55 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Vivências de Médicos Oncologistas Diante da Terminalidade: Uma Análise Compreensiva STEYTLER, Martha Ethel1 SANTOS, Manoel Antônio dos2 GONÇALVES, Maria Carolina Fregonezi3 GONÇALVES, Maria Carolina Osti Fregonezi4 KODATO, Sérgio5 RESUMO Fundamentado no enfoque teórico-metodológico da psicologia fenomenológica, o presente estudo tem por objetivo compreender os significados atribuídos pelos médicos às suas vivências junto a pacientes com câncer em estágio avançado da enfermidade, considerando a aproximação cotidiana à terminalidade. Seguindo as normas éticas vigentes, foram realizadas entrevistas abertas com sete médicos a partir da questão norteadora: “Conte-me sobre como é, para o(a) senhor(a), atuar junto ao paciente de câncer”. As entrevistas foram realizadas nos consultórios particulares dos profissionais, audiogravadas e transcritas na íntegra e literalmente. Em seguida, o material coligido foi submetido à análise fenomenológica de acordo com os passos propostos por Giorgi, Martins e Bicudo, e Valle, com o propósito de extrair as unidades de significado. Segundo a análise das falas dos médicos, atuar junto ao paciente com câncer comporta múltiplas vivências. Assim, percebe-se no contexto do médico, a necessidade de aprender mais sobre aspectos da própria subjetividade envolvidos na experiência com a terminalidade. De acordo com os profissionais entrevistados, a formação médica negligencia o contato com o fenômeno da morte e do morrer. Os médicos revelam sensibilidade e respeito à subjetividade do paciente terminal e tentam conciliar esses aspectos com as necessidades técnicas e protocolos terapêuticos institucionalizados, o que, muitas vezes, desencadeia conflitos internos nos profissionais. Espera-se que os resultados possam contribuir para auxiliar a proposição de estratégias que visem promover apoio emocional aos profissionais de oncologia no decurso da formação profissional e também em programas de pós-graduação e especialização médica, favorecendo a humanização do cuidado. Palavras-chave: fenomenologia; médico; câncer; terminalidade; significados. 1 Mestre em Psicologia pela USP de Ribeirão Preto e membro do Observatório de Violência e Práticas Exemplares da FFCLRP-USP. E-mail: [email protected]. 2 Doutor em Psicologia pela USP e docente da FFCLRP-USP. E-mail: [email protected]. 3 Graduada em Psicologia pela UNIFRAN-Franca e membro do Observatório de Violência e Práticas Exemplares da FFCLRP-USP. E-mail: [email protected]. 4 Graduada em Psicologia pela UNIFRAN-Franca e membro do Observatório de Violência e Práticas Exemplares da FFCLRP-USP. E-mail: [email protected]. 5 Doutor em Psicologia pela USP, docente e oordenador do grupo de Pesquisa do Observatório de Violência e Práticas Exemplares da FFCLRP-USP. E-mail: [email protected]. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 56 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) ABSTRACT This study is based on the phenomenological psychology theoretical-methodological focus and aimed to understand the meanings attributed by physicians regarding their experiences with terminally ill cancer patients, considering their daily proximity to terminality, seeking to learn the meanings attributed to death and dying. Open interviews, following the current ethical guidelines, were performed with seven physicians with the following guiding question: “Tell me about how it is, for you, to work with cancer patients”. ”. The interviews were carried out at the professionals’ private offices. The interviews were recorded and integrally and literally transcribed. Then the material collected was analyzed through phenomenology according to the steps proposed by Giorgi, Martins and Bicudo, and Valle, seeking to extract the meanings units. According to the analysis of physicians’ discourses, working with cancer patients comprises multiple experiences. Thus, it is perceived, in the physician experience, the need to learn more about aspects of the subjectivity itself involved in the experience with terminality. According to the professionals interviewed, the medical formation neglects the contact with the death phenomenon and that of dying. The physicians reveal sensibility and respect to the terminal patient’s subjectivity and try to conciliate these aspects with the technical needs and institutionalized therapeutic protocols, which, oftentimes, lead them to internal conflicts. It is expected that these results contribute to the proposal of strategies aimed to promote emotional support to oncological professionals in their professional education and also in graduate and medical specialization programs, towards the humanization of care. Key-words: physician; neoplasm; terminality; hospice care; meanings. INTRODUÇÃO O câncer é formado por células que sofreram modificações no seu material genético, passando então a apresentar um crescimento e uma multiplicação desordenada. Essas mutações nos genes de uma única célula fazem com que ela se prolifere rapidamente a ponto de formar uma massa tumoral. Isso acontece porque essas células deixam de responder aos mecanismos de controle natural do organismo para criarem os tumores. No entanto, várias transformações têm que ocorrer na mesma célula para que ela se torne maligna. Encontramos mais de 200 doenças agrupadas sob o nome genérico de câncer, que têm em comum o fato de resultarem do crescimento autônomo e desordenado de uma pequena parte do organismo. É chamada de oncologia, a especialidade médica que estuda os cancros, ou seja, os cânceres, como ele se instala e progride, bem como as formas de tratamento (LOPES; CAMARGO, 2000; YAMAGUCHI, 2003). http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 57 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Sobre o câncer, Carvalho (2002) apud Yamagushi (1994, p. 21) cita que: O médico que cuida dos aspectos clínicos é chamado oncologista clínico. Além deste, outros profissionais envolvidos no tratamento são o cirurgião oncológico, o radioterapeuta e o psicólogo, que participam de uma equipe multidisciplinar. A autora relata que a colocação de Yamagushi passa a ser oficial, no tocante a psicólogos na equipe, a partir da publicação da Portaria nº 3.535 do Ministério da Saúde, publicada no Diário Oficial da União, em 14/10/1998. Determinando assim, a obrigatoriedade da presença do psicólogo nos serviços de suporte, como um dos critérios de cadastramento de centros de atendimento em Oncologia junto ao SUS. Este cenário trouxe à tona o desenvolvimento da Psico-Oncologia, área de interface entre a Psicologia e a Oncologia, que realiza conhecimento educacional, profissional e metodológico, acompanhando a transformação da assistência ao paciente com câncer. Seu foco de estudo se estende em todos os níveis de intervenção junto ao portador da doença, e abarca em seu leque de cuidados, a equipe multiprofissional. Nesse aspecto, o eixo norteador das pesquisas atuais nessa área tem sido cuidar de quem cuida, isto é, identificar e compreender os fatores emocionais em jogo nas tarefas assistenciais e oferecer suporte psicológico para os membros da equipe, para que esses cuidadores profissionais possam ter contempladas suas necessidades psicológicas (GIMENES, 1994). Atualmente, o câncer evidencia uma maior possibilidade de cura e sobrevida dos doentes, porém, ainda ocorrem muitas mortes e o estigma de doença fatal/morte permanece firmemente arraigado, trazendo grande impacto para os enfermos e familiares, como também para o exercício da medicina (VENDRUSCOLO, 2001; FALCÃO, 2012). Assim, a resposta psicológica mais comum diante da morte é o medo. Refletindo sobre esse contexto, Kastenbaum e Aisenberg (1983), relataram que o medo do processo de morrer inclui o indesejável sofrimento. Ou seja, é a possibilidade de padecer a aflição física que torna o morrer um acontecimento tão repulsivo. Além disso, podemos dizer que, com a consciência da possibilidade próxima da própria morte, seja pela doença ou pela identificação do doente enquanto seu semelhante, o homem busca rever as prioridades e os valores de sua existência. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 58 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Sabemos que, durante o curso de Medicina, os estudantes estabelecem seu primeiro contato com a morte nas aulas de anatomia, o que pode ser muito sofrido, pois a primeira relação estabelecida é com um ser humano desvitalizado, um cadáver conservado em formol. Além disso, não há espaço para a expressão de sentimentos nessas aulas, de modo que os estudantes necessitam utilizar recursos defensivos para lidarem com o mal-estar interior gerado pela experiência de terem que iniciar seus estudos da ciência da vida utilizando o corpo de uma pessoa morta. Segundo Kovács (1992), nesse contexto pedagógico o primeiro passo é retirar do cadáver qualquer vestígio de identidade humana, pois a possibilidade de pensar que ali havia um ser humano, e que, portanto, a vida é transitória, pode ser muito angustiante. Para o estudante de medicina, desvendar os segredos do corpo, contemplar os meandros de seu funcionamento e recuperação, são os grandes desafios, sendo o maior deles adiar e controlar o trabalho da morte. Para Falcão e Lino (2004), a morte se faz presença cotidiana no exercício da Medicina. Portanto, facilitar a identificação dessa questão seria, obviamente, um tema saliente e relevante na formação do médico. Contudo, os autores contestam que isso seja fato corrente. Relataram que experiências em diferentes situações, tanto hospitalares como acadêmicas, apontam para outra realidade. A morte de pacientes segue como fonte de questionamentos, inquietações e ansiedades para profissionais da medicina envolvidos. Os referidos autores ainda mencionam que o acompanhamento do médico no processo do morrer de um paciente é restrito à tecnologia médica. Assim, diante da morte o que prevalece são as questões que dizem respeito aos procedimentos técnicos mais adequados, fundamentais ao exercício da Medicina, porém empobrecidos diante da vivência da morte como parte da existência humana. Dessa forma, o enfrentamento do sofrimento existencial do paciente que está entre a vida e a morte fica carente de consideração. Isso desvela a falta da orientação ao estudante de medicina e ao médico, em questões relacionadas às dimensões subjetivas da morte e do morrer. O ensinamento ao profissional em formação a lidar com a doença terminal com princípios científicos e tecnologia avançada, se traduz numa clara atitude defensiva para prevenir-se da morte. Esses fatores podem promover “frustrações e http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 59 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) sensações de impotência, quando deparados com a realidade” (EIZIRIK et al., 2000, p. 44). Considerar todos os avanços da Medicina pode levar a crer que todas as doenças podem ser curadas e que às vezes é só uma questão de tempo para que as ciências médicas evoluam a tal ponto. De fato, através desse olhar, a morte pode ser encarada como falha da Medicina, o que faz com que ela deixe de ser parte integrante da condição de vida. Isso posto, os médicos podem se sentir pouco confiantes de que ainda podem ajudar, seja na preservação da qualidade de vida, seja desempenhando seu papel social (PAZIN-FILHO, 2005). Encontramos pesquisas que apontaram dificuldades por parte da equipe cuidadora, principalmente de médicos e enfermeiros, de lidar com algumas questões subjetivas envolvendo pacientes terminais (QUINTANA; KEGLER; SANTOS; LIMA, 2006). O complexo entrelaçamento entre o câncer, a vida e a morte nos faz pensar em como é, para o médico, lidar com as questões que envolvem a morte e o morrer. Afinal, esse profissional, que em sua longa formação aprende sobre a cura das doenças no intuito de salvar vidas, no decorrer de sua prática irá deparar com essas questões liminares. Dessa forma questiona-se: quais os significados atribuídos pelos médicos às suas vivências, considerando a relação com a terminalidade? A presente investigação tem como objetivo compreender os significados atribuídos, por esses profissionais, às suas vivências relacionadas ao câncer em fase terminal. MÉTODO Trata-se de um estudo qualitativo, que teve como referencial teórico a Psicologia Fenomenológica com a proposta de compreender fenômenos da vivência de oncologistas, diante da terminalidade, considerando-os protagonistas da experiência vivida. A Psicologia fenomenológica advém da Fenomenologia que é o estudo da consciência e dos seus objetos. Husserl propôs que no estudo das nossas vivências, desse fenômeno que é estar consciente de algo, não devemos nos preocupar se ele corresponde ou não a objetos do mundo externo à nossa mente. O interesse para a Fenomenologia não é o mundo que existe, mas sim o modo como o conhecimento do mundo se realiza para cada pessoa. Nesse sentido, através da redução fenomenológica, "epoche", consideramos o processo pelo qual tudo que é informado pelos sentidos é mudado http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 60 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) em uma experiência de consciência, em um fenômeno que consiste em se estar consciente de algo (FORGHIERI, 1997). Para Boemer (1994), o conceito de fenômeno se opõe ao de fato. Na pesquisa fenomenológica o pesquisador, quando interroga, está focalizando o fenômeno, e não o fato, ou seja: considera, portanto, os significados que os indivíduos atribuem às suas experiências. Diante do fenômeno da terminalidade, suspendemos quaisquer atitudes, crenças populares, mitos, teorias, estereótipos, preconceitos ou emoções de caráter singular a fim de nos concentrarmos exclusivamente na essência do fenômeno para buscar a compreensão das vivências do oncologista diante do paciente terminal. PROCEDIMENTO Os colaboradores desse estudo foram sete médicos de ambos os sexos e que, em sua prática como profissional autônomo/liberal, cuidam de pacientes oncológicos, atuando junto à clientela infantil, adolescente, adulta e da terceira idade. Foram definidos os seguintes critérios de inclusão/exclusão: - atuação em cuidados paliativos: ter experiência com pacientes acometidos de câncer em estágio avançado, considerados fora de possibilidade terapêutica; - acessibilidade: foram incluídos os profissionais que se mostraram disponíveis para participar do estudo e que estiveram de acordo com as exigências da pesquisa, formalizando sua anuência mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O quadro 1, que segue apresenta uma caracterização dos sete colaboradores da pesquisa, em função do sexo, idade, estado civil, número de filhos, tempo de atuação profissional e contato com morte por câncer na família. Quadro 1: Perfil dos médicos colaboradores da pesquisa. Colaborador Sexo Idade (anos) Estado civil Filhos Tempo de atuação profissional (anos) Contato com morte por câncer na família Rafael Masculino 56 Casado 2 32 Sim Miguel Masculino 36 Casado _ 10 Sim Gabriel Masculino 69 Casado 5 35 Não http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 61 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Ângela Feminino 47 Casada 1 19 Sim Daniel Masculino 34 Casado 1 12 Não Mikael Masculino 45 Casado 2 23 Não Raziel Masculino 49 Casado 2 26 Não Fonte: Elaborado pelo Autor Todos os profissionais têm especialização em oncologia, atendem pelo SUS, por convênio de saúde e mantêm consultório particular, sendo que um deles atende voluntariamente. Dois colaboradores não revelaram sua renda e os demais informaram rendimentos variando entre 20 e 85 salários mínimos. Dos sete entrevistados três haviam tido contato prévio com morte por câncer de familiares antes de se especializarem em oncologia. No contato com os profissionais foram apresentados os objetivos da pesquisa, enfatizando-se que a participação era inteiramente voluntária, sendo que uma eventual recusa não acarretaria prejuízo algum, respeitando a autonomia do colaborador. A busca pelos consultórios particulares aconteceu por uma pesquisa eletrônica na internet, na intenção de listar os médicos oncologistas cadastrados nos convênios médicos que atendem na cidade. Foram registrados quinze médicos, dos quais quatro não concordaram em participar do estudo, dois concordaram a princípio, mas não conseguiram agendar um horário para a realização da entrevista. Apenas dois médicos não puderam ser localizados. A solicitação para o agendamento das entrevistas foi feita através das secretárias dos consultórios médicos, por telefone e também pessoalmente. COLETA E ANÁLISE DE DADOS Seguindo as normas de ética vigentes, a coleta de dados ocorreu em uma cidade com média de seiscentos mil habitantes, no consultório particular dos médicos participantes da pesquisa. A opção pela realização das entrevistas nos consultórios foi motivada pela preocupação de assegurar um local de conforto para os colaboradores, como um espaço familiar em que eles pudessem entrar em contato com as ressonâncias afetivas que possivelmente seriam mobilizadas pela temática do estudo. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 62 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Dessa forma ao agendarem um horário para a realização da entrevista, o médico estaria concordando previamente em ceder um pouco do seu tempo para o cumprimento da sua participação nesse estudo. Para preservar a identidade dos participantes, a cada colaborador foi designado um nome de anjo. As entrevistas foram realizadas individualmente, em situação face-a-face. Utilizamos um áudiogravador digital e caderno para anotações, que configuraram o diário de campo. A aplicação obedeceu às instruções preconizadas pela literatura referente à técnica de entrevista, atentando-se para as particularidades da abordagem fenomenológica. Por se tratar de uma entrevista aberta, não foi seguido um roteiro estruturado préestabelecido. Os depoimentos coletados através da entrevista foram pautados por uma única questão norteadora, aberta, abrangente e não restritiva, envolvendo descrições e histórias, sentimentos, reflexões, técnicas, opiniões, dúvidas, dentre outros temas. Para o pesquisador coube acompanhar, abarcando, a fala do entrevistado, deixando surgir a intuição, a percepção, sentimentos e sensações, enfim, buscou-se o envolvimento existencial, um estar-com-o-outro respeitando-se a singularidade de cada um (FORGHIERI, 1997). A coleta de dados foi realizada no decorrer de uma única sessão, podendo ser estendida caso necessário, fato ocorrido apenas uma vez – o colaborador sentiu necessidade de conceder dois momentos para a entrevista, sendo 30 minutos em um dia e mais 30 minutos em outro momento, com intervalo de uma semana. A duração média das entrevistas foi em torno de 35 minutos. Porém duas entrevistas ultrapassaram uma hora (colaboradores Gabriel e Ângela). As entrevistas foram gravadas e transcritas imediatamente após a realização das mesmas. O conteúdo foi analisado de acordo com os passos propostos por Giorgi (1978), Martins e Bicudo (1989) e Valle (1997), segundo a “análise da estrutura do fenômeno situado”. Dessa forma, realizamos a leitura geral das entrevistas; releitura atenta apreendendo os significados do fenômeno apresentados pelos colaboradores; busca de convergências e divergências dentro de cada depoimento e dentre os depoimentos em geral; transformação da linguagem cotidiana do participante em linguagem psicológica e a síntese compreensiva das unidades de significado reveladas a fim de obter uma configuração global do fenômeno em estudo, posteriormente transformadas em resultados e discussão. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 63 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Considerando a temática da morte entendemos como oportuno criar um contexto que se mostrasse convidativo para o profissional entrar em contato com suas vivências com os pacientes oncológicos. Dessa maneira, a entrevista teve como questão norteadora: “Conte-me sobre como é, para o(a) senhor(a), atuar junto ao paciente com câncer”. Assim, deixamos que os aspectos vinculados à morte emergissem espontaneamente em suas falas, para então serem questionados e devidamente aprofundados, estimulando-os a falarem à vontade e a discorrerem livremente sobre suas experiências, se possível associando-as com outras vivências, idéias ou pensamentos. RESULTADOS E DISCUSSÃO Cada colaborador desse estudo anexou significados próprios, que correspondem à sua vivência enquanto ser-no-mundo, ao seu ser-si-mesmo, construídos no percorrer da história de suas vidas. Contudo, considerando a singularidade e respeitando o modo de existir de cada um dos médicos, são muitas as convergências encontradas. Identificamos três principais categorias temáticas reveladas através das vivências dos oncologistas diante da terminalidade: 1) A visão do médico sobre sua formação e escolha pela oncologia; 2) A polaridade vida e morte; 3) A relação médico-paciente. A visão do médico sobre sua formação e escolha pela oncologia A escolha da medicina como profissão, sem dúvida advém de vários fatores, inconscientes ou explícitos, mas necessariamente como possibilidade de realização pessoal e adequações às aptidões pessoais. Os motivos altruístas e a busca pelo conhecimento são dados evidenciados na pesquisa de Ribeiro (2011). Na sequencia, a autora mostra, fatores mencionados por estudantes de medicina sobre a escolha da profissão: ajudar e servir pessoas, empregabilidade, bons salários, status social, diversidade de áreas de atuação, poder do médico. Os médicos colaboradores falaram a respeito da visão que têm do curso de graduação em Medicina e revelaram a predominância absoluta de uma preocupação com a formação técnica do profissional, o que se desdobra em uma grade curricular que negligencia os aspectos psicológicos e subjetivos do médico, do paciente e da relação médico-paciente. Atribuíram a falta de disciplinas consagradas aos aspectos humanos do profissional e do paciente a várias causas, como a própria abrangência http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 64 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) de conhecimentos técnicos a serem transmitidos, a dificuldade de se tratar de questões relativas ao subjetivo, principalmente à morte e à perda, em um curso que prepara profissionais curadores ou “salvadores” e a um desinteresse dos graduandos sobre essas questões. Há uma lacuna na educação médica quanto ao conhecimento sobre a morte e o morrer. “Os cursos de Medicina de modo geral dedicam, em média, somente quatro horas-aula para esse assunto” (CATALDO NETO et al., 2003, p. 484). Segundo os médicos entrevistados, nesse momento de sua formação o futuro profissional ainda não está sensibilizado para a importância do conhecimento sobre aspectos emocionais e existenciais para o seu fazer profissional e seu bem-estar pessoal. Os médicos relataram: O médico não é treinado para isso... O médico é para ser... O médico não é treinado para perda... o médico é um salvador... E, se eu considero isso? Isso é uma falha... (Rafael, 56 anos). Para o médico [na formação] eu acho que é importante. Eu acho que quem trabalha no setor de cuidados paliativos, se não tiver nenhum preparo para isso, acaba às vezes não valorizando, como se diz, acaba banalizando a morte (Mikael, 45 anos). Daniel de 34 anos mencionou ter cursado a disciplina “Psicologia Médica” durante a graduação e considerou essa disciplina relevante para o seu processo de formação, embora reconhecesse sua imaturidade no contexto em que foi vivenciada. Tivemos psicologia médica. Mas na verdade a coisa era muito distante. Primeiro porque não era uma realidade que a gente vivia. Eu, particularmente, não aproveitei porque não entendi o recado (Daniel, 34 anos). Um dos recursos utilizados pelos colaboradores durante sua prática de atuação foi buscar por conta própria conhecimentos psicológicos e filosóficos, bem como assistir a palestras e cursos a fim de instrumentalizar seu fazer no trato com os pacientes. Eu acho que é importante [estudar as questões da morte e do morrer]. Para o médico estar lidando com isso, estar enfrentando. Durante a minha formação, eu assisti muitas palestras que falavam de morte, era um assunto que me interessava bastante, eu gostava de ir, acompanhar essas palestras (Mikael, 45 anos). Do contexto aluno-formação-professor Rios (2012), descreveu e interpretou três tipos de relação professor-aluno, baseados na onipotência do professor, na construção de vínculo e na desqualificação do aluno. Em cada um deles, um modo predominante de comportamento estaria sendo ensinado de modo informal, http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 65 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) aproximando ou afastando o ensino da ética e também da competência relacional. A autora conclui que as relações professor-aluno na escola médica precisam ser alvo de estudo e atenção, assim como a clara definição de um padrão ético institucional para todos, para que se possa alcançar o objetivo de uma formação humanística em Medicina. É o que encontramos na marca discursiva de Raziel, pontuando para o contexto das questões da morte: O que aconteceu na faculdade foi tudo fruto da nossa experiência pessoal... E nunca, os professores ou docentes fizeram qualquer tipo de orientação, nunca. Porque ninguém te prepara (Raziel, 49 anos). Atualmente ainda observamos o predomínio do modelo clínico individual, oriundo do paradigma curricular “flexneriano”, na formação dos profissionais de saúde, embora tal modelo venha se mostrando insuficiente para responder à complexidade do processo saúde-doença e do paradigma curricular da integralidade do cuidado (SCHERER, 2005). De modo geral, os médicos atribuem a deficiência de uma formação que considere mais os aspectos humanos, a um déficit no processo educacional, mas também, a questões subjetivas dos estudantes que tendem a afastar essas questões emocionais durante os estágios, o que é ilustrado com exemplos sobre o abandono de médicos da residência ao se depararem com a morte, as “escapadas” fortuitas nos momentos de comunicação diagnóstica, dentre outros. Porém já podemos observar uma tentativa de mudança no que se refere à comunicação de “más notícias” aos pacientes, pois treinamentos para esta tarefa passaram a ser incluídos nos currículos de graduação, especialização e educação médica continuada (NONINO, 2012). Sobre a aproximação do médico com a especialidade, os mesmos falaram a respeito dos fatos que os conduziram a trabalhar na cancerologia. A significação dessa escolha provém da identificação com a área e apareceu como um fator contundente seja por ter conhecido um pouco sobre a doença durante a graduação, ou por questões pessoais. Dentre as questões pessoais podemos destacar, para dois dos colaboradores, a convivência com o câncer e a morte pela doença na própria família, como emerge na fala de Ângela: ...eu resolvi ser oncologista porque praticamente todos na minha família morreram de câncer. Todos os meus tios, meus avós, todo mundo da família do meu pai. Então é uma coisa que eu já sabia que queria há muitos anos (Ângela, 47 anos). http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 66 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Outras vivências como as frustrações em trabalhar em outras áreas da medicina e a percepção da inquietude causada no médico, pelo paciente com câncer, fazem com que os médicos sintam a necessidade de buscar a oncologia. ...e aí eu falei, não, eu não agüento mais essa rotina de coisas benignas, eu quero a rotina de coisas, de pacientes que estão enfrentando alguma situação de, de câncer (Rafael, 56 anos). Outra significação importante é a associação do cuidar do paciente com câncer como um desafio. Existe relato de que o paciente oncológico é muitas vezes abandonado, excluído. São os sentimentos suscitados a partir desse quadro de “descaso” que instigam no médico a vontade de conhecer e trabalhar com os pacientes doentes de câncer. E esses pacientes [oncológicos], eram meio que deixados de lado. Eu percebia que ninguém queria muito ficar com aqueles pacientes. Existia aquela questão de nunca falar a verdade para o paciente. E não era que se evitava, somente. Era norma não falar (Mikael, 45 anos). Dessa forma, os médicos expuseram seus pensamentos sobre a visão do câncer, com dizeres muito particulares. A oncologia aparece como a possibilidade do aprendizado de “algo” complexo. “Algo” como aprender a lidar com as frustrações, “algo” como recurso de evolução. Então, talvez se eu pensar nisso e em lidar com oncologia é simplesmente aprender a lidar com frustração. É saber enfrentar esse sentimento de frustração. E para mim é o momento mais rico que eu tenho... de evoluir nesse sentido (Miguel, 36 anos). O Câncer é visto também, como uma doença solitária, e que abrange os fatores biológicos, sociais, mas principalmente os fatores psicológicos, responsáveis pela motivação e disposição do médico para atender seu paciente. porque câncer é uma doença solitária (Rafael, 56 anos). Os médicos expuseram que cada paciente reage à doença e ao tratamento de maneira desigual e única. A dor do paciente e os sentimentos a ela associados provocam diferentes respostas, e exigem dos médicos condutas diferenciadas, mesmo se tratando de casos semelhantes. A polaridade vida e morte Não só os médicos estão hoje tateando caminhos para lidar com os limites da biomedicina. Os que não são médicos também encontram-se entrelaçados com as consequências do uso dos recursos dessa ciência, com os conflitos que muitas http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 67 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) vezes emergem no processo de enfrentamento da proximidade da morte (FALCÃO, 2012). Vê-se também, que na hora da morte, o espanto e a perplexidade parecem envolver todos os que participam desse momento, incluindo-se aí a família e o próprio paciente, que compartilham as angústias e desafios da situação vivida. O paciente doente de câncer é visto como um ser-carente, vítima de problemas genéticos, ambientais e emocionais. Uma apreciação interessante, e que revela a polaridade vida e morte que cerca a doença é traduzida nas marcas discursivas de Raziel e Ângela: “nessa doença, se você não vence, o perder significa perder a vida” e “o câncer tem cura, não é apenas morte”. Diante dessa polaridade, os médicos entrevistados têm percepções semelhantes quanto ao risco de perder um paciente doente de câncer e classificam esse risco como alto. Rafael coloca que quando sabe que um paciente vai morrer, tenta agir de forma com que o paciente sofra o menos possível. Utiliza-se de um diálogo interno questionando-se se a conduta escolhida é a mais adequada para lidar com aquele caso. Rafael: Existe uma árvore de decisões... então eu coloco na arvore e vejo como eu posso ajudar. Eu vejo se o risco é alto de perder, né... eu já me preparo para perder, e já me preparo para fazer com que para essa pessoa a perda seja menos sofrida para ela (Rafael, 56 anos). ...eu nunca parei para pensar... Ah... Mas ela segue alguns trâmites, por exemplo. É estar preparado para falar assim, eu comigo mesmo: olha, eu não vou acrescentar tratamento contra o câncer desse paciente. Porque? Por quê eu não vou ajudar o paciente desse jeito, vou causar mais sofrimento (Rafael, 56 anos). Raziel também acredita que existe um compromisso em oferecer o melhor ao paciente, mas que mesmo assim a doença pode prevalecer. Então, quando acontece, eu percebo que fico muito chateado no dia, e no outro, e eu não sei com que mecanismo aquilo ali vai se esvaindo, talvez até racionalizando... Sei lá, a pessoa tem uma doença e não respondeu. Você tem o compromisso de dar o melhor para o paciente, mas principalmente na oncologia, você não vence sempre, pelo contrário (Raziel, 49 anos). Perante o fenômeno investigado, o modo preferencial que os médicos lidam com o caráter inevitável da morte é o sentimento de tristeza, por vezes acompanhado pelo choro, que tende a se esvair nas vivências cotidianas. A primeira coisa que eu faço: eu choro, eu choro. Aí, depois, a minha razão, a minha consciência me mostra o caminho para seguir. Depois que eu http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 68 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) chorei eu tenho melhor condição para avaliar o que está acontecendo (Gabriel, 69 anos). Quando você perde por causa da doença, aquilo ali é só sofrimento. Eu mesmo, eu convivo melhor com isso depois. Mas na hora é uma tristeza danada (Raziel, 49 anos). Ainda sobre a elaboração do luto, é importante ressaltar a maneira como esses médicos resignificam esses momentos de perdas. Mandar carta para a família do paciente, enfrentar o dia-a-dia e principalmente destacar a vida, seja com os pacientes vivos ou no contexto social e familiar, são recursos atribuídos ao fenômeno em questão. O meu luto vai até o momento que eu escrevo uma carta para a família. E cada carta, eu pesco uma característica pessoal do paciente, na minha percepção... (Rafael, 56 anos). Contudo, as repercussões emocionais do cuidar de pacientes fora de possibilidades terapêuticas podem afetar o conceito do profissional acerca da morte e do morrer. Estudos mostraram que o paciente terminal (incluindo a criança) de algum modo sabe que vai morrer e isso lhe causa intenso sofrimento, principalmente quando está em jogo o afastamento das pessoas queridas (RAIMBAULT, 1979). Relação médico-paciente De acordo com Silva et al (2011), as pesquisas vêm elucidando que a maioria das queixas dos pacientes faz referência a dificuldades de comunicação com o médico e não a sua competência clínica, deixando evidente que um bom relacionamento aumenta a qualidade do serviço, além de influenciar positivamente o estado de saúde do paciente. A referida autora conclui que existem nuances na relação médico-paciente oncológico que diferem das demais especialidades. O status emocional alterado dos pacientes e familiares, a abordagem diferenciada de transmitir o diagnóstico, uma má notícia e as terapêuticas que, em curto prazo, são mais difíceis que a própria doença, tornam-se fatores limitantes aos objetivos da relação médico-paciente, ou seja, construção do vínculo, satisfação do usuário, adesão ao tratamento, qualidade de vida. Através da percepção empática dos seus pacientes, Ângela percebeu ter se deslocado do lugar de “toda poderosa”, passando a entender que é o paciente quem sabe mais sobre a vida dele, sobre as aflições e vontades, e não ela própria. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 69 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) O médico se acha auto-suficiente, né? O todo poderoso. E eu pensava: mas eles têm que fazer o que eu quero. E hoje não, hoje eu penso o contrário (Ângela, 47 anos). Essa relação é um fenômeno importante que perpetua diretamente com as questões da doença terminal. Três dos colaboradores desse estudo deixaram claro que o médico deve ser acessível ao paciente e seus familiares, gerando um clima de confiança na relação médico-paciente. Fornecer os números dos telefones do trabalho, celular e também de suas residências é facilitador nesse contexto, pois consideram que, para os pacientes, esclarecer uma dúvida pode ser crucial. Além do descrito, esse estudo ainda mostrou que a maioria dos colaboradores verbaliza que a relação médico-paciente tem que ser boa, positiva. Para eles o paciente tem que ser respeitado em suas vontades em relação à doença e ao tratamento. Todos os colaboradores afirmaram que a relação médico-paciente, no referido contexto, tem que ser próxima. Descontração e brincadeiras também cabem nessa relação: O canceroso é assim, eu me envolvo com eles. Mesmo aqueles casos que têm mal cheiro, às vezes um caso de câncer de mama, eu brinco, beijo... porque às vezes é um carinho que elas não têm em casa. Danço com elas, eu mesmo assovio e canto (Gabriel, 69 anos). A questão da morte permeando as vivências da relação médico-pacientedoente-de-câncer-terminal surge como presença constante. O paciente passa dos cuidados terapêuticos/curativos para os cuidados paliativos. Essa faceta, no desvelar do fenômeno, tem que ser gradual e caminhar aos poucos. CONSIDERAÇÕES FINAIS É importante ressaltar que o fenômeno investigado é inesgotável. Assim, quando desvelamos algumas das facetas do fenômeno, outras novas vêm a se velar, em um constante movimento. Como declara Rios (2010), a desarticulação da área de humanidades na formação médica é o fato. Fazer sua inserção, o desafio. Na voz e letra de vários autores, é fundamental que nos currículos médicos existam disciplinas específicas da área, sem esquecer de que o aprendizado de valores e atitudes se dá pela observação dos mestres em ação no dia a dia. De acordo com Cannone (2004), uma http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 70 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) vez que as representações são "guias de ação" a existência de uma representação específica para médicos e pacientes nos mostra, uma mudança semântica e emocional, um técnico de medicina que, no futuro, deve se esforçar no sentido de um existencialismo. O consenso é que haja disciplinas e temas humanísticos transversais que se apresentem em diferentes momentos e disciplinas curriculares durante toda a formação do aluno. Contudo, na compreensão obtida por meio da análise das entrevistas destacamos a importância de uma discussão sobre a formação médica no contexto da morte e do morrer. Refletir sobre a prática educativa da graduação dos cursos de Medicina é de suma importância para melhor instrumentalizar o médico em seu fazer profissional diante do paciente terminal, aliviando as angustias emergentes nessa situação-limite. Estima-se que, se houver uma preparação vivencial para acolhimento desses aspectos, haverá também uma melhora da relação do médico com seu mundo próprio, em seu ser-si-mesmo e, conseqüentemente, nas suas relações com o outro, incluindo os próprios pacientes e familiares, e os outros profissionais cuidadores que constituem a equipe de saúde. Acreditamos que, dessa maneira, os médicos teriam mais condições de se apropriar do adoecimento e da morte, oferecendo não somente um atendimento humanizado, mas também uma relação mais humana com aqueles que os cercam. Confiando que a pedagogia das competências no ensino médico encontra-se hoje respaldada nas Diretrizes Curriculares Nacionais e que vem sendo incentivada pelos programas ministeriais como estratégia para promover mudanças curriculares nas escolas médicas, esperamos que estudos voltados para a vivência dos profissionais de saúde e, sobretudo, dos médicos, possam sensibilizar esses profissionais para a complexidade emocional que cerca o seu fazer cotidiano e, assim, ajudem a pôr em pauta esses aspectos tão importantes do cuidado, como forma de amenizar as angústias e dores emocionais inerentes ao viver humano. O benefício que poderá ser alcançado subjetivamente pelo profissional médico, quando aberto para reflexões sobre seus sentimentos, certamente poderá ser revertido nas relações estabelecidas pela equipe com pacientes e seus familiares. Assim, perante a convergência de diversos estudos no sentido de apontarem a formação acadêmica como um locus privilegiado de construção das concepções, http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 71 SILVA, K. F. da. et al., v. 05, nº 2, p. 55-73, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) valores e atitudes do médico frente às questões cruciais de vida e morte, entendemos que, se esse é o solo em que os alicerces da atuação profissional são edificados – um espaço de construção – pode também funcionar como espaço de desconstrução e reconstrução de novas representações e práticas, desde que essa discussão seja incorporada ao projeto pedagógico dos cursos de Medicina. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOEMER, M. R. A condução de estudos segundo a metodologia de investigação fenomenológica. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 2, n. 1, 1994. CANNONE, P. et al. 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