Um homem de sorte
Uma peça de Hayaldo Copque
Esta peça foi vencedora do edital Teatro Nu: Cinema.
Montada em janeiro de 2010 na SALADEARTE Cinema
da UFBA. Direção: Gil Vicente Tavares. Elenco: Carlos
Betão (Homem) e Marcelo Praddo (Morte).
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Personagens:
HOMEM
MORTE
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Ato único
Em cena, duas poltronas e uma cômoda ao fundo com alguns retratos de família. O
Homem está sentado na poltrona à esquerda do público, lendo uma biografia qualquer. Após
um tempo, ele interrompe sua leitura, respira fundo, olha ao redor... Parece bastante ansioso.
Luz à direita. Aparece Morte, um homem vestido como motoqueiro, trazendo o capacete na
mão e uma mochila às costas. Está de costas para o Homem, arrumando-se frente ao espelho,
que não precisa necessariamente estar ali.
HOMEM: Pensei que você não vinha mais.
MORTE: (ainda de costas para o Homem) É, acabei me atrasando. Hoje parece que todo
mundo resolveu pegar a mesma rota que eu. Aliás, o trânsito dessa cidade está cada dia pior.
Morte vira-se e sorri para o Homem, que mantem-se sério.
MORTE: (apontando a poltrona) Posso?
HOMEM: Senta.
MORTE: Obrigado.
Morte senta.
MORTE: E o pior é que todo mundo nessa cidade acha que motoqueiro é bandido. Se não é
agora, vai virar alguma hora. Tive que desviar de umas duas blitz e acabei pegando um
caminho bem mais longo. Mas enfim. Isso não é tão importante. (pausa) E você?
Silêncio. O Homem tem o olhar distante.
MORTE: Tudo bem? Como vai indo?
Silêncio.
MORTE: Ficou surdo...?
Silêncio. Morte aproxima-se, intrigado, do Homem. Olha-o bem nos olhos. Depois,
estala os dedos frente ao Homem, que parece sair da dispersão.
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MORTE: Ei, o que houve?
HOMEM: O quê?
MORTE: Não sei. É o que eu quero saber.
HOMEM: (pausa) Você quer beber alguma coisa?
MORTE: Obrigado.
HOMEM: Certo.
O Homem levanta. Pára ao lado de sua poltrona, de costas para Morte. Olhar
novamente perdido.
MORTE: Você sabia que eu vinha hoje. (pausa) Não sabia?
Silêncio.
MORTE: Olha, talvez você ainda não esteja lidando bem com isso.
HOMEM: Não.
Silêncio.
MORTE: Bom. Mas você também já teve lá bastante tempo e.
Morte se interrompe. Silêncio.
MORTE: (para si) Tá. Tudo bem. (para o Homem) Aconteceu alguma coisa com você nesses
últimos meses? Digo... Alguma coisa depois da nossa última conversa?
Silêncio.
MORTE: O que você anda lendo?
HOMEM: Não deveria ser assim.
MORTE: É, eu sei.
Morte apanha o livro e começa a folheá-lo. Silêncio.
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MORTE: Na verdade, eu nem deveria ter te dado esse tempo. E você sabe disso.
HOMEM: (seco) Eu sou um homem de sorte.
MORTE: É. Talvez.
O Homem ri, saindo da espécie de transe em que estava.
MORTE: O que foi? (pausa) É engraçado isso? É algo engraçado?
HOMEM: É que. Eu devo morrer daqui a pouco e você ainda me considera com sorte?
MORTE: Mas quem me disse isso foi.
HOMEM: Você que me disse isso. Do nosso último encontro. Não lembra?
MORTE: (pausa) Sim. Eu lembro. E continuo achando isso.
HOMEM: Um homem de sorte.
MORTE: (voltando ao livro) Você reclama muito mais do que deveria.
Silêncio.
HOMEM: E como é?
MORTE: (indicando as fotografias, sem abandonar a leitura) Há quanto tempo você não os
vê?
HOMEM: Você já me perguntou isso.
MORTE: Já?
HOMEM: Da última vez que esteve aqui. Há seis meses, você já me perguntou isso.
MORTE: Ah. Claro. Que cabeça a minha. Eu acho que eu ainda tô zonzo de tanta volta que
eu dei pra chegar aqui.
Som de campainha. Morte, subitamente nervoso, levanta rapidamente, pega um
revólver em sua mochila e aponta-o para o Homem.
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MORTE: Silêncio.
Silêncio.
MORTE: Fica quieto. Não se mexe.
Morte está tenso. Os dois ficam parados um tempo, até que o Homem, sem mostrar a
menor preocupação, pega o livro, senta e volta a folheá-lo.
MORTE: Não era pra vir ninguém aqui, agora. Que horas você tem, aí?
HOMEM: Que importância tem?
Novamente a campainha.
MORTE: É tudo calculado. Tudo planejado. Não pode ter furo, entendeu? Na verdade, é
impossível ter furo. Deveria ser.
HOMEM: Então o sistema anda falhando.
MORTE: Não, não, não! Isso não faz sentido.
HOMEM: Assim como você estar aqui na minha sala. (pausa) Pense um pouco, você pode
ter estacionado na frente da garagem do meu vizinho. Eu tenho um vizinho, o daqui do lado,
que é chato pra cacete. No outro dia, só porque eu parei uns dois minutos na frente da
garagem dele pra pegar um documento aqui em cima, o cara.
MORTE: Cala a boca.
Silêncio.
HOMEM: Pode ser tanta coisa também. Por exemplo, eu mesmo poderia ter avisado a
alguém.
MORTE: Não, não poderia. Ninguém viria, e também, eu iria saber.
HOMEM: Pensei que apenas deus era o onisciente.
MORTE: Nós todos somos meio que uma parte dele.
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Novamente a campainha.
MORTE: Levanta.
O Homem deixa seu livro de lado.
MORTE: Pergunta quem é e despacha. (pausa) Vai!
O Homem levanta e vai, calmamente na direção da entrada.
MORTE: Pergunta.
HOMEM: (para fora) Não tem ninguém em casa.
Silêncio. Os dois ficam aguardando.
HOMEM: Desistiu.
Morte senta e tenta acalmar-se. O Homem também vai sentar-se e volta a ler.
Silêncio.
HOMEM: Parece que te pegaram de surpresa, hein?
MORTE: Cala a boca.
HOMEM: (deixando o livro de lado) Sabe? Eu li uma vez sobre isso. É a modernidade
líquida.
MORTE: Cala a boca.
HOMEM: Você nos seus muitos anos de vida não deve estar antenado nisso ainda. Mas é a
tal era das incertezas. Viu aí?
MORTE: Não vou repetir.
HOMEM: (sem dar atenção) Você disse que era tudo calculado e coisa e tal.
Morte vai até o Homem e põe o revólver em sua boca.
MORTE: Já disse pra você calar essa boca!
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O Homem levanta as mãos como quem diz: “tudo bem”, e Morte tira a arma de sua
boca. Silêncio.
MORTE: Já é a segunda vez que isso me acontece essa semana. Não tá certo.
HOMEM: Não. Não tá.
(O Homem começa a rir.)
MORTE: Na boa, pára de rir. O que é que é tão engraçado, hein? O que é que é tão
engraçado?
HOMEM: (entremeando com risos) Nada. É que você. Isso tudo é tão. Eu passei a noite
esperando algo que é imprevisível para a maioria e você. Você que nunca tem nenhum
imprevisto, agora está assim. Desculpa, mas não tem como não rir.
MORTE: É. Tá. “Era das incertezas”. Não. Pra mim, não. Não pode.
HOMEM: Mais uma dessa e eu. Já sei. Já sei qual o seu plano pra mim. É de rir, não é? Eu
vou morrer de rir, não é?
O Homem continua rindo.
MORTE: Não. Na verdade, o plano é que você se suicide.
HOMEM: (repentinamente sério) Como? Eu jamais faria isso.
MORTE: Infelizmente, é assim que você deve morrer.
HOMEM: Mas eu não faria isso. Como? Eu não faria isso.
MORTE: Faria. Na verdade, como eu tive que aparecer pra você por conta do nosso acordo,
não é necessariamente você quem irá fazer isso. Serei eu. (pega um caderno na mochila e
começa a folheá-lo) Todas as condições pra isso já estão dadas. Você perdeu a esposa e desde
então não vê seus filhos. Os poucos amigos, distantes. Nenhuma atividade social. Aliás, quase
nenhuma atividade. De qualquer tipo. Mora só, não tem animais em casa... Em suma, você
está em processo de profunda depressão. Aqui.
Silêncio. O Homem parece ter voltado a seu estado quase que hipnótico. Morte
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entrega seu caderno para o Homem que lê as informações sobre si mesmo.
MORTE: Há seis meses atrás, não estivesse eu em crise e não tivesse te dado mais tempo, era
exatamente essa a solução que você mesmo teria encontrado para si.
HOMEM: Meu deus.
MORTE: É assim. Imprevisível. Mas como eu disse, você não vai precisar fazer isso. Eu abri
um precedente, você teve sua prorrogação. Mas agora, seu prazo expirou.
HOMEM: Um homem de sorte.
MORTE: Pára de repetir isso. E saiba que não é por conta de você ter tido mais um tempo
que você é um homem de sorte.
HOMEM: (indicando o caderno) Você tem aqui toda a minha vida? Nessas poucas páginas,
toda a minha vida?
MORTE: Sim. E com muito esforço.
Silêncio.
MORTE: Vem cá. Quantas vezes, desde que a gente se encontrou, você não ficou aí sentado
nessa poltrona, repetindo esse epíteto de merda, ao invés de se preocupar em aproveitar esses
últimos meses. “Homem de sorte. Eu sou um homem de sorte.” (pausa) E quantos planos
você fez? Aliás, quantos você pôs em prática? Ou melhor. Você tem algum? Tem algum
plano? Um sonho?
Silêncio.
MORTE: Hein?
Silêncio.
MORTE: Quer saber de uma? Sabe quantas pessoas há que tem essa possibilidade de morrer?
Você sabe? (pausa) E você sabe quantas pessoas chegam a nascer pra que, um dia, um dia
qualquer possam, enfim, morrer? (pausa) Não. Não sabe. Você reclama, mas você reclama de
estômago cheio. Você pôde conhecer isso que vocês chamam de vida. A vida. (pausa) Às
vezes, até eu sinto vontade de poder viver, assim, como vocês. Aliás, de certa forma, foi
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porque eu precisava disso, experimentar um pouco essa... essa sensação, que eu resolvi
conversar com você, ouvir sua história. (pausa) Foi por conta disso, dessa... dessa inveja – é,
é inveja – dessa inveja que eu tenho de vocês, por conta dela que eu te dei mais um tempo. E
o que você fez com esse tempo?
Silêncio.
MORTE: Silêncio. Pois é. Nada! (pausa) Eu juro. Eu tento. Eu tento conhecer vocês. Eu
tento entender vocês. Mas vocês não procuram entender a vocês mesmos. Sabe? Você é
mesmo um homem de sorte. Sim! Um dos poucos. Você e toda aquela gente lá fora, naquele
trânsito doentio. Você e toda essa gente que vive por aí: cidade, campo, roça, lama, o
escambau! Toda essa gente mesquinha que vive reclamando da vida, que ela não tem sentido e
blá, e blá, e blargh! Eu tenho nojo de toda essa gente. (pausa) Sabe? Há tantas pessoas que
sequer chegam a nascer. Eu te dei mais seis meses e você não fez nada. Absolutamente nada.
(respira fundo) Eu estou cansado.
(Silêncio. Após um tempo, o Homem levanta.)
HOMEM: Acaba logo com isso.
Morte levanta, pára e, depois, caminha esgotado em direção à porta.
HOMEM: Onde você vai?
Silêncio.
HOMEM: Onde você vai?
Morte sai. Silêncio. O Homem olha em volta. Vai até a mochila, deixada por Morte.
Pára. Depois, tira de lá o revólver. Olha para ele por alguns instantes. Cai a luz.
FIM.
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