O TEMPO QUE LEVA | 5º Tratamento
1. INT. QUARTO DE JAMILA - DIA
Penumbra. A hélice do ventilador reduz sua velocidade até
parar por completo. Por entre duas pás dessa hélice, vêse JAMILA (30) deitada na cama, sobre lencóis bagunçados.
Sua boca está seca. Abre os olhos de uma vez só, como se
já estivesse acordada. Parada, pensa por um tempo. Num
ímpeto, puxa o lençol e senta-se no meio da cama. Ela
veste uma regata velha. Por um momento, encara o
ventilador parado, que está sobre uma cadeira.
Levanta-se e segue para a janela e abre a veneziana de
uma só vez. Uma luz muito clara invade o quarto,
superexpondo a figura de JAMILA, que some na imensidão da
luz branca.
CORTA PARA:
Créditos iniciais sobre imagem aérea da ponte Hercílio
Luz imersa em uma neblina. (Imagem já captada)
2. EXT. RUA - DIA
JAMILA caminha pela rua pontuada por caixas de papelão e
objetos inusitados acumulados em cantos e ao redor dos
postes, como impressoras, televisões, celulares... Veste
uma saia solta, de malha, acima dos joelhos. Regata velha
e branca - aquele branco que já é bege, pelo uso.
Chinelos de borracha que produzem um ruído de atrito
arrastado, ecoando no vazio. Vê-se o suor em seu corpo,
rosto e cabelo. O dia está alaranjado. Em uma das mãos,
carrega o ventilador. Abandono. Carros largados malestacionados, alguns com portas abertas e um deles com o
capô levantado, do qual sai muita fumaça. Dobra a esquina
e segue uma música latina que vem de uma das lojas, que
está com a porta de correr abaixada até a metade. Hesita,
mas entra.
3. INT. LANCHONETE - DIA
A lanchonete, que também é bar, é como qualquer boteco de
centro de cidade, daqueles que parecem estacionados nos
anos setenta. Atrás do balcão, SEU ALBERTO (78) dança
embriagado e sozinho, meio cambaleando, ao som de uma
música latina que sai cheia de interferência de um
radinho a pilhas. Segura um copo, que parece ser de
vinho, em uma das mãos. JAMILA interrompe.
2.
JAMILA
Com licença? Senhor?
SEU ALBERTO
(notando a presença dela)
Quer um vinhozinho?
SEU ALBERTO oferece o copo com vinho. Tem dois cubos de
gelo dentro.
JAMILA
Não, obrigada. Eu só queria
saber...er... O senhor sabe onde
eu posso consertar ventilador?
SEU ALBERTO
Um suquinho, então.
JAMILA
É... Senhor...
SEU ALBERTO
(Estendendo a mão)
Alberto.
JAMILA
(Estende a mão também)
Jamila.
SEU ALBERTO
(gritando)
Vera?
Uma senhora surge de uma porta, talvez da cozinha. É VERA
(75), uma senhora muito magra e tatuada nos braços, com
um cigarro na boca e aspecto mal humorado. VERA
Mas, Alberto! Se não vai ajudar,
não atrapalha! E desliga essa
porcaria desse radio pra não
gastar pilha!
VERA percebe JAMILA.
VERA
Tá fechado, meu amor.
JAMILA
Ah, sim, mas...
3.
SEU ALBERTO
Vera, traz um suco pra... Jamila.
VERA
Um suco, agora? Suco do que? Não
tem nada, Alberto.
SEU ALBERTO
Não tem suco aqui? Nenhum suco?
VERA
Mas só tem dois "limão velho" que
eu tava levando...
ALBERTO
Pronto! Uma limonada!
VERA volta para a cozinha, bufando. SEU ALBERTO
Senta. Pode sentar.
JAMILA olha ao redor e vê caixas e malas. Senta.
JAMILA
(Sentando-se ao balcão)
Vão pra fora?
O ruído da máquina de espremer os limões toma conta do
ambiente. É um ruído constante e mecânico a cada limão
espremido.
SEU ALBERTO
Vamos pra dentro. Pro interior.
Comer comida da boa e encher o cu
(...)
O RUÍDO DO ESPREMEDOR PÁRA, como se tivesse PIFADO...
ouvimos algum xingamento da cozinha. VERA volta em
direção ao balcão.
SEU ALBERTO
(continunando)
(...) de vinho. Mas vinho,
mesmo... De garrafão, sabe? E
comer até morrer.
VERA volta e entrega a limonada, em um copo pela metade,
para JAMILA. JAMILA olha para o copo.
VERA
4.
Queimou o espremedor.
JAMILA
Tudo bem... Obrigada.
O barulho que JAMILA faz ao sorver o suco pelo canudo
parece um carburador.
4. EXT. RUA - DIA
O RUÍDO DO CANUDO da cena anterior mistura-se com o RUÍDO
DO CARBURADOR das motos de um grupo de MOTOCICLISTAS que
cruzam a rua na direção do horizonte, e então voltamos a
ouvir os ruídos dos chinelos de JAMILA, que se arrastam
pelo asfalto na direção oposta aos motoqueiros.
5. INT. OFICINA - DIA
JAMILA solta o ventilador em um balcão. É uma espelunca.
Uma fusão de oficina com museu. Muita poeira. O SILÊNCIO
é rompido por um RUÍDO vindo do fundo da loja. JAMILA
deixa o ventilador no balcão e segue para dentro. O lugar
possui objetos e tranqueiras de todas as décadas,
entulhadas e ocupando qualquer chance de espaço. Há uma
luz pontual ao fundo do corredor, em uma salinha apertada
e de teto baixo. JAMILA aproxima-se.
JAMILA
Oi?
É um HOMEM (35) que está ali, sentado e curvado perante
uma mesa cheia de peças e ferramentas de todos os
tamanhos. Em seu rosto suado, veste grandes lentes de
aumento, um pouco embaçadas, que formam uma máscara
bizarra, distorcendo o formato dos olhos, lembrando um
inseto. Encara JAMILA por pouco tempo e volta a lidar com
uma pequena televisão a pilhas. JAMILA o observa.
JAMILA
(um pouco receosa)
A porta tava aberta.
O HOMEM está muito concentrado, até que larga tudo o que
tinha em mãos para apanhar um cronômetro, no qual aperta
um botão. Olha para cima, como que para os céus ou como
se torcesse pelo resultado. Respira fundo. Então olha
para o cronômetro novamente.
HOMEM
(para si e depois para
JAMILA)
5.
Quatro minutos e vinte e sete
segundos. Por quanto tempo te
olhei?
JAMILA pensa, confusa.
HOMEM
Uns 3 segundos. Vinte e sete
menos três, vinte e quatro.
Puxa um caderninho surrado, tipo Moleskine, que estava no
canto da mesa e faz alguma anotação.
JAMILA
Preciso consertar meu ventilador.
O HOMEM tira o óculos e deixa-o sobre uma bolsa em cima
da mesa.
HOMEM
(levantando-se)
Não vai dar.
JAMILA
(seguindo-o)
Mas você acabou de arrumar a TV
agorinha! Deve ser só algum fio
solto dentro. Só tua oficina tá
aberta.
HOMEM
(Arrumando suas coisas)
Se eu arrumar vai estragar de
novo. Você não sabe que tá tudo
queimando? Falaram que isso
poderia acontecer. Bem...
aconteceu.
O HOMEM revira algumas prateleiras.
JAMILA
O que você tá procurando?
HOMEM
Nunca consegui ajeitar esse
lugar. É tanto entulho, tantas
coisas que as pessoas largam aqui
pra arrumar e nunca voltam pra
buscar e... Achei!
6.
O HOMEM encontra uma caixinha cheia de pilhas e olha para
JAMILA.
HOMEM
Pilhas. Vem, vou fechar aqui.
6. EXT. FACHADA DA LOJA - DIA
JAMILA está parada diante da fachada da loja. Aos seus
pés, o ventilador. Abana-se com a barra da regata, em
movimentos mecânicos. O HOMEM sai da loja e estica-se
todo para puxar a porta de ferro que vem de cima. A porta
grita um barulho metálico ensurdecedor, até chegar ao
chão. Tranca com um cadeado.
JAMILA
E agora, vai pra onde?
HOMEM
Não sei. Você vai pra onde?
JAMILA
Pra casa. Você mora aqui perto?
HOMEM
Não tão perto.
Um cachorro da raça CHOW-CHOW passa por eles,
atravessando o quadro lateralmente.
JAMILA
Tá com fome?
HOMEM
Um pouco. Sim.
JAMILA
Quer ir pra casa comigo? Tem
comida lá.
O HOMEM consente. JAMILA apanha o ventilador. Adianta-se
à frente do homem e sai do quadro. Ele levanta a
televisão pela alça. Segue atrás dela.
7. EXT. RUA - DIA
JAMILA e o HOMEM caminham pela rua. Ele olha ao redor,
olha para o abandono.
HOMEM
7.
Ainda é estranho ver a cidade
vazia.
JAMILA
É, já faz um tempo que começaram
a sair. HOMEM
Mas hoje, mesmo... Não tem mais
ninguém.
JAMILA nota um GAROTO (7) sentado sobre algumas caixas de
papelão, na rua. Lambe um picolé roxo que escorre por
seus braços. O GAROTO encara JAMILA, que continua
caminhando lentamente, até parar. O HOMEM continua. O
GAROTO levanta-se e dobra a esquina.
HOMEM
O que foi?
JAMILA
Nada. Vamos?
JAMILA e o HOMEM continuam seguindo adiante, em um
horizonte de uma rua vazia e prédios abandonados.
8. INT. COZINHA - DIA
JAMILA tira a panela do fogareiro de camping, que está
sobre o fogão e leva-a até a pia, escorrendo a água
quente do macarrão, o que parece a fazer suar ainda mais.
JAMILA
Conseguiu?
HOMEM
(voz off, de longe)
Quase.
JAMILA chacoalha o macarrão no escorredor.
9. INT. SALA - DIA
O HOMEM acabara de ligar a televisão a pilhas,
posicionada no móvel em frente a outra TV, plana e
moderna, fixada na parede.
HOMEM
8.
Deu, ainda tá passando.
JAMILA entra na sala com um prato de macarrão com molho
de tomate e senta-se do lado dele.
Na TV, imagens muito ruins de um telejornal. Cenas
ilustram a narração da jornalista, que prossegue com
interferência de sinal.
JORNALISTA
Cerca de duzentos animais
marinhos, entre golfinhos,
tartarugas e até mesmo baleias,
apareceram encalhados e mortos
nesta manhã na orla da praia de
(sinal sofre interferência).
Ainda é um mistério sobre como
esses animais apareceram e (sinal
sofre interferência). Estudiosos
afirmam que o evento está
relacionado com a onda de
catástrofes que têm acontecido
entre (sinal sofre interferência)
Nesta edição (sinal sofre
interferência) vê-los em breve.
A imagem da TV some, dando origem a um sinal de estática.
JAMILA
O que houve?
HOMEM
Perdeu sinal... Acho.
RUÍDO de ESTÁTICA. Comem.
10. EXT. TERRAÇO - ENTARDECER
JAMILA e o HOMEM estão no terraço do prédio, sentados em
duas velhas cadeiras de praia, enferrujadas e coloridas.
Em um banquinho redondo estão apoiadas duas garrafas de
cerveja e um narguilé. JAMILA dá uma longa tragada e
solta uma fumaça contínua.
HOMEM
Quando teu ventilador parou de
funcionar?
JAMILA
Hoje de manhã.
9.
HOMEM
É um bom ventilador. Você escutou
algum daqueles barulhos vindos do
céu?
JAMILA
Não. E você?
HOMEM
Uma vez, mas não tenho certeza.
JAMILA
E como eram?
HOMEM
Tipo máquinas.
JAMILA dá outra tragada e oferece. O HOMEM dá uma tragada
e tosse, deixando a fumaça escapar desordenada.
HOMEM
Eu não fumo.
Passam um tempo em silêncio.
JAMILA
É hoje.
HOMEM
É.
Olham para o horizonte.
JAMILA
E a tua família?
HOMEM
Meu irmão mora fora. Meus pais
morreram já, os dois. E você?
JAMILA
Os meus foram pro Oeste, ficar
com a minha vó. Eu não quis ir.
HOMEM dá mais uma tragada e dessa vez não se engasga.
JAMILA olha para o lado e vê a bolsa de ferramentas do
HOMEM.
JAMILA
Você não larga dessa bolsa.
10.
JAMILA mexe na bolsa e pega a máscara. Veste-a. O HOMEM a
observa. JAMILA olha novamente para a bolsa.
JAMILA
Qual é a do caderninho? E qual a
do o cronômetro?
HOMEM hesita em responder.
JAMILA
Fala.
HOMEM
De uns tempos pra cá, eu tenho
anotado o tempo que levo pra
fazer as coisas. Qualquer coisa.
Pra saber quanto tempo eu levaria
caso estivesse em alguma
emergência, algo assim. Está tudo
calculado, por categorias de
objetos, por planos de ação...
Enfim, tudo pra não perder tempo.
JAMILA olha para o horizonte e então encara o HOMEM.
JAMILA
E quanto tempo você leva pra
gozar?
HOMEM olha para JAMILA.
11. INT. QUARTO - NOITE
O quarto está
lado da cama.
entreabertas.
Primeiro ela.
se na parede,
imerso em uma penumbra. Transam em pé, ao
Meio vestidos. Ofegantes. Suas bocas
O ventilador, parado, espia-os. Gozam.
Depois ele. Desmontam a posição e encostamlado a lado, recuperando o fôlego.
HOMEM leva a mão ao interruptor, mas a luz não acende.
HOMEM
Acabou a luz, será?
JAMILA
Não, são as lâmpadas. Tem vela na
gaveta.
O HOMEM vai até o criado-mudo e pega uma vela de sete
dias que já está começada, e também uma caixa de
fórforos. Acende a vela. JAMILA começa a se despir.
11.
HOMEM
Você acredita em Deus?
JAMILA sai de quadro. O HOMEM fica só e encara o
ventilador.
12. INT. BANHEIRO - NOITE
Algumas velas estão acesas na cuba da pia. Velas de
vários tipos, tamanhos e cores. Vemos uma bombona de água
com uma boca de regador "enjambrada" na ponta. Dela sai a
água rala e irregular, como de um chuveiro fraco, que
molha o rosto de JAMILA. Seu olhar está perdido frente
aos azulejos. Chora.
13. INT. SALA - NOITE
JAMILA passa nua pela sala escura, apenas com uma toalha
enrolada no cabelo. Olha ao redor e ele não está. Olha
pra cima. Sai do apartamento.
14. EXT. TERRAÇO - NOITE
O HOMEM está sentado nu, na velha cadeira de praia, com
uma garrafa de cerveja na mão. JAMILA vai até ele e
senta-se na outra cadeira. Olha para o horizonte.
HOMEM
Hoje o céu não tem estrelas.
JAMILA olha para cima e suspira. E ficam ali. Fitando o
nada. Esperando por algo que não sabem o que é. Dão as
mãos em um gesto de uma naturalidade fraternal. A LUZ DO
PAINEL DE NEON FLICA???
15. EXT. TERRAÇO - DIA
Uma joaninha passeia pelo concreto do chão, inofensiva,
até o pé de Jamila. Estão no mesmo lugar. O sol toma
conta da cidade e do corpo de JAMILA, subindo pelos pés e
contornando sua pele suada.
Coberta pela toalha que estava no cabelo, acorda,
despertada pelo calor incômodo. Enquanto o HOMEM ainda
dorme, JAMILA olha para o horizonte com um olhar de
estranhamento. Levanta-se e caminha para a ponta do
terraço, sem medo da altura. Contempla a vista, que é
feita de prédios e de um mar ao fundo. Caminha até a
outra ponta do terraço. Olha para o horizonte. Volta-se
para o HOMEM e caminha em sua direção. Acorda-o, feliz.
12.
JAMILA
Qual o seu nome?
O HOMEM abre os olhos, um pouco assustado e olha ao
redor, permanece sentado, ao tempo em que JAMILA abaixase à sua frente.
HOMEM
Já é amanhã?
JAMILA
Qual seu nome?
HOMEM
Marcos.
JAMILA beija-o na boca. Olham-se.
16. EXT. FACHADA DO PRÉDIO - DIA
O HOMEM se distancia, caminhando pela rua, com sua bolsa
de ferramentas e a TV em outra mão. O CHOW CHOW passa por
ele. O HOMEM olha para trás, para JAMILA que está no
portão, e sorri, apontando para o cachorro. JAMILA sorri
de volta.
17. INT. QUARTO - DIA
O caderninho, tipo Moleskine, está sobre a cama de
JAMILA, em primeiro plano. Vê- se JAMILA ao fundo, pela
porta do quarto, andando de um lado para o outro,
recolhendo garrafas de cerveja, arrumando um quadro na
parede... Até que percebe o caderninho e caminha em sua
direção. Pega-o e senta na cama. Abre-o na página marcada
por uma fita e lê, entre rabiscos, "8 minutos e 13"
segundos. JAMILA sorri, aproxima o rosto do ventilador e
aperta o botão de ligar. Seus cabelos dançam em SLOW
MOTION.
FIM.
Download

Baixar o Roteiro