Events Study: the incidence of adverse events among hospital patients in Canada. Canadian Medical Association Journal. 170:11 (2004) 1678-86. 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