GRAGOATÁ n. 34 1o semestre 2013 Política Editorial A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e Literatura. ISSN 1413-9073 Gragoatá Niterói n. 34 p. 1-372 1. sem. 2013 © 2012 by Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense Direitos desta edição reservados à– Editora da UFF – Rua Miguel de Frias, 9 – anexo – sobreloja – Icaraí – Niterói – RJ – CEP 24220-900 – Tel.: (21) 2629-5287 – Telefax: (21)2629-5288 http://www.editora.uff.br – E-mail: [email protected] É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da E ditora. Organização: Projeto gráfico: Capa: Emendas e diagramação: Coordenação editorial: Periodicidade: Tiragem: Bethania Mariani, Vanise Medeiros Estilo & Design Editoração Eletrônica Ltda. ME Rogério Martins Káthia M. P. Macedo Ricardo Borges Semestral 400 exemplares Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Editora filiada à G737 Gragoatá. Publicação dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense.— n. 1 (1996) - . — Niterói : EdUFF, 2014 – 26 cm; il. Organização: Bethania Mariani, Vanise Medeiros Semestral ISSN 1413-9073 1. Literatura. 2. Linguística.I. Universidade Federal Fluminense. Programas de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem e Estudos de Literatura. CDD 800 APOIO PROPPi/CAPES / CNPq UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Vice-Reitor: Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Diretor da EdUFF: Roberto de Souza Salles Sidney Luiz de Matos Mello Antonio Claudio Lucas da Nóbrega Mauro Romero Leal Passos Conselho Editorial: Mariangela Rios de Oliveira – UFF - Presidente Maria Lúcia Wiltshire - UFF Fernando Muniz – UFF Jussara Abraçado - UFF Bethania Mariani - UFF Maria Elizabeth Chaves - UFF Mônica Savedra - UFF Paula Glenadel - UFF Silvio Renato Jorge - UFF Xoán Lagares – UFF Arnaldo Cortina – UNESP/ARAR Dermeval da Hora – UFPB Eneida Leal Cunha - UFBA Eneida Maria de Souza - UFMG Erotilde Goreti Pezatti – UNESP/SJRP Jacqueline Penjon – Paris III- Sorbonne Nouvelle José Luiz Fiorin – USP Leila Bárbara – PUC/SP Mabel Moraña – Saint Louis University Márcia Maria Valle Arbex - UFMG Marcos Antônio Siscar - UNICAMP Marcus Maia – UFRJ Margarida Calafate Ribeiro – Univ. de Coimbra Maria Angélica Furtado da Cunha – UFRN Maria Eugênia Lamoglia Duarte - UFRJ Regina Zilberman – UFRGS Roger Chartier – Collège de France Vera Menezes – UFMG Sírio Possenti – UNICAMP Teresa Cristina Cerdeira - UFRJ Conselho Consultivo: Ana Pizarro (Univ. de Santiago do Chile) Cleonice Berardinelli (UFRJ) Célia Pedrosa (UFF) Eurídice Figueiredo (UFF) Evanildo Bechara (UERJ) Hélder Macedo (King’s College) Laura Padilha (UFF) Lourenço de Rosário (Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa) Lucia Teixeira (UFF) Malcolm Coulthard (Univ. de Birmingham) Maria Luiza Braga (UFRJ) Marlene Correia (UFRJ) Mieke Bal (Univ. de Amsterdã) Nádia Battela Gotlib (USP) Nélson H. 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Mémoire et démémoire discursives en résistance ................................................................................... 39 Marie-Anne Paveau O vazio como condição: um movimento de sentidos a partir do horror ........................................................................... 61 Lucília Maria Abrahão e Sousa Desejo de desejo na mercadoria e o olhar do artista .............. 77 Luciene Jung de Campos Materialidades discursivas e o funcionamento da ideologia e do inconsciente na produção de sentidos ....... 95 Belmira Magalhães, Helson Flávio da Silva Sobrinho Arquivo, memória e acontecimento em uma política de Fundos Documentais .............................................................. 113 Amanda E. Scherer, Simone de Mello de Oliveira, Verli Petri, Zélia Maria Viana Paim Para além do efeito de circularidade: interpretando as noções de pré-construído e articulação a partir de enunciados idem per idem ........................................................................................... 131 Aracy Ernst-Pereira, Ercília Ana Cazarin, Marchiori Quevedo Uma análise discursiva de sujeitos com gagueira .................. 145 Nádia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo Discurso sobre a criança: a questão do ludicismo ................ 167 Angela Baalbaki Processos, modos e mecanismos da identificação entre o sujeito e a(s) língua(s) ................................................................. 183 Maria Onice Payer Identificação, memória e figuras identitárias: a tensão entre a cristalização e o deslocamento de lugares sociais .... 197 Evandra Grigoletto, Fabiele Stockmans De Nardi Corpo, trabalho e prazer: as práticas de prostituição em cadastros policiais ....................................................................... 215 Fernanda Surubi Fernandes, Olimpia Maluf Souza A milícia e o processo de individuação: entre a falta e a falha do Estado ...................................................................... 235 Greciely Cristina da Costa Das línguas na história: “Upatakon (Nossa Terra)” ............ 253 Maria do Socorro Pereira Leal A interface linguagem/mundo como produção simultânea: quando estudantes enfrentam a administração central em uma universidade pública ................................................... 263 Bruno Deusdará, Décio Rocha Análise discursiva do Plano de Desenvolvimento Institucional do CEFET/RJ: uma proposta de resistência a um discurso institucional hegemônico ................................ 281 Fábio Sampaio de Almeida Maria Cristina Giorgi O significado acional no discurso da Constituição Brasileira: o gênero discursivo normativo constitucional em questão .................................................................................... 299 Ruberval Ferreira, Maria Clara Gomes Mathias A biopolítica dos corpos na sociedade de controle ............... 317 Regina Baracuhy, Tânia Augusto Pereira A pequena família guineana: abordagem discursiva do continuísmo histórico num discurso pela independência .... 331 Beatriz Adriana Komavli de Sánchez RESENHAS Foi “análise de discurso” que você disse? ............................. 345 Silmara Dela Silva Gumbrecht: latência na história .............................................. 351 José Luís Jobim ORGANIZADORES DESTE NÚMERO ................................ 355 COLABORADORES DESTE NÚMERO ............................... 356 NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS .......... 369 Apresentação Esta revista tem como fio condutor estudos contemporâneos em Análise de Discurso, contemplando tanto artigos que se inscrevem no quadro teórico da Análise de Discurso iniciada por Pêcheux e reterritorializada por Orlandi quanto artigos de lugares teóricos outros afins, como a História das Ideias Linguísticas, e ainda aqueles desenvolvidos também sob o termo discurso, como os estudos discursivos com base em Foucault, Maingueneau, Bakhtin, Deleuze e Fairclough. Nela podem ser lidos artigos que concernem à questão do sujeito, da nomeação e do inominável, do nome próprio, do real, do desejo, da ideologia, do arquivo, da memória, da prática científica, da língua, do enunciado, da identificação, bem como artigos que refletem sobre a questão da arte, do corpo, da doença, da criança, do aprendizado de línguas, da criminalização, da violência, do Estado, da terra, dos índios, da propaganda política, das instituições de ensino, da Constituição Brasileira e da sociedade de controle e disciplinar. No primeiro artigo desta Revista, “Disciplinarização dos estudos em Análise do Discurso”, Mariani e Medeiros, as organizadoras, refletem sobre o estado atual das pesquisas em Análise de Discurso no Brasil. Advertem sobre a homonímia do termo ‘discurso’, ‘Análise do Discurso’, dentre outros, apontando, por isso, ser crucial pensar a história de uma disciplina a partir de sua historicidade ("memória da conjuntura teórica que a constitui"), do processo de sua disciplinarização como produção de saber ("os mecanismos político-acadêmicos que a intitucionalizam, permitindo sua transmissão"), e das "tênues linhas que projetam seu porvir", para que se possa refletir sobre produção de conhecimento e sua transmissão. Apontam ainda que, para se desfazerem as evidências que deixam essa transmissão da produção de conhecimento como discursos sem sujeito, é preciso compreender as condições de produção de emergência de uma disciplina. E que, no caso da Análise de Discurso, essa discussão não se poderá fazer sem Eni Orlandi e Michel Pêcheux, dada sua relevância na fundação e construção de discursividades sobre o funcionamento da linguagem em sua relação constitutiva com a história e a ideologia. No artigo “A emergência do sujeito desejante no discurso do MST”, Freda Indursky promove uma reflexão assaz importante para os estudiosos da Análise de Discurso: debruça-se sobre o sujeito discernindo, em seu fecundo trabalho teórico-analítico, a questão da incompletude, da heterogeneidade e da divisão do sujeito. Dando continuidade a uma pesquisa, que tem Niterói, n. 34, p. 7-12, 1. sem. 2013 7 como objeto de investigação o discurso do/sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na mídia, a autora recupera as designações invasão/ocupação para analisar o jogo metafórico do deslizamento de uma designação a outra no discurso de uma liderança do MST, ou ainda, a irrupção do discurso-outro em uma posição discursiva que interdita tal dizível. Marie-Anne Paveau, em seu atigo, “Au nom des noms. Mémoire et démémoire discursives en résistance”, centra sua reflexão teórica na questão do nome próprio. Recuperando cinco nomes próprios em diferentes suportes e materiais imagéticos – grafite na rua, inscrição em lápide de cemitério, nome em lista de nomes no “Mur des disparus français d’Algérie”, nomeação na lista de Legião de Honra pelo Ministro de Ensino Superior e de Pesquisa do governo francês e o nome de uma universidade francesa – para mostrar em sua análise, que parte da noção de memória discursiva de Courtine e na qual proprõe a noção de desmemória discursiva, cinco maneiras de resistir às normas, aos poderes e aos desaparecimentos. Em “O vazio como condição: um movimento de sentidos a partir do horror”, um artigo ao mesmo tempo fecundo e belo, Lucília Maria Abrahão e Sousa se debruça sobre o conceito de Das Ding, em Freud e Lacan, instância do real e do inominável, e, assim, aprofunda questões relativas à psicanálise – é preciso sublinhar que o quadro teórico da Análise de Discurso é atravessado pelas leitura de Freud por Lacan – que são caras à Análise de Discurso. A autora engendra uma reflexão sobre o vazio, o real e a linguagem convocando Machado de Assis, Clarice Lispector e fazendo uma densa análise da exposição “Hace falta mucha fantasía para soportar la realidade” em memória às vítimas do 11-M, em Atocha; como diz a autora, “metáfora visual do que presentifica Das Ding”. Com o artigo de Luciene Jung de Campos, “Desejo de desejo na mercadoria e o olhar do artista”, estamos diante, tal como com o de Sousa, de uma articulação profunda entre a Psicanálise e a Análise de Discurso tendo o campo da Arte como material de análise, no caso de Jung, o foco incide sobre o ensaio fotográfico na publicidade/propaganda. Neste artigo, advindo de sua tese de doutoramento, a autora se propõe a “refletir sobre a ideologia enquanto o ‘espelho’ que cumpre a tarefa de organizar a imagem fragmentada do sujeito dividido e desamparado”. Belmira Magalhães e Helson Flávio da Silva Sobrinho, em “Materialidades discursivas e o funcionamento da ideologia e do inconsciente na produção de sentidos”, se propõem a desnaturalizar discursos que circulam no cotidiano de nossa contemporaneidade. Este artigo, cujo cerne é o materialismo histórico e cujo suporte teórico é o de Análise de Discurso, traz uma reflexão produtiva e necessária acerca da subjetividade em uma teoria de natureza não-subjetiva, como é o caso da 8 Niterói, n. 34, p. 7-12, 1. sem. 2013 Análise de Discurso aqui em foco, para, em seguida, analisar propagandas de telefonia em datas comemorativas do Dia das Mães e dos Pais. O artigo “Arquivo, memória e acontecimento em uma política de Fundos Documentais” de Amanda E. Scherer, Simone de Mello de Oliveira, Verli Petri e Zélia Maria Paim inscreve-se no campo da História das Ideias Linguísticas no Brasil (Orlandi e Guimarães) articulado com os estudos franceses da História Social da Linguística. Traz-nos a criação do Fundo Documental Neusa Carson, renomada linguista brasileira com atuação expressiva no campo da descrição das línguas indígenas, promovendo uma importante reflexão sobre a prática científica como prática social. Neste artigo encontra-se ainda uma leitura de arquivo em dois trajetos temáticos, a saber, Cartografia da língua e de si e Política de línguas e o lugar do linguista. No artigo “Para além do efeito de circularidade: interpretando as noções de pré-construído e articulação a partir de enunciados ‘idem per idem’”, Aracy Ernst-Pereira, Ercília Ana Cazarin e Marchiori Quevedo se detêm em um ponto deveras importante para qualquer Análise de Discurso: o funcionamento da ideologia na articulação dos enunciados. Para isto, tomam enunciados tautológicos e focalizam com vagar e acuidade duas noções teóricas fundamentais que são o pré-construído e o discurso transverso. Nádia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo, em seu artigo “Uma análise discursiva de sujeitos com gagueira”, lança um novo olhar sobre a gagueira com possibilidades terapêuticas. Em seu estudo longitudinal de dois sujeitos com queixas e diagnóstico de gagueira, ambos em terapia fonoaudiológica, a autora demonstra que o suporte teórico da Análise de Discurso possibilita um deslocamento do sujeito de uma posição discursiva dominante, que significa a gagueira como doença, para uma outra, que o permite sujeito-fluente. Em “Discurso sobre a criança: a questão do ludicismo”, Angela Baalbaki, como o título já indica, trata do discurso sobre a criança e mostra como certos sentidos sobre a criança vão se constituindo como hegemônicos. Neste artigo, cujo aporte teórico é a Análise de Discurso, lemos uma criteriosa reflexão que percorre um extenso corpus do século XVIII ao XIX nos permitindo compreender como se vai engendrando o que a autora vai indicar como categoria criança, “produzida nas e pelas relações postas com o sujeito do capitalismo”. Sua outra contribuição consiste no conceito de ludicismo para dar conta desta forma-sujeito histórica. O artigo de Maria Onice Payer, “Processos, modos e mecanismos da identificação entre o sujeito e a(s) língua(s)”, incide sobre uma questão importante na Análise de Discurso que é a da “identificação do sujeito à língua, como correlata da Niterói, n. 34, p. 7-12, 1. sem. 2013 9 interpelação”. A autora nos expõe resultados de sua pesquisa, que concerne a processos de identificação na relação sujeito/ língua, e aqui descreve distintos modos pelos quais as relações entre sujeitos e formas das línguas produzidas na história se marcam na materialidade linguística. Seu cuidadoso trabalho visa ainda a contribuir na prática do ensino de língua. No artigo “Identificação, memória e figuras identitárias: a tensão entre a cristalização e o deslocamento de lugares sociais”, de Evandra Grigoletto e Fabiele Stockmans De Nardi, a questão da identificação também é objeto de reflexão cujo referencial teórico é a Análise de Discurso. Partindo de conceitos expandidos em outros trabalhos, como o de lugar discursivo e mobilizando outros conceitos, as autoras propõem o conceito de figuras identitárias, no quadro teórico da Análise de Discurso, e buscam verificar sua pertinência analisando a figura do Cangaceiro e do compadrito. Fernanda Surubi Fernandes e Olimpia Maluf Souza, em “Corpo, trabalho e prazer: as práticas de prostituição em cadastros policiais”, tocam em uma questão tensa e interdita na sociedade, a prostituição, e incidem seu foco na relação corpo, trabalho e prazer. Após uma reflexão discursiva sobre a prostituição, as autoras tomam como material de análise no campo da Análise de Discurso cadastros policiais que materializam os sentidos sobre a mulher e a prostituição, sem, contudo, abrir mão de pensar a relação entre a profissão de tal público feminino e o Estado na sociedade contemporânea. O artigo de Greciely Cristina da Costa, “A milícia e o processo de individuação: entre a falta e a falha do Estado”, advindo de sua tese de doutorado em Análise de Discurso, vai trazer à cena a questão da naturalização da violência policial no espaço segregado da favela, em que o processo de individuação do sujeito vai ser marcado pela contraditória ausência-presença do Estado: falta e falha. A partir de recortes de sua tese, a autora vai se centrar nas discursividades sobre a milícia (e na historicidade da sua denominação) tomando como material entrevistas com moradores do Rio de Janeiro. Maria do Socorro Pereira Leal, em “Das línguas na história: ‘Upatakon (Nossa Terra)’”, parte de sua tese de doutoramento em Análise de Discurso, cujo escopo consiste na investigação da discursividade pela disputa da terra entre índios e brasileiros, e se centra em manchetes jornalísticas online, aprofundando a questão da denominação dada a uma intervenção policial – “Operação Upatakon” – cuja finalidade era auxiliar na retirada de brasileiros da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Neste artigo, a autora captura o fino jogo estabelecido pela língua indígena na língua do Estado brasileiro. Para o artigo “A interface linguagem/mundo como produção simultânea: quando estudantes enfrentam a 10 Niterói, n. 34, p. 7-12, 1. sem. 2013 administração central em uma universidade pública”, Bruno Deusdará e Décio Rocha, tendo como referencial teórico Bakhtin, Maingueneau e Deleuze, recuperam um evento, a inauguração de um restaurante universitário em uma universidade pública no Rio de Janeiro, com o convite oficial assinado pelo governador, a nota oficial e as notícias divulgadas em página eletrônica, para uma reflexão em torno do sentido na linguagem como produção de um lugar que considera o social e o verbal como dimensões em constante interdelimitação. No artigo “Análise discursiva do Plano de Desenvolvimento Institucional do CEFET/RJ: uma proposta de resistência a um discurso institucional hegemônico”, Fábio Sampaio de Almeida focaliza o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI). Tratase de um artigo que, à luz da Análise de Discurso Enunciativa, vai pensar a instituição de ensino, seu papel e as relações de saber e poder que a constituem, e analisar a construção discursiva da noção de comunidade que ancora o discurso institucional do CEFET/RJ. No artigo “O significado acional no discurso da Constituição Brasileira: o gênero discursivo normativo constitucional em questão”, em que se adota como referencial teórico a Análise de Discurso Crítica, Ruberval Ferreira e Maria Clara Gomes Mathias têm como foco o estudo da construção discursiva do gênero discursivo jurídico-normativo-constitucional e, no caso, focalizam a Constituição Federal de 1988. Os autores, em sua análise, mostram que as constituições, tais como as conhecemos, são fruto de reivindicações da classe burguesa no século XVIII e, entre outros objetivos, questionam o ideal de máxima representatividade da Carta Magna de 1988. Regina Baracuhy e Tânia Augusto Pereira, no artigo “A biopolítica dos corpos na sociedade de controle”, refletem sobre o corpo inserido na sociedade disciplinar e de controle. As autoras percorrem diversos textos de Foucault, a fim de expor a relação entre corpo e poder disciplinar, para, em seguida, pensar, apoiando-se em Deleuze, Courtine e Gregolin, já na sociedade de controle, algumas questões importantes relacionadas ao corpo, como, por exemplo, a sua exposição espetacularizada na mídia na contemporaneidade e seus paradoxos. O artigo “A pequena família guineana: abordagem discursiva do continuísmo histórico num discurso pela independência” de Beatriz Adriana Komavli de Sánchez tem como objeto de análise o pronunciamento que marca a independência da Guiné Equatorial, única nação africana que tem como língua majoritária oficial o espanhol, em 12 de outubro de 1968, e ancora-se na Análise de Discurso de linha bakhtiana. As designações e negativas são algumas das marcas trabalhadas neste material de análise, fruto de uma pesquisa mais ampla que visa a noção de hispanidade. Niterói, n. 34, p. 7-12, 1. sem. 2013 11 Finalizando esta revista, encontram-se duas resenhas de dois livros importantes para os estudos do discurso. A primeira, intitulada “Foi ‘análise de discurso’ que você disse?”, por Silmara Dela Silva, contempla uma fundamental coletânea de textos de Michel Pêcheux, organizados por Eni Puccinelli Orlandi no livro “Análise de discurso: Michel Pêcheux”, em 2011, pela Pontes Editores. A segunda resenha, “Gumbrecht: latência na história”, por José Luís Jobim, nos apresenta o recente livro de Hans Ulrich Gumbrecht, a saber, After 1945: Latency as Origin of the Present, publicado pela Stanford University Press em 2013. Com ela, fechamos a revista com uma prática comum aos analistas de discurso: a leitura de autores caros, no que se refere às questões que traz; de autores que nos permitem avançar em nossas reflexões. Vanise Medeiros (UFF) Bethania Mariani (UFF) 12 Niterói, n. 34, p. 7-12, 1. sem. 2013 Artigos Disciplinarização dos estudos em Análise do Discurso Bethania Mariani (UFF/CNPq/FAPERJ) Vanise Medeiros (UFF/CNPq/FAPERJ) Nunca começa onde começa oficialmente. Começa antes. (Eni Orlandi, 2009) Palavras iniciais Qual o estado atual das pesquisas em Análise de Discurso no Brasil? Essa pergunta, para ser objeto de reflexão, demanda uma outra: à Análise do Discurso corresponde um campo de produção de conhecimento nas Ciências Humanas e Sociais já estabelecido e em transmissão nas instituições universitárias? Sendo a resposta positiva para esta questão, qual a conjuntura teórica que constituiu tanto sua institucionalização quanto sua transmissão? Uma nota de advertência antes de prosseguirmos: como nos lembra Pêcheux (1983), é necessário desautomatizar a repetição das formas de pensar e, também, a pura repetição de termos ou expressões que, apesar de homônimos, remetem para conceitos muitas vezes distintos. É o que queremos problematizar inicialmente. Embora de uso bastante frequente nos estudos da linguagem, o termo ‘discurso’ e as expressões ‘análise do discurso’, ‘análise de discurso’, ‘produção de conhecimento’, ‘ciências humanas e sociais’, ‘institucionalização’ e ‘transmissão’ não possuem sentidos transparentes nem portam evidências em si mesmos. Essas expressões, e mesmo a que é nosso objeto de investigação, a ‘análise de discurso’, significam dentro de “configurações discursivas” (MILNER, 1989) que marcam distintas maneiras de se conceber ciência, conforme a doutrina epistemológica em jogo. Assim, é importante esclarecer de que lugar falamos quando nos propomos a escrever sobre a Análise de Discurso no momento de publicação dessa Gragoatá 34. E, já de imediato, esclarecemos nossa posição teórica. Situamo-nos em um lugar da teoria do discurso no Gragoatá Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013 qual se imbrica o pensamento francês e o pensamento brasileiro, e cujo entrelaçamento porta uma memória a ser mencionada, e retomada em vários momentos da escrita desse texto: a Análise do Discurso que se desenvolve na França, com os trabalhos de Michel Pêcheux, durante sua permanência no CNRS a partir dos anos sessenta, à frente de uma equipe multidisciplinar; e os trabalhos de Pêcheux em sua reterritorialização no Brasil, com outros desdobramentos teóricos e analíticos, a partir das pesquisas de Eni Orlandi, em torno do final dos anos setenta, no Instituto de Estudos da Linguagem, na UNICAMP. Também, de imediato, trazemos para dialogar com o nosso texto dois artigos de Orlandi – (2012a) Apagamento do político na ciência: notas à história da Análise de Discurso. Fragmentação, diluição, indistinção de sentidos e revisionismo; e (2012b) Análise de Discurso e contemporaneidade científica –, e o de Scherer & Petri (2012) – Le mouvement et les déplacements des études sur le discours à partir des années 1980 et leur disciplinarisation: le cas brésilien. O ato de saber, a disciplinarização e a historicidade Comecemos retomando Auroux (2008), tendo em vista que, para esse autor, na compreensão da produção de saber como conhecimento, há que se distinguir os saberes tácitos, que constituem nossas práticas cotidianas, dos saberes que portam formas de representação seja das línguas, seja das relações humanas, seja do mundo etc. No âmbito da produção de saber como conhecimento, Auroux define o ato de saber como sendo limitado e possuindo, por definição, uma temporalidade que não é sem horizonte de retrospecção e sem horizonte de projeção. Afirma Auroux: “o saber não destrói seu passado, mas sim, o organiza, o escolhe, o esquece, o imagina ou o idealiza e também tenta antecipar seu futuro, sonhando enquanto o constrói.” (AUROUX, 2008, PG). A história presente de uma disciplina inclui, desse modo, sua historicidade, ou seja, a memória da conjuntura teórica que a constitui; o processo de sua disciplinarização enquanto produção de saber, isto é, os mecanismos político-acadêmicos que a institucionalizam, permitindo sua transmissão; e, por fim, a possibilidade de apreensão das tênues linhas que projetam seu porvir. Disciplina e disciplinarização são dois termos que também precisam ser definidos. Puech e Chiss (1999), linguistas que se ocupam da História das Teorias Linguísticas, propõem a utilização do termo ‘disciplina’ para assinalar que a produção de conhecimento necessita de ser transmitida, e que as fronteiras dessa produção não são totalmente definidas ou delimitadas, uma vez que são configuradas discursivamente, constituídas por processos que não são estanques. Com a noção de disciplina, os autores colocam a questão da transmissão como central: uma teoria de linguagem supõe textos fundadores e seus comentadores. 16 Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013 Com o termo ‘disciplinarização’, pretendemos levar em consideração não apenas o aspecto conceitual, mas também os aspectos práticos que organizam a transmissão: inscrição nas instituições científicas, utilização e uso dos saberes às vezes de forma vulgarizada na escola, nos colégios, nas universidades. (CHISS; PUECH, 2010, p. 72) Um aspecto ligado à disciplinarização é o que os autores chamam de incremento da expansão da escolarização, sobretudo em sua relação com as condições históricas em que são ordenadas políticas para as línguas e para a educação de um modo geral. A compreensão das condições históricas que propiciam a emergência de uma disciplina é crucial para se desfazerem as evidências que deixam a transmissão da produção de conhecimento como discursos sem sujeito. Chiss e Puech (1999) enfatizam que os discursos sobre o objeto e sobre o método são discursos afetados pelos discursos disciplinares, os quais organizam a forma e as estratégias de transmissão da teoria. “Em suma, a disciplina é menos um estado de fato que um processo sempre já começado e recomeçado”. (CHISS; PUECH, 1999, p. 10). As condições de transmissão de um saber bem como a transmissão em si se encontram sempre perpassadas pelos atos de enunciação daqueles que se ocupam desse processo de disciplinarização, o que não quer dizer, ingenuamente, que haveria um estado de ciência pura, isenta, ou não afetada pelos processos de transmissão. Por outro lado, os que se ocupam da disciplinarização e da transmissão nem sempre (com)partilham o lugar teórico do conhecimento em jogo, o que afeta, igualmente, a transmissão. Em outras palavras, não há como se desembaraçar da carga imaginária que se produz sobre o que está sendo disciplinarizado e transmitido: as imagens têm força inegável e constituem a própria transmissão. E, também, como nos lembram Chiss e Puech: Formuler l’hypothèse d’u ne re c on n a is s a nc e t o u j o u r s p o s s i bl e d u d iscou r s d iscipli nai re der r ière le discou rs s u r l’o b j e t e t s u r l a méthode, c’est supposer a u c o nt r a i r e q u e d e s conditions d’énonciation s p é c i f iq u e o r d o n n e nt toujou r s les savoi r s savants en apparence les plus désincarnés. C’est également envisager des strates du discours disciplinai re où les images de la discipline se combinent, se superposent, se font écho en foction de st r at ég ies va r iées, depois l’invention des connaissances jusqu’à leur socialisation la plus large. (CHISS; PUECH, 1999, p. 18, tradução nossa) Formular a hipótese de um reconhecimento sempre possível do discurso disciplinar por trás do discurso sobre o objeto e sobre o método é supor, ao contrário, que condições de enunciação específicas sempre organizam os saberes da ciência aparentemente menos afetados pela realidade. É igualmente considerar estratos do discurso disciplinar em que as imagens da disciplina se combinam, se superpõem, fazem eco em função de estratégias várias, desde a invenção dos conhecimentos até sua socialização mais larga1. (CHISS; PUECH, 1999, p. 18) 1 O conhecimento é produzido, é disciplinarizado e circula em condições histórico-enunciativas de produção bastante específicas, o que significa sua inserção em políticas científicas e acadêmicas nacionais e, ainda que indiretamente, internacionais também. ‘Política científica’ é uma expressão que remete para um tensionamento entre o controle e a independência da pesquisa e do pesquisador. O funcionamento das políticas científicas implica um gerenciamento que perpassa a produção de conhecimento Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013 17 tanto no âmbito institucional, em termos do incremento de um campo disciplinar, como individual, do pesquisador (com ou sem seu grupo) na elaboração de seu projeto, com justificativas para a escolha do objeto de estudo, explicações sobre a relevância social ou para a formação de jovens pesquisadores ou, ainda, para o próprio campo teórico-metodológico, além de limitações geradas por formas de financiamento, o que representa formas de estabelecimento de vínculos com órgãos de fomento e seus instrumentos de avaliação (GUIMARÃES, 2003). Produzir conhecimento, nesse sentido, é se encontrar submetido aos efeitos da historicidade – seja aderindo, seja resistindo, seja propondo criticamente alternativas à política vigente –, que constituem e delimitam o lugar da produção científica no estabelecimento de relações com políticas de Estado, com a sociedade e com a universidade, enquanto lugar privilegiado da disciplinarização e transmissão. Além disso, nos dias atuais, ainda no que tange à produção de conhecimento de um modo geral, a velocidade da internet é um outro aspecto que precisa ser considerado como parte dos efeitos de historicidade, pois, ao ser incorporada ao trabalho científico, a internet vem produzindo uma diluição nas formas do pensar teórico, e a pesquisa, muitas vezes, fica reduzida a sites de busca de ‘informações’, com textos obscuros e pouco confiáveis. Tudo isso nos leva a refletir sobre o lugar dessa produção científica que, situada no escopo dos estudos da linguagem, recebeu o nome de Análise do Discurso, conforme o título que Pêcheux deu ao seu livro Analyse Authomatique du Discours (1969), conhecido como AAD69. Análise de discurso: memórias e atualidades No Brasil, os estudos em Análise de Discurso surgem por volta dos anos 70 do século XX. São estudos que se originam na Europa, especialmente na França, na década anterior, e têm como base a obra do filósofo Michel Pêcheux, uma obra profundamente afetada pelas releituras de três fundadores de discursividades: Marx, Freud e Saussure. Henry, em artigo que busca explicar a conjuntura intelectual francesa que está na base das condições de produção do AAD69, afirma que Pêcheux queria se apoiar sobre o que lhe parecia já ter estimulado uma reviravolta na problemática dominante das ciências sociais: o materialismo histórico tal como Louis Althusser o havia renovado a partir de sua releitura de Marx; a psicanálise, tal como a reformulou Jacques Lacan, através de seu ‘retorno a Freud’, bem como certos aspectos do grande movimento chamado, não sem ambiguidades, de estruturalismo. (HENRY, 1990, p. 14) Por outro lado, Mazière (2008) e Maingueneau (1990) localizam os inícios da Análise do Discurso enfatizando ângulos dessa 18 Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013 historicidade de modos distintos. Mazière realça a interlocução crítica com o artigo Discourse analysis, de Z. Harris (1952), e discussões situadas por Jean Dubois e seu grupo (MAZIÈRE, 2008). Maingueneau, para distinguir a escola americana da francesa, afirma que a Análise do Discurso, na França, inscreve-se na tradição das pesquisas filológicas e filosóficas com o texto, enquanto que a tradição americana filia-se à etnometodologia, sendo, nessa perspectiva, mais voltada para a oralidade (MAINGUENEAU, 1990). Para ambos, o que se convencionou chamar de Escola Francesa de Análise do Discurso, em torno de Michel Pêcheux e seu grupo, apresenta um diferencial que é o de propor como horizonte uma análise discursiva de textos distinta de uma hermenêutica e distinta, sobretudo, da análise de conteúdo. Para compreensão dos desdobramentos dos estudos discursivos do grupo Pêcheux, é necessário fazer uma tomada de posição em que a história e a ideologia são constitutivas da materialidade linguística, e que o sujeito é dividido pelo inconsciente e interpelado pela ideologia. Na conjuntura francesa dos anos 60, assinando como Thomas Herbert, Pêcheux chama a atenção para uma rarefação do pensamento crítico no âmbito das ciências humanas uma vez que as teorias desse campo do conhecimento, imersas em dicotomias e oposições, reproduzem efeitos das formas filosóficas do século XIX, sobretudo as de base kantiana. Essas oposições são estabelecidas a partir “do surgimento do indivíduo como sujeito histórico novo e a racionalização da sociedade (...)” (HERBERT-PÊCHEUX, 2011 [1969b], p. 187). Tal atravessamento das ciências humanas por essas formas de pensar produz, no caso específico dos estudos linguísticos, uma dicotomização teórica que opõe a liberdade do falante, sua possibilidade de criar, ao sistema da língua, que restringe essas mesmas possibilidades de criação. E nessa mesma chave, com uma reflexão que acompanha sua obra, Pêcheux recorta também a oposição entre estudos empiristas e estudos formalistas. Esse mapeamento das dicotomias desemboca na depreensão de três tendências dos estudos linguísticos, segundo Pêcheux: a tendência formalista-logicista, a tendência histórica e a linguística da fala (PÊCHEUX, 1988 [1975]). À Análise de Discurso não caberia uma quarta tendência, mas sim o trabalho de construção de um domínio teórico situado na contradição aberta pelas três outras tendências. Um lugar teórico de onde se pudesse fazer intervenções críticas com abertura para campos de questões situadas fora das três tendências mencionadas, ou seja, questões relacionadas às noções de sujeito, sentido, inconsciente e ideologia. Para Pêcheux, a resposta à pergunta se haveria “uma via para a linguística fora do logicismo e do formalismo?” (PÊCHEUX, 1981 [1998]) constitui uma forma de circunscrever os efeitos do idealismo subjetivista e, ao mesmo tempo, a abertura de um outro campo de questões para os estudos da linguagem, sobretudo para estudos da produção de sentidos que incluíssem o real da língua, Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013 19 o real da história, e a noção de sujeito dividido pelo inconsciente e interpelado pela ideologia como categorias teóricas. Nesse quadro de reflexões, que se desdobra entre os anos 60 e 80, a Análise do Discurso, a partir de Pêcheux, é teorizada de forma a reinvestigar sempre seus fundamentos de partida. Situa-se, dessa forma, como uma disciplina de entremeio, disciplina que abre seu campo de questões para uma semântica de base materialista, a qual não separa discurso e prática política. Scherer e Petri (2012) referem-se ao acontecimento da entrada dos estudos do discurso no Brasil como um momento inicial da disciplinarização dessa tomada de posição teórica sobre uma forma específica de produzir conhecimento sobre a linguagem: o discursivo. Esse marco é relevante para que se compreendam os desdobramentos teóricos e os destinos acadêmicos que os estudos do discurso tomam ao serem disciplinarizados, inicialmente, nos cursos de Pós-graduação brasileiros e, pelo menos duas décadas mais tarde, nos cursos de graduação. Na década de 70 e na de 80 do século XX, os estudos discursivos no Brasil também vão de encontro ao terreno conflagrado das três tendências delineadas por Pêcheux. A posição teórica que traz como objeto o discurso entra em descontinuidade com os estudos linguísticos até então vigentes, ou seja, instala-se como acontecimento teórico, como ponto de ruptura com a linguística que até então se fazia: não se trata mais de um quadro teórico-metodológico formalista ou empirista para conceituar e analisar sistemas linguísticos, mas sim de uma mudança radical de terreno, que implica um objeto próprio – o discurso, definido como efeito de sentidos entre locutores –, e inclui, em seu enquadre teórico, o materialismo e a psicanálise articulados aos estudos da linguagem. É uma posição teórica que traz um engajamento político próprio: falar é tomar posição no sócio-histórico, é inscrever-se subjetivamente em redes de sentidos com a ilusão de se estar na origem e no controle do dizer. Dos anos 90 para o momento atual houve um crescimento expressivo de estudos discursivos, porém, com enquadres teórico-metodológicos bastante diferenciados das reflexões de Pêcheux. Garantidas por uma crescente disciplinarização no âmbito universitário de pós-graduação, a palavra ‘discurso’ e as expressões ‘análise do/de discurso’ e ‘teorias do discurso’ circulam cada vez mais fortemente no campo dos estudos da linguagem, no Brasil, em quase 40 anos, sustentando, a cada vez que são empregadas, referenciais teóricos e métodos de análise bem distintos. As distinções, no entanto, muitas vezes vão se diluindo, mesmo tendo-se em vista conceitos de base como sujeito, sentido, inconsciente, ideologia, além da forma de organização dos corpora e os objetivos propostos para analisá-los. De que forma se realiza a disciplinarização das teorizações? Verificar em detalhes a especificidade do modo como se vem realizando a transmissão desses 20 Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013 distintos campos de produção de conhecimento que se reúnem sob o nome ‘análise do discurso’, cada qual em sua singularidade, é tarefa ainda a ser desenvolvida por um grupo de pesquisadores de forma a acompanhar, em parte, seus efeitos em dissertações, teses, publicações e apresentações em congressos. A comunidade imaginada ‘somos todos do discurso’ institui, de um lado, uma forte homogeneidade que tem sua relevância quando se trata de política científica, mas, por outro lado, pode apagar as filiações teóricas em suas bases de sustentação epistemológicas. Se o termo ‘discurso’ e a expressão ‘análise do discurso’ ganham em visibilidade e circulação, eventualmente perdem na espessura teórica que garante as diferenças, ou seja, no modo como articulam os processos de produção de sentidos com o histórico-ideológico, de um lado, e com a noção de sujeito, de outro. A palavra ‘discurso’, enquanto conceito teórico, por exemplo, está definida em Benveniste, em Pêcheux, em Lacan, em Foucault, em Maingueneau, em Charaudeau, em Fairclough; mas, muitas vezes, não se encontra definido conceitualmente em outros autores, embora seja usada como referência genérica à fala. Assim, o que se observa é que ‘discurso’ e ‘análise do/de discurso’ são expressões que garantem o pertencimento à comunidade imaginada de analistas do/de discurso, mas como estão associadas muitas vezes de maneira generalizante ou misturada a intelectuais com filiações teóricas e interesses distintos acabam por embaralhar as perspectivas, retirando a densidade das teorias e das análises específicas. Em outras palavras, com essa forte circulação, não se garante no transmissível a necessária reflexão crítica sobre as fronteiras epistemológicas que constituem tão diferentes domínios e análises de linguagem aí propostos. Mesmo assim, é possível perguntar: mencionar nomes próprios de autores, de teorias, e citar conceitos, seria uma prerrogativa suficiente para fundamentar os saberes de um campo de produção de conhecimento e trabalho em toda sua complexidade interna e demarcação de fronteiras? Sem dúvida, como nos adverte Orlandi (2012) temos a Análise de Discurso, a Pragmática, a Teoria da Enunciação, a Análise Textual e muitas disciplinas que tratam da relação com a exterioridade, junto a disciplinas mais antigas, como a Semiótica, a Retórica, a Semiologia, a Filosofia da Linguagem. (ORLANDI, 2012a, p. 26, grifos nossos). Porém, e esse é um dos aspectos para os quais Orlandi chama a atenção, esse tratamento da relação entre a linguagem e a exterioridade não se processa da mesma forma. Conforme a autora, discutindo a relação entre disciplinas e o apagamento dos muitos sentidos da palavra ‘discurso’, Passa-se a indistinguir as divisões disciplinares em suas diferentes posições teóricas (face a noções como discurso, exteNiterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013 21 rioridade, contexto, sujeito etc.). Reúne-se assim no mesmo lugar teórico – como se isso fosse possível – a filosofia da diferença (Foucault, Derrida, Deleuze etc.), a semiologia, a semiótica, a filologia etc. (ORLANDI, 2012, p. 29) Trazemos um exemplo. Ideologia e inconsciente são conceitos que, quando aplicados ou transferidos sem uma justificativa teórica de sua entrada em um quadro teórico-metodológico, além de ficarem esvaziados de seu potencial crítico, podem produzir contradições internas na análise pretendida. Não basta mencionar o inconsciente como um atributo do sujeito se não se tem como memória a obra de Freud bem como a consequente discussão que fundamenta criticamente a desnaturalização de concepções formadas durante o século XVIII, constituindo o homem como objeto de análise e, por conseguinte, o campo das ciências humanas tal como o conhecemos hoje. Uma especificidade da disciplinarização Trazemos para reflexão um acontecimento histórico bastante significativo dessa virada do início dos anos 90, um acontecimento que impulsionou e consolidou, a nosso ver, a disciplinarização da Análise de Discurso. Na primeira reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL), em 1986, em Curitiba, ocorreu a criação de vários Grupos de Trabalho, dentre eles a do Grupo de Trabalho em Análise do Discurso. Fundava-se O GT, com o aval da política científica da época, e a partir de um exercício efetivamente realizado de investimento teórico, de tradução de textos, de orientação de alunos, de aulas ministradas, de financiamentos de pesquisas e de participações em congressos um forte núcleo de pesquisadores do discurso associados entre si, e, ao mesmo tempo, sustentando eticamente suas diferenças. Foi uma vitória política, portanto, o reconhecimento do percurso de trabalho e pesquisas realizadas, o que promoveu o fortalecimento da disciplinarização e transmissão dos estudos do discurso. Foi a pesquisadora Eni Orlandi, professora do Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, quem fundou o GT de AD e coordenou seu primeiro encontro durante as atividades do II Congresso da ANPOLL, no Rio de Janeiro, em 1987. Desde sua fundação, o GT de AD abrigou diversas tendências teóricas, organizando os pesquisadores em uma comunidade. Tomo o termo ‘comunidade’ na forma como Auroux (2008) o conceitua, tanto em seu sentido mais genérico – o pertencimento a grupos se dá antes mesmo do pertencimento ao Estado –, quanto em seu sentido estrito do comunitarismo científico de grupos que sustentam alianças ou concorrem entre si conforme as políticas em jogo e, portanto, sempre inseridos em condições de produção determinadas. No ato de fundação do GT, como bem nos lembra Indursky, ex-coordenadora do GT e ex-presidente da ANPOLL: 22 Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013 No que tange ao GT de Análise do Discurso (GETAD), desde logo ele abrigou em seu interior diferentes perspectivas teóricas – Escola Francesa de Análise do Discurso, Semiótica Discursiva, Teoria da Enunciação, Teoria do Texto que se interessam pelo discurso, apresentando, assim, uma pluralidade de pesquisas, em lugar de priorizar uma única vertente. Esse modo de funcionamento faculta o desenvolvimento concomitante de várias pesquisas, sem haver imposição de um trabalho único e uniforme para todos seus membros. Essa política interna permite a administração democrática desse espaço institucional, sem que a usual disputa de poder/prestígio interfira no ritmo dos trabalhos. (INDURSKY, 1994) A fundação do GT no âmbito da ANPOLL, em 1986, torna visível um processo histórico de disciplinarização da Análise do Discurso que já estava ocorrendo desde o início da década de 80 do século passado: do Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, para outros cursos de Letras no Brasil, em um movimento que partiu dos programas de pós-graduação para o ensino de graduação. Muitas vezes sob o nome Análise do Discurso, disciplina-se universitariamente uma comunidade imaginária, como dissemos anteriormente, encobrindo diferenças teóricas que, se trabalhadas, poderiam se revelar bastante produtivas em suas especificidades, a começar pelas noções de língua, sujeito, sentido e seguindo para outras, como texto (verbal ou não-verbal), enunciação e interlocução. De qualquer maneira, qualquer que seja a discussão sobre Análise de Discurso, esta não se dará sem Eni P. Orlandi e Michel Pêcheux, autores que demonstraram a relevância da construção de um lugar teórico e de um método próprio para a construção de dispositivo de análise sobre o funcionamento da linguagem em sua relação constitutiva com o histórico-ideológico. A Análise de Discurso é uma disciplina de entremeio que está sempre retornando e reinvestigando seus fundamentos ao mesmo tempo em que sua reflexão desloca e reterritorializa conceitos vinculados aos campos teóricos com os quais dialoga: a linguística, mais especificamente a teoria da enunciação tomada de um ponto de vista não subjetivo; o materialismo histórico, enquanto teoria das formações sociais e suas transformações; e, também, a psicanálise, base para se compreender o sujeito dividido, uma vez que o homem não é senhor de sua morada, como afirma Freud. O trabalho da análise discursiva dos processos de produção dos sentidos, e de seus efeitos, quando tomado do ponto de vista de Pêcheux e Orlandi, incide na suspensão das certezas, na crítica das evidências, na desconstrução das verdades, na escuta do silêncio e das políticas de silenciamento. O político, compreendido aqui como a divisão de sentidos na língua, é dessa forma constitutivo do trabalho de análise. Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013 23 E a resistência, tema principal desse número da Gragoatá 34, faz parte do movimento da divisão dos sentidos e do sujeito. REFERÊNCIAS AUROUX, S. A historicidade das ciências. In: AUROUX, S. A questão da origem das línguas seguido de A historicidade das ciências. Tradução de Mariângela Joanilho. Campinas: Editora RG, 2008. CHISS, Jean-Louis; PUECH, Christian. Entrevista. In: Linguagem, Teoria, História. Série Cogitare, no 11, PPGL, UFSM, 2010. ______. Le langage et ses disciplines XIXe - XXe siécles. 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Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013 25 A emergência do sujeito desejante no discurso do MST Freda Indursky (UFRGS) Resumo No presente trabalho, retorno às designações ocupação/invasão para examinar um registro muito peculiar da designação invasão, ocorrido em uma entrevista com Diolinda Alves de Souza, líder do MST, em 06/12/1995, para a Revista da Folha. Interessou-me, nesta entrevista, examinar o processo de subjetivação/identificação de Diolinda: em um determinado momento da referida entrevista, ao responder sobre sua primeira ocupação, refere-a como invasão. Assim procedendo, a entrevistada não mobiliza o que o sujeito pode/deve dizer a partir de seu lugar discursivo. Esta designação não corresponde ao modo de subjetivar-se Formação Discursiva Sem Terra, tão bem desenhado ao longo da entrevista, até aquele momento. Esse deslizamento de ocupação para invasão permite identificar um processo metafórico específico. Processo metafórico é “um processo não-subjetivo no qual o sujeito se constitui” (Pêcheux, 1988, p. 130). E ainda: processo de metáfora consiste em um “processo sócio-histórico que serve como fundamento da ´apresentação´ de objetos para os sujeitos” (idem, p. 132). Entendo que este processo metafórico específico aqui analisado permite vislumbrar o momento em que o sujeito do discurso político é lançado em suas memórias de onde emerge como um sujeito desejante. Palavras-chave: lugar discursivo; posição-sujeito; formação discursiva; processo metafórico; produção do desejo; agenciamento sócio-político pulsional; sujeito desejante. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013 A contradição é inseparável do corpo social, considerado em seu todo.... (Althusser) A produção [do desejo] é adjacente a uma multiplicidade de agenciamentos sociais. (Guattari & Rolnik) Era panela, roupas e lona para todo o lado. Papagaio cantando, galinha piando. Uma festa. (Diolinda Alves de Souza) Apresentando a questão Este trabalho inscreve-se em uma pesquisa que tem como objeto de investigação o discurso do/sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na mídia. Em várias ocasiões, trabalhei com as designações ocupação e invasão (INDURSKY, 1999; 2005; 2006, por exemplo). Retomo a elas, nesse artigo, para trabalhar com as possibilidades e limites do sujeito frente aos sentidos que lhe são permitidos e aqueles que efetivamente produz. A Teoria da Análise do Discurso (AD) ensina que tudo não pode ser dito e que os sentidos podem ser muitos, mas não são nem infinitos, nem qualquer um. Tais restrições sinalizam os limites do dizível e as interdições com que o sujeito do discurso se depara em suas práticas discursivas, as quais são indicativas, entre outras questões, da incompletude da linguagem bem como da divisão e dispersão do sujeito. E é com estes limites que o sujeito joga em suas práticas discursivas. Essas são as questões que serão mobilizadas no presente trabalho. Para tanto, vou me ocupar do discurso de uma das lideranças do MST no Pontal do Paranapanema, São Paulo. Trata-se de Diolinda Alves de Souza, mulher de José Rainha, ambos líderes do MST, no Pontal de Paranapanema, na década de 90 do século passado. Vou analisar sequências discursivas (SD) extraídas de duas diferentes entrevistas feitas pela Folha de São Paulo (FSP) com Diolinda. A primeira, em 01.11.95, por ocasião de sua prisão, durante uma manifestação de rua, e a segunda, após sua liberação, em 06.12.1995. Essas SD estão organizadas em dois recortes. O primeiro (SD 1,2,3,4) indica as coerções a que o discurso de Diolinda está submetido e o segundo (SD5) deixa à mostra a ruptura de tais coerções. Ambos constituirão objeto de análise nesse trabalho. A prática discursiva de Diolinda Como vimos em trabalhos anteriores (INDURSKY, 1999; 2006), as lideranças do MST, ao se referirem às práticas desse movimento social, o fazem designando-as por ocupação. E, no discurso de Diolinda, não é diferente. Percebe-se também que o entrevistador, quando se refere às ações do Movimento, designa28 Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013 as por invasão, mas, ao responder, Diolinda “traduz” invasão por ocupação. Para visualizar o jogo discursivo que se estabelece entre essas diferentes designações no discurso do/sobre o MST, insiro, a seguir, duas sequências discursivas1 recortadas da entrevista que Diolinda concedeu à Folha de São Paulo quando se encontrava no presídio de Carandiru. O MST não radicaliza ao falar de invasões quando o governo fala em negociar? (Pergunta da FSP2 dirigida à Diolinda Alves de Souza, em Entrevista Coletiva, 1.11.1995, Presídio do Carandiru, SP). SD1 - A orientação é para que os companheiros continuem ocupando terras. A prisão de um ou outro líder não vai inibir o movimento. (Resposta de Diolinda, 1.11.1995, Presídio do Carandiru, SP). Como é possível perceber, a interlocução se faz entre repórter e líder do MST, em que pese o fato de que cada um desses sujeitos, para poder dizer, precisa se inscrever em seu lugar social (PÊCHEUX, [1969]3 1990, p. 82). Ao fazê-lo, o repórter identifica-se com a Formação Discursiva (FD) dos proprietários rurais, designando as ações do MST por invasão. Por outro lado, a líder do MST se subjetiva na FD Sem Terra, antagônica à de seu interlocutor, designando tais ações por ocupação. Desta forma, essas sequências discursivas desenham os diferentes lugares discursivos (GRIGOLETTO, 2007) que atravessam essa entrevista – lugar discursivo da imprensa e lugar discursivo de lideranças do MST – bem como as posições-sujeito a partir das quais os envolvidos nessa interlocução enunciam. Tais lugares circunscrevem a cena discursiva (INDURSKY, 1997) em que essa interlocução se trava. A designação ocupação se faz presente no discurso dessa liderança, como pode ser observado nas SD que seguem. A primeira SD refere-se à pergunta formulada pelo entrevistador, razão pela qual não será numerada. A segunda SD consiste na resposta dada por Diolinda e faz parte de nosso primeiro recorte discursivo. 2 O jornal A Folha de São Paulo será referido pela sigla FSP. 3 Ao longo do trabalho, as datas entre colchetes remeterão à data da primeira edição francesa. E a data que se lhe justapõe refere-se à data da publicação brasileira consultada. SD2 – As ocupações vão continuar. Isso faz parte dos princípios do movimento. (Entrevista de Diolinda Alves de Souza a Paulo Ferraz, FSP – 16.10.95, p. 1-3). 1 SD3 - Vão continuar as ocupações e os plantios no Pontal. (Entrevista Coletiva de Diolinda no Presídio Feminino do Carandiru – FSP – 1.11.95, p. 8). SD4 – É desculpa do Governo dizer que as ocupações atrapalham a negociação. Nunca houve reforma agrária sem mobilização. (Entrevista de Diolinda no Presídio Feminino do Carandiru – 1.11.95, p. 8). Como se vê, Diolinda usa a designação ocupação para referir-se às ações do MST, o que é indicativo de que a líder desse Movimento identifica-se com e subjetiva-se pelo viés da designação ocupação. Isto é constitutivo de seu discurso. Diolinda subjetiva-se a partir de seu lugar discursivo de liderança, pelo viés de uma designação já estabilizada e normatizada no discurso do MST, tal como Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013 29 ele ocorre na mídia, pois essa designação remete a redes de memória onde ocupação aparece como uma “coisa-a-saber” (PÊCHEUX, [1982] 1990, p. 34) para quem se inscreve no lugar discursivo de uma liderança do MST. Essa coisa-a-saber caracteriza as SD constitutivas de nosso primeiro recorte. E assim é até o momento da entrevista que Diolinda concedeu à Revista da Folha [de SP] em 06.12.95, após ter tido sua prisão relaxada. Nessa entrevista, Diolinda fala de ocupações, de sua luta pela terra, da acusação de assassinato que pesa sobre seu marido, José Rainha, e também se refere a seu filho. Enfim, responde tranquilamente sobre todas as questões que lhe são feitas, até que, num determinado momento da entrevista, ao ser questionada sobre sua primeira ocupação, refere-se a ela como invasão. Vejamos a sequência discursiva que traz esse registro, o qual vai constituir nosso segundo recorte discursivo e nosso objeto específico de análise e reflexão no presente trabalho. SD5 – Quando tinha 15 anos, os pais entraram em uma disputa de terra que acabou originando o assentamento Vale da Vitória, perto do Município de São Mateus (ES). O conflito rendeu um lote para os Alves de Souza. E encantou Diolinda: “Me lembro bem daquela invasão. Eufóricas, centenas de famílias levantavam barracos na madrugada. Era panela, roupas e lona para todo o lado. Papagaio cantando, galinha piando. Uma festa”. (Entrevista de Diolinda Alves de Souza à Revista da Folha [de SP], 06/12/95, p. 17) (O destaque é meu). Meu projeto de pesquisa gira em torno do discurso do/sobre o MST, tal como ele é apreendido através da imprensa. Nesse âmbito, o discurso dos assentados e dos acampados pouco aparece e não se constitui em objeto de minha pesquisa. Outros pesquisadores têm se ocupado do discursos dos sem-terra assentados e acampados e, em suas pesquisas, observaram que, entre os sem-terra, pode aparecer a designação invasão. Já meu trabalho busca apreender e examinar o discurso das lideranças do MST tal como este aparece na imprensa. E, neste âmbito, o sentido normatizado e reg ulamentado é ocupação, como é possível verificar trabalhos anteriores, referidos no início deste trabalho. 4 30 É este fato discursivo que será objeto de interpretação. Interessa-me refletir sobre o que levou a entrevistada a substituir a designação ocupação, própria à posição-sujeito de liderança que ocupa, pela designação invasão, proveniente do discurso-outro, do discurso próprio à posição-sujeito antagonista, a partir da qual os proprietários rurais4 enunciam. É essa troca inusitada que reteve minha atenção. E este processo que consiste em tomar uma palavra pela outra, ou seja, ocupação por invasão, vou chamar, apoiando-me em Pêcheux ([1975] 1988), de processo metafórico. Em Semântica e Discurso, lê-se que um processo metafórico é “um processo não-subjetivo no qual o sujeito se constitui” (PÊCHEUX, [1975] 1988, p.130). E, um pouco adiante, o autor explicita que ele consiste em um “processo sócio-histórico que serve como fundamento da ´apresentação´ de objetos para os sujeitos” (idem, p. 132). A partir dessas duas formulações sobre a noção de metáfora, vou examinar o registro muito específico de invasão, identificado em SD5. A elas, acrescento uma terceira passagem, citada a partir de outro texto de Pêcheux ([1982] 1990a): um processo metafórico, segundo Pêcheux, possibilita examinar não só sentidos que deslizam, mas também uma possível falha no ritual, como podemos ler na citação que segue: a interpelação ideológica como ritual supõe o reconhecimento de que não há ritual sem falha, desmaio ou rachadura: “uma palavra Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013 por outra” é uma definição da metáfora, mas é também o ponto em que um ritual chega a se quebrar no lapso ou no ato falho (PÊCHEUX, [1982] 1990a, p. 17) (O destaque é meu). Interessa-me examinar, nesse trabalho, o processo metafórico ocupação/invasão identificado na prática discursiva de Diolinda, com o objetivo de indagar sobre seu sentido: seria o processo metafórico ocupação/invasão indicativo do que Pêcheux designa na citação precedente de falha no ritual? Seria a palavra invasão tomada em substituição a ocupação, indicativa de que Diolinda teria se desidentificado dos saberes da FD a partir da qual tem se subjetivado ao longo de sua vida de militante e se identificado com a FD em que se inscreve o discurso dos latifundiários? Como interpretar o deslizamento de ocupação para invasão? Essa é a minha questão, aqui. Inicio minha reflexão, apontando a hipótese com que vou trabalhar: o processo discursivo ocupação/invasão não representa o sintoma de uma quebra no ritual de interpelação ideológica de Diolinda. Enunciar invasão por ocupação, no caso em análise, não significa que ela tenha se desidentificado da FD Sem Terra e tenha passado a se identificar com a FD dos Latifundiários. Este deslizamento pode, quando muito, ser a pista de um vacilo sofrido pelo sujeito desse discurso (PÊCHEUX, [1982] 1990b, p. 314-17). Cabe, a seguir, indagar sobre a natureza desse vacilo. Frente a essa hipótese inicial, avanço um pouco mais: parece-me que, assim como não ocorreu um processo de desidentificação, tampouco sucedeu um processo de contra-identificação (PÊCHEUX, [1975] 1988, p. 214-7). Este processo metafórico aponta para um outro processo semântico que passo a examinar, a seguir. Acredito que essa alternância ou batimento, como diz Pêcheux ([1982] 1990c, p. 54), seja uma oscilação momentânea entre o sentido que pode/deve ser dito do lugar discursivo de uma liderança do MST e o sentido que, nesse lugar, está interditado, mas que é produzido mesmo assim. O deslizamento que estamos examinando vem fortemente marcado pelos “efeitos do interdiscurso [que] se desenvolvem em contradições” diz Pêcheux. ([1984] 2011, p. 157). Para Althusser, a contradição é inseparável da estrutura do corpo social, considerado em seu todo, onde, aliás, ela se exerce, mostrando-se inseparável de suas condições formais de existência (...) estando, conseqüentemente, por elas afetadas em seu cerne. Ou seja, em um único e mesmo movimento, é determinante, mas também determinada: determinada pelos diferentes níveis e diversas instâncias da formação social ... (ALTHUSSER, 1967, p. 99-100) (Os destaques são meus). Entendo que esse deslizamento indica uma contradição, sim, mas não implica a ruptura com o próprio discurso e a deriva para o discurso-outro, afetado pela FD antagônica. Essa passagem de ocupação para invasão indica mais bem uma apropriação do discurNiterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013 31 so-outro. Como veremos, a seguir, ele aponta para algo diferente da ruptura: no momento em que o sujeito do discurso se apropria desta designação, a contradição se instaura em seu discurso. É ainda Pêcheux que ilumina essa contradição, pois tanto ocupação quanto invasão são conjunturalmente determinados enquanto objetos ideológicos; nem universais históricos, nem puros efeitos ideológicos de classe, esses objetos teriam a propriedade de ser ao mesmo tempo idênticos a eles mesmos e diferentes deles mesmos, isto é, de existir como uma unidade dividida, suscetível de se inscrever em um ou outro efeito conjuntural, politicamente sobre-determinado. (PÊCHEUX, [1984] 2011, p. 157) (Os destaques são meus) Diolinda, ao inscrever a designação invasão em seu discurso, vacila, não entre uma FD e outra, mas entre uma designação e outra, entre uma posição de sujeito e outra, entre a posição de um sem-terra e a posição de um líder, mas tal vacilo ocorre no interior da FD Sem Terra e, assim procedendo, é o sentido de invasão que desliza. Ou seja: uma palavra pela outra, sim. Invasão por ocupação, sim. Mas não se trata da ruptura do ritual ideológico de interpelação de Diolinda, e sim de um deslizamento, de um vacilo do sujeito entre sentidos. Dito de outro modo, não é Diolinda que desliza de uma FD a outra, mas é o sentido de invasão que desliza, ao passar da FD dos latifundiários para a FD Sem Terra. Ouçamos, mais uma vez, a palavra de Pêcheux: é porque os elementos da sequência textual, funcionando em uma formação discursiva dada, podem ser importados (meta-forizados) de uma sequência pertencente a uma outra formação discursiva que as referências discursivas podem se construir e se deslocar historicamente. (Ibidem, p.158). Relembrando aquele momento que viveu, Diolinda se depara com o real da língua que aponta para o impossível de dizer, dá de encontro com aquilo que, de seu lugar discursivo, lhe é interditado, mas que, sob o efeito da emoção, torna-se impossível de dizer de outro modo (PÊCHEUX, [1981] 2004, p. 52). É a própria contradição que pode ser flagrada através da bipolarização representada nesse processo metafórico determinado “pelos diferentes níveis e diversas instâncias da formação social” para retomar as palavras de Althusser. Mas, o que move esse discurso e o sujeito que o enuncia? Entendo que essa dualidade é um sintoma da emergência do sujeito desejante que se mostra pelo viés da contradição, no momento em que Diolinda rememora aquele acontecimento fundante de sua subjetividade sem-terra, momento que a impregna, uma vez mais, pelo viés da memória afetiva, de alegria incontida e a faz equivocar-se, a faz deslizar pelos sentidos, a faz produzir poesia - Era panela, roupas e lona para todo o lado. Papagaio cantando, galinha piando. Uma festa. - instaurando, no interior do discurso do MST, um processo metafórico que re-significa o discurso-outro para poder 32 Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013 incorporá-lo ao seu discurso. Diria que esse momento rememorado, por uma fração de segundo, é (re)vivido como presente. Em consequência disso, o real se incorpora à representação simbólica que o sujeito faz daquele momento rememorado e revivido. O sujeito desejante: deslizando da Psicanálise para a Análise do Discurso A noção de pulsão foi formulada por Freud, 1915, em Instinto e suas Vicissitudes. Ela é resultante de uma pressão que se situa entre o mental e o somático e está na origem dos estímulos que se originam no corpo e alcançam a mente. Segundo Freud, a pulsão não se dá a conhecer por si mesma, mas é reconhecida pelas ideias (vostellung) e pelo afeto (affekt), sendo o afeto a expressão qualitativa da quantidade de energia pulsional, cujas manifestações são percebidas como sentimentos, e as ideias se produzem como traços de memória. 5 Para pensar o funcionamento desse sujeito, mobilizo inicialmente a reflexão de Guattari (1986). Para este autor, a produção da fala, das imagens, do desejo não tem origem no indivíduo. “Essa produção é adjacente a uma multiplicidade de agenciamentos sociais, [...] a mutações de universos de valor e de universos históricos” (GUATTARI & ROLNIK, 1986, p. 32). E, mais adiante, acrescenta que tais “agenciamentos coletivos de subjetividade, em algumas circunstâncias [...], podem se individuar” (Ibidem, p. 33). Entendo que é exatamente uma dessas formas de individuação que estamos observando pelo viés do processo metafórico em análise: aqui se individua, mesmo que por um instante, o sujeito desejante que se deixa perceber através dele. Tomo essa concepção de sujeito desejante, pois as formulações de Guattari apresentam pressupostos possíveis de serem aproximados aos da AD. Em primeiro lugar, não se trata de considerar o sujeito em sua individualidade, mas de tomá-lo em seu agenciamento coletivo e social. Em segundo lugar, porque Guattari trata das pulsões5 como sintoma em nível do social e do político e não como sintoma individual. Para esse autor, a produção do desejo é resultante de pulsões de natureza político-social: “Trata-se, diz Guattari, de movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalística (sic), através de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outra percepção, etc.” (Ibidem, nota 5, p. 45). O autor chama a atenção para a importância política da produção do desejo e seus possíveis desdobramentos, entre os quais se situariam os movimentos sociais. E é exatamente o que estamos constatando no caso em análise. Diolinda, ao tomar invasão por ocupação, é movida, por um lado, pela rememoração de um momento muito forte que a marcou e que ainda é capaz de emocioná-la, e, por outro, essa rememoração é resultante de uma pulsão político-social responsável pela emergência do sujeito desejante, sujeito este que luta pela justiça no campo, afrontando grandes proprietários de terra. Tais formulações de Guattari têm início em seus escritos em coautoria com Deleuze (1972). Os autores postulam uma nova concepção de inconsciente, mobilizando a noção de economia em seu sentido pulsional e político. Afastam-se do inconsciente individual e vão ao encontro de um inconsciente em que jogam o funcionamento de fatores históricos, políticos, culturais e econômicos, daí surgindo um sujeito desejante capaz de pôr em questão a ordem Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013 33 estabelecida. E é isso que está em tela nesse trabalho: observar um processo metafórico que expõe a ação e palavra de um sujeito movido pelo agenciamento político do desejo. Entendo que o processo metafórico ocupação/invasão identificado na SD5 funciona como o sintoma do sujeito desejante no discurso de Diolinda. Chamo a palavra de Rolnik para explicar essa emergência: “Se situarmos o inconsciente na maneira de se orientar e de se organizar no mundo – as cartografias que o desejo vai traçando [desenham] diferentes micropolíticas, que correspondem a diferentes modos de inserção social” (ROLNIK, 1986, p.12). O processo metafórico em análise aponta para esses diferentes modos de inserção social trilhados por Diolinda. Em um primeiro momento, encontramos Diolinda jovem, participando de sua primeira ação política, ainda na companhia de seus pais. Dessa participação resultou o assentamento no qual sua família recebeu um lote de terra. Naquele momento, Diolinda era apenas uma jovem de 18 anos, filha de sem-terra, e acompanhava a ação política dos pais. Ainda não exercia função de liderança e podia mobilizar a designação invasão, comum entre assentados e acampados, para referir a luta pelo direito à terra. Nessa situação, movida pela pulsão político-social e pelas urgências típicas do cotidiano de acampados, subjetivou-se como um sujeito que desejava mudar o mundo, distinguindo-se do mundo capitalista em que vivia. O segundo momento nos coloca frente a Diolinda exercendo uma função de liderança entre os sem-terra acampados no Pontal de Paranapanema. E, nessa nova posição, Diolinda subjetiva-se, como vimos, pelo viés da designação ocupação. Modos diferentes de inserção social que conduzem a diferentes formas de designação. Nesse passo do trabalho, o que importa analisar é a pulsão que está na base da oscilação/divisão/batimento do sujeito do discurso entre essas duas designações, ambas ocorridas num determinado momento da militância política de Diolinda e em uma mesma entrevista. Como vimos, Diolinda divide-se, nessa entrevista, entre duas designações: uma que remete para o que deve e pode ser dito e que é resultante de sua interpelação ideológica e do lugar discursivo que ocupa como líder do MST. Desse lugar deve dizer e diz ocupação. Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, a outra – invasão - que aponta para o sentido impossível de dizer, a partir de seu lugar discursivo. Diolinda desliza, então, de um sentido para o outro. Dito de outra forma: este deslizamento marca o ponto em que se cruzam determinação ideológica – o que pode e deve ser dito – com determinação inconsciente, que sinaliza o sujeito desejante, capaz de mobilizar o discurso-outro. Esse ponto de encontro vem marcado por esta falha, esta passagem momentânea e única de ocupação para invasão. É o interdiscurso que se atravessa no discurso do sujeito. Ouçamos uma vez mais o que diz Pêcheux: “a metáfora aparece fundamentalmente como uma perturbação 34 Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013 que pode tomar a forma do lapso, do ato falho, do efeito poético, do Witz ou do enigma” (PÊCHEUX, [1984] 2011, p.160). Em meu entendimento, o deslizamento aqui em análise ocorre no momento em que a emoção aflora e faz o sujeito mover-se e dividir-se entre as duas designações. Trata-se de um efeito poético. Interrompendo a reflexão Mais acima, vimos que a pergunta feita à Diolinda pela entrevistadora funcionou como um estopim para a ocorrência dessa falha, produzindo um efeito devastador, jogando-a para fora dos limites de seu lugar discursivo de líder e do sentido que, desse lugar, lhe é imposto. E, assim, sob o efeito da emoção, do afeto, para retomar o termo empregado por Freud6, que a rememoração suscitou, o dizer desse sujeito transbordou dos limites que sua posição-sujeito e seu lugar discursivo lhe impõem, mostrando-se um sujeito fragmentado e dividido entre duas designações que identificam posições diversas. Oscilando entre a posição do bom sujeito que diz o que o líder pode e deve dizer de seu lugar discursivo, e a posição do sujeito que, capturado pela rememoração, vai ao encontro do “impossível de dizer, impossível de não dizer de uma determinada maneira” (PÊCHEUX, [1981] 2004, p. 52), o sujeito vai entretecendo em seu discurso a contradição. A presença de tais designações, contraditórias entre si, são o sintoma de que certos limites vão se esgarçando na ordem política da língua e, por entre os desvãos que vão surgindo, o sujeito desejante emerge, enunciando sob o efeito da emoção vivida no passado, rememorada no presente, mas também sob efeito do que acabara de viver: ter sido presa para, dessa forma, ser pressionada a dizer onde se encontrava seu marido procurado pela polícia. Mas não apenas isso: ao ser encarcerada, foi separada de seu pequeno filho, que ficou, dessa forma, privado do amparo do pai e da mãe. São esses sentimentos e memórias que fizeram aflorar o processo metafórico aqui analisado, que fizeram o sujeito estampar a marca de seu desejo em seu dizer. Como vimos, o sujeito, sob o efeito e força da emoção, ao responder à pergunta que lhe foi dirigida, sucumbe à própria incompletude e simboliza o interdito. E, ao fazê-lo, o sujeito desejante mostra-se tal como é: incompleto, heterogêneo e dividido em relação a si mesmo e ao lugar discursivo que ocupa e no qual se constitui enquanto sujeito Sem Terra. Incompleto porque os dizeres e sentidos que sua posição-sujeito lhe autoriza são insuficientes para dizer a emoção sentida, mescla de alegria e de dor, mescla de rememoração e atualização da luta pela terra, provocando o transbordamento dos sentidos Heterogêneo porque apropria-se do dizer do outro, que irrompe transversamente em seu discurso, instaurando em seu interior a diferença e a contradição. E dividido porque movimenta-se entre ocupação e invasão, entre o que lhe é Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013 35 possível dizer e o que lhe está interditado, mas que só pode ser dito daquela forma, naquele momento. Pode-se, pois, afirmar que a incompletude, a heterogeneidade e a divisão do sujeito desejante desse discurso decorrem do jogo tenso entre o memorável, o dizível e o interdito, fazendo com que os sentidos extravasem seus limites e produzam o cruzamento entre discursos de posições-sujeito diversas e conflitantes. Ou talvez seja melhor dizer que o jogo tenso entre dizível e interdito acaba por borrar momentaneamente tais limites, dando lugar a esse cruzamento/transbordamento. Assim, ao dividir-se na dualidade contraditória ocupação/ invasão, esse sujeito desejante se constitui como sujeito de seu discurso. Ao representar-se dividido, carrega a marca do outro, evidenciando que a unicidade do sujeito é imaginária e se desfaz frente às pulsões políticas que movem seu desejo de um mundo mais justo. Abstract In the present text, I resume the terms occupation/ invasion in order to investigate a very peculiar sense for invasion that appeared in an interview with Diolinda Alves de Souza, MST leader, in December 6, 1995, for the Variety leaflet of Folha de São Paulo. In this interview, I was interested in examining the process of subjectification/ identification in Deolinda´s phrasing: in a certain moment, while referring to her first occupation, she uses the term invasion. In doing so, the interview does not address what the subject can/ must say from its discursive locus. This term does not correspond to the mode of subjectification in her Discursive Formation, so well defined in the interview until that point. This sliding of occupation to invasion, allows us to identify a specific metaphorical process. A metaphorical process is “a non-subjective process in which the subject is constituted” (Pêcheux, 1988:130). And more: metaphorical process consists of a “socio-historical process that serves as the foundation for the ‘presentation’ of objects to subjects” (idem, p.132). I understand that this specific metaphorical process allows us to discern the moment in which the political subject is thrown back into its memories from which he emerges as a desiring subject. Keywords: discursive locus; subject position; discursive formation; metaphorical process; production of desire; pulsional socio-political agency; desiring subject. 36 Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013 REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Louis. Análise crítica da teoria marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. L’anti-œdipe. Paris: Minuit, 1972. FREUD, Sigmund. O instinto e suas vicissitudes. In: Ed. Standard Brasileira das obras Psicológicas completas de Sigmund Freud. vol. 14. São Paulo: Imago, 1974. GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível: o discurso na História e na Linguística. 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On s’intéresse particulièrement au nom propre, dans sa dimension de nom de mémoire, et pour ce faire on propose cinq vignettes discursives, c’est-à-dire cinq cas d’inscription ou de désinscriptions de noms propres dans des réalités chargées émotionnellement ou politiquement. Ces cas sont exposés à partir de photographies de noms en situation. Mots clés : Démémoire discursive; Désignateur souple; Désinscription; Mémoire discursive; Nom propre; Prédiscours; Signifiance. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 Introduction Les mots font des choses, words do things, c’est un principe admis depuis l’ouvrage de John Austin en 1962, en fait un peu plus tôt puisque la conférence dont est issu le livre date de 1955. Donc, depuis 1955, les philosophes, les linguistes et les chercheurs qui s’occupent des signes et des choses, du langage et de la réalité, peuvent penser que les mots ont des effets tout à fait concrets dans la réalité. Et John Austin nous a également expliqué comment les mots faisaient : how to do things with words. Cela ne veut pas dire que ce phénomène ait été intégré dans les théories et méthodologies linguistique et/ou discursives, loin de là. Il semble plutôt que la prise en compte de ce lien de continuité entre langage et réalité, qui conteste la conception binaire mainstream d’une distinction, voire parfois d’une opposition entre les deux, selon la traditionnelle division mind/body, soit minoritaire dans les travaux sur les productions langagières. Ce sont la pragmatique, l’interactionnisme et l’analyse du discours d’une certaine façon, mais surtout des approches non directement langagières comme la gender theory de Judith Butler par exemple, qui mettent en avant cette articulation entre le langage et la réalité. Dans cet article, je voudrais proposer une réponse au « how » de John Austin, qui passe par une réflexion sur la notion de mémoire, pensée, à partir de la théorie du discours, dans un cadre postdualiste, c’est-à-dire qui considère les environnements matériels de nos productions verbales comme complètement intégrés à ces productions, et non pas seulement comme des conditions extérieures. À partir de la notion de mémoire discursive proposée par Jean-Jacques Courtine en 1981, je propose celle de démémoire discursive inspirée des travaux de Régine Robin. Ces deux notions me permettront de rendre compte de la manière dont certains locuteurs inscrivent des combats et des résistances au cœur du discours. Je m’intéresserai particulièrement au nom propre, dans sa dimension de nom de mémoire, et pour ce faire je proposerai cinq vignettes discursives, c’est-à-dire cinq cas d’inscription ou de désinscriptions de noms propres dans des réalités chargées émotionnellement ou politiquement. Ma méthode dans ce travail est celle d’une grounded theory volontairement empirique (Glaser 1978), qui fait une place à une linguistique profane et expérientielle donc non théorisée, à partir de laquelle le linguiste peut écouter ce que les corpus ont à lui dire, avant de formaliser ses analyses. Ces vignettes sont composées d’une image, nécessaire pour moi dans une analyse qui prétend rendre compte de morceaux de réel, et elles sont généralement rédigées à la première personne, m’impliquant en tant que « locutrice interprétante » ordinaire dans la forêt des discours qui constituent nos environnements. Grounded theory donc, mais également une forme d’auto-ethnographie 40 Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 qui fournit les matériaux d’une analyse désireuse d’objectiver au mieux, comme le dit Pierre Bourdieu, le sujet de l’objectivation, sans illusion de mise à l’écart aseptisé d’un sujet illusoirement objectif. Cinq vignettes donc, autour de cinq noms : Qitiao La Bomba, Chiquita Levy, Gaston Donnat, Jacques Bouveresse et Vincennes. 1. Qitiao La Bomba. Le désignateur souple d’un citoyen du monde Image 1. Qitiao La Bomba, juillet 2011, Paris, rue des maraîchers, © Marie-Anne Paveau 1.1 Des noms sur un graffiti Pendant presque trois ans, le « centre-bus Lagny » de la RATP (régie des transports parisiens), immense entrepôt entouré par les rues des Pyrénées, de la Plaine, des Maraîchers et de Lagny, à Paris, dans le 20e arrondissement, a constitué un des spots de graffitis les plus fréquentés de la capitale. Jour après jour, semaine après semaine, les murs se sont peints et repeints, en toute légalité puisque la RATP avait elle-même financé le projet, en attendant la destruction de son bâtiment. Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 41 « Ce nom de Gilberte passa près de moi, évoquant d’autant plus l’e x i s t e n c e d e c e l l e qu’il désignait qu’il ne la nom mait pas seulement comme un absent dont on parle, mais l’interpellait ; il passa ainsi près de moi, en action pour ainsi dire, ave c u n e pu i s s a n c e qu’accroissait la courbe de son jet et l’approche de son but ; — transportant à son bord, je le sentais, la connaissance, les notions qu’avait de celle à qui il était adressé, non pas moi, mais l’amie qui l’appelait, tout ce que, tandis qu’elle le prononçait, elle revoyait ou du moins, possédait en sa mémoire, de leur intimité quotidienne, des visites qu’elles se faisaient l’une chez l’autre, de tout cet inconnu encore plus inaccessible et plus douloureux pour moi d’être au contraire si familier et si maniable pour cette fille heureuse qui m’en frôlait sans que j’y puisse pénétrer et le jetait en plein air dans un cri [...] » (Proust, Du côté de chez Swann, “Noms de pays : le nom”) 1 42 La légalité, c’est ce dont parle entre autres ce graffiti recueilli en juillet 2011. Son emplacement est particulier puisqu’il occupe un angle cassé au coin des rues des Maraîchers et de Lagny, juste devant le lycée Hélène Boucher. Le dessin occupe exactement la largeur de cet angle, et le graffeur a préparé un fond dont la taille est adaptée à son dessin : pas de débordement, pas d’espace perdu, du travail de professionnel, un vrai faussaire n’aurait pas fait mieux. Ce motif est le seul que j’aie vu de ce type en deux ans, il est donc tout à fait singulier. Cette « carte trafiquée d’identité » tient tout un discours, qui parle d’identité bien sûr, mais aussi de frontières nationales, de papiers officiels, et même, sur le mode humoristique, de puissance sexuelle. Que nous dit ce graffeur facétieux, qui est aussi, d’une certaine manière, philosophe du discours d’identité ? Il a, d’abord, dessiné une identité « trafiquée » sur un mur légal où, pour une fois, aucun employé de la mairie ne viendra nettoyer ses traces indésirables. C’est bien trafiqué d’ailleurs : on reconnaît le dégradé de couleurs de la « vraie » carte d’identité française, les filigranes, les trois zones, les chevrons. Ensuite c’est précisément le national qu’il a trafiqué, comme le dit bien la place du mot dans notre figement français souvent siglé : CNI, carte nationale d’identité. National est donc remplacé par trafiqué. Les mots sont-ils substituables ? C’est une question morpholexicologique : avec quoi se combine ce trafiquée, avec le nom d’avant ou le complément d’après ? Le nouveau figement, carte trafiquée d’identité, CTI, devient ambigu, car il peut se décomposer de deux manières et du coup il prend deux sens : est-ce une carte-trafiquée, d’identité, donc une « fausse carte » ? ou est-ce une carte, trafiquée-d’identité, une carte qui serait trafiquée avec de l’identité ? Syntaxiquement, c’est indéfinissable. Le choix ne peut être que sémantique. Voilà qui ouvre des possibles : si certains trafiquent des papiers avec du matériel d’imprimerie, Qitiao, le fait avec de l’identité. Enfin, et surtout, ce graffiti tient le discours du sens des noms propres, des « -onymes ». Car c’est bien ça, une carte d’identité, même trafiquée : des noms propres, des dates et des filigranes. Pas de phrase, pas de discours, pas de dialogue, mais des catégories. Et pour les graffeurs, s’y ajoutent des choix typographiques. Le nom Qitiao La Bomba m’est apparu (et j’insiste sur la subjectivité de cette interprétation, qui est centrale dans la conception sémantique du nom propre) comme le prénom d’un enfant chinois (Qi-tiao ?) qui aurait eu un père latino-américain, étrangement écrit dans une typographie du côté des idéogrammes chinois. Les yeux en amande semblent donc faire des plis asiatiques ouverts à Valparaiso en 1986, une « bomba » de couleur à la main. Le toponyme, sous son aspect de nom de nation, parle aussi sur ce graffiti : une nouvelle entité nationale apparaît, « française-chile », dans cet Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 imaginaire sémantico-politique. Trafic de nationalité, trafic de frontières, trafic de couleurs. Pour finir, le graffeur appose sur sa carte trafiquée un « tag » assez grand : sa signature ample et composée, que l’on imaginerait bien authentique, d’ailleurs. On a donc un tag sur un graf qui trafique avec de l’identité sur un mur. Cette image est un discours des noms, qui parle au nom des noms, réels ou imaginaires, auxquels manque juste celui de l’autorité. Une chose m’a en effet manqué : j’aurais aimé pouvoir retourner la carte, et lire la « Signature de l’autorité ». Sur la mienne, « l’autorité », c’est « Le directeur de la Police générale, Louis Ducamp », avec sa signature. J’aurais donc bien aimé savoir comment le graffeur, qui se représente peut-être en Qitiao La Bomba, s’y serait pris pour trafiquer la Police générale. 1.2 Des sens dans les noms propres Pour une synthèse voir Leroy 2004, et plus récemment Shokhenmayer 2010. 3 Le discours médiatique est particulièrem e nt f r i a n d de c e s tour nures, du t ype : « Peillon, le Morano de Hollande », « la Mo rano du nouveau gouvernement » (Nadine Morano s’est illustrée com me m i n i st r e du g o u ve r n e m e n t S a r kozy par ses prises de paroles intempestives et ses tweets brutaux, voire grossiers) ou « la Madoff du Chinonais », désignant une ancienne employée de banque de la région de Tours ayant escroqué des dizaines de personnes pour des sommes avoisinant les 3 millions d’euros (exemples de 2012 recueillis au vol dans la presse et sur Twitter). 2 En 1987, Paul Siblot propose une nouvelle approche du nom propre centrée sur la notion de « signifiance ». Claude Lévi-Strauss avait parlé dans La pensée sauvage des « quanta de signification » du nom propre (1962 : 258) et, plus tard, Jean Molino, avait développé ce point : « Dans le réseau cognitif de chacun, les noms propres constituent les points fixes de l’organisation symbolique, c’est-àdire en même temps de l’organisation mentale et de la structure du monde » (1982 : 19). Dans la linguistique profane des locuteurs ordinaire, cette idée du sens des noms propres est une évidence, comme le montre l’exemple de Qitiao La Bomba, citoyen d’une France chilienne, que mes cadres cognitifs, culturels et sémantiques ont immédiatement interprétés, voir surinterprétés, et même mal interprétés. Il existe toute une littérature et une onomastique de sens commun sur la capacité évocative des noms propres, des pages célèbres de Proust sur les « noms de pays » ou le nom de Gilberte1, à la caractérologie spontanée des prénoms dans la multitude de guides des prénoms sur le marché (les Francine sont « fières et racées », les Anne sont « ordonnées et soigneuses », les Pierre sont « bons et généreux », etc.) en passant par les discours touristiques sur l’exotisme des noms, garants de celui des choses et des territoires (Tahiti, Le Sahara, Rio de Janeiro…). Mais en sciences du langage, deux paradigmes s’opposent pour rendre compte du fonctionnement du nom propre : celui du désignateur rigide (le nom propre vide de sens) et celui de ce que j’appelle le « désignateur souple » (le nom propre riche de sens)2. Cette dimension sémantique du nom propre est envisagée au sein de la théorie du nom propre modifié (Leroy 2005 dir.), c’est-à-dire actualisé par un déterminant qui le dote d’une « polyréférentialité » impliquant sa polysémie3. La question du sens du nom propre est cependant, dans cette approche, posée Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 43 de manière plus syntaxique que sémantique et plus sémantique que discursive, l’intérêt se concentrant sur les formes langagières de l’intradiscours plus que sur la situation des énoncés dans leurs contextes empiriques propre à la théorie du discours. Or, l’étude du graffiti de Qitiao La Bomba implique de montrer comment une constellation de significations organise une lecture sémantico-discursive dans le contexte culturel, social, historique et matériel de l’énoncé. Les noms qui y figurent ne peuvent évidemment pas recevoir d’interprétation seulement référentielle (la « République française chile » n’existerait alors pas, or, dans ma perspective, elle existe bel et bien, sur le mur désormais détruit, sur la photographie, dans ma mémoire et celle d’autres passants sans aucun doute, et en discours ici) et il faut par conséquent proposer un modèle théorique et une méthodologie qui rende compte de la « souplesse » et richesse sémantique des noms propres en situation. Avant cela, je rappelle les travaux qui ont déjà été faits dans cette perspective afin de mieux situer ma proposition et surtout d’éviter de présenter une réflexion qui ne serait pas cumulative. Je propose de le faire en traitant un second exemple. 2. Chiquita Levy. Un univers sur une pierre tombale Frédér ic Fra nçoi s, 1997, « Chiquita », album Je ne t’oublie pas, Sony / BMG. 5 Je a n -Pat r ic k C ap dev iel le, 1980, « Oh Chiquita », CBS. 6 Joséphine Baker, 1949, « Chiquita madame (de la Martinique) », paroles de P. Misraki - J. Do Barro, Milan Music (2007). 4 44 Image 2. Chiquita Levy, novembre 2012, cimetière São João Batista de Rio de Janeiro,© Marie-Anne Paveau 2.1 Une poétique de la mémoire sémantique À Rio, dans l’immense cimetière São João Batista, repose Chiquita Levy Lustosa, née en 1929, morte en 2009. Je ne sais pas du tout qui a été Chiquita Levy et je n’aurai jamais accès à la réalité de son histoire. En revanche le halo évocateur de son nom m’a parlé là-bas, au Brésil, en novembre 2012 et continue ici, en Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 France : « Nos prénoms nous hèlent jusqu’à notre mort », déclare Pascal Quignard dans Le nom sur le bout de la langue. Dans le cas de Chiquita Levy, c’est le prénom et le nom d’une autre, morte, ailleurs, qui me hèle, moi, vivante, ici. Évidemment, je suis une proie idéale pour les obsessions sémantiques anthroponymiques, puisque je m’intéresse de près aux prénoms (Paveau 2011) et que le mien fait l’objet des déformations régulières qui maintiennent sans doute mon intérêt pour cet objet linguistique. Avant de partir à Rio, un Lévy m’avait appelée Anne-Marie, et la chose n’est sans doute pas pour rien dans le temps d’arrêt mi-surpris mi-amusé que j’ai marqué devant cette tombe. Pourquoi ce temps d’arrêt ? Pourquoi cette association, Chiquita Levy, m’a-t-elle frappée et amusée, et a déclenché des évocations et des plaisanteries échangées dans ce cimetière, au pied des montagnes et des favelas ? “On dirait un titre de bande dessinée”, s’est exclamée la personne qui m’accompagnait, et qui ne croyait pas si bien dire, on va le voir. Moi, j’ai vu (entendu ?) du mélange, du contraste, plaisant, drôle, facétieux même, et en même temps une parfaite association, due au rythme peut-être : [1/2/3,1/2]. Ça se prononce bien, [Chi/qui/ta, Le/vy], ça se pose bien dans la parole. Chiquita Levy, pour moi, c’est l’Amérique latine mariée à la vieille Europe, c’est la plage, la bodega et Che Guevara de la scie de Frédéric François4 que j’avais vaguement dans la tête, qui aurait atterri rue des rosiers, ou dans le Sentier, à Tel-Aviv mais aussi à Auschwitz ou Birkenau. “Chiquita”, c’est aussi une chanson de Capdevielle5, et plus loin dans le temps un tube de Joséphine Baker, « Chiquita madame (de la Martinique) »6, et puis il y a la « Chiquita banana », le prénom Chiquita ayant remplacé comme nom de marque la compagnie United fruit dans les années 1940. Chiquita, la “petite”, en espagnol, qui aurait rencontré le troisième fils de Jacob dans un film d’Alexandre Arcady. Tout ce monde-là se trouvait soudain convoqué sur cette pierre tombale, et le cimetière devenait bien peuplé soudainement. Chiquita Levy : les tropiques et le Lévitique, la banane et la kippa, la bodega et la Torah. Chiquita Lévy, deux univers dans un nom gravé sur une tombe, qui auraient pu rester latents et inaperçus, sans le chemin de la mémoire sémantique, qui commence avec notre regard et se fraie ensuite des sentiers dans les sédiments des souvenirs qui nous fabriquent et nous relient à nos morts. Voilà pour le « story telling » de mon expérience profane, en quelque sorte, de ce nom capté par hasard dans le cimetière de Rio. Que peut en dire la théorie du discours quand elle s’intéresse à la richesse sémantique du nom propre ? 2.2 Mémoire, cognition, émotion Il faut rappeler les origines et reprendre le concept d’« hypersémanticité » proposé par Ulrich Weinreich en 1963, qu’il Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 45 Les pieds-noirs sont les colons français installés en Algérie à partir de la conquête en 1830. 7 46 conçoit comme une plasticité sémantique du nom propre doté d’une puissance évocative importante. Roland Barthes reprend cette idée en avançant la notion d’« épaisseur sémantique » du nom propre, ou de son « feuilleté » (Barthes 1972 [1967]). Les « connotations associatives » de Catherine Kerbrat-Orecchioni en 1977 vont dans ce sens, comme les « halos positifs et négatifs » de Marc Wilmet (2003 [1997]). Paul Siblot, on l’a vu, faisait des propositions théoriques et terminologiques en 1987, comme les « potentialités signifiantes » (1987). Plus récemment, certaines chercheuses ont repris cette problématique et fait d’intéressantes propositions : Georgeta Cislaru propose l’hétéroréférentialité, l’hybridation, l’omnisignifiance (2005) ou la polyréférentialité, à propos du nom de pays, Michèle Lecolle parle de plurivocité et de « polyvalence intrinsèque », qui est la capacité du toponyme à désigner, concomitamment ou en alternance, plusieurs référents, en plus du référent géographique, par exemple l’état, la nation, le gouvernement, telle équipe de football ou telle entreprise. Alice Krieg-Planque, dans une perspective plus sociologique sur les noms propres d’évènement, emprunte à Louis Quéré sa « mise sous description » de l’évènement via le toponyme qui rendrait l’évènement insaisissable (2006 : 98). J’accepte l’ensemble de ces propositions et leurs implications théoriques, mais je souhaite envisager l’omnisignifiance du nom propre à travers sa nature prédiscursive, c’est-à-dire d’agent de transmission de cadres prédiscursifs collectifs délivrant des instructions sémantiques pour la mise en discours, ce qui me conduira à parler de « noms de mémoire » (Paveau 2006). Dans ma conception cognitivo-discursive, le nom propre possède une signification située (au sens cognitif du terme) dans le temps, l’espace et la culture de la communication : la position historique et énonciative du sujet est un critère aussi important que la sédimentation mémorielle du nom lui-même, puisque les effets discursifs sont également des effets cognitifs. En effet, les positions énonciatives font varier les sédimentations sémantiques car les connaissances historiques, mémorielles et culturelles ainsi que les modes de catégorisation opérés par les noms propres, sont différents selon les sujets, fortement situés eux aussi, bien sûr : l’exemple de Chiquita Levy le montre bien, mon réseau associatif et évocatif étant fortement déterminé par mes cadres prédiscursifs. Pour quelqu’un à qui j’ai montré cette photo, et qui revenait du Chili, le nom de Chiquita Levy s’est inscrit dans un autre cheminement sociocognitif : de Chiquita Levy à São João Batista, de São João Batista à Batista le patronyme, de Batista à La Havane, et à son cimetière, Colon ; puis d’autres noms de cimetières, Prague, Le Père Lachaise, et de fil sémantique en aiguille cognitive, Birkenau, et d’autres lieux de mort encore. Mais dans cette réaction associative en chaîne, un autre facteur joue, qui est celui de l’émotion. On n’a pas encore pris suffisamment en compte, en sciences du langage, Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 le rôle de l’émotion dans l’élaboration des discours et de leur sens. Il existe désormais des travaux assez nombreux sur l’expression des émotions, mais très peu sur l’émotion comme catégorie de production des discours. On sait pourtant que l’émotion joue un rôle important dans la mémoire, et il est donc tout à fait pertinent de la convoquer dans le fonctionnement de ces noms de mémoire que sont les noms propres. L’aptitude à l’hétéroréférentialité autorise donc le nom propre, ici le patronyme Chiquita Levy, à une polysémie souple, fluide même, polysémie plus évocatrice que signifiante. Tous les noms de mémoire sont étroitement liés aux conditions cognitives de leur usage : même des noms pour lesquels on peut supposer un partage universel des savoirs pour des raisons historiques (grands hommes et grandes femmes des livres d’histoire, par exemple) ne « disent quelque chose » aux sujets que dans le cadre situé d’un partage de connaissances communes. Et, hors des connaissances communes, dans les lectures individuelles, des réseaux de significations idiosyncrasiques se mettent en place, partagés dans une émotion sémantique commune. 3. Gaston Donnat. Un cas d’effacement volontaire de mémoire 8 OAS : « Organisation armée secrète », groupe clandestin créé en 1961, qui organise des opérations terroristes contre les partisans de l’indépendance. 9 Paris, L’Harmattan, 2008. 10 Le mot Harki désigne à l’origine un individu servant Algérie à l’époque coloniale dans une formation paramilitaire, une harka (haraka en arabe veut dire « mouvement »). Le mot désigne par extension les supplétifs algériens engagés dans les armées françaises entre 1957 et 1962, et qui se sont donc battus contre les indépendantistes. 11 LDH Toulon, 29 février 208, « Perpignan : i n st r u ment a l iser les mémoires sans trop se soucier du respect de la vérité », site de la Ligue des droits de l’homme Toulon, http://www. ld h-tou lon.ne t/spip. php?article2553, consulté le 13 janvier 2013. Image 3. Les noms de la famille Donnat effacés de la quatrième plaque (photo © TC - 28 février 2008), Perpignan, Mur des disparus d’Algérie (sur le site de la Ligue des droits de l’homme de Toulon : http://www.ldh-toulon.net/spip. php?article2553) 3.1 La liste comme discours (1). Éthique de la désinscription Yvan Donnat, appartenant à une famille pied-noire d’Algérie7, découvre en février 2008 les noms de plusieurs membres de sa famille, tous vivants, sauf son père, gravés sur le « Mur des disparus français d’Algérie », longue plaque commémorative installée à Perpignan, ville du sud de la France. Il en demande aussitôt l’effacement : la liste est en effet plutôt orientée vers les positions de l’Algérie française, c’est-à-dire celle de la communauté piednoire qui était favorable au maintien de la colonisation française, et pour lesquels les accords d’Évian signés en 1962 ont représenté une perte importante qui alimente une nostalgie entretenue par la communauté. Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 47 Yvan Donnat explique ainsi son indignation et sa demande : « Ils ont repris de fausses informations en utilisant, sans la vérifier, la liste du Ministère des affaires étrangères. Mon père a toujours été un humaniste et un militant anticolonialiste. Or, sur le mur, son nom, comme celui des autres membres de ma famille, est accolé à celui d’assassins de l’OAS ? Tout ça est révoltant ! » (Libération 15.02.08)8. Gaston Donnat est en effet un militant anticolonialiste connu pour ses actions, non seulement en Algérie, mais également au Cameroun. Un ouvrage rassemble des extraits biographiques, publié en 2008 avec une préface de Gilles Perrault : Afin que nul n’oublie. L’itinéraire d’un anticolonialiste9. Son fils Yvan engage des poursuites pour « préjudice moral ». Il est remarquable que la raison de son indignation ne soit pas que les « disparus » soient, excepté Gaston Donnat le père, bien vivants, et parfaitement identifiés, mais qu’ils côtoient des sympathisants de l’OAS. L’initiative de ce mur vient du « Cercle algérianiste », qui explique que les 2.619 disparus français et harkis10, dont le nom figure sur les plaques de bronze du mémorial, « sont ceux de la liste officielle » émanant du ministère des Affaires Etrangères. Le directeur des archives dudit ministère écrit alors à Yvan Donnat le 25 février 2008, précisant que la liste n’est pas officielle mais reflète « l’état des informations reçues par la Direction des Archives lors du versement des archives de l’ancien Secrétariat d’Etat aux affaires algériennes ». Il termine par la promesse de l’effacement : « Je vais donc veiller à ce que les noms des personnes de votre famille soient ôtés du site du Ministère, et vous exprime mes profonds regrets pour le trouble qui a pu être occasionné »11. 3.2 De la désinscription comme acte de langage Gonac’h 2007. 12 48 J’ai proposé le concept de « démémoire discursive » dans Les prédiscours en 2006, en retravaillant celui de « démémoire » que Régine Robin, qui a consacré une grande partie de ses écrits à explorer les « passés fragiles », avait avancé dans les années 2000 pour formuler les transformations sémiotiques du Berlin de l’après-chute du mur (Robin 2001) : elle considérait en particulier que le processus de débaptême et rebaptême des rues, les noms de figures des brigades internationales ayant été remplacés par ceux de chevaliers teutoniques (Robin 2004), avait accompli une « démémoire ». Le phénomène intéressant du débaptême s’observe d’ailleurs dans plusieurs lieux marqués par des changements politiques forts, comme en Afrique du sud depuis la fin de l’apartheid : la ville de Krugersdorp, d’après le nom du père fondateur du nationalisme afrikaner, Paul Kruger, va devenir Mogale city, d’après celui d’un ancien chef africain, Mogale Mogale (« le brave ») ; Pretoria sera rebaptisée Tshwane, du nom d’un ancien chef tswana ; et Port Elizabeth deviendra la Métropole Nelson Mandela (Libération 12.06.2010). Jeanne Gonac’h, qui a étudié ce phénomène à Vitrolles Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 L’expression « divine surprise fonctionne en effet comme un attribut fixé sur la catégorie “événement i nattendu agréable”, et de ce fait peut s’appliquer à u n g ra nd nomb r e d’événements de la vie privée ou publique. La déshistoricisation passe par une désémantisation intense : divin est vidé de toutes ses allusions monarchistes (c’est en sourdine l’expression de droit divin qui semble présente da ns la profération initiale de 1940), et l’expression est coupée à la fois de sa référence, l’arrivée de P. Pétain au pouvoir, et de son énonciateur […] C. Maurras » (Paveau 2006, p. 92). 13 entre 1997 et 2002, ville provençale sous mandat du Front national, parle même « d’épuration symbolique », expliquant qu’il s’agit avec le débaptême de retirer l’histoire d’une femme ou d’un homme de la mémoire collective (pour Vitrolles, Dulcie September ou Jean-Marie Tjibaou par exemple)12. En théorie du discours, le concept de mémoire discursive, proposé par Courtine en 1981 à partir de la notion de « domaine de mémoire » de Foucault et dans le cadre marxo-freudien de l’analyse du discours dite « française » (Paveau 2010), puis retravaillé en mémoire interdiscursive par Lecomte (1981) et Moirand (2003, 2004), est un des outils les plus opératoires pour lire les discours dans leurs contextes. La mémoire discursive se manifeste quand les discours s’insèrent, par des marques repérables, dans des domaines de mémoire associés, c’est-à-dire développent des liens mémoriels de reformulation, répétition, ou au contraire d’oubli et de déni, par rapport à des « formulations-origines » repérables mais non présentes explicitement dans les productions verbales (Courtine 1981). Ces insertions échappent largement au sujet, qui est en quelque sorte parlé par des mémoires qui lui sont externes. La mémoire interdiscursive que propose ensuite Sophie Moirand articule l’épistémologie de l’analyse du discours française au dialogisme bakhtinien (Moirand 2007a et b). Il y a mémoire interdiscursive quand les discours parlent dans les mots d’autres discours (parler du « soja fou », c’est parler de la question des plantes transgéniques dans les termes de l’affaire de la vache folle, par exemple) ou font surgir d’autres événements, qui deviennent en quelque sorte des cadres d’expression (« marée noire : le Tchernobyl de l’industrie pétrolière », titre par exemple le magazine en ligne Rue89 à propos de l’affaire du pétrole de BP en Louisiane en 2011). La demande, entendue et réalisée d’Yvan Donnat, est une demande de démémoire discursive : la lignée discursive dans laquelle les auteurs de la plaque ont inscrit le nom de son père, et, par là, son nom propre, qui est aussi son propre nom, est inajustée à celle qu’il possède et qu’il revendique. Yvan Donnat n’accepte pas que le mur « parle » sa famille dans le discours de l’Algérie française et de la nostalgie coloniale. Cette inscription discursive est effacée. La notion de démémoire discursive désigne donc un ensemble de phénomènes de déliaison des rappels et insertions dans le fil mémoriel du discours qu’illustre bien l’exemple de l’histoire du nom Gaston Donnat sur ce mur commémoratif. Mais il existe d’autres processus à l’œuvre dans la démémoire, qui concernent en particulier des éléments liés au sens et au référent des mots : le désancrage de certaines expressions figées de leur contexte référentiel d’origine (voir par exemple l’étude que j’ai consacrée à l’expression à Divine surprise dans Les prédiscours, le terme pouvant être désormais appliqué tant à une victoire olympique qu’à l’obtention d’un marché)13 ; l’ancrage, au contraire, de certains discours Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 49 dans les formes d’un autre, réalisant une sorte de transfert de mémoire sur une autre : sur le site du Comité Véritas, organisation qui défend l’Algérie française, on trouve un texte intitulé « J’accuse », qui demande la condamnation du Général de Gaulle, reprenant la forme choisie par Zola pour défendre Dreyfus : ce choix stylistique engage une démémorisation suivie d’une remémorisation de l’événement ; la déliaison entre un signifiant et ses sens et référent, particulièrement dans le cas du nom propre : pour beaucoup, par exemple Tataouine, nom de l’un des bagnes disciplinaires les plus durs des armées françaises à l’époque coloniale, est l’un des clubs Méditerranée les plus agréables de Tunisie, la mémoire du bagne s’étant effacée, et le feuilletage mémoriel s’étant bloqué sur des sens restreints ; enfin, la subjectivation mémorielle : à partir de l’exemple du polémonyme ou nom de bataille, comme Diên Biên Phu ou Gravelotte, j’ai montré que la construction des sens du nom propre étaient largement située dans une communauté culturelle, sociale, nationale (Paveau 2008, 2009). 4. Jacques Bouveresse. Refuser un certain honneur pour son nom Image 4. Extrait du « Décret du 13 juillet 2010 portant promotion et nomination » à l’ordre de la Légion d’honneur (Journal officiel de la République française) 50 Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 4.1 La liste comme discours (2). Éthique du non/m En juillet 2010, Jacques Bouveresse est nominé pour le grade de chevalier de la Légion d’honneur par la ministre de l’enseignement supérieur et de la recherche du gouvernement français, Valérie Pécresse. Il refuse cette nomination dans une lettre publique, publiée sur le site de l’un de ses éditeurs, les éditions Agone, et relayée un peu partout sur les sites d’information et par des particuliers : Lettre de Jacques Bouveresse à Mme Valérie Pécresse, ministre de l’Enseignement supérieur En réaction à l’attribution d’une Légion-d’honneur qu’il n’a jamais demandée, Jacques Bouveresse nous a transmis la lettre (en date du 17 juillet 2010) par laquelle il a refusé cet « honneur ». Madame la ministre, Je viens d’apprendre avec étonnement par la rumeur publique et par la presse une nouvelle que m’a confirmée la lecture du Journal officiel du 14 juillet, à savoir que je figurais dans la liste des promus de la Légion d’honneur, sous la rubrique de votre ministère, avec le grade de chevalier. Or non seulement je n’ai jamais sollicité de quelque façon que ce soit une distinction de cette sorte, mais j’ai au contraire fait savoir clairement, la première fois que la question s’est posée, il y a bien des années [1], et à nouveau peu de temps après avoir été élu au Collège de France, en 1995, que je ne souhaitais en aucun cas recevoir de distinctions de ce genre. Si j’avais été informé de vos intentions, j’aurais pu aisément vous préciser que je n’ai pas changé d’attitude sur ce point et que je souhaite plus que jamais que ma volonté soit respectée. Il ne peut, dans ces conditions, être question en aucun cas pour moi d’accepter la distinction qui m’est proposée et – vous me pardonnerez, je l’espère, de vous le dire avec franchise – certainement encore moins d’un gouvernement comme celui auquel vous appartenez, dont tout me sépare radicalement et dont la politique adoptée à l’égard de l’Éducation nationale et de la question des services publics en général me semble particulièrement inacceptable. J’ose espérer, par conséquent, que vous voudrez bien considérer cette lettre comme l’expression de mon refus ferme et définitif d’accepter l’honneur supposé qui m’est fait en l’occurrence et prendre les mesures nécessaires pour qu’il en soit tenu compte. 14 Le Quid, disparu en 2007, était une encyclopédie qui rassemblait surtout des informations chiffrées sur les domaines les plus divers de la vie humaine. En vous remerciant d’avance, je vous prie, Madame la ministre, d’agréer l’expression de mes sentiments les plus respectueux. Jacques Bouveresse Jacques Bouveresse ne mentionne pas son nom dans cette lettre, mais le fait parler indirectement : c’est en effet par son seul Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 51 nom qu’il est honoré à son insu et sans y consentir sur la liste du décret officiel, l’honneur ayant essentiellement pour objet, en tant que valeur sociale, le nom des individus qu’elle distingue. Dans les versions ultérieures du décret (consultables sur le site du Journal officiel français), le nom de Jacques Bouveresse n’apparaît plus, ce qui constitue un effacement analogue à celui du nom de Gaston Donnat. Il faut préciser cependant que le refus de la décoration est quasiment un stéréotype comportemental en France, comme dans d’autres pays d’ailleurs, et que Jacques Bouveresse a de nombreux et célèbres prédécesseurs. Ce refus de l’honneur donne d’ailleurs lieu à une publicité presque aussi importante, si ce n’est plus, que son octroi ; par exemple une encyclopédie comme le Quid14 donnait la liste des « refusants » célèbres de la légion d’honneur, dans un encadré qui rassemblait quatre particularités sous les rubriques suivantes : « Parmi les premiers décorés », « Parmi ceux qui ont refusé d’être décorés », « Femmes » et « Décorations à titre collectif ». La Fayette est dit l’avoir refusée « pour éviter le ridicule » et Georges Sand pour éviter d’« avoir l’air d’une vieille cantinière » (Quid 2004 : 599). L’encyclopédie Wikipédia donne également la liste, assez longue, des refusants, où l’on peut voir Daumier, Maupassant, G. Sand, Sartre, Beauvoir, Camus, Prévert, Brassens, désormais Bouveresse et, depuis janvier 2013, le dessinateur Tardi. Toutes les décorations se refusent, et même les citations à l’ordre, dans un contexte purement militaire. Une autre pratique est de rendre sa décoration, comme le Turc Erdogan Teziç, qui choisit d’accomplir ce geste en 2006 pour protester contre la pénalisation de la négation du génocide arménien par le gouvernement français. 4.2 Discours et valeurs. Le patronyme comme lieu discursif éthique Nous avons là des discours intéressants de démémoire volontaire, auxquels s’ajoutent des dimensions éthiques, dans la mesure où se trouve engagée l’une des valeurs les plus anciennes et les plus structurantes de nos sociétés : l’honneur. Il existe en effet un lien entre éthique et mémoire. Au début de son ouvrage L’éthique du souvenir (2006), le philosophe israélien Avishai Margalit explique que sa réflexion a pour origine une anecdote lue dans la presse, à propos d’un colonel d’infanterie : « On interrogeait le colonel au sujet d’un épisode bien connu de son passé, alors qu’il commandait une petite unité. L’un des soldats qui étaient sous ses ordres fut tué d’une balle tirée de son propre camp. Il s’avéra que le colonel ne se souvenait pas du nom du soldat. Un torrent d’insultes se déversa sur l’officier qui n’arrivait pas à se souvenir. Comment se faisait-il que le nom du soldat ne soit pas marqué “au fer rouge” dans le cœur du commandant ? » (p. 29). Avishai Margalit en conclut que se souvenir du nom, c’est 52 Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 se souvenir de la personne, et que c’est cet oubli de la personne à travers le nom qui est reproché au colonel en question. Il précise « qu’il y a par rapport au souvenir des noms propres une image puissante qui transforme notre conception de la mémoire en question éthique » (p. 29). Les événements discursifs autour des noms propres que je viens de décrire, en particulier autour du nom de Gaston Donnat, confirment amplement cette analyse : inscriptions de noms refusées ou désirées, récompenses nominales acceptées ou rejetées. Si le nom propre est aussi « puissant » sur le plan mémoriel et éthique, les deux dimensions s’entrecroisant, c’est que, et cela ne concerne pas seulement le patronyme, il constitue le lieu de cette valeur située très exactement à l’articulation du social et de l’individuel, l’honneur. Il existe peu de travaux en sciences humaines et sociales sur l’honneur, et le livre de Julian PittRivers, Anthropologie de l’honneur, qui date de 1977 (traduit en 1997 seulement chez Pluriel), constitue une référence encore parfaitement actuelle. Il définit l’honneur comme une valeur sociale attaché spécifiquement au nom : L’honneur est la valeur qu’une personne possède à ses propres yeux mais c’est aussi ce qu’elle vaut au regard de ceux qui constituent sa société. C’est le prix auquel elle s’estime, l’orgueil auquel elle prétend, en même temps que la confirmation de cette revendication par la reconnaissance sociale de son excellence et de son droit à la fierté. […] L’honneur aménage une connexion entre les idéaux en vigueur dans une société et la reproduction que fait de ceux-ci l’individu qui aspire à les incarner. À ce titre l’honneur implique non seulement qu’on se conduise d’une certaine façon, mais qu’en retour on bénéficie d’un traitement particulier (Pitt-Rivers 1997 [1977], p. 18). C’est la raison pour laquelle certains individus éprouvent le besoin de défendre leur nom ou de le préserver d’environnements qui ne correspondent pas à leurs ajustements éthiques. Sans qu’un lexique éthique ait été explicitement mis en avant par Jacques Bouveresse, on peut cependant lire dans son refus de la Légion d’honneur, qui est d’ailleurs le troisième, quelque chose de cette éthique du nom. Une des raisons que donne le philosophe, outre celles qu’il formule dans sa lettre à la ministre Valérie Pécresse (le fait qu’il ne l’a pas demandée et qu’il n’accepte pas cet « honneur supposé » d’un gouvernement dont la politique lui semble « inacceptable »), est de ne pas « se retrouver en bien mauvaise compagnie », comme il l’explique dans un entretien publié par le quotidien en ligne Mediapart sur la question : « […] en acceptant les honneurs, on risque fortement de se retrouver dans une compagnie assez peu honorable et même parfois peu fréquentable » (31.07.2010). Les commentaires qu’il fait sur son refus font appel à la dimension éthique puisqu’il mentionne le « mépris avec lequel [les membres du gouvernement] sont capables de traiter des gens pour lesquels Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 53 ils n’ont en réalité aucune estime réelle » (je souligne), et c’est sur le terrain des valeurs qu’il place sa décision : Etant donné les valeurs que servent réellement ceux qui nous gouvernent (je ne parle pas de celles qu’ils professent officiellement et dont ils se réclament quand ils parlent de choses comme la « moralisation » de l’économie ou de la finance), je ne suis pas du tout surpris qu’ils aient décidé d’honorer un homme comme M. de Maistre. Mais, dans ce caslà, il vaudrait certainement mieux ne pas chercher à honorer en même temps les gens de mon espèce (J. Bouveresse, Mediapart, 31.07.2010). Jacques Bouveresse ne parle pas de son nom, mais la Légion d’honneur, comme toutes les décorations, ne distinguant pas le nom de la personne dans le processus honorifique, c’est une éthique implicite du nom qu’il défend, surtout dans sa double allusion à la « compagnie » : être promu dans l’ordre de la Légion d’honneur, c’est en effet, principalement, figurer sur une liste, forme langagière de la compagnie, qui constitue un environnement discursif à la fois graphique, social, politique et moral. 5. Vincennes. Un signifiant mémoriel atopique Ouvert en 1969, le Cent re Un iversitaire Expérimental de Vincennes (C.U.E.V.), fondé dans l’effervescence de le révolution de 1968 sur l’idée de démocratisation de l’accès au savoir, devient une université à part entière, Paris 8, apte à délivrer des diplômes, en 1971. Pourtant construite en bâtiments durs qui auraient pu être conservés, elle est entièrement dét ruite en 1980 et réimplantée à Saint-Denis, dans la banlieue nord de Paris. 15 54 Image 5. Profil et couverture de la page Facebook de l’« Université paris 8 Vincennes-Saint-Denis » 5.1 Mais où est donc située l’université de Paris 8 ? À Vincennes et à Saint-Denis, tout en même temps, ce qui constitue une énigme à la fois géographique, onomastique et historique. Les noms des lieux ne sont pas forcément à leur place dans la géographie de la réalité. Le nom de l’université de Paris 8, qui est encore officiellement Université Paris 8 Vincennes – Saint-Denis, Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 réveille cette réflexion à chaque fois que je le vois passer dans une information ou une annonce de publication ; car une revue a gardé ce nom, Recherches Linguistiques de Vincennes, comme les presses qui l’éditent, les « Presses Universitaires de Vincennes ». Je sais bien sûr d’où vient ce déplacement toponymique, et je connais assez bien, par mes travaux et mes collègues, cette histoire-là15. Mais je reste frappée par ce maintien, plus de trente ans après la destruction du lieu en question, Vincennes, et son déplacement à Saint-Denis. Je me suis souvent demandé, durant mes courses au bois de Vincennes, où était cette université « de Vincennes ». On m’en a un jour vaguement indiqué l’emplacement, et mes yeux traînent parfois sur le sol à la recherche de vestiges illusoires ; illusoires, car la destruction en a été radicale : il n’en est absolument rien resté et la perfection de cette éradication constitue aussi un processus de démémoire. Seulement, cette démémoire, radicale dans la réalité, n’a pas été discursive, puisque le nom de Vincennes est soigneusement conservé dans le logo de l’université et sur tous les documents, dans toutes les communications officielles. 5.2 Vincennes, nom de mémoire Ce lieu détruit a gardé son nom, et ce nom, qui n’est plus vraiment un toponyme, est désormais un nom de mémoire. Ce nom de mémoire est le lieu sémantique où s’accumulent au fur et à mesure des usages les strates mémorielles de l’histoire de cette université expérimentale. Si le nom de Vincennes n’active que le sens de “ville” ou de “bois” dans certains contextes, dans d’autres, c’est la forme sémantique d’une université expérimentale disparue qui émerge. Vincennes est un curieux cas de mémoire lexicale et sémantique, mais également de résistance à la démémoire. Dans le cas de Vincennes, cette inscription, presque une incrustation du nom dans les noms officiels qui nomment Paris 8 et ses publications, semble maintenir dans les sédiments mémoriels, non seulement un segment d’histoire, mais également son lieu, même oublié, même recouvert par les arbres, même reconstruit d’autres bâtiments. Les énoncés qui contiennent « Vincennes – Saint-Denis » ou parfois « Université de Vincennes à Saint-Denis » font donc travailler, grâce à ce puissant levier sémantique, Vincennes, une mémoire discursive contre une démémoire discursive qui déplacerait et débaptiserait sans inscrire dans le passé vivant. Vincennes, nom de mémoire dans un discours de place. Dans Berlin Chantiers, il y a ce passage où Régine Robin raconte comment, après la réunification, les Berlinois conservèrent pendant quelque temps leurs trajets d’avant la chute du mur. Autre phénomène de résistance à la démémoire, brutalement accomplie à Berlin, à coups de débaptêmes-rebaptêmes de rues et de reconstructions radicales, nous dit l’auteure. Les trajets anciens conservés dans la nouvelle Berlin sont de muets discours qui Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 55 disent l’importance des lieux sous nos pieds, le bouleversement des déplacements et les enjeux des (r)emplacements : Peut-être faudrait-il étudier les trajectoires quotidiennes des habitants de Berlin-Est et de ceux de Berlin-Ouest. Même s’il n’y a plus de Mur, les Berlinois continuent à suivre des réseaux qui leur sont familiers. Une étude a récemment comparé les parcours quotidiens des habitants de quatre quartiers qui avaient été en bordure du Mur, Wedding et Pankow au nord, Neukölln et Treptow au sud. Tous ont vraiment conscience d’habiter un quartier, un kiez, mais ne connaissent que très peu le quartier voisin dont ils étaient, il n’y a pas si longtemps, séparés par le Mur (Robin 2001, p. 140). L’exemple de Berlin et celui de Vincennes se ressemblent, bien que le premier soit non discursif. Dans les deux cas, une réalité matérielle a disparu, le mur et l’université ; et dans les deux cas ces entités sont maintenues, l’un par une sorte de sémiotique urbaine et corporelle, et l’autre par l’inscription d’un nom propre dans un autre nom propre : la conservation du nom de Vincennes dans le nom de l’université de Paris 8, située désormais à Saint-Denis, maintient en effet un circuit, discursif et cognitif, qui vise à résister robustement à un effacement du réel. Conclusion Cinq noms, cinq manières de résister aux normes, aux pouvoirs, et aux disparitions. Cinq manières, aurait dit Louis Althusser, de ne pas répondre à l’interpellation qui fait de nous des sujets assujettis sans même que nous nous en rendions compte. « Hé, vous, là-bas ! », dit l’interpellation « qui ne rate jamais son homme » (Althusser 1970, p. 31). Mais dans ces cinq vignettes, l’individu ne se retourne pas. Avec Qitiao La Bomba, on a un dispositif plurisémiotique constituant un discours de résistance aux lois et aux idéologies des frontières. Au cœur de ce dispositif, qui est une mise en scène de la carte d’identité, preuve juridique à fort coefficient social de l’existence des sujets, les noms, nom de personne, nom de pays. Des noms choisis et décidés, inscrits et signés sans foi ni loi, pour ainsi dire, sans foi dans les institutions de police ni lois de la république. Chiquita Levy, c’est le nom de mémoire, le lieu d’une rêverie associative qui résiste tant à la signification prescrite des unités lexicales qu’à l’extinction de la vie par la tombe. Évidemment, pour qu’un nom parle autant, il faut que des subjectivités y entrelacent des imaginations et des émotions. Mais le nom propre possède, plus que les autres catégories de la langue, une aptitude spécifique pour constituer le lieu de cet entrelacement. Les noms Gaston Donnat et Jacques Bouveresse sont des noms désinscrits par la volonté de leur porteur. Si la théorie du discours s’occupe beaucoup des énoncés produits, elle a moins l’habitude de s’occuper de ceux qui ont été effacés. Or, l’effacement d’un 56 Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 énoncé est une forme de production verbale, il y a du langage qui se démet de ses formes, et qui résiste à des inscriptions forcées comme il y a des travaux forcés. Enfin Vincennes, détaché de son référent géographique pour adopter celui de la mémoire, constitue un cas tout à fait singulier de résistance à la démémoire accomplie par la réalité elle-même. Comme le Mur de Berlin qui, disparu, semble toujours encore là dans les années 1990 pour les Berlinois, l’université de Vincennes, qui n’est plus à Vincennes, y reste par l’inscription du nom dans le nom d’un ailleurs géographique qui s’en trouve lui-même déplacé : car ce Saint-Denis, où se trouve désormais située l’université de Paris 8, est réciproquement « déplacé » à Vincennes, par le seul fait du signifiant. Ces cinq vignettes montrent que le nom de mémoire, patronyme ou toponyme, loin de n’être que ce désignateur rigide que présente la logique, est un réservoir sémantique qui a le pouvoir de modifier la réalité, surtout quand elle est régie par des ministères, des policiers et des cimetières. Resumo Este artigo propõe uma reflexão sobre a noção de memória, pensada a partir da teoria do discurso, em um quadro p[os-dualista, ou seja, que considera os ambientes materiais das produções verbais como plenamente integrados a estas produções. À partir da noção de memória discursiva proposta por Jean-Jacques Courtine, em 1981, elaboramos a de desmemória discursiva, inspirada nos trabalhos de Régine Robin. Estas duas noções permitem dar conta da maneira como certos locutores inscrevem combates e resistências no cerne do discurso. Interessamo-nos particularmente pelo nome próprio, em sua dimensão de nome de memória, e, para fazer isso, propomos cinco vinhetas discursivas, isto é, cinco casos de inscrição ou desinscrição de nomes próprios em realidades carregadas emocional e politicamente. Estes casos estão apresentados a partir de fotografias de nomes em contexto. Palavras-chave: desmemória discursiva; memória discursiva; nome próprio; significância. Abstract This article aims to reflect about the notion of memory, based on the theory of the discourse, inscribed in a post-dualist frame, i.e., the one considering the material circumstances of the verbal productions as totally integrated with these productions. From the notion of discursive Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013 57 memory as proposed by Jean-Jacques Courtine, in 1981, we elaborate the notion of discursive dismemory, inspired by the works of Régine Robin. These two notions allow us to consider the way some opeakers show struggles and resistances in their discourse. We are particularly interested in the proper name, in its dimension of name of memory, and, to do that, we propose five discursive images, i.e., five cases of inscription and disinscription of proper names in realities emotionally or politically marked. These cases are presented from photographies of names contextualized. Keywords: discursive dismemory; discusive memory; proper name; significance. RÉFÉRENCES ALTHUSSER Louis, 1970, « Idéologie et appareils idéologiques d’État, notes pour une recherche » La pensée. Revue du rationalisme moderne 151, p. 3-38 (écrit en 1969). 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Tal evento foi idealizado e exposto na Estação Atocha, em Madri, três anos após os atentados terroristas de 2004, que inscreveram cenas de horror em um local de passagem e larga circulação em horário comercial e que fizeram dançar, em um céu de palavras, o furo da morte. Palavras-Chave: discurso; furo; contemporaneidade; psicanálise. 1 Agradeço imensamente a Glaucia Nagem e ao Prof. Dr. Lauro José Siqueira Baldini, pela leitura crítica desse texto e pelos comentários preciosos que foram incorporados a esta versão. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 Um diário, a falta de/em si e a Coisa Só existem eu e esse vazio opaco (Samuel Beckett) Sobre o nada, eu tenho profundidades. (Manoel de Barros) “Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.” A página de um diário, escrito aos cincoenta anos quando suas principais referências afetivas (mãe, esposa, filho) já estavam mortas, instala algo de falta incessante. “Falto eu mesmo” encerra uma condição que percorre toda a trama de Dom Casmurro na revisitação imaginária do que o narrador foi (ou teria sido, já que o relato dele é desenhado pelas mãos vigorosas da rememoração, sempre cúmplice da imaginação) em diferentes momentos de sua vida. A falta de si mesmo esteve sempre presente e foi preciso uma vida toda para nomeá-la e chegar ao seu núcleo duro, a impossibilidade da completude, as garantias sempre furadas e a provisoriedade de toda certeza. Ou seja, o dizer de Bentinho dá a ver e a sentir Isso, a Coisa, a falta que é puro inominável. E diante Dela, é possível indagar: como tocar o inominável com palavras que tentam dar nome? De que modo dizer do que escapa a cada nova tentativa de contorno, deixando-se impreenchível? A partir de que dizer é possível uma aproximação (sempre capenga e, a despeito disso, tão necessária) com o vazio, com o que (a)parece como fronteira de e para o furo em tantas obras da literatura e das artes? Tocar o “falto eu mesmo” é sempre tentativa em vão e, como sinaliza Clarice Lispector, é da ordem do imperativo de dizer e “conformar-se com a pobreza do dito”; é também da ordem de lidar com a angústia da folha em branco, cujo vazio faz latejar palavras que ali criam ausência e convocam o sujeito a dar um início, isso conforme Scherer (2011) apresentou oralmente em um evento. Ausência e vazio de dar uma continuação, acrescento. Isto é, tocar em vão as esburacadas esta(s) palavra(s) que tentam tatear e driblar a Coisa, fazedora de atordoamentos em tantos artistas, escritores e teóricos da linguagem, e que foi estudada e formalizada por Freud e Lacan, ambos lançados à radicalidade do vazio, cada qual à sua moda e a seu tempo. Ao longo deste texto, entrego-me à tarefa de dizer sobre Ela (e também do quanto me falto a mim mesma), tecendo apontamentos sobre a tessitura dos conceitos de Das Ding na obra dos dois psicanalistas citados. Essa aventura não é sem consequências, sei disso. Ainda assim, tento dar borda ao que persiste e que o narrador de Machado coloca na voz de seu narrador: “essa lacuna é tudo”. 62 Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 Quando Freud ([1895], 1977) introduziu o conceito de Das Ding, ainda no início de seus trabalhos no Projeto para uma Psicologia Científica, pensava-a como “a lógica da origem” e também como “pólo excluído do aparelho psíquico”, algo que ficava fora dele. O então neurofisiologista (op. cit., p. 434) faz a aposta de que no aparelho psíquico haveria a existência de duas partes, “a primeira, que geralmente se mantém constante, é o neurônio a, e a segunda, habitualmente variável, é o neurônio b.” E explica que à primeira corresponde “o núcleo do ego e a parte constante do complexo perceptivo”, também definido como “neurônio a como a coisa”. Assim, esse neurônio apresenta-se constante, sempre em atividade, constitutivo do eu, ou seja, como algo interno e estrutural no aparelho. Essa zona se mantém sempre constante, presentificando o dizer do personagem machadiano. Segundo Kaufmann (1996, p. 84), nesse momento Freud “constatou que a mediação do outro era indispensável para a percepção ou para renovar a experiência de satisfação”. Isso situa, no centro do funcionamento psíquico, uma presença permanente a dar resposta sempre sem garantias, já que há uma incompletude inicial, qual seja, o descompasso entre o grito do bebê e o que lhe é dado como resposta pelo Outro. Vejamos. Outras percepções do objeto também – se, por exemplo, ele der um grito – evocarão a lembrança do próprio grito (do sujeito) e, com isso, de suas próprias experiências de dor. Desse modo, o complexo do ser humano semelhante se divide em duas partes, das quais uma dá impressão de ser uma estrutura que persiste coerente como uma coisa, enquanto que a outra pode ser compreendida por meio da atividade da memória – isto é, pode ser reduzida a uma informação sobre o próprio corpo (do sujeito). (FREUD, Projeto, [1895], 1977, p. 438) Sobre isso, é possível explicar que o grito do sujeito recebe muitas respostas e elas terão (rearranjos de) retorno pela atividade da memória; ao lado disso, há algo coerente e que persiste “como a coisa”. (...) o filhote do homem é privado de seu grito pelo Outro materno porque atribui ao grito proferido um efeito estruturante, convertendo-o em demanda. Do lado do sujeito, o grito recobre a sensação da qual jamais se saberá o que ela quis dizer (...) Como se vê, há aí algo de inominável; de fato, ninguém poderá dizer se a percepção é em cada uma de suas reiterações a mesma que a primeira, e o mesmo se aplica à experiência de satisfação (...) Das Ding é o que – no início da organização do mundo no psiquismo (...) - se apresenta e se isola como o termo estranho. Essa estranheza da Coisa engendra a tendência a reencontrar, mas, dirá Lacan esse objeto ‘perdido’ nunca esteve perdido mesmo que se trate de reencontrá-lo. Essa posição remete ao impensável da origem, daquela do significante e portanto da impossibilidade do gozo para se dizer. (KAUFMANN, op. cit., p. 84 – 85) Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 63 O que ficou apenas insinuado por Freud será mote e investimento para Lacan. Ao longo do Seminário, Livro 7, ele se debruça sobre o conceito freudiano de Das Ding, explorando-o em muitas formulações e definindo-o como instância que fica no centro, “no centro, no sentido de estar excluído” (LACAN, [1959-1960] 2008, p. 89). Trata-se do Oco “ao que existe de aberto, de faltoso, de hiante, no centro do nosso desejo” (LACAN, op. cit., p. 104), e que não se completa, tampouco se fecha, mas configura-se em retornos e desencontros: (...) o que se trata de encontrar não pode ser reencontrado. É por sua natureza que o objeto é perdido como tal. Jamais ele será reencontrado. Alguma coisa está aí esperando algo melhor, ou esperando algo pior, mas esperando. (...) é esse objeto, Das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar. Reencontramo-lo no máximo como saudade. (LACAN, op. cit., p. 68). Isso dá a dimensão de uma perda primeva, ou seja, algo que o sujeito perdeu sem nunca ter tido, pois “o objeto é, por sua natureza, um objeto reencontrado. Que ele tenha sido perdido é a conseqüência disso – mas só-depois. E, portanto, ele é reencontrado, sendo que a única maneira de saber que foi perdido é por meio desses reencontros, desses reachados.” (LACAN, op. cit., p.145). Tal Oco não pode ser suturado nunca, por isso Ele produz lançamentos em direção a tentar “encontrar o que se repete, o que retorna e nos garante retornar sempre ao mesmo lugar” (LACAN, op. cit., p. 94), lançamentos a que o sujeito se entrega, e cujo resultado é sempre furado e submerso em espirais incompletas. Lacan atribui a Freud o início das formulações sobre Isso, colocando-o como o fundador de uma investigação que tateia o abismo. (...) Freud, precisamente, coerente consigo mesmo, indica aí, no horizonte de sua experiência, um campo onde o sujeito, se ele subsiste, é incontestavelmente um sujeito que não sabe, num ponto de ignorância limite, se não absoluta. É esse o nervo da investigação freudiana (...) um ponto de abismo (...) esse ponto que lhes designo alternativamente como sendo o do intransponível ou o da Coisa. (LACAN, [1959-1960] 2008, p. 255) Irrealizado, intransponível, perdido, trata-se justamente de fenda, hiância, fissura e rasgo inscritos pela perda do corpo da mãe e pela interdição do incesto. Perda que nunca mais pode ser suturada, visto que é anterior a todo recalque (LACAN, op.cit., p. 70). Daí a Coisa engendrar uma falta (falta a si e em si-mesmo em Machado, falta-a-ser em Lacan no Seminário, Livro 11), um Oco que não cessa de se fazer presente e que se rende frente à pobreza de toda a palavra, pois “a Coisa, esse vazio, tal como se apresenta na representação, apresenta-se efetivamente, como um nihil, como nada.” (LACAN, [1959-1960] 2008, p. 148). Talvez por isso, Bentinho tenha marcado, em vários momentos do seu diário, a 64 Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 impossibilidade de a língua definir uma saída para o vazio e de condensar ou alcançar seu sentimento, seu pensar e seu interior. “Quis insistir que nada, mas não achei língua.” (ASSIS, s.d., p. 33) “Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua.” (ASSIS, op. cit., p. 75) “Mas a vontade aqui foi antes uma idéia, uma idéia sem língua, que me deixou ficar quieta e muda.” (ASSIS, op. cit., p. 80) “Outra vez me fugiram as palavras que trazia.” (ASSIS, op. cit., p. 81) “Hoje, que me recolhi à minha casmurrice, não sei se ainda há tal linguagem.” (ASSIS, op. cit., p. 210) Todos estes recortes materializam algo impossível de ser dito em sua essência de furo, seja pelos momentos de solidão, desespero, desamparo, seja até mesmo pelos encontros com alegria e/ ou morte. A língua não dá conta de abrigar e conter essa Coisa, apenas contorná-la; as palavras faltam diante do que é absoluto vazio e o simbólico aparece vergado em seu des-poder, enfermo de potência e rendido a uma condição de não-todo. Temos, então, o inominável que “essa Coisa, o que do real – entendam aqui um real que não temos ainda que limitar, o real em sua totalidade, tanto o real que é o do sujeito quanto o real com o qual ele lida como lhe sendo exterior – o que, do real primordial, padece de significante.” (LACAN, [1959-1960] 2008, p. 144). E esse padecimento de significante instala o efeito de incurável e irremediável, que coloca a linguagem também em um lugar furado e impotente, pois a Coisa “(...) é de alguma maneira desvelada com uma potência insistente e cruel.” (LACAN, op. cit., p.196) e Ela pode “ser definida por isto – ela define o humano, embora, justamente, o humano nos escape. Neste ponto, o que chamamos de humano não poderia ser definido de outra maneira senão por aquela com a qual defini, há pouco, a Coisa, ou seja, o que do real padece de significante.” (LACAN, op. cit., p. 152). Ao longo do Seminário - Livro 11, Lacan retoma o trabalho em torno de “Algo que é da ordem do não-realizado” (LACAN [1964] 1973, p. 28), cuja materialidade se dá a ver em “tropeço, desfalecimento, rachadura (...) dimensão de perda” (LACAN, op. cit., p.30). Perda sinalizadora de Das Ding, pois “A ruptura, a fenda, o traço da abertura faz surgir ausência – como o grito não se perfila sobre fundo de silêncio, mas, ao contrário, o faz surgir como silêncio.” (LACAN, op. cit., p.31). É interessante marcar que esse silêncio (em que a palavra não entra, não cabe, não comparece, e esse núcleo duro que ela não consegue tocar) surge exatamente com a presença da palavra, é a língua que instala o vazio, ou melhor, é dizendo e repetindo que algo se inscreve para além de manco, Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 65 roto e capenga, instala-se como impossível. Assim, apenas o dizer coloca o sujeito em contato com o que não pode ser dito, enfim com o real; e o psicanalista francês assegura que tal experiência com o real é radicalmente encontrável na análise: “Nenhuma práxis, mais do que a análise, é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real” (op. cit., p. 58). Lacan (op. cit., p. 159), ao longo deste Seminário, avança na direção de definir o real nos seguintes termos “o oposto do possível é seguramente o real (...) o real como impossível”, com cujo encontro abre-se um para-além. O real está para além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer. O real é o que vige sempre por trás do autômaton, e do qual é evidente, em toda a pesquisa de Freud, que é do que ele cuida. (LACAN, op.cit., p. 56)2 O que insiste em repetir-se, em mais uma volta de dizer, funciona como abridor de nova hiância, como porto de passagem para outra maneira de encontrar a Coisa; e aqui está o traçado do que Lacan (op.cit., p. 63) define como a repetição no jogo do Fort-Da, cujo fio do carretel sustenta a aventura até o lugar sempre vazio, aquele onde só existe a sombra de uma presença, a passagem de alguém ausente. A hiância introduzida pela ausência desenhada, e sempre aberta, permanece causa de um traçado centrífugo no qual o que falha não é o outro enquanto figura em que o sujeito se projeta, mas aquele carretel ligado a ele próprio por um fio que ele segura (...) (LACAN, op.cit., p. 63) Não discutirei aqui as noções de tique e autômaton, nem de princípio do prazer e da realidade, pois não são o foco deste trabalho. 2 66 Falar em hiância, falta, vazio, repetição, fenda e fissura toca o conceito de inconsciente “tal como Freud inventou e como Lacan releu mobilizando articulações com a Linguística, Lógica, Topologia” (NAGEM, 2012, s. p.). Entretanto, faz-se necessária uma distinção entre Das Ding, instância do inominável e do real, e inconsciente, ordem da hiância tal como proposta acima, apontadora da fenda e indicativa do não-realizado em movimentos denunciadores de um sempre-retorno ao que não se fecha nem se conclui. Definido como repetição (já que o objeto perdido jamais pode ser reencontrado), o inconsciente não pode ser acessado diretamente, isto significa que sonhos, atos falhos, tropeços apenas apontam-no. Por exemplo, a partir de um sonho e da cadeia significante que lhe dá roupagem em relato no só-depois, é possível fazer retornar e retroagir o inconsciente. Por conta desse traço perdido e fugidio, Lacan (op. cit., p. 29 - 30) afirma que o que chama atenção ao analista é “o modo de tropeço pelo qual eles aparecem. Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente”. Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 Está aqui definida a ordem do inconsciente freudiano – e o nosso –, como a condição do não-realizado, do não-nascido, do não-apreensível, O que, com efeito, se mostrou de começo a Freud, aos descobridores, aos que deram os primeiros passos, o que se mostra ainda a quem quer que na análise acomode por um momento seu olhar ao que é propriamente da ordem do inconsciente, - e que ele não é nem ser nem não-ser, mas algo de não-realizado. (LACAN, op. cit, p. 35) Isso Baldini (2012, s. p.) irá definir poeticamente como “um parto que não se realiza nunca.” Ou seja, o inconsciente está no domínio da hiância, produzi(n)do pelo que não se conclui, não se realiza completamente a não ser pela via de uma abertura e um fechamento rápidos, sinais de evanescência de algo sempre prestes a escapar de novo. Sobre isso, Lacan ([1964] 1973, p. 30) desenha a noção de reachado: “Ora, esse achado, uma vez que ele se apresenta, é um reachado, e mais ainda, sempre está prestes a escapar de novo, instaurando a dimensão da perda”, ou melhor, “a função estruturante de uma falta” (op. cit., p. 33). No “não-nascido”, no “evasivo”, “no um da fenda” (todas maneiras de Lacan referir-se ao inconsciente), enlaça-se a instância da rachadura, orbita a inscrição da fenda e faz falar a causa do desejo humano (e do dizer). Por ser assim, o inconsciente é pura evanescência no rosto do instante, o que o faz diferente de Das Ding, esfera do inominável e do real como coloquei anteriormente. Nessas articulações teóricas, vejo escancarado o “falto eu mesmo” do narrador machadiano, uma condição que traceja o caminho do sujeito sempre sustentado pelo real, isto é, por algo que se ausenta em si, ou melhor, ao modo da citação lacaniana (LACAN, [1964] 1973, p. 158): “(...) o caminho do sujeito passa entre duas muralhas do impossível”. E nessa trilha (árdua, por sinal) de trombar com o real e com as muralhas dele, resta ao sujeito fazer contornos, pespontando borda no desejo, pois “um desejo, o cercamos” (LACAN, op. cit., p. 240), e apenas isso, o cercamos para que o centro fique oco, vazio, intactamente ausente. Nos dois Seminários, Livros 7 e 11, estudados até aqui, Das Ding e real são definidos como constantes na constituição do sujeito, permanecendo intactos como furo cujo tamponamento, por meio de dizeres, explicações e teorias, nunca se dá; isto é, a lacuna amplifica-se constante e estampada em tudo o que o humano toca. Saída e chegada no/pelo furo, e o sujeito fica situado justamente no intervalo entre estas duas pontas, espaço de seu dizer sempre incerto e vazado pelo que não alcança o alvo, e nunca alcançará. Um intervalo oco, inominável e impreenchível que promove o impulso à voz e à arte, que abre campo para o sujeito poder desejar sem, contudo, realizá-lo inteiramente; um vazio no centro em torno do qual o sujeito dá seus rodopios e bailados, faz seus passes Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 67 de jogador com suas palavras, dribla a secura de sua condição, fazendo bordados em idas e vindas, em espirais de repetição e ruptura e em giros de dizeres sobre a Coisa. E é isso que percebo intensamente na exposição que será analisada a seguir. “Hace falta mucha fantasía para soportar la realidade”, turbilhão e furo em exposição Tudo é dar- lhe uma idéia e encher o centro que falta . (Machado de Assis) Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome. (Hilda Hilst) http://www.youtube. com/watch?v= lfGWaXHLtOk 3 68 Em 11 de março de 2004, uma série de atentados terroristas explodiu quatro comboios da rede ferroviária Atocha, em Madri, capital da Espanha. O acontecimento, denominado 11-M, assolou o horário de pico da manhã de vários citadinos, que normalmente estão em trânsito para o trabalho ou estudo, e foi considerado o maior atentado da história do país, totalizando 191 mortos, além de 1700 pessoas feridas. Dez explosões simultâneas com bombas sacudiram a normalidade do serviço de transporte e abriram uma ferida no país, recolhido primeiro ao salvamento de vítimas, depois à dor e ao luto de mortos, e, em seguida, a diversas passeatas em memória das vítimas com pedidos pela paz. Na época, o governo espanhol atribuiu a autoria ao grupo ETA, visto que o tipo de explosivo era normalmente utilizado por ele; no entanto, o grupo islâmico Brigadas de Abu Hafs Masri reivindicou a autoria do atentado à Al Qaeda. Não é do meu interesse aqui tecer uma análise geopolítica do fato e de seus desdobramentos, até porque o terror é da ordem do real e, diante de ambos, as palavras se curvam pequenas e silentes. A morte é um dos rostos mais nítidos da Coisa, significante perdido. Mas, como Lacan nos mostra, a resistência e o gesto de fazer borda ao vazio são possíveis ao sujeito, e é isso que me parece denso, poético e sublime na exposição “Hace falta mucha fantasía para soportar la realidade”3, levada a termo por cinco arquitetos que, durante dois anos e meio, construíram o monumento em memória às vítimas do 11-M. “Esaú Acosta, Raquel Buj, Miguel Jaenike, Manu Gil-Fournier y Pedro Colón de Carvajalel, del estudio FAM (Formidable Aroma a Manzana) han sido los encargados de realizar el monumento del 11-M en Atocha inaugurado con motivo del 3º aniversario de los atentados”. O monumento é composto por “un cilindro de vidrio de once metros de altura en el que se leen mensajes anónimos relacionados con el atentado, pero está diseñado para verse desde dos metros de profundidad, desde una Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 habitación azul cobalto a la que se accede a través de una mampara y en cuyo centro hay un foco de luz blanca. Para entender el monumento, hay que ponerse en ese foco y mirar hacia arriba.”4 Do lado de fora, o monumento fura o espaço como a produzir o efeito de uma lança invasora do vazio do céu e do próprio prédio da estação Atocha. Ergue-se inteiro e fechado em uma construção que salta, aponta, estira um bloco ereto e se endereça ao alto. Esse cilindro de vidro, que fura o nada do espaço, faz o vazio aparecer também dentro dele, ao modo que já foi dito aqui sobre a linguagem. Olhando-o de fora, não se tem o imenso do efeito de furo que ele guarda dentro de si, mas vê-se que, no desenho arquitetônico do plano da estação Atocha, tão assentado em linhas retas, uma torre salta para/por fora e enfia-se para dentro da estação. Duas pontas ficam amarradas e alinhavadas, já que fora e dentro constituem um bloco só, ou seja, um elo de continuação desse monumento. ht t p://a rqu ite ct ur a i n t e l ig e n t e.wo r dpress.com/2007/03/14/ formidable-aroma-a-manzana/ 4 Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 Fig. 1: O monumento 69 Fig. 2: O monumento visto de fora da estação Quando visto do lado de dentro, uma (a)tocha de luz fura o teto da estação, produzindo efeitos de facho, passagem e fenda, convidando o visitante ao deslocamento de colocar os olhos para o alto, o corpo em posição de menoridade, assim, o buraco ganha estatuto maior, atravessa o dentro/fora, que persiste em ficar oco, sinalizando palavras e o oco céu. Fig. 3: O monumento visto de dentro da estação 70 Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 Fig. 4: Visitantes do monumento Vendo no olho do furo, o aberto permanece constante como fundo sem fundo, inapreensível e impossível de tocar. No miolo de todas as palavras, frases e mensagens anônimas escritas após o atentado e dis-postas em espiral no monumento, há um ponto de falta incondicional, superfície constante, estrutural e insistente ao modo de uma metáfora visual do que presentifica Das Ding. É em torno desse buraco (e do pedacinho vazado de céu que ele materializa) – oco que não cede – que os dizeres dançam em diversas línguas, espanhol, francês, inglês, árabe, italiano dentre outras, preservando no centro algo que não pode ser dito nem alcançado. Algo que faz acontecer o vazio. Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 71 Fig. 5: A vista do monumento por dentro Fig. 6: Outra tomada de dentro do monumento Por que há esse centro, o turbilhão se monta e mantém-se em espiral nas tentativas de simbolizar o próprio vazio. O contorno de dizer(es) apenas faz borda, ampara e dá margem a esse oco que é o céu; e aqui relembro um jogo de infância que constava de encontrar figuras humanas, mitológicas e bichos nas nuvens, ou seja, no formato de borda que elas davam a ver. O azul-vazio do 72 Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 céu era preenchido pelas nuvens que inscreviam espaços de beirada para o oco - uma orla para conter o imenso – pois o todo-azul mantinha-se chapado, constante e inteiro. As nuvens aí faziam extremidade de superfície, esburacavam o todo com seus desenhos em branco e cinza e, por alguns momentos, diziam da presença evanescente de um tigre, um gigante ou rei. Presença efêmera posto que sempre em movimento. Assim, o nariz de um animal transformava-se em parte da torre de um castelo para, minutos depois, dar a ver a trança da menina. A nuvem, borda ao/do vazio do céu, dava forma gráfica no tecido do ausente, apresentava o fur(ad)o e desfazia-se de inteireza tão logo pudéssemos ver algo. Isso tem relação com a função do inconsciente nos termos do que Lacan ([1964] 1973, p. 35) coloca a seguir: “(...) é a fenda por onde esse algo, cuja aventura em nosso campo parece tão curta, é por um instante trazida à luz – por um instante, pois o segundo tempo, que é o fechamento, dá a essa apreensão o caráter evanescente.” O mesmo parece fazer funcionar o monumento: as palavras fazem moldura ao vazio deixado pela morte de tantos madrileños e dançam criando campo para que o furo permaneça no centro e possa permitir dizeres em espiral. E à medida que se lê uma formulação, as outras se dissolvem no giro da espiral. Esse furo, que estabilizado se mantém presente e inalterado a despeito dos dizeres em movimento, indicia e realiza Das Ding, embora não o seja já que a Coisa é irrepresentável pela linguagem. Fig. 7: Outro ângulo de visão do monumento Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 73 Fig. 8: O céu no fundo do monumento O que fica fixado sempre, constante e coerente como afirmou Freud é o furo que, em não sendo tocado, faz tudo mover; este monumento realiza tal representação de Das Ding. Assim, os dizeres formam uma rede, um redemoinho que ampara o sujeito no sentido de dar forma aos seus arranjos significantes sempre atravessados e estruturados a partir de uma falta. A morte de vítimas em um atentado terrorista – e o horror do rosto violento do trágico inominável – emblematizam o cerne do vazio, o lugar de buraco que, pelo vidro, permite ver o céu. E céu aqui, para além de todas as colorações religiosas possíveis, me faz aqui relacioná-lo à metáfora de vaso, proposta por Lacan ([1959-1960] 2008, p.148) do seguinte modo: O exemplo do pote de mostarda e do vaso permite-nos introduzir aquilo em torno de que girou o problema central da Coisa (...) o vaso é feito a partir de uma matéria. Nada é feito a partir de nada. (...) Ora, se vocês considerarem o vaso, na perspectiva que inicialmente promovi, como um objeto para representar a existência de um vazio no centro do real que se chama a Coisa, esse vazio, tal como ele se apresenta na representação, apresenta-se efetivamente, como um nihil, como nada. E é por isso que o oleiro, assim como vocês para quem eu falo, cria o vaso em torno desse vazio com sua mão, o cria assim como o criador mítico, ex nihilo, a partir do furo. (LACAN, [1959-1960] 2008, p.148) Considero que o monumento M-11 funciona a partir do que Lacan coloca acima como nada, de tal modo que, a cada espiral de dizer, um volteio é dado e, exatamente por isso, o furo continua sustentado(r) no centro. Quanto mais o oleiro trabalha para a criação de um vaso novo, mais o vazio permanece intacto e estruturante para que o sujeito possa inventar-se, arriscar uma nova forma, dizer de outro modo e brincar mais um pouco com seus ocos. O visitante da exposição entra nesse monumento com seu corpo todo, expõe-se ao cilindro cheio e vazio em tons de branco e 74 Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 azul, gira pelas beiras das lâminas de vidro e encaminha-se para dentro do turbilhão com dizeres imensos, que vão diminuindo à medida que se aproximam do fundo (fundo sem fundo); dizeres que vão dançando em círculos até chegarem ao centro onde não cabe palavra alguma, onde a língua se rende afogada no impossível. E, mesmo assim, muito foi dito sobre a morte dos madrileños, o absurdo da violência do atentado, a necessidade de convivência entre diferentes, os pedidos de paz; e porque muito foi dito, o Oco esteve/ está presentificado lá. De falta e de ausência, curativos de vazio Toda obra de arte é um curativo do vazio. (René Passeron) Por muito tempo achei que a ausência é falta. / E lastimava, ignorante, a falta. / Hoje não a lastimo. (...) / A ausência é um estar em mim (Carlos Drummond de Andrade) A falta de Bentinho, em Machado, sinaliza uma constatação dolorida, a perda do outro é passível de elaboração, mas a de si mesmo inaugura o reconhecimento da lacuna irremediável falada como insuportável em mais de um ponto da narrativa. Já no poema de Drummond, é possível ler deslocamentos dessa falta lacunar, dita problemática. Da ausência-falta para a ausência-estarem-si, é de dizer em torno do furo que orbita toda a possibilidade de invenção na vida, na arte, na literatura. Se o ausente (o Oco, a Coisa) sempre se realiza, resta ao sujeito a chance de inventar algo com Ele/ Ela, apontando que é possível cria (criar) um espaço íntimo de estar-em-si com Isso. Amassar o barro para fazer um pote, ajuntar as notas para compor uma sinfonia, reunir versos e alinhavar um poema, inventar um desenho de exposição para colocar o horror dançando em um céu de palavras: em tudo isso, o buraco continua latejando e não cessa de produzir efeitos. Isso realiza Das Ding. E, não sem o mote das mãos vazias, eu encerro esse escrito, esforço de elaboração, pois depois de tantas palavras, o fecho é de ausências e de presença do Oco. De modo espirituoso, Lacan ([1964] 1973, p. 176) finaliza a lição XIV do Seminário, Livro 11. Tomo dele emprestadas pergunta e resposta: “Será que lhes trouxe algumas luzes com esta exposição? Algumas luzes e algumas sombras”. Abstract Speaking of discourses in contemporary touch is so closer or distant, issues of language to the hole, emptiness and violence. This text aims, from concepts of Freud and Lacan, understand the relationship between language and the Ding to analyze exposure “Hace lack mucha soportar Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 75 her fantasy to reality.” This event was conceived and presented at the Atocha station in Madrid, three years after the terrorist attacks of 2004 that signed up scenes of horror in a crossing and wide circulation during business hours and they did dance in a sky of words, the hole death. Keywords: discourse; hole; contemporary; psychoanalysis. REFERÊNCIAS ASSIS, M. Dom Casmurro. Mestres da literatura portuguesa e brasileira. Rio de Janeiro: Editora Record, s.d. BALDINI, L. Apresentação oral em cartel. 2012. FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. [1895]. Rio: Imago, 1977. KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise – o legado de Freud a Lacan. Tradução Vera Ribeiro, Maria Luiza X. de A. Borges; Consultoria Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. LACAN, J. Seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise. [1959-1960]. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. LACAN, J. Seminário, Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. [1964]. Tradução M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1973. SCHERER, A. Conferência durante a II Jornada do E-l@dis – Conceitos em rede. Ribeirão Preto: FFCLRP/ USP, 2011. 76 Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013 Desejo de desejo na mercadoria e o olhar do artista1 Luciene Jung de Campos (PPGTUR/UCS) Resumo O presente artigo é uma tentativa de fazer uma leitura provisória da sociedade contemporânea e da condição de resistência do sujeito. Trata do sujeito e da mercadoria capturados pela publicidade/propaganda, onde o artista faz a denúncia. Busca uma aproximação entre os campos da arte, da psicanálise e da análise do discurso. Propõe uma discussão através do esquema L de Lacan para pensar a relação imaginária do sujeito com a publicidade. Palavras-chave: Imagem; Resistência; Sujeito. Este artigo é um recorte da minha tese de doutoramento Imagens à Deriva: Interlocuções entre a arte, psicanálise e a análise do discurso, sob orientação da Profa. Dra. Maria Cristina Leandro Ferreira. 1 Gragoatá Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 “O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social”, refere Guy Debord (1997, p. 30) em seu livro A sociedade do espetáculo. Com a revolução industrial, a divisão do trabalho e a produção em massa para o mercado mundial, a mercadoria aparece como uma das principais forças que orienta a vida social. O espaço social é invadido pelo excedente de mercadorias e o consumir passa a ser tão obrigatório quanto o produzir, diz o autor “o consumo alienado torna-se para as massas um dever suplementar à produção alienada” (DEBORD, 1997, p. 31). Assim, o proletário deixa de ser visto apenas como o operário que deve receber o mínimo para a garantia de sua sobrevivência, obrigando-se a vender contínua e incessantemente a sua força de trabalho. E passa a existir fazendo parte da massa de consumidores, cuja obrigação é regular o estoque de mercadorias em abundância. Em páginas anteriores, deste mesmo livro, ele conceitua espetáculo: “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (DEBORD, 1997, p. 14). Para abordar discursivamente a espetacularização da imagem mediadora das relações na sociedade de consumo, apresento algumas obras do ensaio fotográfico Outdoor´s São Paulo, Um Retrato Urbano, de Carlos Goldgrub, realizado entre 2002 e 2004. O artista utiliza uma câmera Nikon F4, filme Tri-X, e apenas uma lente zoom 80-200mm: “Esse equipamento me permitiu mais aproximação e também a possibilidade de cortes no momento do enquadramento, obtendo assim uma imagem final mais limpa”, refere Goldgrub (2012, p. 5). Os anúncios interpelam os passantes nas ruas no formato de gigantescos painéis, conforme flagrou o fotógrafo: Fig. 1 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004 78 Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 Na imagem acima (Fig.1), o personagem é bem conhecido, trata-se de um famoso jogador de futebol. O jogo metafórico da publicidade/propaganda é registrado pelo artista, onde um elemento é substituído por outro: a bola é substituída por um telefone celular e o jogador talentoso é substituído pelo garoto-propaganda. É a imagem pessoal que parece se converter em mercadoria. A exploração estética da cabeça raspada remete ao formato da bola, a uma cabeça-globo que equilibra um celular. A sua habilidade desportiva passa para segundo plano e o que fica em evidência são os contratos milionários que tornam ilimitada a sua capacidade de consumo. A escalada social parece ser explorada pelo artista no ângulo em que ele ajusta a fotografia, aproveitando os patamares ascendentes da arquitetura. Contra o fundo branco a imagem expõe o perfil em degraus que finalizam em uma escada sem fim. O garoto-propaganda propõe o consumo fácil com um sorriso no rosto, relembra a felicidade prometida na cultura do efêmero pela aquisição de mercadorias, apelo recorrente na publicidade/propaganda. Trata-se do sujeito “livre e competente” da formação discursiva esportiva que migra das camadas sociais mais desfavorecidas para o topo da pirâmide em função de seu talento. A imagem de Goldgrub reapresenta o sintoma: disfarça a exploração do atleta enquanto trabalhador e evidencia um gozo. Em plena cultura da performance e da liberdade individual “vive-se uma espécie de mais-alienação”, como refere Kehl “de rendição ao brilho da imagem de algumas personagens públicas identificadas ao gozo que os objetos deveriam proporcionar” (BUCCI; KEHL, 2004, p. 65). Maria Rita Kehl propõe um diálogo com a obra de Debord em seu texto O espetáculo como meio de subjetivação, onde defende que a imagem industrial, nesse caso, tem a qualidade do fetiche, e sintetiza o modo contemporâneo de alienação que chama de “mais-alienação” para conceituar a expropriação simbólica análoga ao resultado da mais-valia (BUCCI; KEHL, 2004, p. 49). Lacan (1998), no texto O estádio do espelho, trata da eficácia da imagem para produzir a identificação primordial com o Outro antes que a linguagem lhe institua sua função de sujeito. Dependência inicial e total do olhar do Outro, onde se organiza uma matriz simbólica que daria suporte às identificações secundárias. Pêcheux inspira-se nesta abordagem para elaborar o conceito de formações imaginárias na teoria do discurso. Prosseguindo o diálogo entre a Psicanálise e a Análise do Discurso, atribuo à matriz simbólica o locus para inscrição da ideologia. Nesta linha, busco refletir sobre a ideologia enquanto o “espelho” que cumpre a tarefa de organizar a imagem fragmentada do sujeito dividido e desamparado. Organização essa, imaginária, com a qual o sujeito se identifica pelo mecanismo de projeção. Penso que o esquema L proposto por Lacan pode ajudar a elucidar a constituição do sujeito via o espelhamento no olhar do Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 79 Outro. No caso, o Outro é a publicidade/propaganda, enquanto imagem da mercadoria, na qual o sujeito se projeta e se identifica. O “esquema L” é considerado o esquema da dialética intersubjetiva que evidencia a relação dual do eu com sua projeção (a’), esta projeção confunde-se com a imagem de si mesmo e a do outro. A estrutura busca encenar a relação imaginária de simetria e reciprocidade que implica a reduplicação de seus termos: o pequeno outro (a) é exponenciado como grande Outro (A), onde a posição do terceiro implica a do quarto (S): S a a’ A Fig. 2 – Esquema L de Lacan O estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro A. O que nele se desenrola articula-se como um discurso (o inconsciente é o discurso do Outro), do qual Freud procurou definir a sintaxe relativa aos fragmentos que nos chegam em momentos privilegiados como os sonhos, os lapsos e os chistes. Nesse discurso, o sujeito (S) é repuxado para os quatro cantos do esquema, como diz Lacan: em sua inefável e estúpida existência, para a, seus objetos, a’, seu eu, que é o que se reflete de sua forma na relação imaginária com seus objetos, e A, lugar de onde lhe pode ser formulada a questão de sua existência (Lacan, 1998, p. 555). Abaixo, um esquema para apresentar a relação imaginária do consumidor (S) com a publicidade/propaganda (PP): Quem sou eu? S a’ a A Mercadoria PP (Imagem do “bom sujeito” famoso, rico, bem-sucedido) Objeto da PP Mercadoria falada, nomeação da mercadoria Fig. 3 – A relação imaginária do consumidor com a Publicidade/Propaganda (PP) (Adaptado do esquema L de Lacan) Fonte: Campos, 2010 No esquema acima (Fig.3), a Publicidade/Propaganda está no lugar do grande Outro (A), enquanto imagem e discurso sobre a mercadoria. A mercadoria é o objeto da publicidade/propaganda (PP). A publicidade dirige-se ao grande público nomeando os 80 Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 atributos, funções e resultados da mercadoria, que é o seu objeto (a’). Ao mesmo tempo em que a publicidade/propaganda nomeia a mercadoria, ela também nomeia o sujeito. O sujeito deseja a mercadoria na esperança de que ela diga quem ele é, assim como, a publicidade/ propaganda (PP) diz o que é a mercadoria. Nesse caso, poder-se-ia dizer que é a imagem que assume o lugar de fetiche e não mais a mercadoria, onde a publicidade/propaganda sustenta as relações de dominação e exploração negadas na sociedade de consumo. Bucci e Kehl (2004) defendem a ideia de que as sociedades contemporâneas, as sociedades do espetáculo tiveram que fazer um retorno para os corpos humanos e que a lógica do fetichismo da mercadoria deslocou-se para o território de circulação das imagens, associando alguns seres humanos “especiais”, “escolhidos” a mercadorias: Diferentemente do caso das mercadorias, que só servem de suporte para a mistificação dos homens que as trocam, os vendedores, os vendedores de imagens são presas da própria ilusão que produzem. São, ao mesmo tempo, o fetiche e o fetichista, o ilusionista e o iludido (BUCCI; KEHL, 2004, p. 82). Para trabalhar essas questões é preciso rever os conceitos de fetiche e de sintoma. Por sinal, são dois conceitos em confluência na psicanálise e no materialismo histórico. O sintoma: uma metáfora da história Se Freud assumiu a responsabilidade – ao contrário de Hesíodo, para quem as doenças enviadas por Zeus avançavam para os homens em silêncio – de nos mostrar que existem doenças que falam, e de nos fazer ouvir a verdade do que elas dizem, parece que essa verdade, à medida que sua relação com um momento da história e com uma crise das instituições nos aparece mais claramente [...] (LACAN, 1998b, p. 216). Lacan faz lembrar, na citação acima, como Freud iniciou sua investigação pelo sintoma, tratando as histéricas, cujo sintoma denunciava o estado daquelas mulheres que não podiam se expressar na sociedade conservadora e autoritária da época. Tratava-se do sujeito inibido histórica e culturalmente determinado. Cujos sintomas estavam vinculados à impossibilidade de renunciar ao objeto primário e encontrar outra forma de existência. Por conta disso, a “doença” parece estar ligada a essa impossibilidade de renúncia a esse desejo originário. Esta demanda provoca inibição e angústia no ser humano enquanto um animal alijado da natureza, que perdeu o instinto e com isso foi jogado na incerteza e no conflito, enquanto falasseres que somos. Lacan constrói o esquema L do caso Dora, um dos casos clássicos de histeria, trabalhado por Freud e relido por Lacan no Seminário IV: Relação de objeto: Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 81 O que é uma mulher? S a a’ A pai da Dora Sra. K Fig. 4 – O esquema L do caso Dora, segundo Lacan O esquema L é uma topologia onde o sujeito (S) se estende entre a e a’, num “véu de miragem narcísica” que serve para sustentar tudo o que nela venha se refletir por seus efeitos de sedução e captura (LACAN, 1998, p. 557). O desejo da histérica é o desejo de desejo, cujo desejo é o desejo do Outro. A histérica trata de se colocar na posição de substituir o Outro (o pai) nesta função do desejo: ela esvazia sua relação com o objeto (Sra. K), fomentando o desejo do Outro por este objeto. Ela se empenha em sustentar o amor deste outro (Sra. K) que é seu verdadeiro objeto – situação bastante ambígua, Dora sustenta o desejo de seu pai pela Sra. K e mascara seu objeto que é a Sra. K., portadora de sua questão: O que é uma mulher? Na clínica médica, o sintoma está ligado à doença e é sempre patológico; para a psicanálise, ele é o início da cura e indica a presença do sujeito do inconsciente. O sintoma para a psicanálise não diz respeito a uma doença orgânica, mas a uma formação do inconsciente. A psicanálise por sua vez, tem sua origem na clínica médica, porém no momento em que se diferencia como outro campo de saber, ela rompe com essa clínica. E o sintoma é sintoma desta divergência. Foucault (2006), em O nascimento da clínica, descreve o sintoma como a primeira transcrição da doença, na sua condição de inacessibilidade. Para Foucault, o sintoma é uma linguagem que torna visível o invisível da doença. O sintoma para o médico é signo, que representa o significado de uma doença. Para o psicanalista e para o analista do discurso o sintoma é significante. Freud, em Inibição, sintoma e angústia (1925) explica o processo de produção do sintoma: Um sintoma surge de um impulso que foi afetado pelo recalque. Se o ego, fazendo uso do sinal de desprazer, atingiu seu objetivo de suprimir inteiramente o impulso, nada saberemos como isso aconteceu. Podemos apenas descobrir algo a esse respeito pelos casos nos quais o recalque em maior ou menor grau, tenha falhado. Nesse caso, a posição é que o impulso encontrou um substituto apesar do recalcamento, mas um substituto muito mais reduzido, deslocado e inibido, e que não é mais reconhecido como uma satisfação. E quando o impulso substitutivo é levado a efeito, não há qualquer sensação de 82 Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 prazer; sua realização apresenta, ao contrário, a qualidade de uma compulsão (FREUD, 1976, p. 116). Nesta citação, aparece a ideia do sintoma enquanto um compromisso. Compromisso entre o desejo e a defesa contra esse desejo. No entanto, é um contrato que não é bem cumprido, ele tem uma falha. Trata-se do retorno do recalcado que insiste: o impulso encontrou um modo de se fazer presente de forma deslocada e minimizada. A defesa falhou, mas é vigorosa, pois consegue reduzir um processo de satisfação a uma compulsão que se consome no próprio sujeito, garantindo a inibição do desejo. Penso ser pertinente discutir uma das imagens da série Outdoor’s, onde aparece uma cadeia de significantes que nos ajudaria a pensar esta questão. O artista posiciona a sua câmera de modo que seja possível visualizar o outdoor que veicula a imagem de um casal em cena íntima, superpondo-se ao pé da imagem, um cartaz de preços de combustíveis (gasolina comum R$ 1,59 e álcool R$ 0,68). Ele promove um deslizamento de significantes: Fig. 5 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004 GAS comum ÁLCO[ol] →Combustível ↔ energia ↔ desejo → preço = mercadoria A expressão “GAS comum” e a imagem do casal condensa a ideia de combustível/ desejo. A atração sexual e amor são afetos, relações de intensidades e trocas. A energia está sendo comercializada no anúncio, o que vale para o combustível e para os corpos aos quais os preços estão afixados. O desejo é mercadoria. A imagem é perturbadora, ela lida com o vácuo, ocupando metade do espaço, com o indicativo monetário sobreposto ao casal, sugerindo precificação humana. A imagem estaria apontando para um jogo e para a mercantilização das relações? Para a impossibilidade de desejar, quando o desejo adquire o status de Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 83 mercadoria? Para o abandono de Eros? Não temos as respostas, apenas a obra perturbadora. Lacan (1998), em Escritos, no seu texto Do sujeito enfim em questão, aborda uma dimensão do sintoma que é a do retorno de uma verdade que vem perturbar a “boa ordem”. Nesse sentido, ele reconhece na crítica de Marx ao capitalismo, os artifícios ridiculamente travestidos da razão no retorno materialista da verdade que assume forma e corpo na mais-valia. Não se trata do status de signo, de representação, mas da apresentação de algo que retorna, como registrou Freud. Lacan conclui que o sintoma só pode ser lido na ordem do significante, não do significado. O significante só tem sentido na sua relação com outro significante e é nessa articulação que reside a verdade do sintoma: O sintoma tinha um ar impreciso de representar alguma irrupção da verdade. A rigor, ele é verdade, por ser talhado na mesma madeira que ela é feita, se afirmarmos materialisticamente que a verdade é aquilo que se instaura a partir da cadeia de significante (LACAN, 1998, p. 235). Sob este aspecto, a indagação de Zizek é pertinente: “Como foi possível que Marx, em sua análise do mundo das mercadorias, produzisse uma noção que também se aplica à análise dos sonhos, aos fenômenos histéricos e assim por diante?” (ZIZEK, 1999, p. 297). Ele mesmo conclui que ambos, Marx e Freud, evitaram o fascínio pelo “conteúdo” e se preocuparam com a forma: como os pensamentos adquiriram essa forma no sonho? Por que o trabalho humano só consegue se afirmar na forma-mercadoria? O que passou interessar para Freud eram os mecanismos de deslocamento e condensação que trabalham a forma do sonho (na elaboração do conteúdo manifesto que é apresentado). O importante não é só “descobrir” o conteúdo latente, mas reconhecer o que se produziu neste intervalo entre o latente e o manifesto. Freud busca explicar esse fenômeno. Preocupa-se em superar a ideia de que o sonho é uma confusão sem sentido, simples interferência de processos fisiológicos. Inicialmente, é preciso dar um passo em direção à abordagem hermenêutica e admitir que o sonho veicula uma mensagem encoberta que necessita ser revelada através de um método interpretativo. Depois, é preciso abandonar esse centro de significação de sentido oculto e profundo do sonho e buscar o processo ao qual esses pensamentos oníricos latentes foram submetidos e indagar-se sobre o seu funcionamento. O segredo da forma-mercadoria Zizek (1999) compara os esforços de Freud com os de Marx, na análise do “segredo da forma-mercadoria”, onde ele faz uma articulação semelhante, em dois tempos. Primeiro devemos descartar a aparência de que o valor estipulado para uma mercadoria é um mero acaso, simples consequência da lei de oferta e procura. 84 Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 Em seguida, é preciso admitir o “sentido oculto” por trás da forma-mercadoria, o que expressa essa forma; devemos penetrar no “enigma” do valor das mercadorias. No entanto, a determinação da grandeza do valor da mercadoria pelo tempo de trabalho é um segredo que se esconde nas flutuações de valores dessas mercadorias e mesmo que descoberto, isso não alteraria o modo como se dá essa determinação. O desmascaramento do segredo, portanto, não basta: é a exploração do trabalho a verdadeira fonte de riqueza. Não se trata do segredo por trás da forma, mas da própria forma como essa economia política clássica funciona. Então o segredo da magnitude do valor da mercadoria continua sendo um mistério indecifrável, da mesma forma que o conteúdo latente do sonho. Mas, o que interessa nos dois casos é como o sentido latente se disfarçou desta maneira. “Por que o produto do trabalho tem seu valor alterado assim que assume a forma de mercadoria? É a questão que a economia política não pode se colocar e que está vinculada à sua própria presença” (ZIZEK,1999, p. 300). Trata-se, então, de uma Outra Cena que está em jogo, como alertou Freud, externa ao pensamento face à qual a forma do pensamento já está articulada de antemão. A ordem simbólica é uma ordem formal que completa ou que rompe a relação dual da relação factual “externa” (a troca de mercadorias) com a experiência subjetiva “interna” (a ilusão fetichista no ato da troca da mercadoria). Assim, chegamos à dimensão do sintoma na sua semelhança com o ideológico: uma formação cuja força implica um certo não-conhecimento por parte do sujeito. O sujeito só pode sustentar o seu sintoma na medida em que sua lógica lhe escapa. Por exemplo, no capitalismo, o uso do ideário setecentista de liberdade e igualdade é falso. A liberdade específica de o trabalhador vender “livremente” sua força de trabalho no mercado subverte essa noção universal de liberdade. O mesmo também se pode demonstrar quanto à justa troca de equivalentes, esse ideal de mercado. A força de trabalho passa a ser uma mercadoria para os trabalhadores que não são donos dos meios de produção e que, por conseguinte, são obrigados a vender no mercado seu próprio trabalho, ao invés de produtos. Com essa nova mercadoria – a força de trabalho – a troca de equivalentes anula-se na apropriação da mais-valia que materializa a nova forma de exploração do capital. O ponto decisivo aqui é essa negação que é própria à troca de equivalentes e não sua simples violação: a força de trabalho não é “explorada” no sentido de seu pleno valor não ser remunerado; em princípio, pelo menos, a troca entre o trabalho e o capital é plenamente equivalente e equitativa, comenta Zizek, fazendo a leitura de Marx, ao que acrescenta: O problema é que a força de trabalho é uma mercadoria peculiar, cujo uso – o trabalho em si – produz uma certa mais-valia, e esse excedente que ultrapassa o valor da própria força de trabalho é apropriado pelo capitalista (ZIZEK, 1999, p. 307). Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 85 O que está sendo questionado é que os equivalentes não são equivalentes como dissera Saussure (2004): uma palavra é o que a outra não é, não existem equivalentes na língua. Trata-se de uma estrutura de ficção que busca impor-se como “natural” e lógica. É o grande Outro da cultura produzindo o imaginário do sujeito. O “equivalente” é imaginário no sentido de cristalizar uma imagem do processo. O equivalente nunca é equivalente. Nessa linha, instala-se um certo universal ideológico (o da troca equivalente e equitativa) e uma troca paradoxal particular (a da força de trabalho por seus salários) que, como um equivalente, funciona como a própria forma de exploração. A universalização da produção de mercadorias acarreta um sintoma, que funciona como sua negação interna. Marx (1983) afirma em O Capital, que esse elemento irracional é o proletariado, desrazão da própria razão, engendramento arbitrário do próprio capitalismo. Pêcheux (1975) contribui com esta questão, referente ao estudo das práticas repressivas ideológicas, onde se esforça por compreender o processo de resistência-revolta-revolução: Se, na história da humanidade, a revolta é contemporânea à extorsão do sobre-trabalho é porque a luta de classes é o motor dessa história. E se em outro plano, a revolta é contemporânea à linguagem, é porque sua própria possibilidade se sustenta na existência de uma divisão do sujeito, inscrita no simbólico (PÊCHEUX, 1997b, p. 302, o grifo é meu). Se a revolta é contemporânea da linguagem como diz Pêcheux, (as obras que estou analisando também confirmam isso) e se o inconsciente é mesmo efeito de linguagem e se o tratamento só é possível por meio da palavra, não seria a língua que determina o destino do sintoma? Esta é uma questão que Lacan se coloca em seu Seminário XXIII: O sinthoma (1975-1976). Trata-se de uma questão interessante para nós, analistas do discurso. Penso que enriqueceria a reflexão, o diálogo entre o sintoma e a sintaxe. Leandro Ferreira (2000), ao abordar a sintaxe como o lugar de observação do discurso, trabalha a interface sintaxe/discurso. Conclui que é através da sintaxe como espaço de mediação entre a forma e o sentido que se dá o acesso à ordem da língua e à materialidade linguístico-histórica. É nesta zona que se situam os fatos linguísticos que forçam seus limites e desafiam as suas próprias regras. Então, o que é possível dizer sobre o desejo que o sintoma concorda em inibir e transformar? Para isso, a língua precisa encontrar o equívoco, o melhor equívoco. Para tanto, a língua não pode ser um sistema dedutivo fechado, livre de lacunas, livre de excessos, mas capaz de rupturas. Isso acontece porque a língua é um sistema sintático intrinsecamente passível de jogo, afirma a autora: 86 Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 E dentro desse espaço de jogo, as marcas significantes da língua são capazes de deslocamentos, de transgressões, de rearranjos. É isso que faz com que um determinado segmento possa ser ele mesmo ou outro através da metáfora, da homofonia, da homonímia, dos lapsos de língua, dos deslizamentos sêmicos, enfim, dos jogos de palavras e da dupla interpretação de efeitos discursivos (LEANDRO FERREIRA, 2000, p. 108). Sobre esses recursos da língua e do inconsciente, Lacan pontua: Está claro que todo ato falho é um discurso bem-sucedido, ou até formulado com graça e que no lapso é a mordaça que gira em torno da fala, e justamente pelo quadrante necessário para que um bom entendedor encontre ali sua meia-palavra (LACAN, 1998, p. 269, o grifo é meu). Na obra apropriada da Publicidade/Propaganda e recriada pelo artista, é a viseira que gira sobre a imagem e mostra Outra-coisa e permite que o leitor encontre ali a sua meia-imagem, a imagem não-toda, capaz de ressignificá-lo momentaneamente. Neste desenfreamento do significante, encontramos o sujeito em formação discursiva heterogênea. As obras de arte que estão em análise me fazem pensar em produções novas que resultam dos efeitos subversivos da “condensação” e do “deslocamento” podem ser entendidas como emergências significantes do inconsciente que se estruturam em outra linguagem. A sintaxe pode constituir uma forma de acesso importante para o analista do discurso e para o psicanalista, pois não há língua sem sintaxe e a organização das palavras não é jamais aleatória. O próprio Pêcheux “brinca” com seu estilo e reafirma seu esforço intelectual e afetivo para expressar um pensamento que perturba “a boa” ordem: Parece-me, hoje, que Les Verités de La Palice roçaram essa questão dos estudos [das práticas repressivas ideológicas] de uma maneira estranhamente abortada, pelo viés de um sintoma recorrente que soava de maneira oca: estou querendo designar o prazer sistemático, compulsivo (e incompreensível para mim) que eu tinha em introduzir a maior quantidade possível de chistes – o que, pelo que sei, acabou por irritar mais de um leitor (PÊCHEUX, 1997b, p. 303). Pêcheux assinala a dificuldade no campo teórico, político e social no tocante ao que pode ser dito e como deve ser dito. Algumas inibições resultam no abandono de uma função porque o exercício desta função produziria angústia. O eu renuncia a essas funções que estão ao seu alcance para evitar lançar mão de outras medidas de repressão e se poupa de um conflito com o id ou com o supereu. Freud em Inibição, sintoma e angústia (1925), salienta que este raciocínio permite compreender a inibição generalizada que caracteriza os estados de depressão e melancolia quando o sujeito se vê impedido no campo das ideias e/ou no campo dos afetos: Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 87 No tocante às inibições, podemos então dizer, em conclusão, que são restrições das funções do ego que foram ou impostas como medida de precaução ou acarretadas como resultado de um empobrecimento de energia; e podemos ver sem dificuldade em que sentido uma inibição difere de um sintoma, porquanto um sintoma não pode mais ser descrito como um processo que ocorre dentro do ego ou que atua sobre ele (FREUD, 1976, p. 111). Nesta citação Freud salienta a complexidade do sintoma em comparação com a inibição e a angústia. O sintoma se dá entre as instâncias psíquicas entre o eu e o id e entre o eu e o supereu, entre o eu e a realidade. Não se trata de um mero processo de recalcamento, mas implica outros processos, outros mecanismos, tais como, deslocamento e condensação. Pêcheux refere que o seu sintoma era introduzir chistes para dizer o que precisava dizer, mesmo com grande resistência do meio acadêmico. Este é um ponto de afinidade entre Pêcheux e Freud. Freud iniciou a demonstração do inconsciente pelos sonhos que era uma experiência comum a todos. Os chistes de Pêcheux recebem função semelhante: Era – percebo agora – o único meio de que eu dispunha para expressar, pela guinada do non-sens no chiste, o que o momento de uma descoberta tem fundamentalmente a ver com o desequilíbrio de uma certeza: o chiste é um indicador determinante pois, sendo estruturalmente análogo ao caráter de falta do lapso, acaba por representar, ao mesmo tempo, a forma de negociação máxima com a “linha de maior inclinação”, o instante de uma vitória do pensamento no estado nascente, a figura mais apurada de seu surgimento. Isso reforça que o pensamento é fundamentalmente inconsciente (“isso [ça] pensa!”), a começar pelo pensamento teórico (e o “materialismo teórico de nosso tempo” não pode, sob risco grave, permanecer cego a esse respeito). Em outras palavras, o Witz representa um dos pontos visíveis em que o pensamento teórico encontra o inconsciente: o Witz apreende algo desse encontro, dando aparência de domesticar seus efeitos (PÊCHEUX, 1997b, p.303). A citação acima pode ser um pouco longa, mas nada dela eu consegui retirar. Talvez por dizer tão bem da certeza da existência do inconsciente: Pêcheux narra o seu trajeto na Outra cena. Nesse diálogo, registro as palavras de Lacan: A Outra cena, essa Outra-coisa, esse outro lugar, dimensão do Alhures presente para todos e vetado para cada um, “que sem que se pense nisso, e portanto, sem que qualquer um possa pensar estar pensando melhor que outro, isso pensa. Isso pensa um bocado mal, mas pensa com firmeza, pois foi nesses termos que ele (Freud) nos anunciou o inconsciente: pensamentos que, se suas leis não são de modo algum as mesmas de nossos pensamentos de todos os dias, nobres ou vulgares, são perfeitamente articulados” (LACAN, 1998, p. 554). 88 Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 É por circularem em uma Outra cena que Pêcheux, Freud e Marx pensam ser possível a mudança: a revolta e a revolução. Esta Outra cena que consiste na existência do inconsciente, tanto pode viabilizar o assujeitamento, quanto disponibilizar e construir artefatos de resistência. Lacan em Escritos comenta que o sonho funciona como uma charada, no sentido de enigma. Afirma que o sonho tem a estrutura de uma frase: “Porém, é na versão do texto que o importante começa, o importante de que Freud nos diz está dado na elaboração do sonho, isto é, em sua retórica” (LACAN,1998, p. 267-268). É no discurso onírico que o sujeito modula com suas intenções ostentatórias ou as demonstrações dissimuladoras ou persuasivas, retaliadoras ou sedutoras através dos deslocamentos sintáticos e das condensações semânticas. Para pensar a questão do assujeitamento, discuto o fetichismo da imagem – conceito trabalhado por Kehl (2004) – na tentativa de atualizar o que Marx chamou de o fetichismo da mercadoria, e que as obras de arte em análise apresentam e problematizam. O fetichismo da imagem-mercadoria Segundo Marx, o fetichismo da mercadoria é uma “relação social definida entre os homens que assume aos olhos deles a forma fantasiosa de uma relação entre coisas” (MARX, 1983, p.77). Zizek (1996) discute essa questão do valor que uma certa mercadoria assume enquanto uma propriedade quase “natural” de outra coisa-mercadoria, que é o dinheiro. Dizemos que o valor de uma certa mercadoria é tal ou qual volume de dinheiro que ela solicita. Logo, o aspecto essencial do fetichismo da mercadoria não consiste na famosa substituição dos homens por coisas, mas num certo desconhecimento sobre a relação entre a estrutura e os elementos desta estrutura. Aquilo que é um efeito estrutural, um efeito da rede de relações entre os elementos, aparece como uma propriedade circunscrita de um dos elementos, como se essa propriedade também lhe pertencesse fora de sua relação com outros elementos, independentemente. Esse efeito da rede de relações de sentido pode ocorrer entre coisas e entre as pessoas. A atribuição de valor de uma determinada mercadoria acontece quando esta é comparada a uma outra mercadoria. Da mesma forma, os homens necessitam do olhar uns dos outros para se reconhecerem. É a devolução do olhar de um outro ser humano que oferece a ideia de unidade para o sujeito, conforme a teoria do estádio do espelho de Lacan. É através do espelho do outro que o sujeito pode encontrar a sua identidade. De onde se pode conjeturar que o preço pago pela identidade é a alienação. Marx dá seguimento a essa homologia: a outra mercadoria, B, só é um equivalente na medida em que a mercadoria A se relaciona com ela como sendo a forma-da-aparência de seu próprio Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 89 valor, somente dentro dessa relação. Mas a aparência – e nisso reside o efeito de inversão que é característico do fetichismo –, a aparência é exatamente oposta: A parece relacionar-se com B como se, para B, ser um equivalente de A não correspondesse a ser uma “determinação reflexa” de A – ou seja, como se B já fosse, em si mesmo, equivalente a A; a propriedade de “ser equivalente” parece pertencer-lhe até mesmo fora de sua relação com A, no mesmo nível de suas outras propriedades efetivas “naturais” que constituem seu valor de uso. A essas reflexões, mais uma vez, Marx acrescentou uma nota muito interessante: Tais expressões das relações em geral, chamadas por Hegel de categorias reflexas, compõem uma classe muito curiosa. Por exemplo, um homem só é rei porque outros homens colocam-se numa relação de súditos com ele. E eles, ao contrário, imaginam ser súditos por ele ser rei (MARX, 1983, p. 63). Esse raciocínio me parece muito próximo do conceito de formações imaginárias de Pêcheux (1997a) onde os sujeitos A e B designam lugares determinados na estrutura de uma formação social e esses lugares estão representados nos processos discursivos que se estabelecem. Pêcheux diz que a posição dos protagonistas do discurso intervém nas condições de produção do discurso. Nesse estudo, faço uma tentativa de transcrição das formações imaginárias para o esquema L de Lacan, seguindo a mesma topologia usada para ler a histeria e para ler a PP. Para tanto, proponho a seguinte superfície: A Quem sou eu para lhe falar assim? a’ Quem sou eu para que ele me fale a Quem é ele para que eu lhe fale assim? B Quem é ele para que me fale assim? Fig. 6 – O Esquema L das Formações Imaginárias Fonte: Campos, 2010 A questão que o analista do discurso coloca sobre a existência do sujeito é uma pergunta articulada sobre o lugar de onde fala o sujeito: “Quem sou eu nisso?” Que a questão de sua existência inunde o sujeito, suporte-o, invada-o ou até o dilacere por completo, é o que testemunham o psicanalista, o artista e o analista do discurso. As tensões, as suspensões e as fantasias com que eles se deparam é que lhes fazem empreender a análise e a arte. É sob a forma de elementos do discurso na história que essa questão do Outro, no Outro e para o Outro se articula. Pois é por esses fenômenos se ordenarem nas figuras desse discurso que eles têm fixidez de sintomas que são legíveis e que podem ser interpretados. Portanto, “ser rei” é um efeito da rede de relações sociais entre um “rei” e seus “súditos”. Os súditos imaginam que ser rei 90 Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 é uma propriedade natural da pessoa de um rei. E esse é o desconhecimento fetichista para os envolvidos nesse vínculo social. O rei só é rei porque os súditos são súditos e dispensam ao rei o tratamento de rei. Zizek (1996) analisa duas modalidades de fetichismo: nas sociedades capitalistas e nas sociedades feudais. Nas sociedades capitalistas onde predomina a produção e a competição, as relações entre os homens não são fetichizadas. O que pode ser constatado é o fetichismo da mercadoria. As relações entre as pessoas “livres” para ser o que quiserem e para fazer o que quiserem, são relações egoístas onde cada um segue os seus interesses. O modelo dessas relações não segue o padrão de dominação-servidão, já que são pessoas que gozam de “liberdade” e “igualdade”. Seu modelo é a troca mercantil, livre do fardo da veneração ao Senhor e da proteção do Senhor para com o escravo. As relações interpessoais são relações utilitárias, de interesses. As duas formas de fetichismo, portanto, são incompatíveis: o fetichismo da mercadoria e o fetichismo do Senhor. O recuo do Senhor no capitalismo mostra-se apenas como um deslocamento, como se a desfetichização das relações “entre os homens” fosse paga com o fetichismo da mercadoria. O lugar do fetichismo apenas se desloca das relações intersubjetivas para as relações “entre coisas”. As relações sociais decisivas, as de produção, deixam de ser imediatamente transparentes, como o eram as relações do Senhor com seus servos. Elas passam a se disfarçar sob a forma de relações sociais entre coisas, entre os produtos do trabalho. Nesse raciocínio, considerando o mecanismo de deslocamento na produção das novas relações sociais, descobre-se o sintoma à maneira de Marx na passagem do feudalismo para o capitalismo: as relações de dominação e servidão continuam existindo, mas são recalcadas. Existe um mediador nas relações sociais capitalistas que disfarça as relações de dominação e servidão – que é a mercadoria. A imensa e variada oferta de mercadorias e a onipresença dos apelos da publicidade, emitidas a partir desta encarnação do grande Outro, chamado ideologia capitalista, e que tem na mídia de massa seu porta-voz – produzem uma ilusão. A ilusão de que nada foi perdido e que temos ao alcance da mão uma quantidade de objetos inusitados para simular o objeto perdido do nosso mais-gozar, o objeto a (BUCCI; KEHL, 2004, p. 75). Com efeito, o que a presença do objeto mercadoria procura subtrair é a função da palavra e da linguagem. A mercadoria liga-se ao modelo do que Lacan denominou de lathouse – expressão intrigante, que beira o non-sens, introduzida em O avesso da psicanálise (1969-1970). Ele nos diz que “o mundo está cada vez mais povoado de lathouses”, que não é o Outro, não é o ente, não é bem o ser, está entre os dois: Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 91 E quanto aos pequenos objetos a que vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês, na medida em que agora é a ciência que governa, pensem neles como latusas (LACAN, 1992, p.172). A palavra lathouse é o aoristo do verbo grego Lanthanô que quer dizer estar escondido sem saber. Aquilo que já esteve presente e agora está ausente. A lathouse remete para a questão da perda na qual se origina qualquer objeto com dimensões humanizadas. Um objeto no qual a falta permanece escondida. A lathouse, que para Lacan lembra e rima com venthouse, ventosa: aquilo que não inspira, mas aspira o desejo. Neste “turbilhão infernal do laço social dominante”, como ele chama o discurso capitalista, talvez seja possível estabelecer uma aproximação com o sintoma histérico que trata de substituir o Outro nesta função do desejo. O desejo na histeria e o desejo no capitalismo é o desejo de desejar. Para Rancière (2006, p.14), a singularidade da arte se aproxima à potência do Unheimlich freudiano. A virtude da arte consiste em ser testemunha do “desastre totalitário, consequência última do sonho de uma humanidade dona de seu próprio destino”. A arte é o observatório da dependência em relação à potência do Outro, da miséria e do horror que desconstrói o projeto de autonomia e de unidade do sujeito. A arte opera a revelação traumática do mal-estar na cultura. As obras em análise neste artigo são imagens mediadoras entre o sujeito e a mercadoria, onde o artista busca desestabilizar a relação imaginária que a publicidade/propaganda esforça-se por reproduzir de estímulo ao consumo. A forma de apresentação do inconsciente, da arte e da ideologia é a estética. Enquanto o inconsciente e a ideologia funcionam por representações, a arte trata da re-apresentação. De mostrar de novo, de mostrar mais uma vez o que não pode ser visto na diferença. Abstract This paper is an attempt to make a provisional reading of the contemporary society, and the condition of the subject’s resistance. This is the subject and merchandise captured by advertising, where the artist makes a complaint. Search an approximation between the fields of art, psychoanalysis and discourse analysis. This proposes a discussion through the scheme L of Lacan to think the imaginary relationship of the subject with advertising. Keywords: Image; Resistance; Subject. 92 Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013 REFERÊNCIAS CAMPOS, Luciene J. Imagens à Deriva: Interlocuções entre a arte, psicanálise e a análise do discurso. 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Assim, pressupondo o funcionamento da ideologia e do inconsciente na produção dos efeitos de sentidos, este artigo analisa propagandas de empresas de telefonia móvel/celular. Trata-se de vídeos apresentados nas datas comemorativas do Dia das Mães e do Dia dos Pais. Nesta análise, compreende-se que essas propagandas põem em funcionamento a ideologia dominante, que “naturaliza”, mediante os efeitos de evidência, os lugares das mulheres e dos homens. Esse funcionamento é essencialmente atravessado pelas formações inconscientes capazes de corroborar a eficácia dos efeitos de sentido. Portanto, tais materialidades discursivas mobilizam uma rede de sentidos que revela um processo discursivo, o qual retoma e ressignifica os sentidos inscritos no discurso do Outro, confluindo na realização dos interesses de um “sujeito consumidor” que “faz suas escolhas” com “aparente” conhecimento de causa. Palavras-chave: Discurso; ideologia; inconsciente; sentido; história. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 Introdução A proposta deste artigo é refletir sobre os discursos na contemporaneidade que circulam no cotidiano e evidenciam sentidos que aparentam “ratificar” os lugares e posições sociais dos sujeitos, considerando-os, em sua imediaticidade, como “naturais”. Entretanto, estes, na essência de seu funcionamento, trazem o caráter material e histórico que manifesta a contraditoriedade − tanto do sujeito contemporâneo quanto do “seu” discurso. Para nós, o efeito desse entrecruzamento contraditório de sujeitos e sentidos nas materialidades históricas discursivas atua no movimento dialético do real, em sua totalidade complexa, na dinâmica de reprodução/transformação das relações sociais. Apresentar essa discussão, dependendo da direção político-analítica, tem implicações teóricas decisivas na Análise do Discurso de linha pecheutiana e chega mesmo a ser algo desafiador. Afirmar que o sujeito faz história atuando nas práticas sociais e sofre o peso das determinações sócio-históricas, é certamente algo polêmico na AD, mas não impossível de ser abordado. Trata-se de uma questão crucial, visto que é imprescindível sair da imediaticidade da análise e buscar a totalidade das questões, a fim de dar continuidade ao caráter teórico e político da Análise do Discurso, sobretudo visando à crítica radical da sociedade capitalista e à superação das relações de exploração. Desse modo, abordaremos, na primeira parte do presente texto a questão da relação objetividade e subjetividade, adotando um posicionamento radical na teoria materialista do discurso. Em seguida, encaminharemos às análises das materialidades discursivas, procurando desvelar, no funcionamento do discurso, o caráter material do sentido e dos sujeitos em sua concretude radicalmente histórica. A relação entre objetividade e subjetividade na teoria materialista do discurso A Análise do Discurso (AD) da linha de Michel Pêcheux tem caráter teórico e político, pois sua história, assim como a de qualquer ciência, está atrelada às relações de produção/reprodução/ transformação, ou seja, relações de base econômica e de cunho político, inscritas no movimento dialético do real sócio-histórico. É tomando essa especificidade que Pêcheux critica o idealismo em Linguística – que, à sua época, tratava de um sujeito intencional tido como “dono do sentido” e “senhor de sua morada” –, bem como ao estruturalismo, ao gerativismo, ao funcionalismo e ao marxismo mecanicista. Questões de caráter político-científico não faltaram em seus trabalhos, e isso foi um passo decisivo para pensar a problemática da relação entre objetividade e subjetividade na articulação do quadro teórico da Análise do Discurso. Pêcheux e Fuchs, no texto intitulado “A propósito da Análise 96 Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 Automática do Discurso: atualização e perspectivas”, apresentam o quadro teórico da AD, com a articulação de três regiões do conhecimento: 1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias; 2. a linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo; 3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos. (1997, p. 163 e 164) Não poderia ficar de fora dessa citação a passagem em que Pêcheux e Fuchs fazem uma importante ressalva: “convém explicitar ainda que estas três regiões são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica)” (PÊCHEUX & FUCHS, 1997, p. 164). Portanto, Pêcheux propunha trabalhar as contradições dessas áreas de conhecimento, vinculando com propriedade o caráter teórico e político desse gesto. Diante desse quadro teórico faremos nossas considerações com base no entremeio das contradições, pois deve haver uma hierarquia nesse construto teórico. Primeiramente, o Materialismo Histórico – a necessária compreensão das formações sociais, seu movimento dialético de transformação, e a ideologia em seu funcionamento. Esse lugar no materialismo histórico na AD não dispensa a efetiva consideração das condições de produção. Estas são as relações de produção/ reprodução/transformação das relações sociais que, numa sociedade regida pelo Capital, toma caráter de relações de exploração do trabalho na produção-consumo de mercadorias, manifestadas em interesses e conflitos de classes. A ideologia cumpre uma determinada função social, pois enquanto produção social age sobre os sujeitos, orientando suas ações para a manutenção e/ou transformação das relações de produção. Esse funcionamento é produzido pelas práticas históricas dos sujeitos, que constituem individualidades como fonte das relações sociais, traduzidas, muitas vezes, em dizeres que afirmam que “você pode”, “eu posso”, “você consegue” (MAGALHÃES, 2013). Para tanto, silenciam-se as contradições sociais que inviabilizam que todos efetivamente “possam”, ou apagando determinações sociais de raiz e base material que não apenas diferenciam, mas dividem em relações desiguais e contraditórias os sujeitos, os objetos e os sentidos. Para que essas questões apareçam, elas também se materializam na língua em sua relativa autonomia, pois a linguagem não é transparente, o sentido nunca é estabilizado e não tem caráter “literal”. A ordem da língua e a ordem histórica se imbricam nas relações entre os sujeitos (ORLANDI, 1999). Uma língua capaz de Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 97 falha, de equívoco, que permite aos sujeitos jogar com e sobre as regras, mas, sobretudo, dizer, repetir, parafrasear, metaforizar, no jogo incessante de significar o mundo, produzindo gestos de interpretação que partem do real e nele atuam. Nessa intricada relação, a semântica, tida como ponto nodal das contradições em Linguística − que segundo Pêcheux (1997) tem a ver com as formações sociais −, convoca uma teoria que exige pensar as determinações históricas dos processos de significação. Para compreender isso, tomemos como exemplo, nas sociedades contemporâneas, o movimento de transferência/deriva da noção de direitos sociais para direitos de consumidor (código do consumidor/definição de cidadão nas sociedades capitalistas contemporâneas). Discursos que fazem significar o consumo como forma de “suprir” as frustrações, “realizar” os “desejos” dos sujeitos, e têm atuado como mediadores da afetividade e dos laços sociais. Chegamos assim à Psicanálise, na busca de pensar a questão da teoria da subjetividade de natureza não subjetivista. Tratar do atravessamento do inconsciente também exige pensá-lo como histórico, já que o Ser Social dotado de consciência e inconsciente é um sujeito radicalmente histórico, que busca dizer, mas não tem “controle total” do que diz. Algo sempre irrompe e desestabiliza o dito, mostrando o que foi inculcado na formação inconsciente e que faz parte da memória histórica. Numa célebre síntese de Pêcheux, podemos visualizar o teor dessa complexa articulação: o recalque inconsciente e o assujeitamento ideológico estão materialmente ligados, sem estar confundidos, no interior do que se poderia designar como o processo do Significante na interpelação e na identificação, processo pelo qual se realiza o que chamamos as condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção. (PÊCHEUX, 1997, p. 133, grifos do autor) Nesse ponto salientamos que o Sujeito do Discurso toma sempre uma forma-sujeito. No caso em estudo, toma a forma-sujeito do capitalismo, manifestando e vivenciando as contraditoriedades que surgem através dos deslizes, equívocos que a própria língua permite realizar, mas que apenas as determinações históricas possibilitam significar em direção “certa” ou “errada”. Há, portanto, a necessidade de considerar a relação entre objetividade e subjetividade, pois todo discurso carrega em si as contradições das relações sociais. É desse ponto de vista que trabalharemos a AD, ou seja, no entremeio da práxis social e discursiva vinculada à atividade humano-material. As “escolhas” fazem o sujeito “do” discurso – um efeito de determinação A questão de se “as escolhas fazem” o sujeito “do” discurso diz respeito à relação objetividade e subjetividade. O critério aqui não é uma subjetividade independente que “tudo pode”, nem uma 98 Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 objetividade desvinculada da atividade do sujeito. Trata-se de uma relação dialética em que a subjetividade pode atuar no real, mas o critério de verdade é o objeto. A relação do sujeito com o real sócio-histórico é determinante tanto de sua subjetividade como da própria objetividade. E o trabalho, em seu caráter ontológico, funda essa relação e constitui as subjetividades na imbricação (consciência e inconsciente, língua, ideologia e história). Em síntese, consiste numa práxis social desenvolvida pelos sujeitos e para os sujeitos, algo que não existe na natureza. Como diz Lukács (1997), a ideologia tem como função efetivar, na práxis, as ideias necessárias ao desenvolvimento social (determinadas pelas relações de produção). Para isso precisa, desde o início do desenvolvimento do sujeito, lançar mão da instituição familiar como a primeira instância determinante na constituição do sujeito e, nesse sentido, aquela que marcará o restante da vida de cada indivíduo. Essas marcas definem a base da individualidade de cada um, pois estarão recalcadas na estrutura da subjetividade. A forma como cada sujeito lidará com esse processo de ser dito pelo Outro e a forma como se estruturará sua imagem a partir desses dizeres (Lacan) serão fundantes para a estrutura psíquica de cada indivíduo (FREUD, 1972). Contudo, é preciso destacar que a família também é uma instituição histórica, já que, antes do nascimento, os seres sociais são submetidos à ação ideológica. Costumeiramente, nas sociedades modernas capitalistas, essa primeira abordagem é feita através dos membros da família nuclear. Inculcações sobre o lugar e o papel de homens e mulheres na sociedade são ditadas ao indivíduo pelas “escolhas” que a família realiza de roupas, quartos, nomes etc., assim como as expectativas, esperanças, objetivos, sonhos e projetos que os adultos têm em relação ao novo ser. Sob essas mediações que fazem as inculcações de determinados valores e formas de consciência na constituição dos sujeitos, funcionam os efeitos da divisão social do trabalho (material e espiritual). Como diz Pêcheux “todo processo discursivo se inscreve numa relação ideológica de classes” (1997, p. 92). Tudo isso participará da formação do inconsciente, e algumas dessas marcas podem ser até ressignificadas, mas nunca abolidas da estruturação inconsciente do sujeito. No entanto, é importante frisar que esse processo, embora oriundo de relações sociais que afetam a todos, é recebido de forma particular nas formações inconscientes. Isso faz com que cada sujeito reelabore de forma relativamente diferente as “mesmas” práxis ideológicas. Nesse sentido, precisamos fazer um resgate do ser consciente, porquanto não há atividade humana sem consciência. Desse modo, o materialismo dialético afirma que o “homem não é meramente um ser racional ou um ser dotado de alma ou um ser a quem se atribui algum princípio, mas o homem é atividade” Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 99 (CHASIN, 1999, p. 110). Atividade e, portanto, práxis, ou seja: o pensar exige objetivo visando atuar nos processos de sociabilidade. Embora se dê ênfase à subjetividade como transformadora, para o materialismo histórico-dialético os critérios de verdade são sempre objetivos, pois a subjetividade tem o poder de captar e mudar a realidade, mas ela depende da lógica dessa mesma realidade para conseguir realizar essas duas atividades especificamente humanas. A subjetividade é determinada pelas relações sociais de seu tempo histórico. Nas palavras de Marx: “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (MARX, 1996, p. 52). No entanto, nenhuma realidade oferece apenas uma única opção, e nesse espaço de “escolhas” possíveis a subjetividade exerce a capacidade de produzir o novo em todas as práticas humanas, inclusive as práticas discursivas. Assim, levando em consideração a experiência histórica nas sociedades modernas, submetidas à lógica do capital, nenhuma subjetividade escapará da determinação do mercado, da lógica da mercadoria. Como diz Lukács: No século passado e no começo deste, o capitalismo controlava a produção e explorava o trabalhador, arrancando-lhe a mais-valia, no âmbito da produção. Atualmente, o capitalismo estendeu seu controle ao consumo. Através da publicidade, cuja força manipulatória cresce dia a dia, o capitalismo fomenta necessidades artificiais e, pelo controle delas, controla o mecanismo das compras e vendas, contorna as crises geradas pelo desequilíbrio do mercado. Com isso, o trabalhador não é explorado apenas como trabalhador; é explorado também como consumidor. (LUKÁCS, 1978b, p. 23) Para que essa lógica de exploração sobre o sujeito consumidor seja eficiente, os mecanismos ideológicos se utilizam necessariamente de todas as formas de convencimento, principalmente aquelas que se dirigem a aspectos emocionais dos sujeitos, como os voltados às relações familiares, a exemplo do que veremos na propaganda analisada mais à frente. Mas para que haja sucesso, para que o efeito pretendido pelo sujeito do discurso atinja seu alvo, os sujeitos “consumidores”, esses precisam já ter sido afetados pelos efeitos do pré-construído e da memória discursiva. Ou seja, devem ser constituídos como sujeitos estranhados, o que os configurará como seres divididos e alienados, visto que é a alienação (e o estranhamento) interna ao próprio sujeito, portanto, a cisão do sujeito mesmo que está implicada em sua relação alienada e estranhada com outros sujeitos. E mais ainda: que o critério interno ao sujeito, portanto a dimensão da subjetividade envolvida em sua relação alienada e estranhada com os outros, é aquela em que o próprio sujeito se encontra como trabalhador, quer dizer, como força de trabalho, como mercadoria. (SILVEIRA, 1989, p. 52, grifos do autor) 100 Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 Esse sujeito se percebe na imediaticidade como consumidor, mas esquece que tem trabalhado, estranhamente, tão só para exercer suas tarefas e para poder “consumir”. A família contemporânea, como em qualquer outro sistema, precisa reproduzir esse sujeito, e a propaganda que será analisada mostrará como a ideologia de mercado necessita estar sempre a reforçar essas funções sociais. Os indivíduos no modo de produção capitalista serão classificados de acordo com a quantidade e a qualidade do que possuem e podem ter (comprar). Ou seja: precisam ser como as propagandas dizem que devem ser (ou ter). Segundo Silveira, nas próprias subjetividades está plasmada, soldada, marcada, de uma maneira profunda, a diferença que, por excelência, torna os indivíduos, sob o capitalismo, indiferentes: a diferença quantitativa, a comparabilidade quantitativa de si mesmo, dos outros e do conjunto das relações: a universalidade da alienação. (SILVEIRA, 1989, p. 63, grifos do autor) Levando em consideração o funcionamento da ideologia, é preciso destacar que sua potência só se realiza na instância do inconsciente. É que só haverá eficácia se o discurso conseguir, mediante algum significante, na representação do sujeito para outro significante, mobilizar em cada indivíduo e em todos que se pretende atingir, o desejo de ocupar aquele lugar das “personagens” apresentadas nas propagandas. Hoje em dia, com as novas tecnologias médicas, antes mesmo do nascimento os indivíduos já são referidos como homem e como mulher, como futuros pais e futuras mães. O que a propaganda faz é atualizar esses papéis e convocar pais e mães modernos, mais que isso, “bons consumidores”, para funcionar como exemplos às futuras gerações, quase um “protótipo” de sujeitos consumidores. Na análise que apresentaremos a partir de agora, vamos tomar a materialidade discursiva como materialidade da ideologia. Serão analisados dois vídeos de propagandas de telefonia móvel/celular (mais especificamente, da empresa de telefonia Claro) apresentadas nas datas comemorativas do Dia das Mães (2009) e do Dia dos Pais (2007). Direcionando o olhar para o vídeo do Dia das Mães (maio/2009), observamos que ele apresenta uma mulher/mãe cuidando dos filhos em casa, no parque, levando-os ou trazendo-os da escola. Segue abaixo a transcrição dos dizeres: Você conhece alguma pessoa que acorda de madrugada, feliz? Que dá duro para juntar dinheiro e não gasta com ela? Que pode estar cheia de problemas, mas para tudo para escutar os seus? Que trabalha o dia inteiro e quando chega em casa trabalha mais, sorrindo? Bom, se você conhece alguma pessoa assim, dê um Claro, porque ela merece. Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 101 Ela fala 10 x mais os minutos do plano. Suas escolhas fazem você mãe. (Claro, Dia das Mães/2009). As cenas mostram o estabilizado em relação à posição da mulher na sociedade, mais do que o discurso verbal. O que reforça o efeito do sentido pretendido são as imagens da mulher, em diferentes situações de trabalho: “que trabalha o dia inteiro e quando chega em casa trabalha mais”, sempre feliz e sorridente. A maternidade, atividade trabalhosa, é apresentada como a única forma de “tornar”/“fazer” as mulheres felizes em detrimento das outras atividades exercidas pela mulher moderna. Vale ressaltar também que a mulher na propaganda é jovem, com o padrão de beleza dominante, magra, aparentemente bem-sucedida, etc. Por isso deve receber como forma de afeto não um beijo ou um abraço, mas um aparelho celular, que servirá de instrumento para continuar sua labuta e facilitar todas as atividades que ela realiza falando “10 x mais”, porque “ela merece”. 102 Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 (Propaganda Claro, Dia das Mães) Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 103 (Propaganda Claro, Dia das Mães) Esse discurso publicitário enlaça as mulheres nas contradições das relações sociais, inculcando/ internalizando lugares e papéis preestabelecidos. Esse discurso que afirma que “suas escolhas fazem você mãe” produz o efeito de repetição da memória discursiva dos papéis que cada gênero na sociedade deve assumir para cumprir sua função social. No segundo filme, veiculado no mês do Dia dos Pais (agosto de 2007), podemos observar que ele aparentemente desloca o lugar do sujeito discursivo ao mostrar que no “afeto” homens e mulheres são iguais. Na propaganda, aparece uma menina “controlando” o seu texto, reescrevendo o seu dizer e redirecionando a “mesma” carta que foi escrita anteriormente para a mãe. Agora ela é destinada ao pai, ou seja, a mesma carta parece servir igualmente para dizer sobre o amor que a criança nutre pela mãe e pelo pai. As imagens mostram uma criança feliz e moderna, que usa com desenvoltura o aparelho celular, domina o seu texto e reformula o seu dizer. Segue a transcrição do vídeo: Pai, você é a pessoa mais importante que existe pra mim. (...) Te amo! Essa carta eu escrevi para mamãe, mas agora tô escrevendo pra você. É pra mostrar que eu amo você que nem eu amo a mamãe. Mas ó, não vai chorar, que isso é coisa de MÃE! Dias dos Pais Claro. Seu pai fala o dobro de minutos e ainda ganha um Motorola A 1200. Claro. A vida na sua mão. 104 Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 (Propaganda Claro, Dia dos Pais) Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 105 Mais sutil que o primeiro vídeo, a presença do pai na propaganda recapitula as diferenças (espaço privado e espaço público/ a casa e a rua/ o trabalho assalariado e o trabalho doméstico não pago/ a mulher em sua dupla ou tripla jornada). O sujeito da enunciação insere-se na materialidade discursiva para reforçar o que já estava dado pelo lugar onde o pai estava, ou seja, fora de casa. O pai aparece fora do espaço doméstico, a receber uma mensagem de carinho via celular. O amor é o mesmo, o presente é o mesmo, mas homens e mulheres (pais e mães) não reagem da mesma maneira. O pai se emociona, mas ri. O lugar do choro é reservado às mulheres, como diz a propaganda: “Mas ó, não vai chorar, que isso é coisa de mãe”. (Propaganda Claro, Dia dos Pais) 106 Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 O que vemos a partir dessas materialidades discursivas confirma o que diz Pêcheux: a marca do inconsciente como “discurso do Outro” designa no sujeito a presença eficaz do “Sujeito”, que faz com que todo sujeito “funcione”, isto é, tome posição, “em total consciência e em total liberdade”, tome iniciativas pelas quais se torna “responsável” como autor de seus atos, etc. (PÊCHEUX, 1997, p. 171) As duas materialidades discursivas estabelecem as relações afetivas mediadas pelo produto de consumo (aparelho celular). Nas duas propagandas, a lógica capitalista que precisa baratear a socialização e manter a reprodução do trabalhador sem custos adicionais, ao manter a mulher e o homem em seus espaços “naturais”. Desse modo, faz funcionar a ideologia patriarcal, diferenciando homens e mulheres e, ao mesmo tempo, suturando essa diferença por meio de uma injunção ideológica. Essa forma de relação do sujeito com a lei (cultura), que parece “fixar” os sujeitos na ordem do social, é utilizada desde o nascimento do ser social. Assim, inculcará essas posições diferentes, de homens e mulheres, para o resto de suas vidas: É nesse reconhecimento que o sujeito se “esquece” das determinações que o colocaram no lugar que ele ocupa – entendamos que, sendo “sempre-já” sujeito, ele “sempre-já” se esqueceu das determinações que o constituem como tal. (PÊCHEUX, 1997, p. 170) As mulheres esforçam-se para ser boas filhas, boas mães, boas esposas e boas profissionais, ao custo de uma culpabilização que as coloca quase sempre em estado de ansiedade. Os homens têm de ser os provedores, mesmo que isso implique não participar do cotidiano de sua família e perder momentos importantes do desenvolvimento dos filhos. Sua ausência é sempre justificada porquanto ocorre para que ele possa dar mais conforto aos seus, e isto se traduz em possibilidades de oferecer mais consumo nas relações com as mercadorias. Vale ressaltar que para Pêcheux (1997) a identificação discursiva se dá pelas filiações sócio-históricas (formação ideológica e formação discursiva), admitindo-se uma agitação no interior destas. A práxis torna possível sempre, de forma consciente e inconsciente, o deslocamento do sujeito. Haverá sempre a possibilidade do desvio, do equívoco (língua/história/ideologia/ inconsciente). O discurso não é uma construção independente das relações sociais e do condicionamento inconsciente. Assim, o fazer discursivo é uma práxis humana que só pode ser compreendida a partir do entendimento das contradições sociais que possibilitaram sua objetivação e de como cada indivíduo processa, no aparelho psíquico, essas determinações. Marx, na introdução do texto “Para crítica da economia política”, afirma que “na produção social da própria vida, os homens Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 107 contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais” (MARX, 1996, p. 52). Ao avançarmos na questão colocada no início desta análise, podemos considerar também que os sujeitos “fazem suas escolhas”, mas as fazem determinados pelas relações sócio-históricas nas quais estão inseridos e em que são sujeitos atuantes. Escolhas que determinam (mas nunca de modo mecânico) o sujeito em face das alternativas históricas possíveis de reprodução/transformação/revolução das relações sociais. Segundo Lukács: Toda práxis social, se considerarmos o trabalho como seu modelo, contém em si esse caráter contraditório. Por um lado, a práxis é uma decisão entre alternativas, já que todo indivíduo singular, sempre que faz algo, deve decidir se o faz ou não. Todo ato social, portanto, surge de uma decisão entre alternativas acerca de posições teleológicas futuras. A necessidade social só se pode afirmar por meio da pressão que exerce sobre os indivíduos (frequentemente, de maneira anônima), a fim de que as decisões deles tenham uma determinada orientação. Marx delineia corretamente essa condição, dizendo que os homens são impelidos pelas circunstâncias a agir de determinado modo, “sob pena de se arruinarem”. Eles devem, em última análise, realizar por si as próprias ações, ainda que frequentemente atuem contra sua própria convicção. (LUKÁCS, 1978a, p. 6) Como dissemos anteriormente, as sociedades capitalistas são sociedades de classes − conflituosas e de interesses antagônicos. A ideologia da classe dominante busca conseguir seus objetivos; no entanto, durante todo esse processo ocorre um conflito que também repercute diretamente no sujeito que é convocado a ser consumidor, pois nem todos podem alcançar esses objetivos no mercado. Por mais que se esforcem trabalhando, trabalhando mais e se endividando, os produtos são consumidos diferentemente e por pessoas de classes distintas, que desigualmente têm “acesso” a eles, ou melhor, poder de compra sobre as mercadorias. Esses conflitos fazem a ebulição e a criação do novo, sob as mais diferentes formas, que podem até mesmo ser traduzidas em formas de resistência à ideologia dominante, implicando mudanças e transformações revolucionárias. Considerações finais Em nossa análise, compreendemos que essas propagandas põem em funcionamento a ideologia dominante, que diz sobre o lugar “natural” da mulher e do homem na sociedade. Esse funcionamento é essencialmente atravessado pelas formações inconscientes capazes de corroborar a eficácia dos efeitos de sentido. Os vídeos analisados mobilizam uma rede de sentidos que no seu entrecruzamento (materialidade simbólica, ideologia, in108 Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 consciente) alcançam e fazem funcionar nos sujeitos os interesses da lógica do capital. Ao assim agirem, revelam um processo discursivo que retoma e ressignifica os sentidos inscritos no discurso do Outro, confluindo na realização dos interesses de um sujeito constituído como consumidor “nato”. Desde o resumo do presente artigo salientamos o papel político da AD. De nossa parte, queremos enfatizar, baseados nas teorias que subsidiaram a importância do gesto analítico de desvelamento do discurso dominante que esse tipo de propaganda quer perpetuar, que os sujeitos nunca são atingidos igualmente, embora a ideologia busque sempre a generalização. Portanto, a continuação dos estudos sobre a linguagem na perspectiva pecheutiana não é apenas a busca de difusão de uma nova forma de entender a língua e a linguagem em geral. Trata-se, sobretudo, de uma forma de efetivar um ato político de confronto com as posições discursivas que propugnam a “neutralidade” da ciência, criando obstáculos para os próprios sujeitos se inscreverem em outras redes de significações, a fim de efetivamente intervirem nas relações sociais. Abstract Affiliated to the perspective Speech´s Analysis (SA), we understand speech´s subject as being radically historical- constituted by the language, ideology and affected by the unconscious. This statement of position imposes take into consideration production´s conditions in capitalist society, such as the exploration of labor and the production-consumption of commodities. Being the speech ideology´s materiality, it is always a historical practice and its operation reveals interpretation´s gestures of the subjects acting in social practices put as necessary to reproduction / transformation of production relations. Thus, presupposing the working of ideology and of unconscious in the production of sense effects, this article analyzes advertisements for mobile phone companies / mobile. They are presented videos in celebrations dates about Mothers´ Day and Fathers´ Day. In our analysis, we understand that these advertisements put operating the dominant ideology that “naturalizes”, through the evidence´s effects, the places of women and of men. This operation is essentially crossed by unconscious formations able to confirm with the effectiveness of sense effects. Therefore, these discursive materialities mobilize a network of sense that, in their intersection (symbolic materiality, Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013 109 ideology, unconscious), achieve and make working for and by subject the interests of the logic of capital, revealing a discursive process that returns and resignify the sense enrolled in the Other´s speech to converge in the realization of the interests of a “subject consumer” that “makes your choices” with “apparent” knowledge of cause. Keywords: Speech; ideology; unconscious; sense; history. REFERÊNCIAS CALIGARIS, Contardo. Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Editora Ática, 1996. DUFOUR, Danny-Robert. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007. LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. LEBRUN, Jean-Pierre. A perversão comum: viver juntos sem o outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008. LUKÁCS, Georg. 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Scherer (Corpus/DLCL/PPGL/UFMS) Simone de Mello de Oliveira (Corpus/PPGL/PNPD-CAPES/UFSM) Verli Petri (Corpus/DLV/PPGL/UFSM) Zélia Maria Viana Paim (Corpus/PPGL/PNPD-CAPES/UFSM) Resumo O objetivo deste artigo é apresentar resultado de pesquisa realizada pelos integrantes do Laboratório de Fontes de Estudo da Linguagem – Corpus/ PPGL/UFSM, a qual tem como objeto a política de arquivo para Fundos Documentais. A experiência aqui relatada é a criação do Fundo Documental Neusa Carson, uma importante linguista para a constituição disciplinar dos estudos da linguagem no contexto brasileiro. Os conceitos nodais mobilizados são arquivo, memória e acontecimento na relação da Análise de Discurso com História das Ideias Linguísticas. Palavras-chave: arquivo; memória; acontecimento; política; Fundos Documentais. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 Nossa história nos Estudos da Linguagem O retorno do arquivo abre então à análise de discurso possibilidades múltiplas. GUILHAUMOU & MALDIDIER Nos referimos ao projeto “Linguística no Sul: estudo das ideias e organização da memória” - Primeira etapa, CNPq, bolsa de Produtividade, 2000. 2 Recebemos, também, o arquivo pessoal e o acervo bibliográfico da Profa. Aldema Menine Mckinney (UFSM) das mãos da própria pesquisadora. A referida professora trabalhou, por mais de 10 anos, em Políticas Públicas de Alfabetização em comunidades indígenas em zona de fronteira. Já o de Maria Luiza R. Remédios, professora de Literatura Portuguesa da UFSM e da PUC/ RS, recebemos a doação pelas mãos do seu filho, em solenidade pública, no 08 de agosto de 2012. 3 Para a segunda etapa do Projeto de Pesquisa: “Linguística no Sul: estudo das ideias e organização da memória”, estamos contando com a participação de três bolsistas em estágio de Pós-Doutorado. Duas vinculadas ao Edital CAPES-PNPD, e uma v i nc u lada ao Ed it a l DOC FI X/FA PERG S/ CAPES. 1 114 Nos últimos tempos temos produzido trabalhos, de forma intensa, enquanto pesquisadores do Laboratório CORPUS, sobre a constituição da história disciplinar moderna e, principalmente, sobre a história da Linguística no sul. São teses, dissertações, artigos científicos e obras de referência, interessantes do ponto de vista da produção do conhecimento, e isso se dá em parceria com pesquisadores de diferentes instituições brasileiras e estrangeiras. Boa parte dos trabalhos procura refletir sobre como tal história pode ter a sua versão na contemporaneidade e, ao mesmo tempo, como ela se constitui no âmbito regional, nacional e no quadro dos países do Prata. Tal ação se dá através de documentos/arquivos/acervos que estamos reunindo e recuperando em nosso Laboratório, servindo para consulta e disponibilizados em redes de saberes através da nova política ditada pela (re)documenta(riza)ção do mundo, proposta por Pédauque (2007) para que novas leituras possam ser realizadas e produzidas. Dentro de tal política, estamos construindo, cada vez mais, instrumentos que possibilitem constituir a história disciplinar contemporânea e, nos últimos tempos, estamos concebendo um projeto de criação de um Centro de Documentação e Memória composto por vários setores, entre eles, o de Fundos Documentais e Acervos. O primeiro fundo a ser pensado e criado foi o Fundo Documental Neusa Carson (FNDC), designado pelo nome de uma importante linguista do sul do país, que viveu e trabalhou na UFSM e na PUC/RS nas décadas de 70 e 80, contribuindo para a institucionalização e disciplinarização da Linguística entre nós e tendo uma participação nacional e estrangeira importantíssima no desenvolvimento de pesquisas no campo da descrição de línguas indígenas, mais precisamente o Macuxi, em Roraima. Tal nome foi recorrente quando da pesquisa levada a cabo no início de 20001. Nela conseguimos levantar e identificar discursivamente o lugar de alguns nomes na sistematização e constituição desse disciplinar e, pela visibilidade que tivemos, na ordem regional, via divulgação em mídia impressa e digital, familiares de alguns pesquisadores renomados nos propuseram fazer a doação de arquivos pessoais e bibliográficos2. Foi o caso do primeiro fundo e do qual vamos tratar mais adiante como exemplo3. Tal política nos conduz a uma leitura discursiva de um arquivo constituído pela sua historicidade, pois veremos que a linguista em questão procura um espaço de formulação e de produção de saber na Linguística que se revela, para a época Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 inicial, fortemente interessante, vinculada à descrição e ao estudo das línguas, através de uma relação acadêmica constituída na e pela sociedade científica da qual fez parte. Veremos, também, através de tal Fundo, a importância de desenvolver pesquisas que contribuam com o processo de recuperação da História do Conhecimento Linguístico no Brasil, seja no tocante à constituição da língua nacional, seja no tocante às línguas que revelam a heterogeneidade constitutiva do sujeito e da história, mas, também, de que forma isto está posto naquilo que Chevalier & Encrevé (1984) vão designar como História Social da Linguística. Tal proposta tem nos colocado questões epistemológicas, tendo por eixo central a possibilidade de um trabalho integrando historicidade disciplinar pelo viés do programa de pesquisa, pensado e posto em prática, no Brasil, pelos pesquisadores Eni Orlandi e Eduardo Guimarães, designado como História das Ideias Linguísticas (HIL), com os estudos franceses da História Social da Linguística. Como sabemos, o programa HIL carrega, na sua constituição e formulação, uma filiação materialista, política e ideológica, lugar teórico da análise de discurso brasileira. Por outro lado, Chevalier & Encrevé (1984) nos mostram que a História Social da Linguística não é um complemento na História das Ideias, pois, para os autores, ela não viria mostrar o seu conteúdo para afirmar que as verdades científicas são produtos históricos com a razão de que são irredutíveis à história por realidades singulares, mas que elas nos conduzem à prática científica como uma espécie de universo concreto da prática do pesquisador. Na verdade, a estrutura e o funcionamento da prática científica formam uma espécie particular de condições sociais que determinam os produtos sociais. A prática científica é uma prática social (PÊCHEUX, 1995) como qualquer outra, com suas relações de força, seus monopólios, suas lutas internas e externas, seus interesses, onde todas elas vão intervir de uma maneira ou de outra. A prática científica é por natureza um lugar e um espaço de lutas políticas, impondo a cada pesquisador, em função de sua posição-sujeito, um lugar na história do político disciplinar. Para os autores, uma História Social não seria revelada por uma elaboração propriamente científica, mas ela teria o propósito de poder apreender e entender o sistema de posições da prática social acadêmica. Um outro ponto importante a ser considerado tem a ver com a História Social do pesquisador, fator determinante também para entendermos o seu lugar hoje na prática científica e suas contribuições para o avanço na história da ciência linguística na contemporaneidade. Para nós, História Social está apartada, é claro, dos moldes de um caminho biográfico que normalmente se tem tomado nas ciências em geral. Ela tem nos ajudado a entender de que forma a história da formação do pesquisador Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 115 é um dado importante para entendermos sua produção no/do conhecimento e sua contribuição no processo de divulgação do saber sobre a língua. História das Ideias Linguísticas e História Social da Linguística são postas lado a lado sem que uma tome o lugar da outra. Histórias repletas de memórias e de sujeitos que envolvem um espaço de interlocução, proporcionado pelo trabalho de leitura do arquivo (PÊCHEUX, 1994). Outro fator importante é a discussão acerca da noção de arquivo e do tratamento que lhe é dado. Os diferentes documentos têm nos mostrado que devemos retomar nossas certezas, que acreditávamos serem definitivas, para melhor interrogarmos os nossos limites. Nosso interesse é tentar, de fato, entender de que forma a produção do conhecimento sobre a língua tem afetado um fazer acadêmico-pedagógico específico ao nosso meio acadêmico, tendo por eixo principal a compreensão das condições de produção do discurso sobre a ciência linguística e sua rede de circulação nos cursos de graduação e pós-graduação no contexto regional. Nosso pressuposto teórico e analítico Refletir sobre arquivo da perspectiva de quem está trabalhando na implementação de fundos documentais e constituição de acervos provoca um importante deslocamento sobre duas noções essenciais ao trabalho do analista de discurso: a noção de arquivo e de tomada de posição-sujeito de quem produz conhecimento sobre a linguagem, levando em conta o funcionamento das noções de acontecimento, história e memória. A noção de arquivo, constantemente mobilizada em trabalhos em Análise de Discurso e História das Ideias Linguísticas, tem como ponto de partida o dizer de Pêcheux, ou seja, “campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão” (1994, p. 57) e é desse ponto que partimos quando pensamos no necessário deslocamento. Esse deslocamento se dá não só pela mudança de perspectiva em relação ao arquivo, que é uma materialidade simbólica prenhe em sentidos, podendo ser ainda um recorte no interior deste “campo de documentos pertinentes e disponíveis”, de que trata Michel Pêcheux, mas também por estar explicitando a singularidade do que é dito, de um modo de dizer, de uma anunciação (no sentido da expressão francesa “faire connaître”), de uma enunciação. Ao tomarmos assim o arquivo, torna-se necessário refletir sobre a constituição de uma outra (e talvez nova) tomada de posição-sujeito de quem produz conhecimento sobre a linguagem, o que se torna imprescindível quando se trata da implementação de fundos documentais e de constituição de acervos. Há um sujeito pesquisador que olha o arquivo, pensa sobre arquivo, recorta arquivo, analisa arquivo, e este sujeito está num lugar mais ou menos estável, mas em um lugar já dado. As alterações acontecem, então, quando esse sujeito, em decorrência de um acontecimento, 116 Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 muda sua posição em relação ao arquivo e passa a observar empiricamente, a ver arquivo em lugares que antes não via e onde outros ainda não veem. Esse sujeito passa a integrar, de fato, “a partilha do sensível” (RANCIÈRE, 2005), ele toma uma posição diante do que é comumente partilhado, e o que singulariza cada parte como diferente, essa tomada de posição do sujeito, se dá também diante do que foi silenciado por uma aposentadoria ou por um desaparecimento4. Essa mudança de posição aponta para um caminho onde “la politique ne consiste pas à se demander pour qui ou pour quoi on doit mourir, mais pour qui ou pour quoi on doit vivre” (MILNER, 2011, p. 27). A questão que se coloca, neste momento, é: o sujeito que vê a potencialidade de um arquivo, sua incompletude, seu temporário silêncio, é capaz de dar a esse arquivo a possibilidade de “vida”, de anunciação, de enunciação? Para responder a esta questão trazemos Scherer (2012)5 quando ela afirma que: para pensar o arquivo, é necessário considerar a relação entre o desejo do sujeito de ter acesso a tudo e o freio institucional que determina o que pode ser lido do arquivo e o que não poderá ser. Ou seja, estamos pensando o âmbito do controle e do político na forma como os arquivos se constituem. Estamos fazendo especial referência aos f u ndos documentais e acervos de pessoas que dedicaram sua vida pessoal e profissional à pesquisa em Letras e Linguística. No caso deste artigo, estamos fazendo especial referência ao Fundo Documental Neusa Carson. 5 Palestra de Profa. Ama nda Scherer em reunião de trabalho no LAS/UFF, em 25 de janeiro de 2012. 6 Itálico do autor. 4 Não se trata de uma tarefa fácil, mas é, sem dúvida, um desafio que seduz e prende o pesquisador. Para nós, é preciso, então, pensar o acontecimento6 como esse “ponto de encontro de uma atualidade e uma memória” (PÊCHEUX, 1997, p. 17), considerando que isso pode ser viabilizado pela recuperação de arquivos pessoais e profissionais. Entendemos que é pela produção do sujeito que está “guardada” em diferentes materialidades que se possa promover a anunciação/enunciação daquilo que já foi dito em outro momento e sob condições de produção outras, levando-se em conta que “o novo se situa em outra parte, no retorno do arquivo” (GUILHAUMOU & MALDIDIER, 1994, p. 181). Dessa maneira, pensar um fundo documental a partir do trabalho de um pesquisador, que já não é presença constante e produtiva, é sair do lugar de conforto que tantas vezes é lugar seguro para quem parte de um arquivo já organizado; é investir em “maneiras inéditas de sentir” (HAROCHE, 2008) e é ousar dar voz a quem estava calado e que pela organização de um fundo documental passa a falar novamente, produzindo outros sentidos na sua própria história e na história do outro que produz conhecimento na área dos Estudos da Linguagem. Nesse caso, é preciso tomar o arquivo como “une brèche dans le tissu des jours, l’aperçu tendu d’un événement inatendu” (FARGE, 1989, p. 13), posto que o arquivo pode sempre nos surpreender, ele é pleno de documentos. Já a noção de documento, estamos tomando-a a partir do deslocamento de sentidos que propõe Foucault (1995, p. 8), quando toma o documento enquanto monumento, sendo necessário Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 117 observá-lo não apenas como “rastros isolados deixados pelo homem”, mas, sobretudo, como uma massa de elementos passíveis de serem “isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos”. Para nós, é preciso tomar cada documento que compõe um fundo documental como algo em movimento, disperso e descontínuo, trata-se de um exemplar de discurso que não pode ser observado apenas em sua organização interna, mas sim na relação que o discurso estabelece com a língua, com a história e com a exterioridade que o envolve. Assim sendo, pensar um fundo documental e/ou a constituição de um acervo a partir de um nome, de uma história de vida pessoal e profissional, não é tornar esse sujeito igual a tantos outros que têm um fundo com seu nome; é, ao contrário, dar a ele uma singularidade, é promover a emergência da diferença, da diferença constitutiva da história, da grande História7. De fato, o acontecimento é constitutivo da história, embora não seja apreendido por ela, pois “ele é apreendido na consistência de enunciados que se entrecruzam em um momento dado” (GUILHAUMOU & MALDIDIER, 1994, p. 166). Porque pensar historicamente c’est concevoir le temps politique comme un temps brisé, discontinue, rythmé de crises. C’est penser la singularité des conjonctures et des situations. C’est penser l’événement non comme miracle surgi de rien mais comme historiquement conditionné, comme articulation du nécessaire et du contingent, comme singularité politique. (BENSAÏD, 2011, p. 41) Entendemos que os arquivos são objeto de estudo da História e da Arquivologia, áreas com as quais dialogamos incessantemente, mas não trataremos de tais relações neste artigo. 7 118 Para nós, portanto, ao constituir um fundo documental, promovemos um acontecimento enunciativo, mas não vamos tratar aqui da noção de acontecimento vinculada à noção de formação discursiva, porque estamos tratando da interdiscursividade que isso engendra e não cabe a nós o trabalho de regionalização, pois o fundo documental não é regionalizável, os sentidos, dados como evidentes, estão e não estão nele, pois “o sentido sempre pode ser outro” (ORLANDI, 1996, p. 60). Pensar um fundo documental é, talvez, abrir a possibilidade de que se reconstruam caminhos já percorridos e marcados por acontecimentos discursivos em diferentes pontos da caminhada do pesquisador que dá nome ao fundo. Esse pesquisador, e aqui podemos nomear Neusa Carson, mobiliza saberes de diferentes formações discursivas em diferentes momentos de sua produção acadêmica, o que nos conduz à noção de interdiscurso proposta por Pêcheux (1995, p. 162) enquanto “‘todo complexo com dominante’ das formações discursivas (...) submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação”, aceitando, portanto, a complexidade que o processo de constituição do fundo engendra porque, aquilo que foi dito/escrito em outro momento, volta a ecoar. O arquivo, então, refunda um lugar para que o fazer e/ou o Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 “savoir faire” do pesquisador volte à enunciação pela anunciação. O sujeito volta a “falar” – a organização do arquivo em Fundo Documental anuncia esse retorno –, passa a produzir sentidos novamente no discurso de outrem, resolvendo parcialmente o problema do silêncio das caixas fechadas, da aposentadoria, da morte do corpo, do desaparecimento. Orlandi (2010, p. 59), ao tratar dos “silêncios da memória”, nos diz que “não há como não considerar o fato de que a memória é feita de esquecimentos, de silêncios. De sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silêncios e silenciamentos. Os sentidos se constroem com limites. Mas há também limites construídos com sentidos”. Com isso, a autora nos mostra que o acontecimento pode ser uma nuance8, ficando entre aquele que escapa e aquele que é absorvido (PÊCHEUX, 2010), pois “é como se não tivesse ocorrido, não porque foi absorvido, mas, ao contrário, justamente porque escapa à inscrição na memória” (ORLANDI, 2010, p 60). Para nós, seria uma inscrição na suspensão do tempo, porque os vestígios dos sentidos do acontecimento não inscritos na memória ficam em suspenso, roçando as bordas da memória, adentrando suas fronteiras, aproveitando-se de sua movência. De fato, para que haja “o retorno ao arquivo”, proposto por Guilhaumou e Maldidier (1994), é preciso aceitar o desafio de promover o gesto de organização empírica e especializada de arquivos ainda silenciosos. Esse trabalho é dos arquivistas, dos historiadores, dos analistas de discurso, já numa perspectiva de abertura de possibilidades múltiplas, desde a fundação até as análises que certamente virão. Assim, torna-se urgente a consagração da presença da “materialidade da língua na discursividade do arquivo”, considerando que Entre a materialidade da língua e da história aí se situa para Pêcheux o arquivo. Ao trabalhar com arquivos de textos, o analista de discurso já leva em consideração, portanto, antes de tudo, que tais textos são fatos de língua. E a língua na perspectiva da análise do discurso é capaz de contradições, de jogo com e sobre os sentidos, porque a língua, como sabemos, tem mecanismos de resistência, não é transparente, e não o é porque se inscreve na história. E isso faz toda a diferença! (ROMÃO; FERREIRA; DELA-SILVA, 2011, p. 13) Portanto, é preciso fazer a diferença, é preciso lutar pela constituição e manutenção de Fundos Documentais, trata-se de um ato político e, como nos diz Milner (2011, p. 10), “la politique vient incessamment combler les silences de notre société”. O que nos leva a sustentar junto com Guilhaumou que 8 Itálico da autora. l’archive n’est pas simplement l’ensemble des textes qu’une société a laissés. Matériel brut désormais exploré conjointement par l’historien classique et l’historien du discours, mais à partir duquel l’historien du discours ne privilégie pas la recherche de strutures sociales cachées, elle est alors principalement Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 119 un dispositif non réglé a priori d’énoncés qui constituent des figures, des objets et des concepts distincts. Ainsi chaque dispositif d’archive établit sa propre mise en oeuvre (2006, p. 21). Assim sendo, pensar em arquivo é estabelecer relações entre o sujeito e a memória. Pierre Nora nos ajuda a tomar o arquivo pelo o que ele designa “lugares de memória” (1993, p. 13), que “nascem e vivem do sentimento que não existe memória espontânea, que é preciso criar arquivos [...] porque essa não é uma ação natural”. Para o autor, os “lugares de memória” não existem sem o olhar vigilante da história, ao mesmo tempo em que é nos “lugares de memória” que a história se ancora porque deles se apodera, ao que acrescentamos, por um movimento que os constitui: são momentos recortados na movência da história. Esse movimento pendular memória-história resulta numa sobredeterminação recíproca, pois, como ensina Guilhaumou (1993), o dispositivo experimental precisa ser colocado em prática pela leitura de arquivos porque, antes de qualquer coisa, ele comporta uma parte descritiva, mas inclui nele também elementos reflexivos em uma dimensão interpretativa. Para nós, os “lugares de memória” pertencem a domínios que atestam sua complexidade constitutiva; simultaneamente, simples e ambíguos, naturais e artificiais, são ofertados à mais sensível experiência, emergindo da mais abstrata elaboração. Pode-se investir um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, como lugar de memória. Mas, para um lugar constituir-se como “lugar de memória”, deve existir uma “vontade de memória” que imprima a sua identidade (NORA, 1993 p. 28). Havendo essa vontade de memória, será profícua a constituição de arquivos, garantindo-se espaço para o acontecimento. Segundo Davallon (2010, p. 25), é preciso que o acontecimento registrado, descrito, representado “saia da indiferença, que ele deixe o domínio da insignificância”. O acontecimento deve guardar em si forças para poder impressionar, para poder ser lembrado, para reencontrar sua vida própria no arquivo pelo Fundo Documental, pois, assim, ao ser “memorizado”, poderá entrar na história. Enquanto “histórico”, poderá se tornar elemento vivo de uma memória. Importa destacar que entendemos a memória “nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador” (PÊCHEUX, 2010, p. 50), o que certamente é da constituição de um fundo documental, tal como estamos trabalhando. A especificidade de nosso objeto de estudo nos conduz a aceitar que a memória não é e nem poderia ser uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos 120 Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramento, réplicas, polêmicas e contra-discursos. (PÊCHEUX, 2010, p. 56). Entendemos que considerar os acontecimentos na história nos leva a refletir necessariamente sobre o jogo entre a memória e a atualidade. Devemos considerar tanto os acontecimentos que sustentam a estabilidade dos sentidos, os acontecimentos que abalam esses sentidos e aqueles restos de sentido suspensos à deriva, advindos de acontecimentos ainda no domínio da insignificância. O Fundo Documental Neusa Carson e sua constituição O Fundo Documental Neusa Carson contém, em identificação inicial, 454 documentos. 9 Em 20 de agosto de 2011 foi inaugurada uma política de trabalho para a institucionalização do Fundo Documental Neusa Carson no âmbito da Universidade Federal de Santa Maria, tendo por local o Laboratório Corpus – Laboratório de Fontes de Estudo da Linguagem, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM. No ano de 2012 foi registrado o projeto do Fundo Documental Neusa Carson, sob o número 031241 no Gabinete de Projetos do CAL/UFSM, e uma série de ações foram desenvolvidas e outras projetadas, tais como o início e quase conclusão dos trabalhos de Arranjo e Descrição do conjunto de documentos do FDNC, um número da Coleção Fragmentum que será dedicado ao tema (n. 34, Abr.-Jun. de 2013) e uma exposição científico-acadêmica que está agendada para o mês de outubro de 2013. Com o recebimento das três doações iniciais: Neusa Carson, Maria Luiza Ritzel Remédios e de Aldema Menine Mckinney e com a criação do Acervo Michael Phillips, o Laboratório Corpus, através de seus integrantes, elaborou uma política de fundos documentais que servirá de base para a criação de um Centro de Documentação e Memória, que terá sob sua responsabilidade a guarda desses fundos e de fundos vindouros. Até o momento, foram elaborados pela equipe arquivística (Pólo Arquivologia) três bases de documentos. São eles: a Listagem dos documentos do Fundo Documental Neusa Carson, A Descrição do Fundo Documental Neusa Carson e O Arquivo do Laboratório Corpus9. A Descrição do Fundo Documental Neusa Carson apresenta, em linhas gerais, a área de identificação, a área de contextualização, a área de conteúdo e estrutura, a área de fontes relacionadas, a área de notas, a área de controle da descrição e a área de pontos de acesso e indexação de assuntos. O Arquivo do Laboratório Corpus, sob a forma de arranjo, contempla as seguintes séries (gerais), a saber, Série 1: Identificação Pessoal e Exercício de Cidadania; Série 2: Controle de bens e patrimônios; Série 3: Atividades Profissionais; Série 4: Atividades de Pesquisa, Ensino e Extensão; Série 5: Formação Profissional e Acadêmica; Série 6: Participação em Clubes e Associações; Série 7: Prevenção de Doenças e Tratamento de Saúde; Série 8: Produção literária; Série 9: Publicações na imprensa; Série 10: Aperfeiçoamento e Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 121 Participação em Cursos e Eventos; Série 11: Controle Financeiro; Série 12: Relações Sociais; Série 13: Falecimento e Homenagens Póstumas; série 14: Documentação tridimensional. Propomo-nos “flanar” sobre algumas questões pertinentes ao movimento que ora nos engajamos. Nesse sentido, olhamos para o procedimento de Arranjo e Descrição, em arquivística, que considera o “ciclo vital” dos arquivos e que são classificados em “corrente, intermediário e permanente” (ROUSSEAU & COUTURE, 1998). No nosso entender, no uso quotidiano isso é dito de outro modo, quando essas três categorias são transformadas em duas, o que está em uso e o que se deve guardar por qualquer razão e tempo que seja. Diz-se “arquivo vivo” e “arquivo morto”. Sendo que o arquivo morto é o que fica vivo, é o que é “permanece” nos arquivos para a história. E é nesse arquivo, permanente, que trabalhamos. Sabemos, também, que toda instituição possui um arquivo vivo e um arquivo morto. Considerando a possibilidade de alguém querer realizar um levantamento sobre Neusa Carson, até o momento, qual o lugar possível para se encontrar alguns dados e fatos? Pensamos de pronto na internet, via site de buscas e, em outro lugar, na UFSM, seu local de trabalho. Mais especificamente no arquivo morto da UFSM, pois é lá que se encontra sua ficha funcional. Então é lá que encontraremos Neusa (viva). No arquivo morto. Ou no arquivo vivo. Vivo para a história porque, segundo Nunes (2008, p. 90), a “memória institucionalizada tem uma história e é sustentada por certas condições, que quando deixam de vigorar, abalam a estabilidade do arquivo”. Nosso interesse é adentrar, ainda que rapidamente, neste arquivo morto/vivo que pode nos dar um pouco do que foi o trabalho de Neusa Carson e pode nos dar a dimensão de sua importância para a constituição da história disciplinar. E m t o r n o d e 70 documentos do F DNC s ã o e s c r i t o s em lí ng ua i nglesa. São correspondências com pesqu isadores de Un iversidades a me r ic a n a s (g ra nde maioria) e europeias, t e x t o s, m a t e r i a l d e eventos, comprovantes, vistos, correspondências administrativas com as universidades onde fez mestrado, doutorado e pós-doutorado, cartas para colegas e amigos, etc. Para trabalhar com esses documentos foi cr iada u ma equipe de nom i n ada Pólo Inglês, coordenado pela profa. Daniela do Canto. 10 122 Cartografia como vestígio do eu a partir de um lugar do pesquisador O Fundo Documental Neusa Carson é composto de extensa correspondência com importantes universidades e pesquisadores brasileiros e estrangeiros10, ofícios e memorandos internos – correspondência oficial da UFSM, correspondência com órgãos de fomento, assim como solicitações de auxílio-pesquisa, revistas com artigos publicados, tese de doutorado, certificados de participação em eventos, programas de eventos e de viagens de pesquisa, diploma de doutorado, relatórios (CAPES, CNPq, FUNAI, etc.), fotos, manuscritos, datiloscritos e recortes de jornais variados sobre Neusa. Para este artigo, escolhemos dois trajetos temáticos, nos inspirando em Guilhaumou (2006), para mostrar um pouco do que estamos tratando. O primeiro, diz respeito à cartografia que Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 encontramos a partir dos vários slides preparados para apresentações de conferência e participação em congresso da área e que serviram de base para alguns dos artigos publicados pela linguista. Estamos chamando esse primeiro trajeto temático de Cartografia da língua e de si. São as figura1 e figura 2 (Mapa 1a e Mapa 1b). Fig. 1 – Mapa 1a11 Fig. 2 – Mapa 1b12 Fundo Documental Neusa Carson, Série 4 - Atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão, Dossiê Pós- Doutorado. Caixa 1, Envelope 74-76. 12 Idem. 11 Na figura 1 temos a localização geográfica da comunidade Macuxi (objeto de estudo de Neusa) delineada pelo quadrado tracejado. Já na figura 2, temos o mesmo quadrado tracejado em destaque e a localização geográfica deste espaço em relação ao Brasil e aos demais países do norte da América do Sul. Já na figura 3, mapa 2, que virá logo a seguir, temos a distribuição das comunidades no espaço e a marcação de quais foram visitadas pela pesquisadora. São elas: Napoleão, Raposa, Vista Alegre e Boa Vista. Todas elas no contexto brasileiro. Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 123 Fig. 3 – Mapa 213 Idem. 13 124 Se tomarmos a cartografia apresentada, veremos que sua extensão territorial não é tão somente física brasileira, mas que a língua dos Macuxi se constitui por uma expansão que ultrapassa as fronteiras meramente territoriais. O que veremos é que o regional ora é nacional e ora ultrapassa as fronteiras brasileiras para regionalizar-se, novamente, do ponto de vista do que designamos, hoje, como América do Sul em relação ao todo no conjunto das Américas. E o desenho dos pontos cardeais vai se reconfigurando também. A linguista do Rio Grande do Sul estudando línguas indígenas de Roraima e que, por sua vez, fazem parte da nação brasileira, nação essa fazendo parte da América do Sul na América do Norte. Para regionalizar-se, outra vez, pela presença da pesquisadora nos Estados Unidos. Um percurso território físico imaginário. Santa Maria. Porto Alegre. Rio de Janeiro. Brasília. Manaus. Napoleão. Raposa. Vista Alegre. Boa Vista. Lawrence. Ohio. Rio de Janeiro. Porto Alegre. Santa Maria. Do particular ao global, do individual ao efeito de totalidade, naquela velha Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 problemática para os estudiosos da língua, da língua de dentro e daquela de fora. Da especialista de línguas indígenas, que apresenta no mapa o território da língua Macuxi/indígena/brasileira/ americana numa língua outra, a língua inglesa, que também era sua língua, sua língua de pertença, movendo-se do Brasil para o Brazil, pertencendo lá e cá. É estar numa língua que está dentro e que é de fora, passando a ser de dentro, também pela dupla cidadania da linguista14. O que vemos é a necessidade da cartografia também para falar de si, da sua língua, da língua do outro e do outro ainda para se transformar na língua de todos nós. Aos poucos, vamos entendendo o modo de funcionamento do político, na política de divulgação e de produção do saber sobre a língua(gem). Na verdade, o que vai sendo colocado em cena são as representações da ciência linguística pelo sujeito envolvido nessa história e a mesma cena será, ao nosso ver, a mediadora na/ para uma formação imaginária na história da pesquisa em Letras e Linguística no contexto brasileiro americano. Já para a figura 4, documento datiloscrito e intitulado como Proposta de pesquisa – descrição sumária (em inglês), vários sãos os possíveis pontos de ancoragem, várias entradas possíveis. Nosso gesto de leitura vai se dar no recorte, a partir das figuras anteriores e que estamos chamando de segundo trajeto temático: Política de línguas e o lugar do linguista. Vejamos o recorte: Fig. 4 – datiloscrito: Proposta de pesquisa – descrição sumária (em inglês)15 e Fig. 5 – anotação de borda de página A professora Neusa Carson era casada com o Prof. William B. Carson. Seu sobrenome de solteira era Martins. 15 Fundo Documental Neusa Carson, Série 4 - Atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão, Dossiê Pós-Doutorado. Caixa 3, Envelope 428. 14 Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 125 Transcrição: SIL = 1956 Problem: Limited knowledge of what is done by missionaries in Brazil Solution: Require them to file their findings and data. Tradução16: SIL = 1956 Problema: Conhecimento limitado sobre o que é feito pelos missionários no Brasil. Solução: Exigir-lhes que apresentem seus resultados e dados. Todos nós sabemos do lugar político ocupado pelo SIL (Summer Institute of Linguistic) na política da pesquisa brasileira na descrição de línguas indígenas. Não vamos, aqui, entrar nessa problemática. O que queremos trazer para discussão é o lugar que a linguista ocupa e a partir do qual começa a refletir para encontrar o seu lugar na prática da política17 do monopólio da política do SIL, pela prática científica. Prática que, na sua constituição, se voltarmos às figuras anteriormente apresentadas, se mostra particular na esfera do nacional regionalizado pelo que somos enquanto americanos no mundo. Dessa forma, vemos que a análise desses documentos/arquivos tem sua especificidade, internamente, sua ordem discursiva se apoia sobre um escopo institucional, mas ao mesmo tempo particular. Essa ordem é reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas de dizer e é possível, pela formulação e constituição desse dizer, entender o dizer da disciplina em questão. Mas é possível, também, entender o lugar da Linguística pela maneira como o saber é formulado. Porque “l’archive n’est donc pas une simple matériau où l’on puisse de référents, elle participe d’un geste de lecture où s’actualisent des configurations signifiantes, des dispositifs significatifs” (GUILHAUMOU, 1993, p. 06). Para nós, esses documentos formam momentos precisos/ preciosos e podemos considerá-los como um acontecimento, na medida em que sua enunciação se inscreve em modos de pertencimento e de relações singulares a cada um e em formulações que excluem outras e traçam caminhos particulares. Esses documentos, postos em uma história disciplinar, formam um lugar preciso/precioso: o lugar da Neusa Carson na história de nossa área particularizando algo de local em nacional, pois como nos ensina Rancière (1994, p. 71), na sua obra Os Nomes da História, são “Esses seres que engajam sobre palavras um destino coletivo” e dessa forma podemos propor questões à relação que a história disciplinar mantém com as palavras desses homens. Para concluir Tradução nossa. No sentido dado por Rancière em Aux bords du politique (1998). 16 17 126 Nossa experiência, ao trabalhar com a História das Ideias Linguísticas no Sul, indicou a urgência de uma retomada estratégica da noção de arquivo e da observação de como ela funciona no âmbito institucional. Ao iniciarmos esta pesquisa nos deparamos com a ausência de um “lugar de memória” que desse conta da produção acadêmica de professores/pesquisadores que tiveram Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 Agradecemos, aqui, ao trabalho importante e competente da Profa. Rosani Beatriz Pivetta da Silva, do Curso de Arquivologia de nossa universidade, que faz parte de nossa equipe de pesquisadores e tem contribuído significativamente com o grupo. A referida professora é especialista na área de Arranjo e Descrição. 18 papel fundamental na fundação da Linguística no Brasil, como é o caso de Neusa Carson. Tudo o que a instituição “guarda” é a sua ficha funcional, somada, às vezes, às lembranças já fragmentadas de colegas e de ex-alunos. Tal realidade tornou urgente a necessidade de se pensar em uma política de fundo documental que possa, de fato, dar conta de uma memória partilhada, ratificada pela oficialidade da história que os documentos promovem. Assim, a criação e a manutenção de fundos documentais vêm funcionar como espaço que reúne séries de documentos de/sobre um pesquisador, mas vêm funcionar, principalmente, como espaço profícuo de acesso a informações antes silenciadas, em suspenso, diríamos nós, promovendo pesquisas mais substanciadas e garantindo a voz daqueles que já não estão mais aqui, mas que tiveram e ainda têm muito a nos dizer. O que queremos afirmar é que o arquivo, constitutivo do fundo documental, deve ser tomado como acontecimento, a cada momento em que ele retorna, se enuncia, sem esquecer, no entanto, que ele está organizado e descrito por especialistas em arquivo18, e eles lhe dão uma ordem própria, reconhecida por estudiosos de todas as áreas. A nosso ver, esta descrição, embora siga preceitos arquivísticos, é sempre outra, posto que “a materialidade do arquivo impõe sua própria lei à descrição” (GUILHAUMOU & MALDIDIER, 1994, p. 174). Sendo assim, o que dá ao arquivo o estatuto de acontecimento é o “gesto de interpretação” do analista de discurso, posto que é a partir desse gesto que se recupera uma parte do processo de constituição do arquivo, do fundo documental em questão, por exemplo. Tomar essa posição em relação ao arquivo constitutivo do fundo documental é, também, explicitar relações entre a língua e o arquivo, a história e o arquivo, a instituição e o arquivo, as partes do arquivo com ele mesmo, o discurso e o arquivo. Por outro lado, o gesto de interpretação do analista leva em conta a história como constitutiva dos sentidos na constituição do arquivo, mas não dá privilégios à história cronológica, toma antes como aliada à memória, visto que a memória é, por sua própria natureza, lacunar e saturada, e por isso permite uma leitura não-linear sem prejuízo às análises propostas. Acreditamos, de um lado, estar contribuindo para a produção do conhecimento em um domínio de saber que está afetado, também, pela elaboração de instrumentos linguísticos que, por sua vez, vão nos constituindo enquanto sujeitos do conhecimento no emaranhado das relações de fronteira, quer sejam elas de estado ou de países vizinhos no MERCOSUL. Sempre lembrando que vivemos em um espaço de enunciação e de discurso muito marcado pela língua e pela história. Institucionalmente, por outro lado, estamos cada vez mais imbuídos em um trabalho de equipe e de formação de novos Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 127 pesquisadores com a tarefa, também, de implementarmos uma cultura de pesquisa que ultrapasse a barreira entre os diferentes graus de ensino determinados pelas políticas universitárias por entendermos que o sujeito está sempre instado a interpretar e não depende unicamente de seu estágio de titulação mas, e sobretudo, pelo seu interesse em pesquisa. São tentativas que nos ajudam a refletir sobre a importância da história disciplinar moderna e a constituição da língua enquanto objeto de saber. São tentativas, na sua origem e feitura, ainda embrionárias, mas promissoras do ponto de vista do avanço teórico e analítico para a história brasileira na História das Ideias Linguísticas. E, em nossa política de arquivo, nossa meta, também, é dar lugar a essa palavra coletiva na criação de um Centro de Documentação e Memória onde estaremos reunindo bibliotecas pessoais, acervos, documentos pessoais de pesquisadores, rascunho de curso e manuscritos de produção de conhecimento. Ou seja, aqueles momentos, fragmentos de um real materializado que não têm nenhuma outra unidade além do nome que lhe damos: Neusa Carson, Aldema Menine Mckinney, Maria Luiza Ritzel Remédios. E, com a chegada de tais documentos, estamos partilhando com aqueles que o recebem, o veem, ouvem falar deles, o anunciam e depois o “guardam” na memória. Um Centro de Documentação e Memória para que um pedaço do tempo e da memória, posto em pedaços pelo institucional, possa ser partilhado e a partir daí ter sua forma de sobreviver, de ser transmitida, oferecida e depois falada e projetada no tempo do devir fazendo parte da materialidade real da história, dando materialidade futura a algo que teve sua importância pessoal e que pela partilha do sensível (RANCIÈRE, 2005), como temos afirmado, será coletiva. Pois ao guardar o que foi de outrem, estaremos guardando, também, um pouco da história que ajudou a constituir o que somos hoje. Abstract This article aims to present the result of research performed by members of the Laboratório de Fontes de Estudo da Linguagem – Corpus/ PPGL/UFSM, having as object the file policy for Documentary Funds. The experience reported in this article is the creation of the Neusa Carson Documentary Fund. Carson was an important linguist for the disciplinary constitution of language studies in the Brazilian context. The main concepts used are file, memory, event in relation to Discourse Analysis and History of Linguistic Ideas. Keywords: file; memory; event; policy; documentary fund. 128 Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013 REFERÊNCIAS BENSAID, D. Le spectacle, stade ultime du fétichisme de la marchandise. Paris: Lignes, 2011. CHEVALIER, J. C. ; ENCREVE, P. Présentation. Langue Française, n. 63. Paris: Larrousse, 1984, p. 3-6. DAVALLON, J. A Imagem, uma Arte da memória. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. 3. ed. Campinas: Pontes, 2010. p. 23-32 FARGE, A. Le gôut de l’archive. Paris: Éditions de Seuil, 1989. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. GUILHAUMOU, J. A propos de l’analyse de discours. Les historiens et le tournant linguistique. 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Gragoatá Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 Palavras-Chave: Pré-construído; Discurso-transverso; Metáfora; Ideologia; Memória. Considerações iniciais Conforme Pêcheux, “aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição de um programa, etc.)” (1995, p.160). 1 132 Enunciados considerados tautológicos são talvez um dos trunfos de que se pode valer um analista de discurso para defender algo que, em sua seara, tem ares de obviedade: o sentido não está no texto. É fácil já aqui conjecturarmos situações em que enunciados como “brasileiro é brasileiro”, “negro é negro” ou “mulher é mulher”, para além do efeito de circularidade, produzam ou um sentido X ou mesmo seu antípoda. Tomemos o último enunciado para ilustrarmos o que queremos dizer a partir da seguinte narrativa: certa feita, um professor foi surpreendido pela resolução de uma aluna de não mais fazer o trabalho da disciplina com a melhor amiga (decisão rara na trajetória de ambas no ensino médio). A justificativa foi um inefável: “ah, professor, mulher é mulher”. Sem maior azo para solicitar uma glosa, a interpretação desse enunciado estacionou em duas possibilidades relativas à tomada da palavra “mulher”: (i) a retomada de um estereótipo: “volúvel”, “instável”, “não confiável”; e (ii) a retomada de uma contraposição a esse estereótipo: ser “de fibra”, “obstinada” por defender suas ideias, “perseverante” (o que poderia ser pouco apropriado, visto que elas discordavam e muito sobre o tema do trabalho). De acordo com Orlandi (1999), os sentidos têm um funcionamento ideológico e metafórico. O primeiro dá conta de uma naturalização desse sentido, da produção de sua evidência. É por estar sob o domínio de uma formação discursiva1 que o sentido se nos apresenta de uma determinada forma. Em uma FD machista, por exemplo, “mulher é mulher” produz, sob a condição de “aquilo que todo mundo pode ver”, sentidos de “futilidade”, “consumismo” ou “inferioridade”. Tanto isso se nos torna evidente que, nessa formação, um conectivo mas uniria “Ela queria muito economizar” e “mulher é mulher”. Já em uma FD feminista, ou ao menos não machista, uma possível montagem discursiva abdicaria do mas por um porque, produzindo um sentido próximo de a mulher querer economizar porque “as mulheres são precavidas”, “se preocupam com os filhos”, “pensam no futuro” etc. Paralelamente ao fato de que o sentido não pode ser qualquer um, temos que ele sempre pode ser outro. Esse movimento é próprio do sentido. Trata-se aqui do segundo funcionamento: o metafórico. Se isso provoca sempre a possibilidade da emergência de um outro sentido (produzido por um novo gesto de interpretação), por outro lado implica a necessidade de o sujeito (tentar) administrar a posição de leitura do outro sujeito. O que comumente é feito com algum sucesso: basta observarmos que o sentido tende a reproduzir-se, que há uma forte impressão de Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 literalidade da palavra e, se quisermos exemplos mais pungentes, que os estereótipos têm grande eficácia material. O funcionamento metafórico, embora permita o atravessamento do inconsciente (ou dele seja efeito), é sempre afetado pelo ideológico. Uma construção como “O Brasil precisa cuidar melhor de suas mulheres”, estando alijada sua leitura das condições de produção, apresenta-se-nos inescrutável: fala-se do Brasil-Estado, da sociedade ou dos homens brasileiros? “Cuidar” foi atualizado em que sentido: observar, vigiar ou tratar com carinho? “Mulheres” seriam as esposas, seriam todas as mulheres, seriam também as crianças do sexo feminino... Afinal, trata-se aqui de um conceito biológico ou de gênero? Somente a partir de um lugar discursivo, essa frase produz a evidência de seu sentido: um alerta, uma ameaça às mulheres ou uma reivindicação feita por elas mesmas. Somente situada no interior de uma dada relação de forças, a asserção significa solicitação ou de uma ainda maior tirania ou de uma menor dessimetria entre os gêneros. Enunciados tautológicos, ao menos os que realizam a fórmula “X é X”, parecem-nos exemplificar muito bem a inter-relação entre esses dois funcionamentos. Além de reiterarmos que um enunciado como “mulher é mulher” só fala o que é afinal a mulher – ou como se a lê –, quando reportado a uma formação discursiva, arriscamos ainda uma hipótese: é na realização da fórmula “X é X” que os dois tipos de funcionamento dos sentidos encontram sua eficácia máxima. O ideológico, por convocar o exterior justamente no paradoxo do não funcionamento/funcionamento de uma identificação objetiva. O metafórico, por simular a suspensão de seu próprio funcionamento em uma espécie de curto-circuito significante. Para tanto, recorremos à noção de interdiscurso e às modalidades de sua intervenção no intradiscurso. 1. Uma proposta teórica a partir das modalidades de funcionamento do interdiscurso Afirmamos, na introdução deste estudo, que o sentido é dependente da formação discursiva em que se constitui, o que equivale a dizer que não lhe pode ser pré-existente. Esse sentido não é nem insensível à materialidade nem incomunicável com o exterior da FD, visto que essa responde ao “todo complexo com dominante”, intrincado no complexo das formações ideológicas, embora simule a evidência do sentido na dissimulação dessa dependência. É o que podemos depreender deste excerto: ... propomos chamar interdiscurso a esse “todo complexo com dominante” das formações discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação que, como dissemos, caracteriza o complexo das formações ideológicas. Diremos, nessas condições, que o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência de sentido que nela se forma, a objetividade material Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 133 contraditória do interdiscurso que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material que reside no fato de que “algo fala” (ça parle) sempre “antes em outro lugar e independentemente”, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas. (PÊCHEUX, 1995, p. 162, grifo do autor) O interdiscurso é, por assim dizer, o “exterior específico de uma FD” (PÊCHEUX, 1997, p. 314) e deve ser visto como ... un processus de reconfiguration incessante dans lequel une FD est conduite, en fonction des positions idéologiques que cette FD represente dans une conjoncture déterminée, à incorporer des éléments préconstruits produits à l’extérieur d’elle-même, à en produire la redéfinition ou le retournement à susciter également le rappel de ses propres éléments, à en organiser la répétition mais aussi à en provoquer éventuellement l’effacement, l’oubli ou même la dénégation. (COURTINE; MARANDIN, 1981, p. 24) Sendo a exterioridade constituinte do discurso, o interdiscurso tem no intradiscurso seu “simulacro material” (FERREIRA, 2001). Para Pêcheux (1995), “o intradiscurso, enquanto ‘fio do discurso’ do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma ‘interioridade’ inteiramente determinada como tal ‘do exterior’” (p. 167); “o funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois) [...] o conjunto dos fenômenos de ‘co-referência’” (p. 166). Para “ancorar-se”2, o interdiscurso intervém a partir de dois tipos de funcionamento: o pré-construído e a articulação de enunciados. O pré-construído é apresentado, em uma “primeira aproximação” na obra Semântica e Discurso, em meio ao debate com a posição fregeana (para a qual deveria haver coincidência entre o objeto de pensamento e o objeto real). A partir da frase “aquele que salvou o mundo morrendo na cruz nunca existiu”, Pêcheux demonstra que o discurso ateísta funciona pela negação, no todo da proposição, daquilo que necessariamente fora admitido na subordinada. A imperfeição que Frege atribuía às línguas naturais é revista por Pêcheux como “separação, distância ou discrepância [...] entre o que é pensado antes, em outro lugar ou independentemente, e o que está contido na afirmação global da frase” (p. 99). A necessidade de dar conta desse funcionamento linguístico do interdiscurso levou P. Henry a propor o termo “pré-construído” para designar o que remete a uma construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é “construído” pelo enunciado. Trata-se, em suma, do efeito discursivo ligado ao encaixe sintático (PÊCHEUX, 1995, p.99, grifo do autor). Te r mo tom ado n a acepção de Maldidier (2003). 2 134 O pré-construído consiste, assim, na “separação fundamental entre o pensamento e o objeto de pensamento, com a pré-existência desse último, marcada [por] uma discrepância entre dois domínios Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 de pensamento” (p.102). Um desses dois seria o “impensado do pensamento” e remeteria simultaneamente “àquilo que todo mundo sabe”, isto é, aos conteúdos de pensamento do “sujeito universal” suporte da identificação e àquilo que todo mundo, em uma “situação” dada, pode ser e entender, sob a forma das evidências do “contexto situacional” (p. 171, grifo do autor). Nesse mesmo sentido, para Courtine, um elemento do interdiscurso nominaliza-se e inscreve-se no intradiscurso sob forma de pré-construído, isto é, como se esse elemento já se encontrasse ali. O pré-construído remete assim às evidências pelas quais o sujeito se vê atribuir os objetos de seu discurso: “o que cada um sabe” e simultaneamente “o que cada um pode ver” em uma dada situação. (2009, p.74, grifo do autor) Ao ser “naturalizado” pela FD, isto é, tendo produzida sua evidência, o pré-construído justamente funciona pela elisão desse “impensado do pensamento”: a discrepância entre o recorte de sentido que é dado na formação discursiva e a heterogeneidade ou contradição a que essa posição de interpretação remete e responde. A tomada de posição só pode dar-se a partir de um espaço dividido, ainda que possa constituir por si mesma um novo nicho. O segundo modo de funcionamento alude à articulação de enunciados. Para Pêcheux (1995), enquanto o pré-construído fornece-impõe o “mundo das coisas” (p.164), a articulação “constitui o sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito” (p. 164). Essa articulação, por estar identificada a uma FD, rege o processo discursivo sob, por exemplo, a possibilidade de substituição: tanto como equivalência (meta-relação de identidade) quanto como implicação, em cuja substituição orientada o filósofo não vê uma relação de identidade, mas sim de encadeamento (conexão). À sequência produzida nessas condições, ele chama “discurso-transverso” (p. 165). Aludindo a uma “especificidade diferencial dos dois tipos de elementos do interdiscurso (‘pré-construídos’ e ‘articulações’)” (p. 163, grifo nosso), Pêcheux, poucas páginas a seguir (p. 171) em Semântica e Discurso, aclara as diferenças entre ambos. Enquanto o pré-construído é “aquilo que todo mundo sabe” (conteúdo de um sujeito universal, suporte da identificação, e o que todos veem como evidente em um “contexto situacional”), a articulação pelo funcionamento do discurso-transverso corresponde a “como todo mundo sabe” (retorno do Universal no sujeito), “como dissemos” (evocação intradiscursiva) ou até mesmo o “como todo mundo pode ver” (universalidade implícita do humano). Não obstante, há uma inter-relação entre ambos, conforme podemos ver no excerto a seguir: Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 135 ... o interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui como ‘sujeito falante’, com a formação discursiva que o assujeita. (1995, p. 167, grifo do autor) Dentre as várias questões que no quadro teórico da Análise de Discurso ainda se encontram em aberto (senão todas; afinal, como disse Pêcheux, “não há questões vencidas”), podemos citar três mais atinentes ao que estamos aqui revisando: a interpretação de interdiscurso como pré-construído (Pêcheux parece-nos explícito acerca dessa diferença); a interpretação de interdiscurso como sinônimo de memória discursiva (ao que, pelos excertos por nós escolhidos, é já facilmente dedutível termos posição diversa); e a variação na interpretação de qual o sentido da discrepância entre o pré-construído e o construído no enunciado. É o que brevemente discutiremos no tópico a seguir. No que tange à primeira questão, optaremos por simplesmente evocar a “especificidade diferencial” referida por Pêcheux acerca dos dois tipos de funcionamento do interdiscurso. Quanto à segunda, recorremos a Courtine (1981), que introduziu a noção de “memória discursiva” em Análise de Discurso. Para ele, a “noção de memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas por aparelhos ideológicos”. Courtine, que corrobora a concepção pecheuxtiana de interdiscurso, ainda fala da “existência de uma FD como ‘memória discursiva’ “ (2009, p. 105-106). Na esteira dessa reflexão, aqui consideraremos memória como um domínio tanto de uma FD quanto do interdiscurso. Assim, temos que tanto o já-dito (pré-assertado, pressuposto) de uma FD quanto o pré-construído são diferentes formas de o sujeito enunciador lidar com a memória: tanto a que se encontra em sua formação discursiva quanto a que se encontra alhures. A memória funcionaria como aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem reestabelecer os implícitos (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição legível em relação ao próprio legível (PÊCHEUX, 1999, p.52). Se o interdiscurso é, por assim dizer, um domínio do discurso, consideraremos a memória como um domínio tanto do interdiscurso quanto da FD, pois em um e em outra é ela que vai estabelecer a relação de ambos com uma anterioridade. O caráter de categoria analítica, dada a ela por Courtine, parece-nos preservado, pois – em vista de que um recorte temporal é um “corte ideológico” (LE GOFF, 2003, p. 208) – somente na análise é que as categorias de anterioridade e presente se podem produzir. 136 Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 Já no tocante à terceira questão, pretendemos ser menos parcimoniosos ao expor sobre ela. Para tanto, comecemos com a seguinte afirmação: a expressão ou as expressões que introduzem o objeto de referência restringem sua interpretação. O ponto importante é que a restrição depende de um plano de organização da língua, isto é, de uma articulação regrada forma-sentido. Percebe-se bem a noção de pré-construído quando se a contrasta com aquela do já-dito (e toda modalidade do dito fora da asserção: pré-assertado ou pressuposto): o pré-construído qualifica a forma da expressão na medida em que ela limita a interpretação, enquanto o já-dito depende do conteúdo (proposicional ou nocional). (MARANDIN, 1994, p.131). Aqui pensamos ter não apenas a reiteração da diferença entre pré-construído e já-dito, mas também a condição indefectível sob a qual uma FD toma para si elementos do interdiscurso: a partir de uma restrição de interpretação. Isso posto, fazemos uma relação com a citada “objetividade material contraditória do interdiscurso”. Por ser o interdiscurso um espaço intersticial, em que uma FD dominante é determinada pelas demais, os objetos dos quais ela se apropria como pré-construídos são objetos ou elementos com significação maior do que ela pode suportar. Esses objetos, malgrado remetam a um todo significativo – o conjunto de possibilidades de significação que pertence ao interdiscurso –, precisam ser recortados a fim de ingressar no campo do dizível para uma dada FD. Encontramos corroboração para esse raciocínio em Pêcheux (1997a): “os objetos ideológicos são sempre fornecidos juntamente com seu ‘modo de usar’, seu ‘sentido’, isto é, sua ‘orientação’” (p. 145). Esse “modo de usar” restringe, ou melhor: regula a ancoragem do pré-construído, ainda que nele não possam não reverberar lugares outros de dizer, cujos indícios dão conta desse “impensado do pensamento”, ao qual se referia o autor. No entanto, tais indícios são dissimulados, em virtude de a FD produzir e coligir evidências de sentido. Marandin disseca a eficácia desse funcionamento nos seguintes termos, explicando que o pré-construído se instaura “quando o diferencial interpretativo recorta uma diferença em uma construção ideológica. A eficácia é então máxima, pois a diferença se apresenta nas formas tais como a língua força a interpretá-las” (1994, p.131). Collinot e Mazière corroboram tal posicionamento, ao afirmarem: Ora, se o pré-construído é esse “ponto em que se pega o interdiscurso”, reinscrição sempre dissimulada, no intradiscurso, dos elementos do interdiscurso” (Denise Maldidier, 1990), é sua natureza mesmo a que o faz mestre-organizador da constituição do corpus, lugar onde se tece “por baixo do pano” o fio do discurso, construção de base que, sozinha, torna possível Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 137 o trajeto temático e o evento semântico. (COLLINOT; MAZIÉRE,1994, p. 189-190, grifo do autor) Nesse sentido, parece-nos que o pré-construído é um constructo teórico com dupla face: tanto remete para o interdiscurso (em cuja objetividade material contraditória, ele indicia a disputa de forças entre diferentes FDs) quanto é apropriado e ressignificado por uma dada forma-sujeito na linearização do discurso. O “impensado do pensamento” que acompanha o efeito de pré-construído é dessarte administrado pela dissimulação desse processo, bem como pelo discurso-transverso em que ele é interpretado. Parece-nos que o pré-construído opera no domínio de duas memórias: a do interdiscurso, cuja parte considerável ele (de)nega; e a da FD, que ele atualiza. Em ambas, no entanto, ao constituir o discurso, ele agita a rede de sentidos, produzindo efeitos. Em virtude de uma FD depender do seu exterior para produzir sentido, não nos parece ser a melhor opção conjecturar haver frases em que não haja efeito de pré-construído, sob pena de termos de admitir duas consequências teóricas: (i) limitarmos, nesse caso, a ancoragem do interdiscurso ao discurso-transverso, o que equivale a dizer que o interdiscurso não forneceria sempre os objetos ou elementos para a FD: em algumas vezes, limitar-se-ia a linearizá-los por relações de implicação, temporalidade, etc. (ii) tomarmos como possível que uma FD tenha posse completa de seus objetos, o que equivale a afirmar que esses não responderiam a um exterior. Aceitas tais consequências, temos outras ainda mais sérias: a (i) forçar-nos-ia a admitir a não regularidade do funcionamento interdiscursivo: ele seria intermitente na sua relação com a FD (se pensarmos que a teoria da AD prevê uma série de regularidades – funcionamento metafórico e ideológico, deslizamento etc. –, admitiremos uma região imprevistamente insular). A (ii), por sua vez, ao velar os objetos de uma FD ao seu exterior, suporia a claudicação do princípio da heterogeneidade/divisão/contradição. O que estamos tendendo a crer aqui é, primeiro, que o pré-construído não só é um constructo teórico que dá conta da dupla face do sentido (inspirados em Pêcheux, 1999, diríamos ser ele um “frasco sem exterior”), mas também que evidencia teoricamente os funcionamentos metafórico e ideológico do sentido e a administração de uma dada interpretação. É a administração de sua leitura que evidencia a possibilidade de ele ser sempre outro, mas não qualquer um, aportando sob o signo da evidência em uma FD. Segundo, tendemos a crer que o pré-construído é indefectível em sua presença no discurso. Tanto maior sua eficácia quanto mais em zona de invisibilidade ele estiver. Não causando o efeito de estranhamento (ERNST-PEREIRA, 2009), ele encontra-se não 138 Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 só dissimulado ao sujeito, mas também obliterado ao analista. Relembrando o célebre exemplo pêcheuxtiano – Aquele que salvou o mundo morrendo na cruz nunca existiu –, em que a discrepância é bastante evidente, consideremos duas alterações hipotéticas que produzam respectivamente: (a)Jesus nunca existiu. (b)Aquele que salvou o mundo morrendo na cruz é um exemplo para todos nós. Se creditarmos o efeito de pré-construído meramente ao ardil do discurso hegemônico de exigir a assunção da existência de Cristo como condição sine qua non para vir a negá-lo – jogo retórico tão requintadamente desmontado na reflexão pecheuxtiana –, a singela substituição por “Jesus” desmonta o construto. Isso porque em (a) não há, entre os sentidos de “Jesus” e “existir”, o paradoxo da montagem original (pista do atravessamento do discurso outro). Nesse sentido, parece-nos que, embora o exemplo escolhido por Pêcheux apresente uma flagrante discrepância, não seja ela em si o pré-construído, senão rastro de sua emergência. Já em (b), o problema teórico é outro, razão pela qual partiremos do que já foi discutido no parágrafo anterior. O elemento de saber referido por “aquele que salvou o mundo morrendo na cruz” não é um objeto construído no enunciado; conclusão aliás incontornável caso admitíssemos a possibilidade de não haver pré-construído. No entanto, a referência discursiva “Jesus” remete a um interdiscurso no qual o discurso cristão se encontra em uma relação de forças com sua exterioridade específica: os discursos ateu e muçulmano, por exemplo. Como elemento submetido à condição objetiva material contraditória/heterogênea/dividida desse espaço – “Jesus” é figura central no discurso católico, mas auxiliar no muçulmano e ainda mera ficção no ateu –, esse pré-construído ancora no discurso já tomado pela forma-sujeito, que administra o seu sentido, recortando do imaginário o que for dizível a partir do seu lugar discursivo e situando esse resto em uma zona de invisibilidade, embora o efeito de sua presença-ausente ali também produza sentidos3. O que temos, cremos, na frase alterada é somente a eficácia ainda maior do pré-construído, que, dissimulando a discrepância entre dois domínios de pensamento, opera sob um efeito de consenso e literalidade, a pleno serviço de um discurso que tende à monossemia. Em outras palavras, um encaixe quase sem decalagem. Q u e v e d o ( 2 0 1 2) desenvolve esse ponto no que tange ao texto visual. 3 2. Uma proposta analítica a partir de um enunciado tautológico: “mulher é mulher” Discutidos alguns pontos da teoria, podemos voltar aos enunciados idem per idem. Em primeiro lugar, apropriar-nos-emos Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 139 do princípio da dupla diferença, com o qual Pêcheux pensou a sua prática de leitura. Em um enunciado do tipo X é X, temos uma primeira diferença de identidade de X em relação a Y ou Z. Assim, temos a convocação de um pré-construído “mulher”, tomado do interdiscurso pela sua diferença em relação a “homem” ou “criança”. Esse termo “mulher” surge sob a condição de evidência (“mundo das coisas”, “o que todo mundo sabe”) de um contexto situacional: um consenso intersubjetivo mínimo do que seja uma mulher. No entanto, já aqui pensamos haver o “impensado do pensamento”: só reconhecemos “mulher” em oposição a “homem” ou a “criança” por vivermos em uma formação social em que tal distinção seja importante, produza sentido. O pré-construído, malgrado ainda em um momento construído hipoteticamente e no qual ainda não se encontre ancorado em uma FD específica, já é previamente administrado em seu sentido. Já há um funcionamento ideológico recortando e “evidenciando” o sentido de mulher. Na sequência da interpretação do que é X (que não é Y ou Z), instaura-se um paradoxo: ao dizer que X é X e produzir um sentido para além do tautológico, X retroage a si mesmo, produzindo o sentido de que X é não X. Ou seja, há uma ressignificação do primeiro X pela ausência inoculada nele pelo segundo. Se “mulher é mulher” produz o sentido de que mulher não seja mulher, mas sim uma outra coisa, temos instaurada uma segunda diferença: a de que X só não seja X sob a condição de sê-lo. Isso posto (e admitido) provoca a admissão de uma grande diferença entre o estatuto do sentido em AD em comparação ao estatuto do sentido na lógica e ao valor saussuriano. Em “mulher é mulher”, pensamos ter no primeiro termo “mulher” a ancoragem de um pré-construído (“mulher, que todos sabemos o que é”) funcionando sempre-já ideologicamente, porque imediatamente tomado pela forma-sujeito que colige as evidências de sua significação, em um administração da leitura a partir da linearização do pré-construído, ou seja da sua ressignificação por um discurso-transverso. Tal ponto talvez fique mais claro a partir de um enunciado não tautológico, como “Mulher de verdade torna-se mãe também”. Nele, por exemplo, temos o (mesmo?) pré-construído “mulher”, que vai sendo ressignificado pelas relações de implicação, condição, temporalidade, hierarquia, partição e outras, dadas pelo discurso-transverso. Assim, “mulher” passa a significar uma partição (o subgrupo das que, dentre as “mulheres”, são “mulheres de verdade”); mulher passa a ser um grupo restrito que alcança uma outra categoria (melhor, porque “de verdade”); o estatuto de mulher “de verdade” é condição para ser mãe e o implica; a condição da mulher é estabelecida por uma relação temporal: antes se é mulher de verdade, depois se torna mãe. 140 Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 Tornando ao nosso objeto, no enunciado idem per idem “mulher é mulher”, entretanto, temos um funcionamento metafórico que entra em um aparente curto-circuito no significante. O que se oferece ao leitor como um efeito de suspensão e lhe provoca um estranhamento, no entanto, funcionará mais rápido e melhor pela injunção à significação. Assim, o pré-construído “mulher” logo encontra a si mesmo no fio do discurso já na condição de uma evocação intradiscursiva ou retorno do Universal no sujeito (“mulher” tal como sabemos). Esse retorno da forma-sujeito no sujeito regerá o discurso-transverso, tanto por relações de implicação (mulher é mulher, na condição de se entender mulher como x; mulher é mulher, o que implica x) ou de equivalência (mulher é mulher, o que equivale a mulher ser x). Sem essa remissão a uma instância maior e prévia (o interdiscurso, sob seus dois modos de funcionamento), não há produção de sentido. Assim como não há produção de sentido se não houver uma tomada de posição do sujeito, que cesura o continuum da discursividade e se constitui condição para tomada da palavra. Como afirma Teixeira (2005), “isso que fala antes, em outro lugar, não se diz todo”, pois “há algo no acontecimento que escapa às redes de sentido já construídas”; “[...] o pré-construído [...] não se totaliza, pois há aí um resíduo não integrável no simbólico (p. 181). Nesse resíduo, cremos, estão a falha e a falta. Considerações finais Com base no que apresentamos, esperamos haver, a partir dos enunciados idem per idem, suficientemente defendido o gesto de interpretação do pré-construído como especificamente diferente de já-dito e como ubíquo (produzindo sentidos seja por efeito de estranhamento seja por efeito de sua presença-ausência, quando relegado à invisibilidade). Em nosso entendimento, o interdiscurso funciona indefectivelmente a partir do concerto entre pré-construído e articulação (efeito-transverso). Essa consideração parece aclarar-nos não só a dependência do discurso a um exterior, o caráter de evidência com que se produzem efeitos de sentido localmente, mas também uma deriva, restos de sentido inalcançados pela administração da leitura proposta pelo enunciador. Restos dos quais se diz alhures não terem relevância, mas que revelam, e quiçá relevam, o sujeito em que se realizam. A fórmula X é X indicia, a nosso ver, justamente esse carrossel dos sentidos no qual somos “livremente convidados” a tomar parte enquanto sujeitos, cumprindo a sina de andar mais rápido (vendo a evidência que nos é dada a perceber) para não sair de um mesmo lugar (de dizer). Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 141 Abstract Based on the observation of the interrelationship between the metaphorical and the ideological functioning in idem per idem propositions – which follow the “X is X” formula –, this paper discusses the notions of preconstructed and transversal discourse, as related to interdiscourse, and their implications in reading practices. Such functioning is characterized by the indefectibility of preconstructed and by the relation established with transversal discourses that explain both evidence and floating meanings. It also considers the difference between the already-said and the preconstructed and the effects of estrangement and invisibility which follow. Keywords: Preconstructed; Transversal discourse; Metaphor; Ideology; Memory. REFERÊNCIAS COLLINOT, A; MAZIÈRE, F. A língua francesa: pré-construído e acontecimento linguístico. In: ORLANDI, E. P. (Org.). Gestos de Leitura. São Paulo: Editora da Unicamp, 1994. COURTINE, J. J. ; MARANDIN, J. M. Quel objet pour l’Analyse du Discours ? In : ______. Matérialités Discursives. Lille: Presses Universitairs de Lille, 1981. COURTINE, J-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos: EdUFSCar, 2009. ERNST-PEREIRA, A. A falta, o excesso e o estranhamento. Seminário de Estudos em Análise do Discurso. UFRGS, 2009. Disponível em: http://www.discurso.ufrgs.br/anaisdosead/4SEAD/SIMPOSIOS/ AracyErnstPereira.pdf. Acesso em: 12 jun. 2011. FERREIRA, M. C. L. Glossário de termos do discurso. Porto Alegre. UFRGS, 2001. LE GOFF, J. Passado/presente. In: História e memória. Trad. Irene Ferreira et al. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. p. 207-233. 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Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 143 Uma análise discursiva de sujeitos com gagueira Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo (UCP) Resumo Os estudos linguísticos e fonoaudiológicos tomam a gagueira como uma manifestação de algo que se dá no plano do corpo, ora significado como tensão muscular, ora como respiração, produção de fala, ou, ainda, como formação genética, um sujeito, portanto, com uma “doença”. Ao percorrer as discussões teóricas sobre a gagueira, lançou-se um novo olhar sobre ela, sob a ótica discursiva, com possibilidades terapêuticas na mesma abordagem. A partir da teoria e dispositivo analítico da Análise do Discurso de linha francesa, fundada por Pêcheux e desenvolvida por Orlandi e seguidores, pretendeu-se analisar o sujeito que é visto no interdiscurso cristalizado pela sociedade como sujeito-gago: aquele que é portador de uma patologia, inserido em formações discursivo-ideológicas que o fazem mais gago. Operaram-se recortes discursivos de dois sujeitos-gagos em processo de atendimento fonoaudiológico, visto de forma longitudinal. Considerando a regularidade do funcionamento do discurso e ancorando as análises na interdiscursividade, ou seja, nos mecanismos de constituição de sentidos, identificaram-se certas formações discursivas materializadas no discurso dos sujeitos em estudo e que representam possibilidades teóricas e terapêuticas ao estudo da gagueira. Afirma-se, assim, a gagueira como um distúrbio de linguagem, diretamente relacionado às condições de produção, com a indicação de possibilidade terapêutica na mesma perspectiva. A análise discursiva realizada mostrou evidente mudança de posição de sujeito-gago para sujeito-fluente. Palavras-chave: Gagueira; Discurso; Formações discursivas. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 1. Caminhos percorridos nos estudos sobre a gagueira e o discurso As publicações internacionais sobre a gagueira apresentam-nos uma heterogeneidade de hipóteses sobre sua origem, contraposta a uma homogeneidade em sua caracterização. No entanto, as abordagens convergem em um mesmo ponto: a gagueira é tomada como manifestação de algo que acontece no corpo, entendido como tensão muscular, respiração, produção articulatória, ou, ainda, formação genética. Hoje, as propostas terapêuticas mais conhecidas seguem os princípios da Psicologia Experimental, Social, da Filosofia fenomenológica e, ainda, da Biologia. Todas as teorias, evidentemente, apresentam contribuições à clínica fonoaudiológica, na medida em que, de seus lugares teóricos, operam alguma forma de circunscrição da gagueira. Muitas dessas abordagens, naturalmente, fiéis à fundamentação teórica em que se apoiam, deixam escapar a linguagem e, com ela, excluem o sujeito, mesmo entendendo que ambos se encontram indissoluvelmente atrelados, pois sujeito e linguagem se constituem mutuamente. Essa reflexão gerou uma inquietação na pesquisadora que passou a compreender a gagueira como um problema discursivo e, neste percurso, lançar um novo olhar sobre a terapêutica da gagueira. A quem se deve compreender? Ao sujeito-gago ou à linguagem patológica? Não convém separá-los. Há um sujeito que fala, um sujeito constituído na/pela linguagem, inserido numa sociedade pautada por valores ideológicos, que interpelam os indivíduos enquanto sujeitos do seu dizer. Acredita-se que a Fonoaudiologia necessita fundamentar o seu fazer clínico, partindo de uma teoria linguística que lhe dê suporte. Desta forma, alça-se a Análise de Discurso de linha francesa, fundada por Pêcheux, nos anos 60 e desenvolvida por Orlandi e seguidores, no Brasil, como teoria de sustentação para analisar a gagueira e o sujeito-gago, assim como procedimento analítico que comporá a base do processo terapêutico para esses sujeitos. Neste sentido, a pesquisadora se afasta dos trabalhos indicados na revisão dos estudos da área, que identificam a gagueira ao corpo e à fala, assumindo uma posição de circunscrever o discurso como origem e lugar de apresentação e manutenção da gagueira, sob a forma peculiar de efeito de interlocução e sentidos. Neste estudo, será analisado o processo terapêutico de sujeitos-gagos, considerando a concepção discursiva, além de sistematizar os fundamentos teórico-metodológicos desta terapêutica. Como já enfatizado, adota-se a Análise do Discurso de linha francesa (AD), que permite a apreensão de uma visão ideológica do discurso, conjugando os construtos teóricos de três regiões do conhecimento: o Materialismo Histórico, a Linguística e a Psicanálise. 146 Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 A AD, entretanto, não dá conta de questões específicas da gagueira. Obviamente, ela não teria mesmo que olhar o distúrbio de linguagem, uma vez que não se propõe a isto. Na aquisição de linguagem, há pais que interpretam seus filhos e eles adquirem linguagem, configurando-se falantes ideais. E quando eles não adquirem? E quando gaguejam? A partir destas considerações, retorna-se à questão original, marcada no início da discussão, ou seja, quem é o sujeito gago? Certamente, a despeito dos estudos veiculados sobre a gagueira, que insistem no controle do gago sobre a língua/linguagem, compreendendo-o como um indivíduo centrado, racional e detentor de uma identidade única, estável e coerente, i.e., como sujeito psicológico, estes sujeitos permanecem em suas posições de gagos, ou melhor, gagos sob controle, porém continuam a se declarar gagos. São sujeitos que apresentam, de antemão, a certeza da gagueira e que, antes mesmo de falarem, já estão certos de que a palavra será repetida, bloqueada, prolongada. Assim, propõe-se aqui uma nova concepção de sujeito, o sujeito da AD – o sujeito assujeitado à língua, que o conforma – o efeito-sujeito. Neste sentido, o sujeito-gago é constituído assim na infância, em suas relações discursivas, conforme atestam Azevedo (2000; 2006); Azevedo; Freire (2001); Petrusk; Azevedo; Lima da Fonte; Cavalcanti (2011); Cavalcanti; Azevedo; Petrusk (2011). Considerando os pressupostos teóricos da AD, que vê o sujeito em uma formação ideológica/ discursiva, entende-se que o sujeito-gago ocupa diferentes funções-sujeito a depender de como se posiciona frente ao seu interlocutor. Um professor pode dar aulas fluentemente, porque ocupa uma posição de quem sabe e tem a ensinar e, em outra condição de produção, como a de participar de uma reunião de pais e mestres, gaguejar muito. Nesta posição, o sujeito identifica o outro como alguém que o julga como gago e prevê os momentos de repetição, bloqueio e prolongamento antes mesmo que aconteçam. 2. Caminhos metodológicos para enxergar o sujeito-gago Para a apreensão das formações discursivas do discurso dos sujeitos-gagos e propor-se uma possibilidade terapêutica, optou-se pela Análise do Discurso de linha francesa (AD), que foi teoria e dispositivo de análise. Assim, conduziu-se a pesquisa a partir de uma análise qualitativa da produção discursiva de dois sujeitos (Sujeitos 1 e 2), sendo um do sexo feminino e outro do sexo masculino, com queixa e diagnóstico de gagueira, em processo de terapia fonoaudiológica com a fonoaudióloga-pesquisadora. Para a análise discursiva, foram coletados dados referentes às sessões semanais, que foram áudio-gravadas e, posteriormente, transcritas literalmente. As sessões ocorreram em consultório particular e tiveram duração de trinta minutos cada, compreenNiterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 147 didas em um período entre quatorze e dezessete meses. Assim, recortes discursivos foram constituídos, de forma longitudinal, a partir do corpus obtido nos registros. Nas sessões fonoaudiológicas, os sujeitos falavam livremente, a partir de suas próprias reflexões acerca de suas queixas, em situações diferentes do processo terapêutico. A gagueira foi, então, estudada a partir da ótica discursiva, tomando-se por base estudos anteriores (AZEVEDO, 2000; AZEVEDO; FREIRE, 2001; AZEVEDO, 2006). Quanto às considerações éticas, foram utilizados, neste estudo, uma Carta de Informação sobre a pesquisa e o Termo de Livre Consentimento e Esclarecimento, observando-se a resolução 196/96. O presente projeto foi encaminhado para análise do Comitê Científico e de Ética da Universidade Católica de Pernambuco, tendo sido aprovada a sua execução, de acordo com o parecer CEP nº 008/2006. Ressalte-se, ainda, que a privacidade dos sujeitos que optaram por participar da pesquisa foi inteiramente garantida, visto que os sujeitos receberam nomes fictícios. 3. No caminho do discurso: um processo de terapia fonoaudiológica Os resultados aqui apresentados dizem respeito aos recortes discursivos extraídos das sessões realizadas com os dois sujeitos, representativos de três momentos do processo terapêutico: a entrevista inicial e dois recortes de sessões posteriores. A partir deste estudo, foi possível acompanhar, de forma longitudinal, o discurso dos sujeitos até o processo de alta fonoaudiológica, ou o momento terapêutico em que se poderia discutir o desvinculamento do sujeito das sessões fonoaudiológicas. Sujeito 1: a história e o discurso de Fernando na entrevista fonoaudiológica inicial T1: Qual a sua queixa? Por que você me procurou? F1: É que e_u sou gago desde pequeno. A_ntes não me incomodava não, mas agora, é dif_ícil namorar, f_alar com uma menina, no colégio também... T2: No colégio? F2: É que eu gaguejo muito com os meus colegas, porque eles tiram onda, visse? Aí, eu f_ico nerv_oso, ansioso e gaguejo. Com painho, eu também ga_guejo muito, é porque ele fica brigando comigo, “fale direito, Fernando!”, mas já com mainha, eu quase não gaguejo. T3: Com a sua mãe, você gagueja pouco... F3: Com o meu irmão mais velho, eu também gaguejo muito, mas com a minha irmã mais nova do que eu, eu me dou muito bem e quase não gaguejo. T4: São três irmãos? F4: Não. São dois: um mais v_elho e uma mais nova... 148 Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 T5: F5: T6: F6: Três, com você. É, comigo três. E por que você acha que gagueja, Fernando? Por que eu gaguejo? Sei não... eu sou muito tímido e também f_alo muito rápido, visse? Sou m_uito nervoso também... acho que é isso. T7: Os seus pais dizem o quê? Quando iniciou a gagueira? Você sabe? F7: Meu avô, pai de painho, é gago. Eles dizem que desde pequeno eu gaguejo, mas era menos... agora, está pior do que v_oinho... está muito forte. T8: Forte? F8: É. Forte, po_rque tem horas que eu não consigo falar nada... trava tudo... a voz fica presa. T9: Presa onde? F9: Fica presa no pescoço... e não sai som, visse? T10: Quando acontece isso? Da sua voz ficar travada? F10: No telefone, sempre. Eu odeio falar no telefone. Não atendo nunca... o meu c_elular é quase virgem. S_abe por que ele é só quase virgem? Po_rque às vezes, eu ligo pra operadora, que é grátis e fico ens_aiando minha f_ala com eles. Inv_ento que estou com um problema e eles f_icam falando. Quando eu preciso falar, f_injo que estou pensando e me_xendo no aparelho... T11: Puxa! Isso é bem interessante! Você me falava que o telefone é uma condição de mais gagueira para você. Há outras situações assim? Que parecem levá-lo a gaguejar mais? F11: F_alar no interfone, que é a m_esma coisa... f_alar com os professores, dar inf_ormação... é o elemento surpresa. Apresentar um trabalho no colégio... eu nem vou lá na frente... posso até tirar zero que eu não apresento. T12: Existem palavras que você já sabe que vai gaguejar? F12: Muitas palavras que eu nem f_alo, porque já sei que vai travar. Se começar com “p”, com “c”, “q” ou com “t” eu não falo mesmo. Tem também o “s”, o “tr” , o “pr” e o “br”... T13: Me dê alguns exemplos... F13: Sei não... eu s_ei que essas letras me fazem gaguejar. Ó... gaguejar... tem o “g” também... toda vez que eu falo essa palavra também trava. T14: Sei. Na palavra “gaguejar”. E aí, o que você faz para não falar a palavra que você já sabe que irá gaguejar? F14: Ah, aí, eu troco a pa_lavra por outra mais fácil. Se eu tiver que atender o telefone, não falo alô... f_alo “pronto”, ou então “oi”. Eu também tenho um bizu, que é bater na perna e piscar os olhos com força... acho que ajuda também... T15: Ajuda? F15: Não? Tu acha que não? Às vezes, parece que ajuda, visse? T16: Bom, a gente vai poder discutir, bastante, tudo a respeito da gagueira nas próximas sessões... Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 149 Fernando é um adolescente de 15 anos de idade que nos procurou por telefone. Consideramos desnecessário convidar seus pais para uma entrevista, já que a procura pelo atendimento partiu do próprio Fernando. O trabalho fonoaudiológico foi realizado apenas com ele e a família foi falada a partir do que era trazido em seu discurso, mas não esteve representada diretamente. Em F1, Fernando relata que se identifica como gago desde pequeno e esclarece a dificuldade nos relacionamentos sociais, que parece estar atrelada à gagueira: não pode namorar ou conversar. O pai e a escola parecem ser condições de produção do discurso que geram mais efeito de gagueira (F2). Ambos são explicados por Fernando: o discurso autoritário do pai e a antecipação no discurso dos colegas da escola (tiram onda). O irmão mais velho parece ocupar a posição de gerador de gagueira, em função da representação do pai, pelo lugar social em que está inserido. Fernando considera que a gagueira é mantida por três fatores: timidez, velocidade rápida da fala e nervosismo, como afirma em F6. Em F7, a hereditariedade vem à tona, quando o adolescente identifica o avô paterno como sendo gago. Este é um discurso que está nas formações imaginárias da família, que mantém um interdiscurso cristalizado: a gagueira é hereditária, geneticamente herdada. Fernando reproduz o discurso que focaliza a concepção genética da gagueira. Neste momento, existe o estigma inevitável: é gago como o avô (e será sempre gago). A questão genética na gagueira apresenta, atualmente, vários estudos, porém não são conclusivos. Salientamos, ainda, que, neste segmento, há uma referência a estar pior do que o avô. Fernando localiza a gagueira no seu corpo e, em seu dizer, há um domínio da mesma sobre o sujeito. A gagueira o aprisiona e ele diz não conseguir falar. Ele é silenciado por esta submissão a uma tensão no pescoço, como assinala em F8 e F9. Ao assumir a gagueira como algo do corpo, este sujeito assume também, como aceitação, a sua submissão. O telefone é outra condição de produção geradora de gagueira, que o encaminha ao silenciamento, como podemos confirmar em F10. Há o desejo de liberar a fala e Fernando ensaia algumas possibilidades com a operadora. Apesar disto, ele manipula a fala, fingindo que não é gago. O “alô” é substituído por “pronto”, ou por “oi”, para que seja liberado. Entendemos que, no nível fonológico, inclusive, “alô” é uma palavra mais simples do que “pronto”, que apresenta um grupo consonantal, identificado por ele, inclusive, em F12, como uma possibilidade de gagueira. Ao dizer “pronto” ou “oi”, no lugar de “alô”, o sujeito-gago se distancia do sujeito-censurador que se coloca do outro lado da linha. O que, na verdade, é significativo de gagueira não é a palavra “alô”, mas a condição de produção: falar ao telefone. Ao pensar em se “expor” ao telefone reproduzindo o “alô,” que é próprio da formação imaginária do 150 Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 uso do telefone, o sujeito antecipa a presença do outro (ouvinte/ interlocutor) que o vai censurar. É uma situação semelhante a que o leva a gaguejar diante do pai e do irmão mais velho. Observemos que, diante da mãe e da irmã, onde há não-censura, o sujeito não se apresenta como gago. O que o faz gaguejar diante do pai e do irmão é a relação de forças entre eles, considerando-se aí as condições de produção do discurso. Onde há não-censura, não há gagueira. Onde há censura ou possibilidade de censura, há gagueira. Sendo mais clara, a antecipação gera no locutor o efeito de que a sua representação é inevitável: se ele prende o outro em uma posição de quem o julga como gago, o que pode não ser verdade, ele gaguejará, porque antes de falar, já tem certeza de que falhará. Fernando relata, ainda, outras condições de produção que o encaminham a mais gagueira, como utilizar o interfone, apresentar trabalhos, falar com professores (relação de força – o professor é hierarquicamente superior) e dar informações a alguém. Há o que ele chama de “elemento surpresa”, ou algo inesperado que impossibilita a sua fala, como podemos inferir de sua afirmação em F11. Além disso, afirma não conseguir apresentar trabalhos na escola. Salientamos que a escola já é marcada como geradora de gagueira, pelo fato de os colegas “tirarem onda”, como podemos constatar em F2. Ao mesmo tempo, a escola é a instituição representante da correção, formação, com valor ideológico de censura pela presença do professor-censurador, tal como afirma Foucault (1996, p. 44): “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”. Em F12, F13 e F14, há o discurso da impossibilidade de dizer. Fernando lista várias letras que, a priori, está certo do fracasso e permanece aprisionado na previsibilidade. Em F14, ele conta o que faz para manipular a certeza da falha: substitui palavras consideradas difíceis, como alô (que troca por “pronto”, na ilusão de que é mais fácil) ou utiliza estratégias que o levam a fugir do dizer, como bater na perna e piscar os olhos com força, acreditando que estas o ajudam a liberar a fala. Fernando não está tão certo desta facilitação, uma vez que a nossa interferência, em T15, o desloca para a negativa do seu ato, no segmento posterior. Assim, ao questionarmos a sua afirmação de que estratégias são facilitadoras do discurso, demonstramos estranhamento, através da devolutiva do seu dito – ajuda? Imediatamente, ele se desestabiliza, nega a afirmação, já não parecendo tão seguro da utilização, em F15: não? Tu acha que não? Às vezes, parece que ajuda (...). Sujeito 1 - Fernando - Recorte discursivo 1 F16: Telefonar ainda não dá. Eu penso assim: “alô... eu quero falar com tal pessoa e tal, tal, tal...”, mas na hora, eu não ligo. Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 151 T17: Mas por que você precisa planejar o que quer dizer? F17: Sei não... a_cho que pra me dar s_egurança mesmo. T18: E planejar te dá segurança? F18: Planejar? Não, visse, porque eu nem consigo ligar... T19: Então, por que você não tenta telefonar para alguém, sem planejar o que vai ser dito? A fala é espontânea. Ela precisa ser espontânea. F19: É, eu vou tentar. Sabe outra coisa? Tem uma m_enina da minha sala que eu estou a fim e estou pensando em chegar junto, né, pra v_er se rola... T20: E por que não faz isso? F20: Tu acha? E o medo? T21: Medo? Medo de quê? F21: Medo de gaguejar. M_edo de querer falar e não s_air nada e a menina ficar tirando onda da minha cara... T22: Essa antecipação da situação é que complica, né? Ter medo, ensaiar o que vai falar, não ajuda nada... tente permitir a sua fluidez... deixe sair a sua fala... sem previsão de que vai errar, de que não vai conseguir... a grande questão é: LIBERE a sua fala! E aí, você se libera também... O recorte discursivo 1 é marcado pelo dizer da impossibilidade: telefonar e aproximar-se de uma menina são atos submetidos ao medo de gaguejar (F21). Fernando aprisiona-se na previsão do erro e no planejamento da sua fala, no intuito de ter segurança no dizer, ao mesmo tempo em que, ao ser confrontado com o próprio discurso, em T18 e F18, nega a necessidade da programação prévia. Fernando está aprisionado ao discurso que “padroniza” a gagueira como uma doença e que por ser censurado, criticado, discriminado, faz o sujeito-gago pensar que pode prever o seu erro, o que o faz mais gago ainda. Portanto, podemos ver que são as condições de produção do discurso que inserem o sujeito na posição de sujeito-gago. A gagueira é, portanto, um distúrbio de linguagem, em que o discurso da doença pode ser trabalhado pelas vias discursivas. O fato de desejar conversar com a menina e evitar a aproximação, considerando que gaguejará e ela “tirará onda” dele, configura-se como a antecipação, presente nas condições de produção do discurso, que se intensifica no discurso do sujeito gago. Antes que aconteça, o sujeito já antecipa que os outros rirão da sua gagueira, conforme discutido anteriormente. Sujeito 1 - Fernando - Recorte discursivo 2 T23: O que você tem para me contar sobre esta semana? F22: Eu estou muito bem, visse? Meu pai veio conversar comigo e disse que_ todo mundo está me achando muito bem... f_alando bem e tal. T24: É mesmo? E você, o que acha? F23: Eu também acho isso. Eu/eu não estou mais me preocupando com a minha fala e/e nem planejo mais nada. Falo e pronto. Outro dia, 152 Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 eu tinha que ligar para um amigo meu. Comecei a ensaiar... “alô, quem está falando?...” Desisti e pensei “não vou ensaiar nada!” Peguei o telefone, liguei e falei super bem. T25: Que ótimo, Fernando! É isso mesmo... o caminho é esse! F24: É. E também, contei o meu assalto lá em casa e pros meus amigos e quase não gaguejei. T26: Eu me lembro que você dizia ser difícil contar um caso... que era mais difícil, né? F25: Agora, nada está mais difícil, porque eu estou parando de ficar prevendo, com medo das palavras, com medo de gaguejar... Após quatorze meses de terapias fonoaudiológicas semanais, não consecutivas, com um intervalo de dois meses de férias, Fernando está vivenciando um processo de mudança da posição de sujeito-gago para a de sujeito-fluente. Em seu discurso, o planejamento da fala está se esvaindo e dando lugar a uma linguagem bem mais espontânea e confiante. O pai, grande gerador de gagueira no discurso de Fernando, anteriormente, é agora colocado na posição de quem lhe traz boas notícias sobre a sua fala, conforme podemos constatar em F22, ao anunciar que é o pai quem lhe diz que todos estão percebendo a sua evolução na linguagem. Os ensaios, tão frequentes outrora, vêm sendo abandonados com determinação, como relatado em F23. Além disso, contar histórias, condição de produção geradora de gagueira anteriormente, não impede mais a sua linguagem, que vem fluindo, sem previsões. Sujeito 2: a história e o discurso de Amélia na entrevista fonoaudiológica inicial T1: Como eu posso ajudá-la? A1: O meu problema é/é/é/é a minha gagueira. Eu gaguejo muito e is_so me atrapalha muito. T2: Atrapalha? A2: Atrapalha. Atrapalha muito. É/é/é atrapalha no meu trabalho, nas minhas relações/relações com os amigos também... atrapalha em tudo... eu fiz faculdade de é/é/é Administração de Empresas e trabalho em uma firma, mas eu acho que sempre passo insegurança nas reuniões por causa da gagueira. E já/já tem algumas palavras que eu já/já sei que vou gaguejar... meu nome também eu nunca consigo dizer. Administração, eu nunca consigo dizer também... T3: Agora, você não gaguejou nesta palavra. A3: Foi, mas/mas eu sempre gaguejo e já procuro evitar, tudinho... T4: Como? A4: Como? U_sando tiques, substituindo por outra, mas às vezes, não dá para evitar, né? Administração mesmo, não dá... T5: Desde quando você gagueja? Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 153 A5: Ah! Desde que eu me entendo por gente... desde/desde criança. Mainha diz que eu já comecei a falar gaguejando: ma-ma-ma-ma; pa-pa-pa-pa. Ela/ela mandava eu falar devagar, respirar e me_lhorava quando eu era criança. Eu já procurei fono duas vezes, uma com quatorze anos, fiz os exercícios e acabei deixando e outra, com vinte e três anos. A última fono, eu/eu/eu fiquei três anos e tive alta e/e/e aprendi a controlar a gagueira. A fono me disse que eu estava ótima e tudo. Mas/mas eu não acredito nesse controle não, porque eu acho que a gente não consegue controlar a fala quando está nervosa. E eu/eu/eu também tenho muitos tiques, tudinho. Minha perna não pára de se mexer, aperto muito os olhos e/e/e/e fecho as mãos com força. T6: E por que você precisa fazer isso? A6: Por quê? É/é/é/é que dá uma sensação de ajuda na fala, tudinho. A minha fono é/é/é dizia que ajudava a falar, mas ela também não gostava que eu usasse não... ficava batendo palmas para eu deixar de usar tudo. T7: É um condicionamento... A7: É, mas não adianta nada. Quando vem o nervosismo, aí, pronto... T8: E você já fez algum outro tipo de terapia? A8: Terapia? Fiz é/é/é Psicologia desde criança. Depois, parei e fiz mais duas vezes, mais duas vezes, mas cansei, porque a gente fica falando sozinha lá. Eu não gosto não. Acho uma perda de tempo, perda de tempo... T9: E o que você quer, agora? A9: O quê? Eu é/é/é quero melhorar dessa é/é/é gagueira. Eu não estou esperando ficar curada, porque eu não acredito que tenha cura, mas eu é/é/é preciso melhorar, é, falar melhor... T10: Você diz que não acredita em cura. O que é a gagueira, para você? É uma doença? A10: Doença? Acho. Acho que é uma é/é/é doença incurável, mas que pode é/é/é melhorar com exercícios. T11: É? Que tipo de exercícios? A11: Que tipo? É... exercícios de é/é/é respiração, que ajudem a dar mais profundidade respiratória, exercícios de língua, tem o de lábios... T12: Então, você acha que tem dificuldade respiratória? E alguma alteração na estrutura da língua, dos lábios? A12: Se eu acho? Não. Quer dizer, é/é/é a respiração, pode ser, porque eu sinto que falta ar, falta ar, quando eu falo, mas os é/é/é exercícios de estalar a língua, vibrar, colocar para um lado e para o outro, esses eu nunca é/é/é achei que adiantavam não... mas fazia, visse? Fazia bem certinho na fono e em casa... T13: Bom, eu sigo uma proposta bastante diferente desta a que você vem sendo submetida (...) A13: É. Quando eu leio, eu também não gaguejo... eu adorava ler na faculdade, no meio de todo mundo, porque eu leio muito bem. T14: É mesmo? E você sabe que muitas pessoas, quando lêem, gaguejam? Muitas vezes, até mais do que quando falam? 154 Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 A14: É? Pois para mim, acontece é/é/é o oposto. Eu leio muito bem. Eu adoro ler, desde pequena. T15: Provavelmente, você estudou em uma escola que valorizava a sua leitura... A15: Foi. Eu estudei em uma escola muito é/é/é aberta, daquelas que ensinam o aluno a ser crítico. A gente lia os livros que a gente queria e depois fazia teatrinho sobre os livros. Era muito boa a escola. Só era difícil falar com os amigos, com os professores... ler, não. Ler sempre foi fácil. T16: E por que era difícil falar com os amigos e professores? A16: Ah! O de sempre, tá? A gozação é/é/é inevitável depois da gagueira. T17: Que talvez você já antecipasse que aconteceria... mesmo que não acontecesse... A17: Não sei...talvez... mas a discriminação é grande mesmo... Amélia é uma mulher de 28 anos, com história de gagueira desde a infância. É formada em Administração de Empresas e no momento em que procurou a pesquisadora, cursava uma pós-graduação na área. Trabalha em um escritório e realiza funções relacionadas à sua formação, porém esquiva-se de reuniões, onde necessite falar (e mostrar-se sujeito do seu dizer). Amélia já fez outros tipos de terapia fonoaudiológica e psicológica, como indica nos segmentos A5 e A8, em que afirma não terem gerado o efeito esperado. A proposta terapêutica associada à Psicologia Experimental, cujo maior representante é Van Riper (1973; 1982), nos ofereceu uma melhor compreensão do distúrbio “gagueira”, na medida em que o autor descreveu as possibilidades etiológicas e semiológicas. Por outro lado, as condutas terapêuticas que derivam desta abordagem têm, no condicionamento operante, seu principal pilar e, no caso da gagueira, esta permanece no estatuto do treinamento, enquanto o sujeito – neste caso, Amélia – considera-se insatisfeita com a sua fala, como relata em A1: O meu problema é a minha gagueira e em A5: “eu não acredito nesse controle (...) a gente não consegue controlar a fala quando está nervosa.” Da mesma forma, em A9: “eu tive alta” (...) “a fono disse que eu estava ótima” (...) “eu quero melhorar dessa gagueira”. Se ela precisa melhorar, há uma doença na fala, o que conduz a uma Formação Discursiva (FD), com a qual Amélia está identificada: a gagueira é algo marcado no corpo (nervosismo e tensão corporal). Amélia gagueja desde muito pequena e a mãe interferia diretamente na sua fala gaguejada, solicitando que ela falasse devagar e respirasse. Este tipo de atuação constitui um discurso autoritário, de acordo com os fundamentos de Orlandi (2007; 2011), uma vez que não há reversibilidade possível, já que a criança não tem meios de contradizer a mãe ou de localizar o que está errado em sua fala. Desta forma, não tendo possibilidades de se deslocar para a posição sugerida, a criança pode passar a fazer tentativas Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 155 de modificação na fala, utilizando estratégias, na tentativa de falar melhor ou adiar o aparecimento da gagueira. Em A2 e A3, Amélia afirma existirem palavras proibidas, uma vez que, nelas, já há a certeza prévia do erro. Identifica duas rapidamente: seu nome e a palavra administração, seu curso concluído e, hoje, sua profissão. Geralmente, o sujeito gago diz ter dificuldades com as palavras mais usuais no dia-a-dia. No segmento A5, Amélia afirma apresentar tiques corporais, que considera oferecerem uma ajuda na liberação da fala (A6). Na verdade, ela utiliza recursos corporais para esconder a gagueira, porém eles a fazem mostrar-se mais gaga, na medida em que são visíveis ao interlocutor e interpretados como características de insegurança e tensão corporal, como atesta Friedman (2004). Amélia acredita que a gagueira seja uma doença incurável, que pode melhorar com exercícios (A10), porém afirma não confiar nos mesmos, o que estabelece uma relação contraditória em suas afirmações. Em T13, a pesquisadora procurou esclarecer a sua proposta de trabalho, diferente das trabalhadas por ela, marcando a ótica discursiva como possibilidade terapêutica. Assim, afirmou-se que esta nova forma de ver a gagueira não trabalha com o controle de fala, na medida em que prever e tentar corrigir a fala antes que ela aconteça, já é algo que o sujeito-gago realiza anteriormente à terapia (e sem a necessidade desta). A proposta discursiva pretende levar o sujeito à mudança efetiva na posição de sujeito-gago à de sujeito-fluente, considerando-se, naturalmente, a fluência como limitada e não-ideal, sujeita a falhas, conforme salienta Scarpa (1995; 2012). A discussão sobre condições de fluência gerou o efeito de intervenção de Amélia, em A13, que trouxe um novo e importante dado: na leitura, ela não gagueja. Amélia se percebe como leitora eficaz, que lê muito bem. Provavelmente, o tipo de escola que frequentou valorizava a criticidade dos alunos, o que auxiliou na formação de uma autoimagem de boa leitora, conforme atesta Menezes (2003). Estes argumentos podem ser inferidos a partir de Friedman (1994; 1996; 2004), que considera existir uma ideologia do bem falar, na sociedade. Assim, é esperado que todas as pessoas falem bem e corretamente. Quando o sujeito gagueja, carrega consigo uma autoimagem de mal falante, formada ainda na infância, considerado um estigma socialmente marcado. Ainda em relação à questão social, Amélia identifica, em A16 e A17, a discriminação e a gozação inevitável como impedimentos à sua fala com amigos e professores. Este também é um discurso que se repete na clínica com sujeitos-gagos. A antecipação, presente nas condições de produção do discurso, pode ser introduzida, neste momento, como um forte argumento ao silenciamento do sujeito, que elabora representações imaginárias do discurso do seu interlocutor. 156 Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 Sujeito 2 - Amélia - Recorte discursivo 1 A18: Eu é/é/é fui falar no telefone é/é/é com uma amiga e gaguejei muito. T18: Por quê? Falar ao telefone é uma condição de produção que gera gagueira? A19: É. Se/se/se alguém ligar pra mim, eu atendo e/e/e falo bem, mas eu acho que ligar é pior, porque se não ensaiar, tem que ficar gaguejando e/e/e a pessoa fica chateada de ficar ouvindo a gente gaguejar... T19: Bom, eu vejo duas coisas do seu discurso. A primeira é: por que ensaiar a fala? Precisa ensaiar? A segunda é... como é que você sabe que a pessoa fica chateada por ouvi-la gaguejar? A20: Porque/porque gaguejar é hilário para quem ouve... T20: Bom, isso é o que você acha e a projeção que você faz do seu interlocutor. Não é fato, não acha? E por que é necessário o ensaio? A21: Dá mais segurança, eu acho. Éé/é/é o medo de falar errado. T21: Mas falar precisa ser espontâneo, não acha? Não se pode ensaiar uma fala, a não ser em situações de apresentação, que, mesmo assim, muitas vezes, não ficam naturais... tente simplesmente, falar... sem planejar. O medo de falar errado está levando você a prever. O que é o erro na fala? A gente erra sempre... é natural. A previsão do erro leva à gagueira. Você não acha? A22: E também, é/é/é essa semana, eu conversei com a minha professora do MBA e, antes, é/é/é eu passei um tempão ensaiando o que eu iria perguntar a ela. Resultado: eu analiso é/é/é essa conversa como “muito gaguejada”. Fiquei foi triste! T22: E como você analisa a etapa anterior à conversa? Aquela em que você ensaiou o que iria dizer? A23: Não. Talvez tenha sido por isso é/é/é que a conversa não foi boa. Mas já é/é/é/é um hábito, tá? Eu é/é/é estava observando uma colega minha do curso e vendo que é/é/é ela também gagueja, mas só que é/é/é ela não está nem aí para a gagueira dela e fala muito, com todo mundo, faz pergunta na sala, tudinho. T23: Pois é. É aquela estória que a gente já conversou da gagueira natural. Todo mundo gagueja, né? E o que faz a gente gaguejar? Muitas vezes, a própria língua, no sentido de código linguístico, faz a gente tropeçar na fala. Uma palavra extensa, pouco usual, em um contexto diferente, por exemplo, leva a hesitações, a repetições, a inabilidade com aquela palavra. A diferença é que na gagueira natural, não há previsão e o sujeito só percebe a gagueira depois que ela acontece, entendeu? Na verdade, falar é um ato complexo, porque veja bem... junto com a combinação de sons em palavras, você também faz a seleção de palavras, ou seja, você tem possibilidades de sinônimos para uma palavra e, inconscientemente, você seleciona um, que vai funcionar naquele contexto. O que acontece? Muitas vezes, há um erro nesta seleção, ou você quer uma palavra diferente e, aparentemente, ela não chega, e por aí, vai... Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 157 Nos segmentos A18 e A19, telefonar a alguém é uma condição de produção geradora de silenciamento, a não ser que haja um ensaio. Já receber um telefonema representa uma condição possível, uma vez que dispensa o planejamento. Novamente, a antecipação do interlocutor aparece como impedimento para a fluência, uma vez que Amélia afirma que o ouvinte se aborrece ao ouvi-la gaguejar e, ainda, em A20, atesta que “gaguejar é hilário para quem ouve”. Isto é o que ela antecipa do outro, mas que nem sempre está no outro-interlocutor. Amélia considera que necessita estar submetida ao planejamento da fala, porque este lhe dá mais segurança (A21; A22). Ao mesmo tempo, ao refletir sobre a conversa com a professora, quando fez uso da fala ensaiada, analisa como um momento de muita gagueira, o que lhe trouxe uma consequente tristeza. Neste momento, ela interpreta que não há uma relação direta entre planejamento e fala fluente, mas, ao contrário, o ensaio conduz ao aprisionamento à forma da fala e gera mais gagueira. Em A23, Amélia relata a observação de uma colega do curso, que enfrenta as mais diferentes situações, sem se preocupar com a gagueira que é mostrada. No segmento T23, enfatiza-se a gagueira natural, descrita por Friedman (1994; 1996; 2004), como sendo algo bastante frequente, efeito das falhas e imperfeições da própria lingua(gem). Sujeito 2 - Amélia - Recorte discursivo 2 A24: Uma coisa boa... eu fui pegar um DVD numa locadora e o cara disse que eu estava devendo cinco reais. Eu disse que não estava devendo e defendi o meu ponto de vista, sem gaguejar. Eu fiquei nervosa, mas não fiz previsão do erro e falei muito bem. T24: Não teve tempo de fazer previsão... A25: Não. Até poderia ter feito previsão, mas eu não fiz e falei muito bem. T25: Isso é ótimo, porque mostra para você mesma que você fala bem, sem problema e que não é preciso ficar submetida à forma da fala... ao contrário, se você se prende à forma, gagueja, porque a fala deixa de ser algo natural... A26: Isso foi muito bom mesmo. Agora, tem outra coisa... eu estava com umas amigas ontem e eu vi que eu gaguejei. Eu não estava fazendo previsão, mas gaguejei um pouco. T26: Mas a gente gagueja mesmo. O que eu acho que você precisa diferenciar é o que é a gagueira da previsão, ou seja, aquela que vem da certeza do erro, vista previamente... aquela que antes de você falar, já tem certeza de que vai gaguejar, daquela gagueira que é natural, que você só percebe depois de ela acontecer. Essa última ocorre porque a fluência é relativa, a língua nos prega peças, faz a gente tropeçar... todo mundo gagueja, né? A27: Foi essa mesmo: a natural. Eu não previ e, simplesmente, gaguejei. Acho até que ninguém notou... só eu. 158 Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 Após dezessete meses de terapia semanal, com dois períodos de férias mensais, Amélia apresenta uma linguagem mais solta e espontânea. Ainda não discute a alta terapêutica e afirma necessitar dos encontros semanais, porque lhe transmitem segurança e bem-estar. Já percebe os seus avanços na linguagem e enfrenta situações, antes consideradas proibidas, como defender o seu ponto de vista, em A24. Sobre a previsão do erro na linguagem, Amélia registra dois momentos em que essa poderia ter ocorrido, mas não aconteceu, como os relatados em A24 e A26. Em A27, ela já antecipa do outro a observação da sua fluência, o que registra um grande avanço em sua história discursiva. Significa dizer que Amélia se desidentificou com a FD anterior, da doença, e se inseriu em outra FD, em que não é doente e não há um censurador como interlocutor. É um sujeito fluente, que tropeça na fala, sem que isto seja um problema. Pode-se observar a mudança de posição de Amélia, de sujeito-gago para sujeito-fluente, objetivo da proposta terapêutica na perspectiva discursiva. 4. Fonoaudiologia e discurso: ressignificando o processo terapêutico e a gagueira A discriminação da gagueira está sedimentada no interdiscurso da sociedade e da cultura e o sujeito-gago é significado como o engraçado, o descoordenado, o inseguro, como se pode acompanhar em novelas e filmes veiculados na mídia. Considerando este cenário e entendendo que possibilidades terapêuticas assentadas sob o aporte discursivo podem gerar efeitos de mudança na posição de sujeito-gago para a de sujeito-fluente, discutir-se-ão, a seguir, questões relativas à terapia fonoaudiológica, partindo de pressupostos teóricos da teoria discursiva, pautada na Análise do Discurso de linha francesa, tomando como base a prática clínica e os casos aqui estudados. A terapia fonoaudiológica deve ressignificar a concepção de fluência, procurando compreender a disfluência/hesitação como constituinte do sujeito/linguagem, conforme já discutido e respaldado em Scarpa (1995; 2012) e Merlo; Barbosa (2012). É necessário esclarecer o conceito de disfluência, uma vez que as expectativas da finalização do processo terapêutico têm relação com a noção de fluência/disfluência. Desta forma, a questão da cura da gagueira, frequentemente trazida para discussão pelo paciente e família, precisa ser compreendida como um significante que pede leitura. Assim, gagueira não é uma doença e, portanto, passível de cura. Neste trabalho, a gagueira é compreendida como um distúrbio da linguagem, diretamente relacionado às condições de produção do discurso, caracterizado pela previsão e certeza a priori do erro. A partir desta premissa, há, nesta perspectiva discursiva, condições terapêuticas de trabalho fonoaudiológico com o sujeito-gago, Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 159 que o encaminham a um discurso bem mais fluido, com pouca ou nenhuma previsão de erro, mas sempre haverá momentos de gagueira ou disfluência natural em sua linguagem, uma vez que essa é inerente ao sujeito/linguagem. Outra questão importante é a particularização que deve caracterizar a terapêutica. “Singularizar um paciente é consequência de uma atitude de ignorância tomada frente a ele”, afirma Millan (1993, p.67). Neste sentido, há um ineditismo fundamental e necessário em cada processo terapêutico, em cada relação construída, em cada sujeito-gago, em cada fonoaudiólogo. Há um processo de descoberta completamente único. Nesse sentido, o processo terapêutico deve privilegiar a escuta terapêutica, como singular e necessária. Salienta-se que a escuta é determinada, conforme a Psicanálise, como interpretativa e vai muito além do simples ouvir. Cada sujeito-gago é único e traz questões singulares à clínica da linguagem, que devem ser escutadas e ressignificadas. O trabalho fonoaudiológico, na perspectiva discursiva, pretende levar o sujeito-gago a identificar e analisar a previsão do erro na sua fala, refletindo sobre questões acerca da gagueira, como a origem e o lugar. Além disso, o sujeito deverá reconhecer situações discursivas de silenciamento e identificar e analisar condições de produção geradoras de fluência e de gagueira, estratégias de evitação e adiamento da gagueira e mecanismos geradores e mantenedores da fala gaguejada. Com sujeitos adolescentes e adultos, a entrevista inicial fonoaudiológica pode ser realizada com aquele que procura a terapia; no caso do adulto, com o próprio e, em se tratando de adolescente, com ele mesmo, se vier por conta própria, ou com os seus pais, se a demanda inicial é destes. Ainda assim, o adolescente é sujeito do seu discurso e também deve ser escutado de forma singular. Na perspectiva discursiva, pode-se apontar como possibilidades terapêuticas a determinação do espaço discursivo como o lugar da gagueira, levando o sujeito a identificar as condições de produção do discurso gaguejado e do discurso fluente, pela análise das relações de força, de sentido e da antecipação do seu discurso. Este conteúdo pode ser trabalhado através da discussão de situações discursivas, pelas quais o sujeito em atendimento tenha passado, seja há um longo tempo, ou mesmo na semana atual. O trabalho com esta discussão é o foco da terapia e principal atividade desde o início. Assim, o sujeito pode, por exemplo, sendo médico, discutir o porquê de gaguejar com os colegas, em estudos de casos clínicos e não apresentar gagueira na relação com os seus pacientes. Neste caso, a relação de forças, ou a situação dos protagonistas, se encarregariam de explicar, porque está claro que a posição-sujeito assumida nas duas situações é bastante diferente. A questão da antecipação do outro (ouvinte) também precisa ser 160 Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 compreendida e interpretada, porque este pode ser representado como censurador, ou não, gerando efeito de gagueira ou de fluência. Da mesma forma, o sujeito-gago poderá reconhecer condições de silenciamento e estratégias utilizadas para evitar ou adiar a linguagem, além da identificação de mecanismos geradores e mantenedores do discurso gago. A previsão do discurso gago, ou seja, a certeza a priori de que falhará, também é bastante enfocada nesta proposta, ressaltando-se que esta reafirma a gagueira, por se constituir como um obstáculo à espontaneidade do funcionamento discursivo. Assim, o sujeito em atendimento necessitará perceber a previsão do erro e trabalhar no sentido de evitá-la, assegurando um discurso mais fluente. É necessário esclarecer que o foco terapêutico está na escuta interpretativa, ou seja, é a partir da devolução do dito do sujeito que ele pode deslocar-se do interdiscurso cristalizado relacionado à gagueira. Para facilitar, então, a recuperação de situações discursivas, inclusive vivenciadas em terapias anteriores, propõe-se que todas as sessões sejam áudio-gravadas, transcritas e analisadas. Busca-se estabelecer um novo sentido para as marcas corporais e para o sintoma na linguagem, por meio do trabalho discursivo. Com relação às atividades que podem ser trabalhadas na terapia, estas são situações discursivas trazidas pelo sujeito para a sessão. Desta forma, o sujeito-gago pode falar, livremente, sobre condições de produção geradoras de mais fluência ou mais gagueira, naquela semana, por exemplo, e ele mesmo passa a analisar o que está mantendo-o na posição de sujeito-gago. Paralelamente, pode haver discussões sobre recortes discursivos de sujeitos-gagos, ou dos seus próprios discursos, já transcritos. O sujeito passa a produzir efeitos de sentido sobre o seu próprio material simbólico (os textos produzidos a partir dos recortes discursivos das sessões terapêuticas entre o sujeito e o fonoaudiólogo). A alta terapêutica nunca é oferecida, unilateralmente, pelo terapeuta, mas compreendida como uma demanda do sujeito e bastante trabalhada no processo. Esta desvinculação do processo terapêutico acontece quando o sujeito se desidentifica com formações discursivas oriundas de um interdiscurso cristalizado, como já discutido anteriormente e se insere em nova Formação Discursiva (FD). O sujeito inicia o processo terapêutico identificado a formações discursivas relacionadas à posição de sujeito-gago, se contra-identifica durante as sessões, até que desidentifica dessa FD, conforme fundamentam Pêcheux ([1975] 1988) e Indursky (2008), inserindo-se em nova FD: posição de sujeito-fluente, que não vê mais a gagueira como doença, não prevê o erro, não se preocupa com o ouvinte-censurador e não utiliza estratégias para não gaguejar ou mesmo para tentar falar melhor. Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 161 Considerações Finais Pensar o sujeito-gago, como fonoaudióloga, é pensar numa proposta terapêutica que o tire deste lugar e o insira em outra situação de integração social: a de sujeito-falante-fluente, considerando a fluência como relativa, uma vez que não há fluência linear. O sujeito-fluente sabe que a fluência é sempre relativa, pois fazem parte dela hesitações e repetições, por exemplo. Acredita-se poder inserir o sujeito neste lugar, longe de sua gagueira, ocupando uma nova posição: a de sujeito-fluente. O estudo da gagueira, tal como é significada no discurso de sujeitos-gagos dessa análise, conduziu a pesquisadora a uma série de reflexões, uma vez que o foco deste trabalho foi analisar o processo terapêutico de sujeitos-gagos, a partir da consideração da concepção discursiva e sistematizar os fundamentos teórico-metodológicos desta terapêutica. A partir desse estudo, afirmou-se um novo conceito para a gagueira, ancorado na perspectiva deste trabalho. Sob a ótica discursiva, a gagueira pode ser compreendida como um distúrbio dessa ordem, que apresenta uma relação direta com as condições de produção do discurso (relação de forças, de sentido e antecipação), caracterizada pela ocorrência de repetições de sons, sílabas, palavras ou frases, hesitações, prolongamentos de fonemas e/ou bloqueios tensos de sons. Há uma relação direta entre o sujeito que fala, a presença de um outro (interlocutor) e a ocorrência de situações de gagueira. Se não há ouvinte, ou se este não é identificado como alguém que julga, não há momentos de gagueira. Se, ao contrário, este outro (interlocutor) é antecipado como alguém que insere o sujeito falante na posição de gago, então, há momentos de gagueira. A gagueira é, ainda, marcada pela previsão do erro iminente. Há uma certeza a priori deste erro e é a partir da possibilidade de errar que o sujeito-gago opta por tentar evitá-lo ou adiá-lo. Desta forma, substitui palavras perigosas, ou seja, consideradas como sendo de difícil emissão, por outras compreendidas como sendo mais fáceis, ou, ainda, escapa da fala gaguejada, utilizando estratégias corporais, isto é, apertar os olhos, as mãos, bater os pés, e outros artifícios, que, em última instância, acabam por mostrá-lo mais gago ao seu interlocutor. A análise discursiva de dois sujeitos-gagos em situação de entrevista inicial fonoaudiológica e outros dois recortes de sessões terapêuticas com a pesquisadora, mostrou evidente mudança de posição de sujeito-gago para sujeito-fluente. Por fim, indicou-se uma proposta terapêutica para o trabalho com sujeitos-gagos, sob a ótica discursiva. Foram discutidos e analisados alguns conteúdos, como a determinação do espaço discursivo enquanto lugar da gagueira, a ressignificação da concepção de fluência e disfluência e o reconhecimento de situações discursivas de silenciamento. Além disso, enfatizaram-se a 162 Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 identificação e análise das condições de produção do discurso, de situações de previsão e certeza do erro, das estratégias utilizadas com o intuito de adiar ou evitar a gagueira, de fonemas e palavras considerados difíceis ou impossíveis de serem ditos e, ainda, a identificação e análise de posições discursivas geradoras de gagueira e de fluência. Esta é a base terapêutica para o trabalho fonoaudiológico com sujeitos-gagos sob a perspectiva discursiva. Não houve a intenção de concluir este trabalho, porque não o mesmo não está acabado, mas de esclarecer que ele está aberto a novos olhares, a diferentes leituras, a questionamentos e discussões. Espera-se produzir reflexões e contribuições para o estudo da gagueira e do discurso. Abstract The linguistic and speech therapy’s studies see the stuttering as a manifestation of something that happens in the body plan, well meaning as muscle tension, sometimes as breathing, speech production, or even genetic formation, as a subject, therefore, with a “disease”. When scrolling the theoretical discussions about stuttering, we threw up a new look at it from the discursive perspective with possibilities with the same therapeutic approach. From the theory and analytical device of Discourse Analysis from French line, founded by Pêcheux and developed by Orlandi and followers, we intended to analyze the subject who is seen in interdiscourse crystallized by society as subject-stutter: one who is carrying a disease, inserted into discursive and ideological formations that make him more stutter. We operated discursive clippings of two stuttering-subjects who participated of speech therapy, seen in a longitudinal way. Considering the regularity of the operation of speech and anchoring the analysis in interdiscursivity, i.e., the mechanisms of formation of senses, we identified some discursive formations materialized in the discourse of the analyzed subject and represent theoretical and therapeutic possibilities for the study of stuttering. We affirmed stuttering as a disorder of language, directly related to production conditions, indicating therapeutic possibility in the same perspective. The discursive analysis performed showed apparent change in position of stutterer-subject to fluent-subject. Keywords: Stuttering; Speech; discursive formations. Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013 163 REFERÊNCIAS AZEVEDO, Nadia Pereira da Silva Gonçalves. Uma análise discursiva da gagueira: trajetórias de silenciamento e alienação na língua. 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As reflexões aqui tomadas indicam que o discurso sobre a criança é atravessado por um ludicismo que implica as relações estabelecidas com o jurídico, dissimulando, pela brincadeira, pelo jogo, o próprio jurídico. Também é característico do ludicismo uma projeção do futuro da criança, o vir-a-ser-sujeito. Palavras-chave: Discurso sobre criança; categoria; ludicismo Gragoatá Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 Considerações iniciais Na Análise de Discurso de orientação francesa, os conceitos teóricos têm seu valor enquanto operadores na análise. Assim sendo, nas análises realizadas a partir desse quadro teórico, tratamos tanto dos dispositivos teóricos quanto dos procedimentos analíticos. Vale destacar que um princípio constitutivo da Análise do Discurso (AD) é a vinculação desses dois dispositivos. E é exatamente a vinculação entre teoria e prática que faz com que a disciplina se movimente. Tal movência não se dá em virtude de uma superação teórica, mas de adequação ao material de análise. Com o intento de trabalharmos no interior desse batimento, propomos um novo dispositivo teórico: o ludicismo. É importante registrar que em AD o dispositivo teórico refere-se a todo seu quadro teórico. Tal dispositivo se particulariza frente aos conceitos mobilizados em cada pesquisa. O conjunto de conceitos trabalhados em vista à pergunta, aos objetivos e à natureza de material de análise compõe o que podemos chamar de “dispositivo analítico” (ORLANDI, 2000). Apresentamos, a seguir, algumas noções centrais dos dispositivos analíticos, ou seja, aqueles conceitos que fundamentam a nossa pesquisa a respeito do funcionamento do discurso sobre a criança. Em seu livro Análise Automática do Discurso, Pêcheux (1997), ao definir discurso como “efeito de sentido entre locutores”, distanciou sobremaneira o objeto teórico da AD da noção de mensagem atrelada ao tradicional esquema de comunicação, entendida como transmissão de informação. O objeto teórico com o que se preocupa a Análise do Discurso não é uma simples superação da linguística saussuriana, haja vista que não é um objeto linguístico, mas um objeto sócio-histórico, no qual o linguístico é pressuposto. Trata-se, efetivamente, de outro objeto teórico. O recorte teórico que relaciona língua e discurso não pode ser confundido como continuidade da dicotomia língua/fala, tal como entendido por Saussure, na medida em que a noção de discurso não pode ser posta como uma realização individual do sistema linguístico. Nessa perspectiva, língua e discurso recebem outra significação, pois “nem o discurso é visto como uma liberdade em ato, totalmente sem condicionantes linguísticos ou determinações históricas, nem a língua como totalmente fechada em si mesma, sem falhas ou equívocos” (ORLANDI, 2000, p. 22). A língua é condição de possibilidade do discurso. A relação existente entre processos discursivos e a língua repousa na materialidade da língua. Em outros termos, a língua constitui o lugar material, a base na qual se realizam os processos discursivos, fonte de produção de efeitos de sentido. O discurso, por sua vez, não pode ser considerado um conjunto de frases portadoras de várias significações. Ele é um processo que se desenvolve em determinadas conjunturas só168 Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 cio-históricas, é o lugar em que a ideologia se materializa e estabelece relação com a língua, produtora de sentidos por e para sujeitos. Se a definição de discurso com que trabalhamos é a de efeito de sentido entre interlocutores, como falar de sentidos em uma teoria como a Análise do Discurso? Consideramos a relação dos sujeitos e dos sentidos afetados pela língua e pela história. Cumpre destacar que sujeito e sentido constituem-se mutuamente no discurso. Ou nos dizeres de Orlandi, “ao produzir sentido, o sujeito se produz, ou melhor, o sujeito se produz, produzindo sentido” (ORLANDI, 2004, p. 56-57). O processo histórico de constituição de evidência do sentido faz com que o sentido pareça estar fixado como essência das palavras, como se houvesse um elo que ligasse palavras e seus sentidos e apagasse as determinações históricas e sociais. Em uma perspectiva materialista, os sentidos não existem em si mesmos, não há uma relação transparente com a literalidade, mas são determinados por posições ideológicas no processo sócio-histórico. A literalidade não pré-existe, ela é um efeito de discurso. Esse é o ponto em que destacamos/inserimos o nosso trabalho, visto que não é possível identificar apenas um sentido para o termo criança. Os sentidos que se apresentam como literais são produtos da história, e não o resultado de uma relação natural entre palavras e coisas do mundo. Em determinadas condições de produção, há a dominância de um dos sentidos, mas outros sentidos possíveis ressoam. Por isso, podemos afirmar que toda produção discursiva é investida em processos de significação variados. É preciso ressaltar que “se os sentidos podem sempre ser vários e podem ser outros, isso não significa dizer que o sentido possa ser qualquer um” (ORLANDI, 2004, p. 56-57 grifos da autora). O sentido dominante – ao ser legitimado – fixa-se ideologicamente como sendo o único, o centro; cristaliza-se. Daí, o efeito de literalidade. De forma a historicizar a categoria criança, procedemos à análise dos diferentes materiais que compuseram nosso arquivo. Observamos que a construção de sentidos sobre criança pode ser depreendida em diferentes textualizações, desde tratados até declarações internacionais. A hegemonia do sentido de criança como um vir-a-ser sujeito aponta para a primazia do discurso sobre a criança. Nosso corpus está organizado em torno dos séculos XVIII a XX, e os materiais de linguagem analisados são: artigos acadêmicos; trechos de tratados sobre infância, declaração mundial. Pretende-se com esse corpus buscar regularidades dispersas, comparar diferentes séries temporais, verificar como textos dialogam e apontam para redes de sentidos. Tais regularidades são identificadas na confluência da constituição (interdiscurso) e da formulação (intradiscurso). É a memória discursiva que possibilita a constituição dos dizeres. No movimento, ou melhor, por entre lembrança e esquecimento, que a memória é atualizada no fio de Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 169 cada discurso. E aí (no fio discursivo) podemos encontrar as regularidades. Em outros termos, como se dá o jogo entre o mesmo e o diferente, ou seja, como certos sentidos de criança se mantêm ou se deslocam em função de diferentes condições de produção e da relação mantida com a memória discursiva. A criança e o ludicismo Circulam, em nossa sociedade, enunciados que supostamente definem como é ser criança, quando é ser criança, como tratar a criança, enfim, o que é ser criança. Circulam enunciados que apontam para a criança em formação: uma “semente-de-adulto”. Na formulação de tais discursos, a imagem produzida é da falta. Podemos sublinhar que é uma criança falada pela insuficiência, por seu caráter incompleto em relação ao ponto almejado de vir a ser adulto. Talvez resida aí a pretensa curiosidade da criança posta pelos divulgadores: a de ser adulto. Sabemos que a constituição do sujeito funda-se em sua relação com a linguagem, com a história, com a ideologia. Ao ser apresentada como um sujeito-falado, a criança tem sua imagem construída como se estivesse fora das determinações sócio-históricas e de sentido, tornando-se uma evidência. Nesse movimento de produção de evidência, podemos falar em um gesto de produção de uma categoria: a categoria criança. Devemos explicitar que tomamos o termo categoria tal como em Haroche (1992). Inspirada nos textos de Foucault, a autora destaca que um mecanismo coercitivo do Estado para fins de poder (“governo pela individualização”) classifica os indivíduos em categorias. Em outros termos, “identifica-os, amarra-os, aprisiona-os em sua identidade. Aprisionamento na identidade que é obrigatoriamente exibido por cada um...” (HAROCHE, 1992, p. 21). A criança, em uma suposta identidade, é representada como una, indivisível, ou melhor, como uma criação da modernidade tomada como “uma mônada – unidade substancial ativa e individual; presente, no limite, em todos os seres infantis da espécie humana: sempre a mesma; sempre igual, inquebrantável, inamovível, irredutível” (BOTO, 2002, p. 57). Essa condição de identidade produz a ilusão de que o mundo da criança é algo totalmente desvinculado das relações de produção e reprodução social. Do nosso ponto de vista, a criança não é uma categoria de conteúdo a ser preenchida, mas uma construção sócio-histórica. Em uma perspectiva contrária ao antiespontaneísmo pedagógico, Nosella (2002) afirma que “a criança não é um homem adulto em potencial, não é semelhante a um novelo que já contém ‘enrolada’ toda a linha da vida e que, portanto, basta puxar pela ponta que tudo se desenvolve naturalmente” (NOSELLA, 2002, p. 156). Concordamos que a criança seja um sujeito historicamente determinado, pois não só tomamos a criança como um sujeito 170 Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 social e histórico, mas, sobretudo, simbólico. Tomamos a criança em sua condição de sujeito discursivo. Vale ressaltar que a categoria criança foi produzida nas e pelas relações postas com o sujeito do capitalismo. Diz-nos Smolka (2002) que esse sujeito – o homo racionalis, sujeito da razão – em um esforço de teorização sobre si mesmo, teoriza sobre a criança, ou melhor, cria evidências. Para a autora, o homo racionalis imerso em uma intricada trama, sujeito ao conjunto de ideias, de significações, de esquecimentos historicamente produzidos, a-sujeitado à ideologia, à linguagem, ao inconsciente. É nessa tensão que encontramos a criança como produção humana. Produção certamente orgânica, biológica. Mas não meramente (re)produção da espécie. Produção fundamentalmente simbólica e discursiva. Nomear a criança, conceituar a infância, ou teorizar sobre o desenvolvimento ... faz parte de um gesto de conhecimento tornado possível pela produção de significação característico do próprio Homo – Faber, Simbolicus, Duplex (SMOLKA, 2002, p.123-124). Pa r e c e -n o s q ue a postura encontrada em “Emílio” foi de encontro ao movimento de moralização promovido pelos reformadores da Igreja católica no final do século XVII. As concepções difundidas pela reforma atribuíam à criança a tendência natural ao mal. Nessa conjuntura, a educação foi instituída como principal garantia de ordem pública (VORCARO, 2004). 1 Em suma, para falar sobre divulgação científica para a categoria criança, é preciso, primeiramente, compreender como a criança foi construída no interior da ideologia capitalista e quais foram os efeitos produzidos por seu evidenciamento. Vale registrar que, etimologicamente, o termo criança, de acordo com Mauad (2004), tem sua origem associada ao ato de criação. Da mesma forma que os animais têm crias, a criança é a cria da mulher. Destacando que ‘criar’ refere-se a nutrir, alimentar, fazer crescer. Diz a autora que somente “nas primeiras décadas do século XIX, que os dicionários assumiram o uso reservado da palavra ‘criança’ para a espécie humana” (MAUAD, 2004, p. 140). Podemos dizer que o uso reservado, ou melhor, a passagem de cria animal para criança humana se deu em um período no qual o homem torna-se sujeito e objeto do saber (FOUCAULT, 2007). Historicamente, a criança é falada pelo adulto. Isso significa dizer que, em diferentes conjunturas históricas, a criança é falada diferentemente na relação com o adulto. E mais, cada conjuntura histórica delimita essa relação. De forma a compreender a historicidade que funda os sentidos de criança como um vir-a-ser-sujeito, apresentamos, em linhas gerais, o tratado pedagógico de Rousseau, cujo título é Emílio, ou da educação. Esse tratado foi publicado no século XVIII e talvez seja o primeiro tratado sobre a educação da criança. Nele, Rousseau versa sobre como deveria ser a educação das crianças tomadas como seres bons1 por natureza: “Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos carentes de tudo, precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pela educação” (ROUSSEAU, 2004, p. 9). Observamos em Rousseau o papel da educação frente à criança. É a educação Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 171 que tornará esse sujeito antes fraco, carente e estúpido em um sujeito bom: um sujeito submisso às leis. Um sujeito que deve ser individualizado pelo Estado (por meio de suas instituições, no caso, a escola). Pode-se observar, nesse extenso tratado, que a criança é compreendida por uma clivagem racional: o que a separa do adulto é a “idade da razão”. Para Rousseau, a criança apreenderia a realidade à sua volta mediante imagens e sensações, sendo “as primeiras sensações das crianças [...] puramente afetivas” (ROUSSEAU, 2004, p. 49). A criança, para Rousseau, é inocente, sensível e tornar-seia um bom homem (bom sujeito?) pela educação. Aliás, completa Rousseau, “na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum é a condição de homem” (ROUSSEAU, 2004, p. 14). Além da clivagem cartesiana, encontramos em Emílio o ideário iluminista da igualdade entre os homens; igualdade que está na base das relações jurídicas do capitalismo. Podemos dizer que o tratado de Rousseau foi fundado na dimensão de um Estado civil. Em suma, em Emílio encontramos um determinado modo de ver, pensar, conceber a criança. Seus pressupostos tornaram-se evidências no discurso pedagógico ocidental, no qual sentidos sobre a criança e a educação foram naturalizados. No entanto, Emílio é uma das várias textualizações da discursividade que funda a categoria criança. Para compreendermos como determinados sentidos foram constituídos na obra de Rousseau, faz-se necessário verificar como operou a constituição desse sujeito de direitos civis. Para tal, recorremos a Haroche (1992) que, em seu livro Fazer dizer, querer dizer, ocupa-se em realizar uma análise da história dos mecanismos envolvidos na passagem do sujeito religioso – assujeitado à ideologia cristã; um sujeito marcado por uma “subordinação ao texto e ao dogma” (HAROCHE, 1992, p.57) – para o sujeito jurídico. Cabe dizer que essa passagem não foi automática. Sua constituição tem uma história cujo momento crucial localiza-se no período que vai do século X ao século XIII (HAROCHE, 1992). Um período marcado por transformações no sistema econômico então vigente (o sistema feudal) cuja influência propiciou o enfraquecimento do poder da Igreja. Se até o século XI havia uma sujeição pessoal (relação de vassalagem), nos séculos seguintes, tomou lugar, progressivamente, uma relação centrada nas relações econômicas. Passava-se de uma economia agrícola de subsistência a uma economia de manufatura. Com a sedentarização do comércio (instauração do corporativismo), e a emancipação dos camponeses (reivindicações de direitos e deveres e liberdades) – decorrentes do processo de urbanização, começa a haver uma intervenção cada vez maior do jurídico sobre o religioso. Foi o início do processo de “autonomização” do sujeito. Esse sujeito aparece “aliando obrigação 172 Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 econômica à liberdade jurídica; o sujeito torna-se, assim, livre para se obrigar” (HAROCHE, 1992, p. 69). Imputa-se, no processo de constituição do sujeito jurídico, uma necessidade de clareza da linguagem, de banir a ambiguidade, objetivando melhorar a comunicação, fazendo-se “entender, mas não compreender” (HAROCHE, 1992, p. 84). No cerne da problemática da ambiguidade colocada como um problema de língua está a inteligibilidade do texto legal, que se pretende compreensivo. Instaura-se uma demanda pela clareza, ou melhor, desambiguização e logicidade na relação do sujeito com a língua; uma relação que exige transparência, objetividade, literalidade. Voltando à discussão sobre a constituição do sujeito jurídico, Orlandi (2007a) aponta que o discurso humanista da reforma – expressão da dominação progressiva do sistema jurídico sobre a ordem religiosa, enfraquecida por sucessivas crises, já anunciava o individualismo burguês do século XIX. Com esse sujeito, diz a autora, “não se trata de questionar, mas de entender para se submeter. Há dois polos que se desenham: o da objetividade (caracterizada pelo rigor) disjunto do polo da subjetividade (caracterizado pela indeterminação e o inefável)” (ORLANDI, 2007a, p. 14). Segundo Haroche (1992), o assujeitamento (sujeito jurídico) apoia-se no rigor, na precisão, na transparência, na letra, na técnica: no polo da objetividade. Estabelece, com esse assujeitamento, uma relação entre o direito e o saber: “o direito ao saber, à inteligibilidade, à curiosidade, à abertura, em resumo, todos nascidos da troca e da expansão econômica” (HAROCHE, 1992, p.84). O polo da subjetividade marca o sujeito pela imprecisão, pelo direito à indeterminação. O século XVIII, marcado pela revolução científica, consagra o polo da objetividade, em detrimento do polo da subjetividade. O processo de desenvolvimento científico e tecnológico produziu um sujeito submetido às leis do Estado, leis que se impuseram entre o sujeito e o saber, configurando-o como poder. Para Orlandi (1999), o processo de constituição do sujeito jurídico atinge seu ápice no século XIX, século do individualismo triunfante. O sujeito jurídico é constituído por um equívoco: é interpelado pela ideologia capitalista de autonomia, liberdade e unicidade e é individualizado pelo Estado, o que o torna responsável por si próprio e por seu dizer. Do ponto de vista da Análise do Discurso, é um sujeito dividido que funciona no registro jurídico, com direitos e deveres, como senhor de sua vontade, de suas intenções e responsável por seu dizer, ao mesmo tempo em que funciona por uma memória de dizer à qual ele mesmo não tem acesso e é determinado pela sociedade e pela história (ORLANDI, 2007a). E como se deu a passagem da ordem religiosa à ordem jurídica em relação à criança? Todos os acontecimentos ligados ao desenvolvimento do Direito e à laicização abalaram o mecanismo Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 173 Ariès aponta também que essa valorização se deu com o surgimento de uma nova modalidade familiar: a família nuclear burguesa, trazendo as mulheres e as crianças para o domínio privado e os homens para o domínio público. Destacamos que esse é um modelo burguês de família e não do proletariado. Segundo Boto (2002), a relação mais importante da família medieval dava-se com a solidariedade da linhagem. A criança era considerada um rebento do tronco da comunidade e sua sociabilidade era comunitária. Com o individualismo burguês, a família nuclearizou-se e emancipou-se dos vínculos comunitários, a criança passou a ser considerada no interior das famílias e as relações parentais sobrepuseram-se. O declínio da esfera pública e o aumento de processos de intimidade (domínio privado) no âmbito familiar não podem ser desvinculados dos ideais de ig ualdade, liberdade e defesa da propriedade. As novas relações parentais possibilitaram, dentre outros, a transmissão de propriedade. É possível pensar que a herança passa a ser tematizada para além da propriedade, como por exemplo, a herança genética e cultural. Sobre a última, muito em voga nos séculos XX e XXI, o dever do Estado de proporcionar educação passa a ser quase exclusivamente da família. 2 174 de dominação do sujeito religioso. E, consequentemente, a relação que se mantinha com a criança. A historiografia sobre a criança indica distinções no tratamento dispensado à criança na Idade Média e na Modernidade. Um dos trabalhos mais expoentes (e também muito criticado) é o desenvolvido por Ariès (1981). Em suas teses sobre a evolução da intimidade, Ariès considera que, somente no século XVII, a valorização da criança2 teve início. Para o autor, dois fatores levaram à valorização: a emergência da vida privada (como por exemplo, a nova configuração das moradias, com cômodos separados) e o surgimento de escolas (na modernidade, considerado o lugar de preparação do futuro adulto). De fato, o autor enuncia vários aspectos relacionados em torno da valorização da criança: diminuição da mortalidade infantil, sobretudo, com desenvolvimento da pediatria; desenvolvimento da tipografia (aumentando a demanda de leitores alfabetizados); e o desenvolvimento da pedagogia (com o surgimento de novas correntes teóricas e novos métodos de ensino para aprendizagem de leitura). Todas as questões apontadas por Ariès (1981) relacionam-se à ascensão da burguesia e à constituição de um novo modo de produção. Do nosso ponto de vista, todas essas mudanças, com o avanço do aparelho jurídico, propiciaram a constituição do sujeito-de-direito. Tendo como base a formação do sujeito jurídico, podemos pensar sobre o gesto de produção da categoria criança. Um aspecto que precisa ser retomado nessa discussão são as leis para a proteção da infância. O modo de pensar a criança (visto que ela não fala, mas é falada, e deve ser protegida) acolhe os mecanismos de individualização impostos pelo Estado por meio de suas instituições. No caso da criança, veremos que a instituição escolar é a requisitada para tal fim (ao menos nos em um primeiro momento). Anteriormente, utilizamos “individualização” conforme comparece na obra de Haroche (1992). Acreditamos que tal termo seja tomado como um processo de responsabilização do sujeito. Cabe ressaltar que a partir desse ponto, tomamos a noção de individualização tal como definida por Orlandi (2002). Para a referida autora, a ilusão idealista do sujeito como origem em si mesmo está assentada no desconhecimento de um duplo movimento na compreensão da subjetividade. Em um primeiro movimento, ocorre a interpelação do indivíduo, afetado pela língua e pela ideologia, em sujeito. Diga-se, a forma-sujeito histórica, ou seja, o sujeito capitalista caracterizado como sujeito jurídico. Em um segundo movimento, há individualização dessa forma-sujeito pelo Estado por meio de suas instituições, o que resulta em um indivíduo ao mesmo tempo responsável e dono de sua vontade. Para a autora, nesse duplo movimento “há o caráter irrecorrível do assujeitamento [...] e a possível resistência do sujeito aos modos pelos quais o Estado o individualiza” (ORLANDI, 2002, p. 72). Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 Acreditamos que uma distinção entre a definição de cada uma das autoras em tela é a consideração da noção como um movimento da subjetividade que prevê, sobretudo, a resistência. No final do século XVII, o humanismo decorrente da reforma de Igreja instituía a educação como a principal garantia de ordem pública. Percebemos que o individualismo burguês não surgiu fora de um controle sobre o corpo – as práticas de civilidade. Com os processos de individualização da vida, tais práticas passaram a ser realizadas pela escola. Em um novo lugar social, a criança passou a ser educada e tornou-se “aluno”, como também passou a ser objeto de intervenções (como no século seguinte, em que foi protagonista do tratado de Rousseau). A civilidade teve importante papel no processo de invenção da moderna categoria criança e do que foi chamado “especialização do mundo da criança”. A especialização do mundo da criança ocorreu paulatinamente e vários foram os aspectos envolvidos. Para Ariès (1981), a imposição de uma essência inocente à criança consolidou a mudança no tratamento da mesma. Se anteriormente fala-se sobre sexo diante das crianças, com as reformas moralizantes promovidas pelos reformadores da Igreja, no final do século XVII, os educadores objetivavam incutir um sentimento de culpa nas crianças. Aliadas à inocência, são ressaltadas, nesse período, a fragilidade e debilidade da criança. Peres (1999) sustenta que até o século XVII não havia uma separação entre jogos e brincadeiras infantis e aquelas destinadas aos adultos. Segundo a autora, com o movimento moralizante, muitos dos jogos passaram a ser considerados imorais. A preocupação era preservar a moralidade e educar as crianças. Com as restrições morais impostas, as crianças passaram a se dedicar às brincadeiras e às distrações diferentes das adotadas pelos adultos. Em relação aos contos de fada, no século XVII, aparecem as versões como, por exemplo, as compiladas por Perrault. Conta-nos Bettelheim (1991) que, em sua origem, na Idade Média, os contos de fada eram destinados a entreter a corte. Eram contos que continham doses de sexo, violência, arrogância. Segundo Peres (1999), Perrault higieniza, moraliza esses contos, torna-os “próprios” para as crianças. Com esse gesto de moralização, Perrault funda a literatura infantil, uma literatura destinada a incutir princípios morais. Para Ariès (1981), os adultos perderam, na segunda metade do século XVII, o interesse pelos contos de fada. Havia nesse período dois interesses pela literatura: publicações mais sérias destinadas aos adultos e outras às crianças e ao povo. A inserção da criança no aparato escolar, contudo, deu-se lentamente, sobretudo, para a classe proletária. Com a implantação da revolução industrial no final do século XVIII, a criança tornou-se, desde a mais tenra idade, “trabalhador”. Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 175 Nosella (2002) ressalta que, na fase inicial do capitalismo, o que corresponderia à fase inicial de acumulação de capital, a criança exerceu importante função. Tamanha foi sua importância que, pela primeira vez na história, a sociedade a teria tomado a sério mesmo que fosse, infortunadamente, para “explorá-la como força de trabalho produtiva barata” (NOSELLA, 2002, p. 133). Entretanto, com o desenvolvimento científico e tecnológico, a mão de obra infantil tornou-se obsoleta, pois sua maior contribuição passou a ser considerada no futuro. A criança passa de mão de obra barata para assunto de Estado. Tal passagem não se faz fora do jurídico. Segundo Donzelot (apud VORCARO, 2004), as primeiras leis sociais regulavam o tempo de trabalho das crianças nas fábricas. A partir de 1840, várias normas protetoras da infância se multiplicaram, culminando na primeira Declaração dos Direitos da Criança (1924). Posteriormente, outras declarações foram promulgadas, sendo a declaração de 1959 a adotada pela Assembleia das Nações Unidas. Esse interesse pela criança é resumido por Nosella (2002): só quando a criança se tornou força de trabalho interessante para o capital, começou a ser contemplada pela legislação de forma autônoma de sua família. Foi uma legislação que, num primeiro momento, obrigou a criança a trabalhar e, mais tarde, após o desenvolvimento da grande indústria, a liberou do trabalho [...] a questão da guarda e da educação das crianças tornou-se assunto principal no debate político, na legislação social e nas reformas escolares desde o final do século XVIII praticamente até hoje (NOSELLA, 2002, p. 134). A Declaração dos Direitos da Criança se constitui de um preâmbulo e de dez princípios – partes da textualização do discurso de direitos humanos. O preâmbulo dá sustentação à declaração, uma vez que retoma os pactos de sua elaboração. A retomada de outros discursos que a fundam é materializada pelo termo “visto”. (“VISTO que os povos das Nações Unidas”; “VISTO que as Nações Unidas”; “VISTO que a criança”; “VISTO que a necessidade de tal proteção”; “VISTO que a humanidade deve à criança o melhor de seus esforços”). Em seu princípio primeiro diz-se que “Todas as crianças, absolutamente sem qualquer exceção, serão credoras destes direitos, sem distinção ou discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, quer sua ou de sua família”. Em “Todas as crianças” o efeito de sentido é o de afirmar a igualdade entre as crianças. Funciona, de forma pressuposta, o jurídico, produzindo um efeito de pré-construído: diante da declaração supõe-se que todas as crianças são iguais. Tanto o preâmbulo quanto os princípios se organizam em torno da proteção à criança, que em decorrência de sua imaturidade física e mental, inspira cuidados especiais. À criança devem ser garantidos educação, saúde e diversão. O tra176 Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 balho é proibido “antes de idade mínima conveniente” (Princípio 9º). Mas o que seria conveniente? Parece-nos que o “conveniente” é ditado pelas condições econômicas e políticas de cada país. A criança-de-direitos é uma construção do final do século XIX e, como autora menciona acima, permanece nos dias atuais. A instância de criança-de-direitos está relacionada às revoluções liberais, tanto a Americana quanto a Francesa. O discurso dos direitos das crianças tem seus sentidos sustentados no discurso dos direitos humanos, o qual se funda no discurso da pretensa igualdade (que de fato, apaga as diferenças). Trata-se da categoria-criança sendo produzida como um sujeito de direitos humanos. Orlandi (2007b) destaca que o discurso dos direitos humanos silencia a diferença de classes: fonte de desigualdades. Logo, “a diferença de classes precisa do discurso da igualdade perante a lei” (ORLANDI, 2007b, p. 305). Esse discurso da igualdade também silencia a desigualdade entre crianças. Ressaltamos que a mão de obra barata da criança não foi banida do sistema de produção capitalista. Nas regiões mais pobres, em países periféricos, há bolsões de miséria onde se coaduna o trabalho infantil. Então, o direito à educação e a proibição do trabalho infantil – previstos na Declaração dos Direitos da Criança – não são iguais para todos. Os direitos são destinados igualmente a todas as crianças para melhor excluir muitas. Esse é um equívoco constituído na e pela conjuntura burguesa. O lugar de destaque da educação – que supostamente dá a todos as mesmas oportunidades – e as leis de proteção à criança são produzidos para lidar com a ambiguidade instaurada pelo sistema capitalista que se organiza e se estrutura em torno do lucro e não da dignidade humana. Se, no início do capitalismo, o pátio da fábrica foi o lócus da criança proletária, com o desenvolvimento da industrialização e da tecnologia, ele foi transferido para a escola. Assim sendo, nos séculos XIX e XX, a criança ganhou um novo lugar social. Para Boto (2002), a construção da categoria aluno foi a grande referência de compreensão da criança construída na modernidade. De acordo com o autor, “a estrutura ritual do colégio contribui para a ‘construção do objeto infância’; ou, mais precisamente, para a criação da categoria criança-aluno” (BOTO, 2002, p. 33). As colocações de Boto (2002) apontam para a relação existente entre os processos de escolarização e a produção da concepção de infância nas sociedades modernas. Diríamos a concepção de infância de uma determinada classe. Pensar a criança por meio da categoria “criança-aluno” e não pela categoria “criança-trabalhador”, por exemplo, possibilita-nos compreender como a criança é individualizada pela escola. No acolhimento da infância pelo Estado, este monopolizou técnicas disciplinares e saberes pedagógicos necessários à escolarização. A monopolização dos saberes não somente possibilitou a delegação da educação das crianças ao Estado, como também Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 177 a diluição da circulação dos saberes na sociedade. Em primeiro momento buscou-se a organização da turma e depois outras técnicas de disciplinarização. Uma dessas técnicas foi, segundo Foucault (2006), o ensino coletivo: Nas escolas do século XVIII os alunos também estavam aglomerados e o professor chamava um deles por alguns minutos, ensinava-lhe algo, mandava-o de volta, chamava outro, etc... Um ensino coletivo dado simultaneamente a todos os alunos implica uma distribuição espacial. A disciplina é, antes de tudo, a análise do espaço. É a individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório. (FOUCAULT, 2006, p. 106) Smolka (2002) destaca a teoria evolucionista de Darwin como um registro das relações de herança genética e experiência adquirida, bem como na busca daquilo que diferencia o homem dos animais. Cabe ressaltar que, em outra condição de produção, foi um registro que também tematizava a civilidade. A Teoria de Darwin desembocou um interesse pela mente humana desde a infância até a fase adulta. É nesse contexto que se pretende colocar a criança como a repetição da história do homem, ou seja, que “a ontogênese repete a filogênese” (SMOLKA, 2002, p. 114). Vorcaro (2004) afirma que a posição evolucionista chegou a isolar as fases do desenvolvimento humano recapitulando o desenvolvimento da criança à evolução da espécie humana: “o domínio dos instintos vitais corresponderia à animalidade; à imaginação supersticiosa infantil equivaleriam as culturas primitivas; e o estado de observação reflexiva madura repetiria a racionalidade da civilização” (VORCARO, 2004, p. 29). 3 178 Esse espaço individualizado obedece a um princípio de visibilidade que isola o sujeito de todos os outros (HAROCHE, 1992), passando, dessa forma, o sujeito interpelado pela ideologia a funcionar como um indivíduo, um autômato. Ao longo do século XIX, foram desenvolvidos vários métodos de ensino para as crianças. Era o momento de instauração de uma pedagogia “racional”, preocupada com a racionalização do ensino. Em um novo tratamento dado à infância, não só a organização do espaço foi preponderante, mas também metodologias “renovadoras” baseadas em investigações3 teóricas sobre a criança (análise de funções mentais e de sua fisiologia, leis de seu desenvolvimento). As metodologias foram definidas em função de necessidades específicas: suportar as exigências da modernidade – industrialização crescente e avanços científicos e tecnológicos. Se, nos séculos XVI e XVII, a escola era o lugar da apreensão da civilidade, no século XIX, ela se tornou o lugar para preparar a crianças para as novas imposições sociais. Muitas dessas metodologias basearam-se na promessa ao divertimento, ao lúdico (contrapondo-se ao trabalho). E essa foi uma nova forma de solidificar a categoria criança – unívoca, inquebrantável, como afirma Boto (2002), tornando-a uma especificidade dessa etapa da vida. Por ser a categoria criança enunciada na tensão da relação entre adulto e não-adulto, ela é significada pela falta, pelo o que ela ainda não é, ou seja, um vir-a-ser. A categoria criança não é tomada como um sujeito responsável, mas construída historicamente no interior do aparato jurídico, que a põe como garantia de vir-a-ser-sujeito. Nessa garantia há uma determinação da implicação do futuro que recobre a atualidade – sempre evanescente – da criança. A especularização, a futuralização da humanidade e a correlação de potencialidade permitem produzir um imaginário que coloca a criança como sendo o futuro da nação. De forma a compreender a garantia jurídica de vir-a-serbom-sujeito atrelada à categoria criança, consideramos relevante pensá-la por meio do ludicismo que é aí instaurado. Cabe destacar que o termo foi inspirado no termo juridismo tal como cunhado por Lagazzi (1988). Sucintamente, podemos dizer que o juridismo Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 Para Foucault (2010), a criança, como os loucos, os criminosos, os doentes, os desviantes, estariam sob mecanismos de poder que exercem sobre eles efeitos de repressão, de desqualificação, de desconhecimento, de privação; em suma, “o arsenal dos conceitos e mecanismos negativos da exclusão” (FOUCAULT, 2010, p.38). 4 é uma definição que desvela estreiteza das relações de poder interpessoais cotidianas. O jurídico corresponde à legislação concebida por uma sociedade, o que configura o sistema jurídico. Já o juridismo é compreendido como “intertextualidade da instância jurídica, do Direito” (LAGAZZI, 1988, p. 46). O juridismo está atrelado ao dizer cotidiano que implica o jurídico sem explicitá-lo, ou melhor, como a relação dos direitos e deveres deriva para o senso comum. Isso significa que “se mantém uma certa mobilidade (flexibilidade) entre direitos e deveres, responsabilidades, cobranças e justificativas no cotidiano. [...]. A implicitação é o ponto de sustentação da ordem cotidiana, porque é por onde o simbólico se mantém” (LAGAZZI, 1988, p. 46-47). Intentamos averiguar como a relação da criança com o jurídico é promovida, visto que não há como não se assujeitar à forma histórica do sujeito de direito. Em outros termos, nosso objetivo é analisar, do ponto de vista discursivo, como o jurídico instaura a relação com a criança, produzindo para tal a categoria vir-a-ser-sujeito. Mais especificamente, procuramos compreender como os efeitos de futuridade (visto ser a criança considerada um vir-a-ser) e de proteção são produzidos no discurso sobre a criança. É na instância do jurídico que o sujeito do capitalismo se constitui e não é fora dessa instância que a criança também é constituída como sujeito. Entretanto, algumas observações precisam ser apreciadas. A relação do adulto com a criança pauta-se em relações hierarquizadas de comando-obediência (LAGAZZI, 1988) nas quais a voz da criança não tem vez ou lugar. Quando falamos de obediência, referimo-nos à obediência à medicina, à psicológica, à pedagogia, ao direito que produzem discursos sobre a categoria criança. É uma relação tutelar, uma vez que a criança é instituída juridicamente como aquele que necessita de proteção e de preparação4. Embora não se dê vez à voz da criança, são permitidos a ela o jogo com as palavras, as rimas, os trava-línguas, os chistes, a ambiguidade (colocada apenas como um problema de linguagem) em suma, não ter clareza em seu dizer. Todavia, a criança deve “aprender”, via educação, vir a ser um sujeito ao mesmo tempo livre e submisso, detentor de direitos e cumpridor de deveres, autônomo e responsável. Essa, contudo, não seria tão somente uma questão de aprendizagem, mas, em termos discursivos, podemos compreender como assujeitamento à forma-sujeito histórica. O ludicismo, tal como estamos propondo, perpassa a relação da criança-aluno, criança-não-trabalhador, criança-consumidor, com o jurídico, uma vez que é uma relação que não explicita o jurídico na constituição desse vir-a-ser-sujeito. Podemos dizer que o ludicismo está a serviço do aparato jurídico. Vale sublinhar que o ludicismo não tem relação com o conceito de discurso lúdico desenvolvido por Orlandi (2003). Esse supõe o non sense, o real da língua. Pensamos o ludicismo no nível da Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 179 constituição do discurso de divulgação científica para a criança. Dessa forma, os processos sócio-históricos e ideológicos ali se encontram. É uma relação imaginária – ou como aponta Orlandi (idem), o “faz de conta” que constitui a relação do jurídico com a criança, na qual criança é falada em um espaço de previsões. A categoria criança é atravessada por vários dizeres, de várias ordens, mas, sobretudo, é atravessada pelos dizeres sobre a sua fragilidade, imaturidade, curiosidade, afetividade. Em suma, é atravessada pelo ludicismo de forma a ser assujeitada à forma-sujeito histórica. Algumas palavras finais Neste artigo, trabalhamos com os textos que apontam a dispersão do discurso sobre a criança, visto que tínhamos como objetivo compreender a categoria criança. Cumpre destacar que as análises foram realizadas a partir de um corpus composto por diferentes materialidades textuais. Para analisarmos a categoria criança retomamos as reflexões de Haroche (1992) e Orlandi (2002) sobre o sujeito-jurídico do capitalismo e os trabalhos realizados, sobretudo, no âmbito da história. Observamos que, com a irrupção de um novo modo de produção, a criança foi associada a um período demarcado na linha do desenvolvimento humano, que é a infância. A criança, ou melhor, a categoria criança passou a ser falada em um espaço de previsões. A criança (ao menos a criança de uma determinada classe social) deixou de ocupar lugar na produção. Por extensão, por não trabalhar/fazer, a improdutividade foi imputada ao não-saber. Assim sendo, a criança passou a não fazer e a não saber. Essa condição a definiu como um de vir-a-ser-sujeito. Juridicamente, a criança não fala, mas é falada pela medicina, pela psicologia, pela pedagogia, pelo direito – campos autorizados a observar a criança, demarcar atitudes para distintas faixas etárias, pronunciar sobre seu desenvolvimento, etc. Uma outra questão mereceu destaque. O jogo (desvinculado da seriedade adulta) tornou-se, historicamente, imbricado nas práticas da criança. A “especialização do mundo infantil” produz consenso: a forma de falar a criança. A relação da categoria criança com o jurídico é marcada por um laço pautado no que denominamos ludicismo, uma relação de ordem imaginária, pautada pela futuridade, que faz funcionar uma determinada formulação do discurso sobre criança. Abstract This paper aims to investigate the way the discourse about children operates. It is based on the theoretical principles of French Discourse Analysis, on the tradition concocted by M. Pêcheux. 180 Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013 Notions such as child as a category and ludicismo were proposed in an attempt to understand the way the meanings of subject-child are constituted to make sense through the discourses that circulate in our society. The survey has indicated that the discourse about the child is traversed by a ludicismo that implies the relationships established with the legal sphere, concealing it through playing and game. Ludicismo is also characterized by a projection of the child’s future, the subject’s will-be. Keywords: Discourse about children; category; ludicismo REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. 2a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. BOTO, Carlota. O desencantamento da criança: entre a Renascença e o Século das Luzes. In: FREITAS, Marcos César; KUHLMANN JÚNIOR, Moysés (org.). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002, p. 11-60. FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. 23ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. _____. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 9ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. _____. Os anormais. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. HAROCHE, Claudine. Fazer dizer, querer dizer. São Paulo: Ed. Hucitec, 1992. LAGAZZI, Suzy. 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O objetivo é precisar o funcionamento dessas identificações de modo a contribuir com o trabalho sobre a linguagem na prática do ensino de língua. Palavras-chave: identificação; sujeito; ensino; língua materna; discurso. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013 Introdução Este artigo resulta de preocupações que vêm sendo trabalhadas em estudos e pesquisas mais amplos, que têm como objeto de investigação a relação sujeito/língua(s)1, especialmente os processos de identificação que ocorrem envolvendo essa relação, seus modos de constituição e seus mecanismos de aparecimento no discurso. Neste texto expomos alguns resultados de pesquisa que se vão delineando sobre o funcionamento dessas identificações entre o sujeito e as línguas específicas e/ou formas da língua diversas, sobretudo na prática de ensino-aprendizagem de língua materna2. Nos processos de identificações com a língua nessa prática, localizamos e descrevemos diferentes modos e mecanismos específicos pelos quais as relações entre o sujeito e as (formas das) línguas produzidas na história, envolvendo eventos com a língua, funcionam discursivamente na atualidade, em um nível constitutivo, e se marcam na materialidade da linguagem. Nosso objetivo é precisar o funcionamento dessas identificações de modo a contribuir com o trabalho sobre a linguagem na prática do ensino de língua, bem como em outras práticas em que a acuidade com a língua e os sentidos seja relevante. Para isso, vamos sistematizar os mecanismos discursivos observados no aparecimento dessa relação sujeito/língua, e também vamos expor uma direção de trabalho que se vem esboçando com os sujeitos, considerando a história em que as relações com a(s) (formas das) língua(s) se estabeleceram. A questão P r o j e t o D i s c u r s o, Memória e Ensino de Língua, vinculado ao Grupo de Pesquisa Prát icas de Li ng uagem, Memória e Processos de Subjetivação, cadastrado no Diretório de Pesquisa do CNPq. 2 Agradeço à FAPEMIG pelo apoio à apresentação e discussão destes resultados desta pesquisa no XXVII Encontro Nacional da ANPOLL – UFF, Niterói, 10 a 13 de julho de 2012. 1 184 Em certo sentido, a questão da identificação do sujeito à língua, como correlata da interpelação, encontra-se no cerne da semântica discursiva em que as noções de sujeito, historicidade e ideologia se impõem à consideração da língua, sobretudo em seus aspectos sintático e lexical, enquanto base linguística dos processos discursivos (PÊCHEUX, 1975; 1988). Por outro lado, a noção de identificação, quando mobilizada relativamente ao quê e ao como se ligam o sujeito e determinadas formas materiais da língua (ORLANDI, 1996), conforme vamos trabalhar adiante, adquire outros sentidos, que a especificam teoricamente, ao mesmo tempo em que abrem semanticamente para a direção de compreender o funcionamento desta identificação especificamente na relação do sujeito com a(s) língua(s), no sentido de línguas específicas, variedades de língua e formas materiais distintas, onde o que está em jogo é a pluralidade de efeitos de sentido que se produzem por/ em uma forma linguística ou outra, bem como o efeito-sujeito (de língua) que delas resulta. Na primeira acepção entende-se o funcionamento da identificação sujeito/sentido que se ressalta no cerne da análise de discurso, quando M. Pêcheux (1988) assinala à Linguística, pela Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013 filosofia espontânea do sujeito que a acompanha, o fato de que o indivíduo não é fonte de seus sentidos, e de que “a ‘evidência’ da identidade oculta que esta resulta de uma identificação-interpelação do sujeito, cuja origem estranha é, contudo, ‘estranhamente familiar’” (PÊCHEUX, 1988, p. 155). Na direção da segunda acepção, procuramos trabalhar sobre os processos de identificação em que a língua, sua forma específica em relação ao conjunto de línguas e de formas, se expõe também como algo que participa da construção do objeto do discurso, onde o processo de significação incide sobre e advêm especificamente da materialidade linguística historicamente instalada, de seus sentidos socialmente aceitos como memória e de seus efeitos no sujeito, no seio dos processos de significação. Nesta acepção, a identificação do sujeito em relação às línguas e às suas diferentes formas, como parte do processo de significação, volta-se de modo peculiar sobre a base linguística, assinalando pontos nessa materialidade em que a relação do sujeito com o sentido – a significância – encontra-se em dependência direta de uma impressão de coincidência (ou não) com a forma material. M. Pêcheux (1969) assinalou o valor das imagens que os sujeitos do discurso se fazem de si e do interlocutor como parte fundamental do fato discursivo, chamando a atenção para que também o objeto do discurso (referente) seja compreendido como um objeto imaginário, de onde resultam as diferenciações e disputas entre formações discursivas que instituem e fazem circular os diversos referentes. Nesse sentido, o que está em questão quando se fala em identificação na relação sujeito/língua(s) pode ser indicado ao se pensar, com o autor, que também em torno do “código” (língua) há imaginários funcionando, de modo que a imagem que os sujeitos fazem da(s) língua(s) e das variadas formas em que o objeto do discurso é dito, participa igualmente da produção dos efeitos de sentido, da construção discursiva do referente, assim como do efeito-sujeito em seu perfil linguístico. Referencial teórico e antecedentes Trabalhamos no campo da análise de discurso de orientação francesa, em sua relação constitutiva com o materialismo histórico e a psicanálise. Como dispositivo analítico operamos, fundamentalmente, com a noção de forma material da língua tal como elaborada por Orlandi (1996), para quem a noção de estrutura permite transpor o limiar do conteudismo, mas ela não basta, pois faz estacionar na ideia de organização, de arranjo, de combinatória. Segundo a autora, “é preciso uma outra noção. Esta noção, a de materialidade, nos leva às fronteiras da língua e nos faz chegar à consideração da ordem simbólica, incluindo nela a história e a ideologia. Foi, sem dúvida, a crítica feita ao conteudismo – enquanto perspectiva teórica (filosófica) que mantinha, apesar do estruturalismo (ou justamente por ele), a separação estanque entre Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013 185 forma/conteúdo – que nos abriu a possibilidade de [...] pensar não a oposição entre forma e conteúdo, mas trabalhar com a noção de forma material, que se distingue da forma abstrata e considera, ao mesmo tempo, forma e conteúdo enquanto materialidade. [...] na língua, tem-se a forma empírica (“pata”), a forma abstrata (p/b) e a forma material (linguístico-histórica, ou seja discursiva)” (ORLANDI, 1996, p. 46-49). Trabalhamos também com a noção de silêncio, constitutivo e local (ORLANDI, 1992), e de memória, como memória discursiva, como interdiscurso e enquanto base que regulariza materialidades discursivas complexas (PÊCHEUX, 1988; 1999), e como memória do dizer (ORLANDI, 1999); memória do enunciado (COURTINE, 1999); memória da/na língua e as dimensões materna e nacional que revestem as línguas (PAYER, 2006, 2007, 2011; RÈVUZ, 1998), bem como a noção de processos subjetivos investidos na inscrição do sujeito em uma língua estrangeira (CELADA, 2001, 2011). Também consideramos a história das ideias linguísticas e a constituição da língua nacional no Brasil (AUROUX, 1992; ORLANDI, 2001; ORLANDI e GUIMARÃES, 1996) em que se descrevem processos de gramatização e de institucionalização das línguas no mundo e o modo como os processos históricos ocorrem na relação do Estado e da sociedade brasileiros com a língua, com interpretações advindas de perspectiva teórica não propriamente histórica, mas discursiva, semântica e da própria área da história das ideias. Esta abordagem possibilita observar lugares e modos sócio-históricos e políticos da produção científica sobre a língua, assim como suas representações e discursos sobre a língua que se vão produzindo na história e configurando as práticas de linguagem, incluindo o ensino (ORLANDI E GUIMARÃES, 1996; ORLANDI, 2009; MARIANI, 2004). Nesse campo teórico e no contexto dessa discussão envolvendo o discurso, a historicidade e a(s) língua(s), a pesquisa em que se estabeleceram as bases para configurar um campo de questões sobre a memória discursiva, as identificações e a língua, de nossa parte, incidiu sobre a memória da língua da imigração italiana no Brasil, passando pelas intercorrências políticas e ideológicas em torno do nacionalismo na década de 1930, que resultaram em uma forte tensão entre a língua nacional brasileira e as línguas maternas dos imigrantes, o que culminou na interdição destas últimas e consequentemente interferiu na constituição desses sujeitos de lingua(gem). Por essa via tenho estudado a noção de memória discursiva (o interdiscurso, a memória do dizer, a condição do legível) pensando-a relativamente à língua. Esses estudos permitiram configurar um campo de questões que especificam o processo de identificação dos sujeitos em relação à língua, seja como língua materna, seja como língua nacional, segundo uma modalidade própria de identificação que é a que se dá em torno da memória da/na língua (PAYER, 2006). 186 Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013 A obra citada é “A Desidentificação”, in O. Man noni et al. As identificações – na clínica e na teoria psicanalítica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 196. 3 Assim considerados, pelos processos discursivos observados, transcorridos na história dos sujeitos, produzem-se certos fatos de linguagem que se compreendem como decorrentes dos processos de identificação que se dão na história da relação sujeito/ língua(s), envolvendo acontecimentos como o silenciamento de uma língua no domínio público, a sua permanência no domínio privado, pelo que ela pode vir a ocupar lugares específicos no simbólico, pelas vias tanto da memória discursiva sobre a língua, quanto da memória na língua ela mesma, em estruturas transformadas, que se vêm apresentar nas franjas (traços, marcas) da língua materna apagada. Em pesquisas anteriores descrevemos alguns processos de identificação sujeito/língua(s) através de eventos na linguagem, como o riso que acompanha enunciados em dialetos, o canto na língua dos antepassados, a denegação dessa língua na constituição linguística do sujeito, a ultracorreção em língua nacional e as marcas de dialetos italianos nos mais diversos níveis da língua, em que atua certa memória e identificação a outra língua (“passada”): na memória fonética, morfológica, semântica, lexical, sintática, em expressões e em fragmentos isolados nas conversações cotidianas (PAYER, 2003; 2006). Estudando os processos identificatórios na inserção em segundas línguas, Serrani-Infante (1998) observa que essa inserção se dá também em discursividades da língua alvo, uma vez que sentidos encontram-se instalados na língua anteriormente (interdiscurso). Trabalhando com conceitos da análise de discurso e da psicanálise, a autora considera a identificação como “a condição instauradora, a um só tempo, de um elo social e de um elo com o objeto de desejo do sujeito” (SERRANI-INFANTE, 1998, p. 252). Nesse sentido, ressalta que “aquilo que está em jogo, sempre, numa língua ou em outra, é dizer-se a própria verdade de sujeito do discurso e do inconsciente, e isso será o determinante no acontecimento da aquisição e suas implicações identitárias” (Idem, p. 258). Citando O. Mannoni3, observa que “uma identificação é uma captura. Aquele que se identifica talvez creia que está capturando o outro, mas é ele quem é capturado” (Idem, p. 253). Entendemos que os processos de identificação entre o sujeito e a(s) línguas envolvem também lugares de interpretação do sujeito e a sua relação com as imagens das línguas e as dimensões (materna, nacional, estrangeira) que elas ocupam relativamente à história, tais como as imagens e dimensões de língua materna, estrangeira, de imigrante, indígena, de prestígio, popular, etc. Participam da formação dessas imagens que presidem os processos de identificação os movimentos das políticas de línguas, nas práticas discursivas como a propagação, a injunção, a interdição e o silenciamento das línguas, pelas situações de conflito e tensões entre a língua materna e a nacional, situações de apego ou desprendimento, de passagem pelo sujeito de uma língua a Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013 187 outra, como nas imigrações, refúgios e exílios, sempre segundo condições de produção específicas. A propósito desses eventos e relações com a língua, lembramos a elaboração de C. Révuz (1998) segundo a qual a língua “não é e nunca será totalmente dissociável do modo singular pelo qual ela foi encontrada através das falas das pessoas a seu redor”. A língua “é vivenciada, intimamente, como uma língua que diz o prazer ou o reprova, uma língua que desfere a verdade sobre o mundo e as pessoas ou que, pelo contrário, deixa um espaço para algo não-sabido, não-compreendido, espaço que a fala do sujeito poderá ocupar” (RÈVUZ, 1998, p. 26). Há razões para considerarmos que também eventos mais contundentes e amplos em relação à língua, tais como a interdição e a desqualificação ou a difusão e o culto imprimem a sua força e as suas marcas a esse “modo singular” pelo qual ela é encontrada pelo sujeito através das falas das pessoas ao seu redor. Processos, modos e mecanismos da identificação sujeito/língua(s) Em algumas práticas de linguagem a relação do sujeito com a(s) língua(s) tal como se formou na história é posta mais diretamente em questão, também como objeto de discurso. Os campos da pedagogia, alfabetização, escrita, ensino de língua estrangeira, materna, literatura, assim como situações de (i)migração são algumas dessas práticas, nas quais vimos observando esta relação, e de que fazem parte os materiais de análise a que nos dedicamos, constituídos de produções de linguagem oral e escrita, como textos, escritos, leituras, aulas de alfabetização, conversas entre profissionais destas áreas e entrevistas. Nestes materiais analisam-se a relação dos sujeitos com a(s) língua(s) em atividades de linguagem como negociações, diálogos, debates, injunção a dizer, bem como nos aparecimentos circunstanciados de determinados mecanismos que indicam certos modos de identificação com a(s) língua(s). Alguns se manifestam através do riso, ao rir da língua, pela língua; outros no gesto de cantar determinadas canções e músicas em línguas específicas, de imigração ou estrangeiras; na supervalorização da língua; na denegação da presença de dada língua, bem como na ultracorreção, no equívoco e em manifestações de estranhamentos (FREUD, 1919) em relação às formas da língua. As identificações do sujeito quanto à língua e suas formas materiais se produzem, portanto, em processos constituídos na historicidade dessa relação. A história predispõe assim a relação dos sujeitos com as línguas que se lhe apresentam, enquanto objetos simbólicos, políticos e artísticos. A relação sujeito/língua(s) é atravessada por movimentos de (des)identificação em que se processam semelhanças e diferenças entre formas linguísticas e históricas, estranhamentos e reconhecimentos, aceitações e 188 Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013 recusas, enfim, movimentos através dos quais vão se instalando, de um modo e não de outro, as (des)identificações entre sujeitos particulares, sempre tomados em uma rede de eventos e relações históricas, e as formas específicas, atravessadas portanto por relações diversas, tensas ou de deleite, admiração e culto (cultivo), especialmente no interior do Estado Nacional Moderno. Em trabalhos recentes na docência e pesquisa junto a professores de língua(s), vimos observando que no tecido discursivo manifestam-se esses pontos de tensões, de estranhamento ou de adesões em relação à língua, e entendemos essa manifestação como sintoma de algo significativo em relação à história do sujeito com a língua, na formação de um sujeito apto à significação – algo que retorna, indicando um material a ser ouvido, interpretado e trabalhado sobre a relação do sujeito com a língua(gem). Atentos a essas manifestações, passamos a anotar os modos diversos pelos quais elas irrompem na materialidade discursiva, indicando os pontos a serem trabalhados com os sujeitos específicos sobre o que os constitui nessa relação com a língua. Assim, para a presente pesquisa, a hipótese de trabalho que se apresenta é a de que esses processos de identificação na relação sujeito/língua(s) vêm manifestar-se no tecido discursivo através de modos e de mecanismos específicos pelos quais se expõem as identificações já constituídas com a língua. Objetivamos circunscrever os modos de relação e mecanismos discursivos desse processo a fim de descrever/interpretar como funciona essa identificação. Trabalhamos a ideia de que a prática ou a interlocução atual joga um papel importante no aparecimento circunstanciado desses mecanismos. Alguns desses modos e mecanismos pautam-se na materialidade linguístico-discursiva, outros se manifestam em modos discursivos diversos, outras materialidades e outras ordens, tais como a ordem corporal, pelo riso e expressão facial. Os processos de identificação em relação à(s) língua(s) são constitutivos do sujeito de linguagem, participando da subjetivação no que diz respeito às línguas, bem como à relação que aí se estabelece dos sujeitos com a linguagem, configurada que é por interdições e injunções a uma língua e não outra, a um modo de dizer e não outro. Essas regionalizações linguísticas que recortam o dizível foram observadas por M. Pêcheux (1975), em um sentido um pouco diverso, pela metáfora de que no interior da mesma língua se falam “línguas diferentes”, e que em seu texto remete a diferentes formações discursivas no dizer. Podemos retomar essas imagens considerando com o autor que enunciar em uma ou outra língua ou forma material produz inscrição em uma ou outra formação discursiva. Nos fatos, essas separações (regionalizações) da língua nem ocorrem de maneira tão distinta e linear. É também em uma teia de efeitos de sentidos e posições-sujeito que essas formas se vinculam, se sobrepõem e se (des)ligam. Importa assinalar que Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013 189 os efeitos de sentidos que resultam dessas relações do sujeito com as línguas e suas formas diferentes (re)aparecem no tecido do discurso, indicando a densidade dessas identificações produzidas na história e que se reapresentam de algum modo nas atividades de linguagem e na materialidade do discurso. Esse reaparecimento se dá, pois, de diferentes modos. Ora essas identificações são representadas pelo sujeito, como uma presença/ausência de outra língua, ora aparecem de modo constitutivo, na exterioridade dessa representação, tomadas como evidências da língua, da linguagem, dos sentidos, de uma corporeidade afetada pela significação. No que se segue, apresentamos algumas situações de linguagem e um esboço de análises em que a identificação sujeito/ língua, tal como está constituída no discurso, vem expor-se na superfície do dizer, manifestando-se de diversos modos. Situações e análises 1. Clarice Lispector escreve em uma de suas crônicas a palavra outrem, fazendo-a acompanhada de todo um entorno que diz respeito à relação com a língua, através desta palavra. “entregar-se a pensar é uma grande emoção, e só se tem coragem de pensar na frente de outrem quando a confiança é grande a ponto de não haver constrangimento em usar, se necessário, a palavra “outrem”. Além do mais exige-se muito de quem nos assiste pensar: que tenha um coração grande, amor, carinho, e a experiência de também se ter dado ao pensar” (C. Lispector, Brincar de pensar, in A descoberta do mundo. Grifos nossos). Sobre a forma material do português arcaico, onde ele se mescla com o registro em latim (qual o limite entre essas memórias das línguas?), a escritora formula algo sobre a confiança e o constrangimento de enunciar ou não um elemento como este (outrem) na escrita. O sentido de constrangimento mencionado remete ao tema do estranhamento em face das formas da escrita, tal como manifesto por crianças em alfabetização (SOUZA, 2010), que retomaremos adiante. Nesta situação encontra-se portanto um procedimento metaenunciativo (AUTHIER-REVUZ, 1998) sobre a (forma da) língua e seus efeitos. 2. A coordenadora de pós-graduação lato sensu de uma Universidade, sujeito de quem se tem a imagem de experiente e ativo nos campos acadêmico, médico e político, conversa engajadamente ao telefone, explicando ao interlocutor uma situação um pouco complicada, e em dado momento se desculpa de um modo peculiar, com a forma descurpa, com ênfase na variação consonantal pronunciada. Pelo tom engajado da conversa, embora institucional, o pedido de desculpas possivelmente fosse considerado desnecessário para os interlocutores, mas dadas as posições, mesmo assim ele se realiza, parcialmente, como em um jogo em 190 Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013 que se dissesse: você e eu sabemos que não seria necessário isso, mas pela posição de que estou falando, é o caso de dizer... Essa multiplicidade de sentidos se materializa na substituição da forma desculpa (me desculpa ou desculpa(e)-me) por outra forma que pode ser interpretada como alheia, pronunciada por uma “voz anônima”. Dito desta forma, nesse contexto, o enunciado produz um efeito de ambiguidade e pluralidade entre realizar efetivamente o gesto de se desculpar e indicar que ela sabe que naquela específica relação este gesto seria até certo ponto dispensável. Não é o caso de optar entre um ou outro efeito, pois discursivamente o que tem valor de expertise nessa interlocução está justamente na pluralidade de efeitos com que se enuncia, e que se marca através da simulação de uma forma linguística que a princípio seria diferente da “sua” própria. Outras situações de simulação analisadas assemelham-se à imitação de outro interlocutor, de outra posição discursiva. 3. Crianças em situações de alfabetização, tal como analisadas por Souza (2010), como antecipamos, expressam com frequência seus estranhamentos diante das diferentes formas da língua, as que já sabem e as que devem vir a conhecer na escrita. Uma situação marcante dentre essas manifestações ocorre quando uma das crianças, diante da intervenção corretora da professora alfabetizadora, contra-argumenta: “mas o meu pai fala assim”. Souza reflete sobre o modo como a criança explicita, sobre a língua, a observação de que a forma linguística usada por ela (assim como pelo pai, pela mãe, pela comunidade) – e que constitui língua em sua memória discursiva – não seja acolhida pela professora. Trata-se de uma situação em que a criança se depara com a divisão tanto da língua quanto da autoridade de quem institui para ela a língua. Sabe-se que, conforme a teorização lacaniana, a figura paterna representa a lei. Pela análise de discurso, o pai representa uma posição discursiva que funciona na base da imagem de autoridade. Nesta situação está-se diante de um ponto de irrupção do modo como está constituída a relação da criança com a forma da língua, e a resistência a desidentificar-se com essa forma. 4. C. M. da Silva (2012) explicita como os sujeitos procedentes de diferentes processos de imigração (esporádica, esparsa, em massa, do pós-guerra) têm as suas identificações com as línguas materna e nacional afetadas de modos distintos. O pesquisador observa: para os imigrantes em massa, que conheceram [...] a interdição de sua língua, não é indiferente falar em português ou em italiano, enquanto para os imigrantes esparsos e dos do pós-guerra, que não conheceram essa interdição pontual, a passagem de uma língua a outra se faz sob o efeito de uma ‘naturalidade’, como eles dizem. Não há a marca de língua interditada em relação ao italiano como língua materna, tampouco a imagem da língua portuguesa como ligada a um funcionamento jurídico-político (SILVA, 2012, p. 56). Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013 191 Nessa situação, nota-se como os acontecimentos linguísticos marcam o sujeito constituindo diferentemente a sua relação com as línguas, de modo a produzir em relação à sua enunciação diferentes efeitos, como o de naturalidade, na evidência da linguagem, e ausência de intervalos de silêncios significativos, indicativos, segundo a interpretação do pesquisador, de intervenções vivenciadas em relação à língua e sua história, como fica ressaltado nas entrevistas com os imigrantes do pós-guerra. Nesta situação podemos destacar, das relações de (des)identificação com as línguas, a irrupção do silêncio, o efeito de naturalidade no dizer e a presença de efeitos jurídico-políticos na enunciação de uma língua ou outra. 5. Consideremos ainda as inúmeras situações de riso que seguem enunciados com formas linguísticas de dialetos de imigrantes – em massa, que se defrontaram com a interdição oficial da língua materna. Junto ao riso ocorre a imitação dos jovens (falantes de português) em relação aos velhos (falantes de dialetos ou com suas marcas acentuadas), numa ambiguidade entre uma identificação carinhosa e a exposição da alteridade linguística. Consideramos que a manifestação do riso diante das formas linguísticas constitui uma manifestação de (des)identificação de outra ordem, uma manifestação corpórea de pontos de tensão, que não passa pelo trabalho da formulação do equívoco pela simbolização da diferença, como vimos formular-se na situação acima analisada4. 6. Alunos do ensino médio foram mobilizados para ler crônicas de C. Lispector e em seguida escrever sobre sua leitura (SILVA, 2012). Dentre esses escritos encontram-se sinais de uma identificação constitutiva, na escrita de uma das alunas (Marina), com a leitura da literatura desta escritora, assim como uma imitação de suas formas literárias: a pontuação, a construção sintática, a simulação de uma enunciação cotidiana, entre outros. Apresentamos um fragmento de texto da aluna: Desenvolvimentos de análises do riso, da denegação, da ultracorreção e do canto como modos do processo de identificação em língua materna encontram-se em Payer, 2003. 4 192 Já ouvi falar, não me lembro quem falou e muito menos quem a escreveu, mas ouvi! E era uma frase que dizia mais ou menos assim “toda felicidade vem embrulhada num fino papel de tristeza.” E foi dessa frase que me lembrei lendo a crônica “Medo do desconhecido” de Clarice Lispector. [...] E pensando no que escreveria agora, lembrei-me de uma outra frase de Clarice Lispector “O que sinto não é sempre o que sinto e sim outra coisa”. Porque esse não é um texto, são palavras unidas expressando um “pensar”. Isso é texto? Sei lá. Mas não quero expressar o que sinto de um modo grosseiro, por isso escrevo agora com o coração. Talvez o mesmo coração que Clarice, acho que agora ela está em mim e isso me traz felicidade, a mesma felicidade vaga e inexplicável de que ela falava na crônica... (SILVA, 2012, p.100-101). O texto da aluna indica ainda a formulação de uma relação de intertextualidade em sua relação com a leitura de outros textos Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013 da autora, bem como uma desidentificação, se não resistência crítica, com o gênero textual da “redação”, tema insistente no ensino médio envolvido com a preparação para o vestibular. Mencionamos acima algumas dentre as muitas e diversificadas situações de linguagem reunidas no corpus da pesquisa, a fim de indicar como se expõem os modos diversos (constitutivos, representados ou de outra ordem, como a corporal) dos mecanismos discursivos que manifestam na materialidade do discurso o funcionamento de um processo de identificação do sujeito em relação à(s) língua(s) e formas linguísticas presentes em sua história e nas práticas discursivas atuais. Podemos sistematizar estes e outros mecanismos, já estudados em outros momentos, em um esquema como o que segue. 1. Procedimentos meta-discursivos sobre língua: comentários, mecanismos meta-enunciativos. 2. Modos não-formulados: equívocos, ironia, lapso, estranhamento, autocensura. 3. Relação não representada com a língua: denegação, ultracorreção, imitação, simulação. 4. Irrupção de ordem corporal: riso, expressão facial, gesto. 5. Formulação representada: explicitação de pontos de identificação e de (des)identificação com a língua. Não vamos aqui, pelo espaço-tempo deste texto, descrever todos os mecanismos mencionados no esquema acima, que foram e estão sendo objeto de trabalho em outras partes da pesquisa. Apenas gostaríamos de assinalar um modo de organização destas relações, enquanto processos (de identificação), modos (representados ou não, formulados ou não, irrompendo em ordens e materialidades significantes diferentes), e mecanismos pelos quais se manifestam na materialidade discursiva essas (des)identificações (meta-enunciação, ironia, imitação, etc.). Esta organização, ao nosso ver, dá conta de indicar a especificação conceitual da noção de identificação, como dissemos no início, ao abrir para uma direção que a considera, no seio do discurso, na relação do sujeito com a(s) língua(s). Dentre esses modos e mecanismos, gostaríamos de ressaltar um deles, que ao nosso ver tem um valor crucial para a prática de ensino de língua. Trata-se, no domínio da representação, da formulação desses processos. Consideramos importante que os sujeitos de linguagem possam alcançar essa capacidade de formulação, de modo a poder colocar em palavras, dar linguagem, elaborar esses pontos de (des)identificação que constituem a sua relação com as formas materiais, com os sentidos, como “gestos reconhecidos e não denegados”, como diria Michel Pêcheux (1982). A direção de trabalho em que se está investindo desse modo é de que esses pontos tensos da história dos sujeitos com a(s) língua(s) possam ser trabalhados de modo a se tornarem saberes para o/do sujeito sobre si mesmo e sobre as línguas. Em Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013 193 uma história cheia de multiplicidade silenciada como a nossa, há indícios de todo um material de memória das línguas (seus sentidos e seus sujeitos) funcionando de modo subterrâneo, não reconhecido e pouco institucionalizado. O predomínio entre nós do formalismo e do positivismo em termos de história das ideias linguísticas dificulta uma representação mais condizente com os sujeitos simbólicos realmente presentes em nossa história social. Além disso, notam-se marcas impressas nos sujeitos em práticas escolares repressoras sobre a língua, que incidem na sua relação com a linguagem, levando a uma redução dessa relação, na escola, a uma relação com a forma, em detrimento dos efeitos de sentido. Há uma potencialidade no material simbólico que atua nos subterrâneos, em um e em outro caso, demandando olhar, escuta, atenção e um trabalho qualificado, enfim, sobre as marcas dessas relações. Esse trabalho pode levar esse material a deixar de atuar no obscuro dos sentidos e vir a tomar lugar na superfície do dizer, em formulações expressas e representações “que dizem a própria verdade de sujeito do discurso e do inconsciente”, como dizia Serrani-Infante (1998). Num grau máximo desse trabalho qualificado sobre a relação sujeito/língua, esses pontos de (des)identificação podem vir a ser exercidos politicamente, e também vividos poeticamente, à maneira de C. Lispector, que soube explorar tão bem as suas próprias (des)identificações em relação à língua, aos sentidos, ao mundo “evidente”. Concluindo Procuramos circunscrever e precisar o funcionamento discursivo indicado por pontos de irrupção, na materialidade discursiva, da identificação sujeito/língua(s). Para as práticas profissionais com a língua resta avaliar sua operacionalidade analítica, a fim de compreender como está se dando para os sujeitos essa (des)identificação, e como ela pode ser trabalhada para ganhar terreno sobre o não sabido e o não reconhecido em relação à língua. Importa aqui pensar esses processos no ensino: na leitura, na escrita, na elaboração, tanto dos sentidos e do texto quanto do sujeito de linguagem. Entender os processos, os modos e os mecanismos dessa identificação sujeito/língua pode contribuir para compreender as vicissitudes por que passam os sujeitos no processo de subjetivação, como diz Celada (Payer e Celada, 2011) em sua inscrição na língua. E isso, sobretudo quando outros processos já se instalaram também na relação entre os sujeitos e as línguas através da história. Deste modo se compreende melhor como a língua pode ser posta, no ensino, como objeto não só de conhecimento, mas também de relação e de identificação. 194 Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013 Abstract This article presents the results of a research that has as object of investigation the identification process that involves the connection between the subject and the language(s), its manners of constitution and its appearance mechanisms in the discourse. Above all, situations on the practice of learning-teaching of the mother tongue are observed. We located and described different methods and specific mechanisms through which the connection between the subject and the material form of the language formed in history function discursively, currently, in a constitutional level, and are marked on the language’s materiality. The goal is to precise the functioning of these identifications to contribute with the work about language in the practice of language teaching. 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Ao ocuparmo-nos das figuras identitárias, traçamos como objetivos centrais deste artigo: 1) produzir uma teorização acerca dessa noção no campo da AD, a partir da relação entre os conceitos de figura, memória e identificação; 2) explorar a sua produtividade analítica, a partir das figuras do cangaceiro e do compadrito. Palavras-chave: memória; figuras identitárias; identificação. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 Palavras iniciais Este trabalho surge de uma inquietação acerca do funcionamento dos discursos que se produzem em torno de determinados lugares sociais, cuja presença-ausência continua ecoando ao longo do tempo – seja em narrativas histórias ou ficcionais, seja em discursos na internet –, ora como modo de designar a si mesmo, ora como forma de (des)identificar-se ao outro. Apesar de poderem apresentar funcionamentos diversos, esses lugares têm em comum o fato de participarem da construção identitária de grupos sociais. Observando, então, o funcionamento de alguns discursos acerca de personagens como o cangaceiro e o compadrito, chegamos à noção de figuras identitárias (DE NARDI; GRIGOLETTO, 2012). Entendemos que a figura representa a cristalização de elementos que caracterizam um lugar social, o qual passa a ser nuclear na construção identitária de um grupo, ainda que haja incessantes desdobramentos nos processos de (des)identificação dos sujeitos com esse lugar. Partindo dessa reflexão, surgem alguns questionamentos que orientarão o percurso que realizaremos neste artigo. O que faz com que essas personagens se colem a diferentes épocas e discursos, fundando determinados lugares sociais? Qual o papel das figuras nas construções identitárias e qual o funcionamento da memória nesse processo? O que caracteriza o funcionamento de figuras como o cangaceiro e o compadrito nos discursos em análise? Para refletir sobre essas questões, utilizaremos o referencial teórico da Análise do Discurso de linha pecheuxtiana, especialmente aqueles trabalhos que se dedicam a pensar as relações entre a memória e os processos de identificação. Inicialmente, vamos nos dedicar a discutir a noção de figuras identitárias para, em seguida, trabalharmos a sua relação com a noção de memória. Por fim, apresentaremos algumas análises de discursos produzidos em torno das figuras do cangaceiro e do compadrito. Figuras identitárias: especulações e desdobramentos O tratamento das figuras identitárias e de seu lugar nos processos identificatórios exige que pensemos, inicialmente, no que vamos entender, neste trabalho, como lugar social. Ao situarmo-nos no campo da Análise do Discurso, somos levados a observar as relações entre os diferentes espaços que são colocados em jogo nos processos discursivos. Embora não se trabalhe na AD com o sujeito empírico, tampouco com uma cisão entre os espaços empírico e discursivo, é preciso levar em consideração as determinações sócio-histórico-ideológicas às quais o sujeito está exposto ao inscrever-se no discurso. Conforme reflexão feita por Grigoletto (2008, p. 53), entendemos o lugar social “como ponto de ancoragem para a constituição da prática discursiva”. Assim, os diferentes lugares sociais que todos nós podemos ocupar, en198 Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 “Um soldado francês não recua”, significa, porta nto, “se você é um verdadeiro soldado francês, o que, de fato, você é, então você não pode/deve recuar”. (PÊCHEUX, 1997, p. 159) 1 quanto sujeitos empíricos, ao mesmo tempo determinam e são determinados pelas práticas discursivas. “O sujeito sempre fala de um determinado lugar social, o qual é afetado por diferentes relações de poder, e isso é constitutivo do seu discurso. Então, é pela prática discursiva que se estabiliza um determinado lugar social/empírico.” (GRIGOLETTO, 2008, p. 54). A noção de figura, tal como estamos entendendo aqui, funciona, no interior dessas práticas, contribuindo para a cristalização e/ou deslocamento de determinados lugares sociais, representativos de grupos específicos que fazem parte da história de um povo: o cangaceiro e o compadrito. Embora funcionem de forma diversa, essas são figuras emblemáticas nos discursos sobre a constituição identitária do nordestino e do porteño. Pêcheux (1975) traz o exemplo do soldado francês1, mostrando como a norma identificadora determina os lugares sociais de cada sujeito, sob o efeito do ideológico. Portanto, os lugares sociais ocupados pelos sujeitos em uma formação social já são moldados em função de condições histórico-ideológicas específicas. Assim, ao dizer, inscrever-se num determinado discurso, o sujeito carrega traços desse lugar que ocupa socialmente. No entanto, esses lugares, embora mais estáveis quando se situam no espaço empírico, podem sofrer deslocamentos/atualizações ao serem discursivizados. O que nos interessa aqui é justamente observar como esses deslocamentos são operados em discursos atuais que tematizam as figuras do cangaceiro e do compadrito. Ao propormos a noção de figuras identitárias, pensamos (DE NARDI; GRIGOLETTO, 2012) em um conceito que nos permitisse analisar os processos discursivos mediante os quais se produzem, em determinados grupos sociais, identidades locais que se personificam, funcionando como lugares historicamente constituídos cujos traços vão deixando marcas na constituição identitária do sujeito. Portanto, tratar do funcionamento dessas figuras exige que pensemos na própria noção de identidade e sua compreensão dentro do quadro teórico do AD. Compreender a identidade como uma construção marcada pela historicidade é o que buscamos neste trabalho, por isso, ao pensar as identidades nacionais, voltamo-nos para Hall (2006), que nos mostra ser a sua produção o resultado de um processo de enfrentamento com o outro, seja para negá-lo, seja para aceitar a heterogeneidade e o hibridismo como elementos dessa identidade que se institui. Para o autor, importa lembrar, no entanto, que por trás de todo o desejo de unidade há sempre o risco de se suprimir tanto as diferenças culturais, quanto a historicidade inscrita em todo processo de construção de identidades. Assim, ainda que não vivamos mais o tempo das identidades nacionais, tais reflexões nos interessam porque todos os processos de globalização podem levar a um apagamento do local em nome da criação de uma universalidade. A reação a esse apagamento pode ser, contraditoriamente, o retorno ao local, o que instaura a Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 199 necessidade, segundo o autor, de considerarmos a tensão entre o global e o local, observando como ela está se articulando. A atualização do que temos chamado de figuras identitárias faz com que nos inscrevamos justamente nesse espaço de tensão para observar se, em alguma medida, essas figuras ainda podem ser consideradas espaços de identificação dos/para os sujeitos que fazem parte dos grupos sociais de que elas são representativas. Isso, no entanto, não pode ser feito antes de observarmos que a noção de identidade, quando deslocada para o campo da AD, leva-nos a Pêcheux (1997, p. 155) e sua consideração de que a “evidência” da identidade oculta que esta resulta de uma identificação-interpelação do sujeito, cuja origem estranha é, contudo, “estranhamente familiar”. Tal evidência produz o ocultamento da cisão, da movência inerente aos processos discursivos por meio dos quais a identidade aparece como se fosse UNA. O sujeito, ao ignorar a sua condição de assujeitado, constitui-se enquanto fonte e origem do seu dizer e, no repetir incessante dessa suposta unidade, fabrica-se a cristalização de UM sentido, de UMA identidade, de UM lugar social. Capturar A identidade está, para a AD, na ordem do impossível, e é por isso que, ao questionar essa evidência, passa-se a trabalhar com os processos de identificação, procurando compreender momentos de identificação2 por que passa o sujeito, imerso na dispersão. Para o sujeito da AD, que é “fruto de múltiplas identificações – imaginárias e/ou simbólicas – com traços do outro que, como fios que se tecem e se entrecruzam para formar outros fios, vão se entrelaçando e construindo a rede complexa e híbrida do inconsciente e, portanto, da subjetividade.” (CORACINI, 2003, p. 203), não há nunca uma identidade que esteja pronta e a qual ele possa se acomodar definitivamente: falamos de um sujeito do/no discurso, atravessado pela ideologia e pelo inconsciente, rodeado por espaços de identificação com que se filia (ou não) e a partir dos quais constrói um lugar de dizer. Trata-se de um sujeito imerso em um processo constante de movimentos de (des)identificação em sua relação com o simbólico, movimentos ancorados no imaginário que se constrói sobre determinados lugares sociais, os quais abrigam, em sua discursividade, dizeres e sentidos que ecoam/ressoam em diferentes momentos sócio-históricos. Entendemos que é justamente a análise dessas discursividades que nos levará aos indícios de como se constituem e trabalham as figuras identitárias no processo de (re)construção de identidades locais e/ou regionais. Ainda, para pensar o conceito de figura, podemos olhar para Pêcheux (1997, p. 154) quando, ao referir-se à noção de interpelação ideológica, ele recorre a esse termo. A figura aparece em Pêcheux pela referência que ele faz à reflexão de Althusser sobre o processo de interpelação, a fim de mostrar que a figura da interpelação é como uma “ilustração”, um 200 Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 O que tomamos como momentos de identificação aqui está relacionado ao que Pêcheux (1975) teorizou sobre as modalidades de tomada de posição do sujeito. Essas modalidades resultam, segundo o autor, da relação de desdobramento entre o “sujeito da enunciação” e o “sujeito universal”, podendo ocorrer em três diferentes movimentos do sujeito. Na primeira modalidade, que caracteriza o discurso do “bom sujeito”, há uma superposição, uma identificação plena entre o sujeito da enunciação e o sujeito universal, ou a forma-sujeito. Na segunda, que caracteriza o discurso do “mau sujeito”, há deslocamentos, de modo que o sujeito da enunciação se contra-identifica com o sujeito universal. Na terceira modalidade, há uma desidentificação entre o sujeito da enunciação e o sujeito universal, de modo a produzir uma ruptura com os saberes/ sentidos daquele FD em que ele enunciava, passando a enunciar numa nova FD (PÊCHEUX, 1997, p. 215-217) 2 “exemplo”, ao mesmo tempo reconhecível e abstrato o suficiente para dar origem ao conhecimento. É o caráter de ilustração tratado por Althusser e Pêcheux que entendemos presente nas figuras identitárias, produzindo, para o sujeito, a evidência do estar nesse lugar social que uma determinada figura representa. Assim, a figura aparece enquanto forma por meio da qual é possível representar, ilustrar esse lugar, que sofre, no entanto, deslocamentos ao aparecer em discursos de diferentes épocas. Ela seria, portanto, a forma material, matriz identitária de um discurso fundador que marca o imaginário que se constrói sobre um grupo social. Conforme Orlandi (2003, p. 7), “em relação à história, os discursos fundadores são discursos que funcionam como referência básica no imaginário constitutivo desse país”, sendo tarefa do analista observar “como é que eles se estabilizam como referência na construção da memória nacional”. A figura personifica uma identidade local, constitui-se num lugar marcante, residual, em que essa construção identitária se apoia. As figuras não têm necessariamente uma origem única, ou são frutos de um mesmo processo de aparecimento/criação, mas compartilham o fato de terem se consolidado em determinados momentos históricos, passando a ser deles representativas, criando lugares de memória que tendem a se cristalizar. Em trabalho anterior (DE NARDI; GRIGOLETTO, 2012), recorremos a Pêcheux (2011, p. 158) para afirmarmos que, ainda que tais figuras não mais existam materialmente, a referência discursiva delas “já é construída em formações discursivas (técnicas, morais, políticas...) que combinam seus efeitos em efeitos de interdiscurso”. A produção discursiva desses objetos circula, portanto, “entre diferentes regiões discursivas, das quais nenhuma pode ser considerada originária”. A figura é o resultado, assim, de uma série de processos de regularização por meio dos quais se estabelece uma memória, que, segundo Pêcheux (1999), é caracterizada por um jogo de forças entre regularização e desregulação; ou seja, a recorrência a algo pode caracterizar um movimento em que dizer o “mesmo” é dar espaço ao “jogo da metáfora”. “Uma espécie de repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase.” (Idem, p. 53) É pelo viés da memória, então, que sentidos, dizeres, imagens, etc. dessas figuras continuam ressoando em discursos contemporâneos, produzindo efeitos nos dizeres dos/sobre os sujeitos que se identificam ou são identificados com seu espaço de origem. Não são as figuras, portanto, que permanecem, mas suas reverberações, que podem indicar um determinado comportamento, um estilo de vida, um tipo de organização social, uma maneira de vestir, um gesto em relação à vida. Longe de serem fixas, no entanto, essas marcas deslizam, podem levar à “transfiguração” (ORLANDI, 2003, p. 7). Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 201 A figura identitária funciona, assim, como uma espécie de resíduo resultante dos processos de cristalização de identidades locais cujos traços ressoam, pelo viés da memória, em discursos de diferentes épocas, produzindo uma matriz de sentido por meio da qual é possível representar esse lugar. O funcionamento da memória e sua relação com as figuras identitárias Nossa percepção do passado é a apropriação veemente daquilo que sabemos não mais nos pertencer (NORA, 1993, p. 20) 3 Para falar sobre lugares de memória, Nora (1993) faz uma distinção entre lugares e meios de memória, afirmando que a existência dos lugares só é possível pela desaparição dos meios, determinada pela aceleração de nosso tempo – mundialização, democratização, etc. – em que não há mais uma passagem regular do passado para o futuro. Já não vivemos a memória, e por isso temos necessidade de consagrar-lhe lugares onde ela possa se manter. 202 Trabalhar com a noção de figuras identitárias levou-nos a pensar sobre a memória e o modo como ela intervém no processo de produção de sentidos, promovendo a cristalização e/ou o deslocamento de determinados lugares sociais, já que os processos identitários são marcados pela historicidade, remetendo-nos ao trabalho da memória discursiva. Pelo viés da memória, pode se marcar tanto o apagamento quanto a retomada dessa historicidade, a qual tende a ser suprimida pelo desejo de unidade que atravessa o sujeito. Trabalhar com os processos de identificação é situar-se, portanto, num espaço de tensão entre cristalização e deslocamento, que é, justamente, no nosso entendimento, conforme afirmamos no item anterior, o espaço em que se situam as figuras identitárias. Pierre Nora (1993, p. 7), ao trabalhar com a relação entre memória e história, propõe que pensemos sobre os lugares de memória e a curiosidade recente sobre eles. Essa curiosidade, para o autor, reside no fato de estarmos vivendo um momento de enfrentamento entre “a consciência da ruptura com o passado”, e uma memória que, embora esfacelada, é ainda “suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnação”. Como ele nos indica na epígrafe acima, apropriamo-nos daquilo que do passado não mais nos pertence, não mais existe enquanto concretude, mas que permanece ressoando como sinal de “reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos” (NORA, 1993, p. 13). O funcionamento dos lugares de memória3, tal como proposto por Nora, parte da consideração de que temos a necessidade de criar esses lugares porque já não mais habitamos a memória, ou seja, aquilo que insistimos em guardar nesses lugares não aparece mais em nossos rituais cotidianos, mas ainda diz sobre o passado que nos habita. Se a memória deixa de existir, criamos suportes exteriores para ela, os quais atendem, de certa forma, à nossa necessidade de lembrar. “A passagem da memória para a história obrigou cada grupo a redefinir sua identidade pela revitalização de sua própria história. O dever de memória faz cada um historiador de si mesmo.” (NORA, 1993, p. 17). Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 O autor, quando tematiza o conflito entre memória e história, coloca em causa distintos modos de reatualização do passado. Para a AD, história e memória não se opõem, mas se complementam, se (con)fundem, já que a história é constitutiva do discurso. Como mencionamos no início deste item, interessa à AD trabalhar com a historicidade e não com história do ponto de vista cronológico, uma vez que importa observar não a linearidade da história, mas o modo como ela se inscreve – às vezes em pedaços, esfacelada –, nos processos discursivos. Ao falar sobre a historicidade, Orlandi (2004) reforça o fato de que o conceito aparece na AD como um modo de reafirmar a relação constitutiva entre linguagem e exterioridade. É para falar sobre a exterioridade como algo encarnado no discurso que pensamos a historicidade, então, conforme a autora, como aquilo que remete ao modo de um discurso produzir sentidos. Com a AD – e isto que estamos chamando de historicidade – a relação passa a ser entendida como constitutiva. Desse modo, se se pode pensar em uma temporalidade, essa é uma temporalidade interna, ou melhor, uma relação com a exterioridade tal como ela se inscreve no próprio texto e não como algo lá fora, refletido nele. Não se parte da história para o texto – avatar da análise de conteúdo –, se parte do texto enquanto materialidade histórica. A temporalidade (na relação sujeito/ sentido) é a temporalidade do texto. (ORLANDI, 2004, p. 55) Então, pelo viés da historicidade, o que estamos chamando de figuras identitárias é o resultado de processos discursivos por meio dos quais se tenta reter, de um passado, aquilo que, embora não seja mais vivido, é parte de uma construção identitária. Ao serem atualizadas, as figuras marcam, no discurso, o retorno a um lugar de memória no qual o sujeito desse discurso encontra um espaço de (des)identificação: se por um lado pode, a figura, representar a marca de pertencimento a um grupo e sua história, pode, por outro, configurar-se como um espaço de recusa, um desconhecimento do passado como possibilidade de identificação com o que o sujeito entende como sendo a sua identidade. Nesse sentido, a figura designa o outro, o estranho, aquele que não se é (ou não se quer ser). Toda figura nasce, contraditoriamente, de seu desaparecimento, porque pertencia a um tempo-espaço que se transmutou. Mas nesse tempo em que vivemos, das identidades rarefeitas, da mundialização, do desaparecimento do sentido de nação, das forças globalizantes de que fala Hall (2006), parece que o efeito-contrário da dissolução das fronteiras identitárias é justamente a necessidade de recuperar a identidade de grupo, ou seja, construir lugares de memória e atualizá-los. É preciso lembrar (ou fazer lembrar). Para a AD, a lembrança não é nunca para o sujeito a recuperação plena daquilo que se consagrou ao esquecimento. A natureza cindida do sujeito e lacunar dos processos por meio dos Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 203 quais se constitui, implicam a necessidade de pensar a lembrança como um retorno da memória – igualmente lacunar – ao dizer do sujeito, e não o ato solitário de rememorar. Falamos, portanto, da memória discursiva, termo que, segundo Courtine (2009, p. 105) é “distinto de toda memorização psicológica”, e diz “respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas por aparelhos ideológicos” (Idem, p.105-106). Quando tratamos da memória em AD, estamos remetendo a esses “lugares de dizer em que os já-ditos se assentam esperando o momento de retornar pelo discurso” (DE NARDI, 2003, p. 79). São resquícios de uma história que se reatualizam no discurso por meio da relação imaginária que com ela os sujeitos estabelecem, não importando a natureza dessa história, se real ou fictícia. Formam-se, nos termos de Courtine (1999, p. 18), domínios de memória: “a exterioridade do enunciável para o sujeito enunciador da formação de enunciados ‘pré-construídos’, de que sua enunciação apropria-se”. Mas nem tudo se reatualiza. Todo trabalho da memória discursiva implica um efeito de esquecimento: o que se atualiza é apenas aquilo que é possível dentro do domínio da formação discursiva na qual o sujeito se inscreve. Toda lembrança traz consigo o esquecimento de algo, aquilo que não pode retornar ou, no caso das figuras, o que sobre elas o sujeito recusa como possibilidade de lembrança. Para Nora (1993, p. 12), “os lugares de memória são, antes de tudo, restos”. Há, portanto, nos processos discursivos, funcionamentos que regulam que restos podem voltar à cena e quais devem permanecer nas sombras. Para Indursky (2011, p. 87), “se determinados sentidos precisam ser ‘esquecidos’, significa que eles desaparecem do âmbito de uma FD”. Tal funcionamento, para a autora, nos permite pensar na distinção entre a memória discursiva e o interdiscurso, que, igualmente, dizem respeito à memória social, mas não se confundem. A memória discursiva é regionalizada, circunscrita ao que pode ser dito em uma FD e, por essa razão, é esburacada, lacunar. Já o interdiscurso abarca a memória discursiva referente ao complexo de todas as FD. Ou seja, a memória que o interdiscurso compreende é uma memória ampla, totalizante e, por conseguinte, saturada.” (INDURSKY, 2011, p. 87-88). Por isso dizermos que não são as figuras propriamente que permanecem, mas suas reverberações, que se inscrevem no discurso produzindo espaços de deriva que marcam o processo de identificação do sujeito com o lugar social de que ela é marca. Ou seja, se as figuras são espaços de identificação para o sujeito e sua relação com elas se dá por um processo de transferência, ou seja, “pela existência de uma relação abrindo a possibilidade de interpretar” (PECHÊUX, 1983, p. 53), é porque há um espaço de interpretação que dá lugar ao movimento de retomada dessas figuras em diferentes espaços-tempos discursivos, colocando-nos 204 Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 a questão de como se comportam, então, nos universos dos quais são parte. E é o funcionamento desses processos de transferência que nos ajuda a compreender sua permanência (ou não) como lugares de identificação (DE NARDI; GRIGOLETTO, 2012). As figuras do cangaceiro e do compadrito: algumas análises4 A discussão teórica que ora empreendemos bem como as análises ap r e s e nt ad a s fora m discutidas, preliminarmente, no III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade, do qual resultou a publicação a qual fizemos menção em vários momentos do artigo, a saber, DE NARDI; GRIGOLETTO, 2012. 5 http://www.osultimoscangaceiros.com. br/blog/ 6 Pêcheux, ao analisar a questão da memória e da repetição, comenta: “haveria, sob a repetição, a formação de um efeito de série pelo qual uma regularização se iniciaria, e seria nessa própria regularização que residiriam os implícitos, sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase (que podem a meu ver conduzir à questão da construção dos estereótipos).” (PÊCHEUX, 1999, p. 52) 4 A fim de podermos observar a produtividade analítica da noção de figuras identitárias, temos trabalhado com as figuras do cangaceiro e do compadrito, os quais funcionam como referência para o imaginário que se constrói sobre discursos regionais, fazendo parte da constituição identitária do sujeito nordestino, no primeiro caso, e cristalizando um sentido sobre o ser porteño, no segundo. Elegemo-los, portanto, considerando que ambos, embora diferentes, podem ser entendidos como personagens que cristalizam identidades locais, uma vez que se consolidaram em momentos históricos determinados, passando a ser deles representativas. São, assim, figuras em torno das quais se foram criando lugares de memória com tendência à cristalização. Como dissemos na primeira parte desse trabalho, não se coloca em causa a existência material dessas figuras, mas a referência discursiva a elas, que, como efeito do interdiscurso, remetem à produção de um objeto material. Isso é o que podemos observar, por exemplo, com a figura do cangaceiro, que aparece em discursividades atuais, a exemplo daquela presente no blog “Os últimos cangaceiros”5, designação utilizada por um moto clube de Pernambuco. Na página inicial do blog, conforme podemos observar na tela abaixo, fotos antigas de Lampião e seu bando se sobrepõem às imagens dos integrantes do moto clube. A alternância entre as fotos atuais e os registros dos cangaceiros produz um interessante efeito em que presente e passado se entrecruzam, fazendo trabalhar efeitos da memória no discurso. No centro das fotografias, a marca da atualidade: a única imagem fixa é a do bando de motoqueiros pousando em frente à sua bandeira. Nela, observamos determinados elementos – como o chapéu e as armas utilizadas pelos cangaceiros – que nesse espaço representam aquilo que da figura do cangaceiro permanece como cristalização6. A reprodução desses objetos funciona aqui como um elemento de identificação com o cangaço; trata-se de vestígios desse outro tempo-espaço que, ressignificados, fazem trabalhar a relação entre memória e atualidade. Outro elemento interessante a ser observado é a presença do mandacaru que contorna o escudo. Essa planta, símbolo do sertão nordestino, está presente, ainda, na fotografia que aparece de fundo, reconstruindo uma imagem comum nas representações do nordeste e sua gente. Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 205 Fig. 1 – página inicial do blog “Os últimos cangaceiros” Esses são alguns dos elementos que caracterizam o movimento de atualização do que anteriormente chamamos de marcas identitárias, pelas quais o sujeito se identifica com a figura do cangaceiro. Ainda que hoje seja apenas uma personagem histórica, essa figura inspira, pela utilização de seus emblemas, um sentimento de pertencimento a esse lugar, permitindo aos sujeitos dizerem-se através da recuperação de fragmentos de uma memória, regional e atemporal. Atemporal porque esse dizer funciona como se estivesse unindo pontas com o passado, ao mesmo tempo em que permanece reverberando sentidos no presente, rememorando elementos que desse passado ainda significam para a sua forma de se organizar enquanto grupo, enquanto bando. Símbolo da insurgência7, o cangaço parece retornar, para esse grupo, como marca de resistência, uma demonstração da fidelidade a um estilo de vida que tende a ser apagado. Sobre isso é interessante observar o que se diz, no blog, em “Quero ser um Cangaceiro”: Sobre essa questão, recomenda-se o vídeo “Conheça a história do cangaço e as duas faces de lampião”, que estão entre os links que, no blog, remetem à história daqueles que lhe dão nome: http://www.osultimoscangaceiros.com. br/videos/ ou http:// w w w.yo ut u b e.c o m/ watch?feature=player_ embedded &v=HTK yKj dwDGA#!. 7 206 SD1: Motociclista não é aquela pessoa que tem uma moto para apreciar a paisagem só nos finais de semana. Mas sim aquele cara que tem moto como uma extensão do seu corpo e principalmente como um estilo de vida (em seu sentido literal). Quando eu falo de estilo de vida, é o fato de você comer, beber, viver, respeitar, amar, respirar a moto e seus irmãos. Por que tu achas que inúmeros Moto Clubes falam que o motociclista verdadeiro quase não se vê mais? Porque os que vivem e pertencem a esse estilo de vida, são poucos. Quer ser um de nós entre em contato e deixe sua mensagem será um prazer conversar com você! (http://www.osultimoscangaceiros.com. br/ser-cangaceiro/) O que se verifica, na sequência acima, é realmente a atualização dessa designação “Cangaceiro”, que, utilizada pelos motociclistas para autodesignarem-se, passa a representar um outro Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 espaço, mantendo, no entanto, traços que unem esses homens de tempos distantes. Rebeldia e fidelidade aos seus companheiros parecem ser elementos comuns; e é pelo nome e pela recuperação de elementos materiais que caracterizavam essa vida insurgente e, ao mesmo tempo, rica e fascinante do cangaço que o elo entre os tempos se faz. Ser motociclista, no dizer desse sujeito, é também dizer não aos valores que lhe são impostos e construir uma fraternidade com aqueles que aceitam o código de conduta que lhe será imposto como condição para esse pertencimento. Conforme Postal (2012), “a identidade está relacionada tanto com a demonstração de quem o sujeito quer ser, quanto com a bagagem de narrativas que o constituem e que podem operar na figuração efetiva de seu dizer-se”. É, entendemos, nesse conjunto de dizeres que formam as narrativas sobre o cangaceiro que o sujeito do discurso em análise vai buscar o sentido de ser cangaceiro, que implica um modo de organizar-se, a conservação de um ideal comum – embora esse ideal esteja completamente ressignificado –, a fidelidade ao seu modo de vida, o respeito às regras do bando: “Dentro de nossos bandos, vale nosso CÓDIGO INTERNO”. Há um retorno, portanto, a uma memória que se ressignifica, provocando deslizamentos em torno desse sentido de ser cangaceiro. Mas, como mencionamos ao citar Indursky (2011), essa memória não vem inteira, ela não rediz O cangaceiro, em sua existência histórico-material, mas o transforma em metáfora desse sujeito que se diz a partir de elementos que atualiza de uma memória tão prenhe de contradições. Sem a pretensão de nos aprofundarmos nessa questão, vale salientar que, em torno dessa figura do cangaceiro e da instituição do cangaço, circulam sentimentos bastante contraditórios, de repulsa e fascínio, medo e admiração, que talvez possam ser explicados a partir do papel mesmo que teve um de seus maiores expoentes, Lampião, ao mesmo tempo bandido e justiceiro. Tais questões podem ser compreendidas pela impossibilidade de pensarmos a memória distanciada de suas condições de produção e atualização. Ao falar sobre memória discursiva, Pêcheux (1999, 52) afirma que ela “seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos” (...) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível.” Ao citar Pierre Achard, o autor analisa os processos de regularização por meio dos quais se estabelece essa memória, observando, no entanto, que ela é caracterizada por um jogo de forças entre regularização e desregulação; ou seja, a recorrência de algo pode caracterizar um movimento em que dizer o “mesmo” é dar espaço ao “jogo da metáfora”. “Uma espécie de repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase.” (Idem, p. 53) Há sempre “o outro interno em toda memória”, diz Pêcheux (1999, p. 56). Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 207 O que chamamos de figuras identitárias seriam, portanto, esses lugares de condensação de um imaginário social, ocupado por homens que dele foram (ou são) representativos e cuja imagem produz um retorno a esse lugar, ainda que nesse movimento os sentidos do estar nele se reconfigurem. É assim que, pela remissão às imagens de Lampião e seus seguidores, se atualizam no blog “Os últimos cangaceiros” algumas marcas que representam a identificação desse sujeito com um lugar social, historicamente determinado. Retorna a paisagem do sertão, os termos por meio dos quais se designam os integrantes do bando, o cuidado com a aparência – uma certa estética que se mantém nas roupas, nos chapéus, nos rifles que são agora apenas símbolos de pertencimento –, ou na interlocução proposta pelos links que podem ser abertos a partir do blog, em que encontramos tanto referência ao universo dos moto clubes, quanto a estudos e comentários sobre o cangaço. Esse sujeito, portanto, que se inscreve nas discursividades em análises, fala sobre os cangaceiros, mas se diz um deles, o que nos permite pensar que essa figura ainda produz um espaço de identificação importante entre aqueles que vivem nesse lugar. Um movimento distinto parece caracterizar a segunda figura sobre a qual nos debruçamos: o compadrito. Nessa busca inicial que empreendemos por menções a essas figuras no espaço virtual que as estivessem atualizando, não encontramos, em relação ao compadrito, nenhum movimento que se assemelhasse ao anteriormente descrito sobre o cangaceiro, ou seja, grupos que se autodenominem “compadritos” na Buenos Aires dos dias atuais. Chama-se ao outro compadrito, ao identificá-lo por seu comportamento e/ou por sua linguagem, como se o compadrito fosse sempre um outro: Don Dulce hablaba como un criollo aunque a Pereda no se le pasaron por alto algunas expresiones de compadrito porteño, como si don Dulce se hubiera criado en Villa Luro y llevara relativamente poco tiempo viviendo en la pampa. (BOLAÑO, 2010, p. 28) No trecho de El gaucho insufrible, Bolaño reproduz algo que parece comum em relação a essa figura: se sabe de onde veio, quem era, como se vestia e falava, mas é raro encontrar quem se identifique com ela, embora com ela possa ser identificado. A presença dessa figura, quase sempre relacionada ao universo do tango, parece estar restrita aos que se ocupam de explicar seu surgimento e sua permanência num período de tempo já remoto, sobrevivendo apenas nas narrativas que a resgatam como símbolo de um outro tempo que não se atualiza. Se ainda há compadritos, não se escuta a sua voz, e embora se saiba quem foi essa figura e como se pode caracterizá-la, ela parece não mais funcionar como um lugar de identificação para os sujeitos contemporâneos. Assim como outras personagens, tende o compadrito a fazer parte de um conjunto antigo de figuras que remetem a uma confi208 Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 guração desse espaço mais visível nos tempos atuais, embora sua menção e imagem não se deixem apagar. É provável que esteja na ordem do desejo ver essa multiculturalidade presente, e por isso evocá-la é um trabalho necessário para o reconhecimento desse espaço social que se quer designar. Trata-se, nos termos de Lacarrieu (2007, p. 57), da necessidade de construir-se uma matriz cultural que remeta a uma imagem que vem do passado para “reinventar el presente y desear el futuro”. Esse futuro se constitui, em grande medida, conforme a autora, pelo desejo de uma Buenos Aires europeizada que por muito tempo se fez presente e à qual se pode atribuir, em certa medida, a cristalização de algumas figuras: elas não se reatualizam, mas sua presença enquanto memória de um tempo anterior se faz necessária. Conforme comenta a autora, que se ocupa das imagens e imaginários sociais que constituem a dimensão simbólica da cidade: Referimo-nos, aqui, a obras como BORGES, J. L.; BULLRICH, S. El compadrito: su destino, sus barrios, su música. Buenos Aires: Emecé Editores, 2000; CARRETERO, Andrés. M. El compadrito y el tango. Buenos Aires: Peña Lillo & Ediciones Continente, 1999. Tais obras serviram como leituras complementares para este artigo. 9 Lacarrieu (2007) comenta que “el tango fue visualizado como un símbolo necesario para identificar a la ciudad, pero no a los ciudadanos”. 10 PALACIO S, A. “O “compadrito” - O pária, as prostitutas e a cópula”. Disponível em: http://blogs.estadao. com.br/ariel-palacios/o-compadrito-e-a-danca-que-era-quase-uma-2/. Acesso em: 30 de janeiro de 2012. 11 ht t p://w w w.periodicodesdeboedo.com. ar/malevos-guapos-y-compadritos/. Acesso em: 08 de fevereiro de 2012. 12 http://blogs.estadao. com.br/ariel-palacios/o-compadrito-e-a-danca-que-era-quase-uma-2/ 8 Esto permite congelar la población en una multiculturalidad inexistente en el presente, y también incluir la presencia de expresiones culturales ligadas a su proyección cultural, hipervisibles en los conventillos de antaño, donde cada outro puede ser estereotipado en su simplificación [...]; visualizados como el objeto del deseo, que en ausência – pues los conventillos actuales ya no albergan este tipo de mesclas – se hacen presentes. (LACARRIEU, 2007, p. 57) Essa presença ausente é o que sentimos com o compadrito, de quem muito se diz8, sobre quem fala a literatura ou cantam os tangos, que aparece nos bailarinos que se apresentam em diversos espaços da cidade, reproduzindo traços de seu vestir e bailar, cujo linguajar deixa marcas num modo argentino de falar, mas que não aparece como um lugar social com quem ainda se identifiquem os porteños. Assim como o tango, o compadrito pertence a Buenos Aires, mas já não mais com ele se identificam os homens de Buenos Aires9. Mas quem eram os homens assim designados. Característicos da Buenos Aires do século XIX, nem homens urbanos, nem gaúchos, os compadritos viviam nos espaços marginais, escondidos entre sombras de um lugar que parecia querer expulsá-los. Como escreve em seu blog Ariel Palacios10: “Vivia de biscates na periferia das cidades, sem ousar entrar nas mesmas, nem pensar voltar ao campo”. “Parece que estar “entre” era a condição do compadrito, entre o ser marginal ou herói, entre despertar medo ou fascínio, “Son indivíduos egocêntricos, individualistas, solitários, competitivos y fundamentalmente criollos”11. Entendemos que esse lugar marginal que ocupa o compadrito é o que permite, como comentamos acima, que ele sirva sempre para designar o outro: aquele que não se é, o que está na margem, escondido nas sombra dos outros, esquivando-se como um bom bailarín. Nesse sentido, é interessante observar os comentários postados acerca de um texto12 em que se fala sobre o compadrito: Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 209 SD2 – E você conhece algum ‘compadrito’? – Muitos. Às vezes eles chegam até a presidência, né? SD3 E é verdade... às vezes os compadritos chegam à presidência. Muitas vezes não são compadritos... mas estão rodeados por vários deles, a modo de guarda pretoriana... O que se observa é que se ainda se pode falar em compadritos e reconhecê-los, é porque há algo dessa figura que permanece, que extrapolou o espaço do texto literário e das milongas para seguir produzindo sentidos. Palavras finais Nesse artigo, procuramos reunir algumas reflexões que temos feito acerca do que designamos figuras identitárias, procurando mostrar como a observação dos processos discursivos, a partir da teorização sobre os lugares sociais, pode nos levar a pensar em figuras que resistem à passagem do tempo, retornando como uma memória insistente na constituição de identidades regionais mesmo em um espaço-tempo em que as identidades parecem se dissolver. Entendemos que as figuras funcionam como uma ancoragem de dizer, representação material de um lugar social que reverbera como espaço de (des)identificação para os sujeitos. Mesmo que não consigamos mais resgatar os discursos que deram existência a essas figuras, observamos que se (re)produz nos discursos atuais, pelo viés da memória, algo de muito particular que diz do pertencimento do sujeito contemporâneo ao lugar que essa figura ilustra. Podemos dizer, portanto, que tanto diante de cangaceiros como de compadritos é possível falarmos em figuras identitárias, visto encontrarmos em relação a essas personagens processos semelhantes, entre os quais podemos destacar a sua vinculação com um período histórico específico, do qual passaram a ser a “imagem” mais presente, ou, como dissemos anteriormente, a cristalização, no tempo, de uma imagem que está colada à representação de um lugar social. É esse lugar social por elas ocupado que tais figuras ilustram, fazendo com que se (re)produza em torno de si um imaginário a ser construído sobre o grupo social de que são parte. No entanto, as análises parciais que fizemos até agora acerca dos discursos que “atualizam” essas figuras no espaço virtual nos mostram um funcionamento distinto: enquanto a figura do cangaceiro aparece, para alguns, como um lugar de identificação ainda possível para o ser nordestino, a partir do qual é possível 210 Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 dizer-se como pertencente a um lugar, apagando ou aproveitando-se justamente da contradição que marca essa existência conflituosa do homem do cangaço – um tanto herói outro tanto bandido –, ao compadrito parece ter sido reservado o destino de designar sempre o outro, o torto, o marginal. Ainda que a literatura o tenha utilizado como personagem, ainda que sua presença viva nas vozes dos que cantam antigos tangos, parece improvável dizer-se um compadrito13. Talvez os distinga a distância temporal de sua existência e dos tempos sociais, o fato de ser o compadrito um solitário, enquanto em bandos viviam os cangaceiros, mas certamente há ainda a investigar os movimentos sócio-históricos que determinam as distintas apropriações dessas figuras nos discursos contemporâneos. O que apresentamos aqui são apenas especulações iniciais acerca tanto da funcionalidade do conceito de figura para as análises que pretendemos empreender, como do funcionamento dessas discursividades sobre as quais começamos a nos debruçar. Mas certamente vivem nos discursos sobre esses lugares sociais e nas condições sócio-históricas de seu (des)aparecimento a possibilidade de compreender as distintas formas de atualização de uma memória que insiste em retornar. Como nos diz Nora (1993, p. 14), são “lugares salvos de uma memória na qual não mais habitamos, semi-oficiais e institucionais, semi-afetivos e sentimentais; lugares de unanimidade sem unanimismo que não exprimem mais nem convicção militante nem participação apaixonada, mas onde palpita ainda algo de uma vida simbólica.” Abstract Com exceção de sites que remetem ao tango, encont ra mos apenas um blog de um Body Piercer que utiliza como autodesignação o termo compadrito. Como buscávamos a utilização dessas designações por grupos, não incluímos aqui a a nálise desse caso, que, no entanto, pode ser revelador do imaginário que cerca o compadrito, se considerarmos que as práticas que são divulgadas por meio do blog, a exemplo da suspensão corporal, ainda podem ser entendidas, de certo modo, como marginais. 13 Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013 This article aims the discussion about the notion of identity figures, observing as the memory is involved in the production of meanings, and in the promotion of crystallization and/or displacement of certain social places. This notion is based on the concept of the figure, that we take here while crystallization, in time, of an image that is attached to representation from a social place. The figure appears as a form through which it is possible to represent this place, and the same may undergo displacements when it is discussed at different times. This is the material form of a discourse “founder” (ORLANDI, 2003) that marks the imaginary that is built on a social group. Thus, when dealing with identity figures, we plotted as central objectives of this article: 1) produce a theory about this notion in the field of AD, based on the relation among the concepts of figure, memory and identification; 2) explore its analytical 211 productivity, from the figures of the “cangaceiro” and “compadrito”. Keywords: memory; identity figures; identification. REFERÊNCIAS BOLAÑO, R. El gaucho insufrible. Barcelona: Editorial Anagrama, 2010. CORACINI, M. J. A celebração do outro na constituição da identidade. In: Revista Organon. V. 17, n. 35. Porto Alegre: Instituto de Letras da UFRGS, 2003, p. 201-220. COURTINE, J-J. O chapéu de Clémentis. In. INDURSKY, F.; LEANDRO FERREIRA, M.C. (Org.). Os múltiplos territórios da análise do discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. Coleção Ensaios, n.12, p. 15-22. ______. 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Nessa direção, pretendemos neste estudo abordar a teoria da Análise de Discurso de linha francesa, que tem como objeto teórico o discurso, no qual encontramos as marcas de ruptura que nos permitirão compreender, através dos gestos de interpretação, como o sentido faz sentido. Palavras-chaves: prostituição; prazer; profissão; corpo. Este artigo é um recorte da dissertação de Mestrado: Castidade e Luxúria: a constituição da imagem feminina nos cadastros policiais - UNEMAT/2012. 1 Gragoatá Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 Introdução Atualmente, no Brasil, há lutas que buscam a legalização da prostituição como profissão. No entanto, ainda é uma questão de grande complexidade, pois a dificuldade dessa legalização passa por interditos na relação do trabalho com o corpo produzindo sentidos na atualidade. Nessa direção, parece-nos necessário compreender o trabalho na relação com o corpo e o corpo na relação com o trabalho e com o prazer. No caso da prostituta, o corpo é seu instrumento de trabalho, mas, ao mesmo tempo, a moral religiosa o institui como “templo sagrado”, assim, esse sentido produz, para a prostituta/prostituição, efeitos de que sua atividade de meretriz transgride o lugar instituído pela moral social cristã. Fazemos uso do corpo para o trabalho – trabalho braçal, trabalho intelectual, etc. –, pois é ele que nos permite produzir, porém, a meretriz, ao usar do corpo para atividades relacionadas ao sexo, foge ao que é determinado pela moral social como trabalho honesto, uma vez que o corpo da prostituta é usado para sentir/dar prazer. Essa situação produz problemas em relação aos direitos e deveres das prostitutas e coloca em funcionamento toda uma memória constitutiva da prostituta/prostituição que é marcada de forma negativa. São sentidos que foram construídos em relação à sexualidade, aos vários imaginários sociais sobre a mulher, à prostituta na história produzindo efeitos que marcam o estigma social. Nessa direção, no batimento entre a paráfrase e a polissemia, a prostituição alcançou status de ocupação, pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), mas ainda não se coloca como profissão, no Brasil, apesar de haver, já há muito tempo, vários projetos de lei com tal finalidade. De todo o modo, são as discussões sobre a profissionalização da prostituição que possibilitam, nos cadastros policiais dos anos 60 e 70, na cidade de Cáceres-MT2, a compreensão de uma dualidade que se tornou constitutiva dessa atividade, uma vez que os registros ora marcam a prostituição como profissão ora como ócio, prazer, luxúria, caracterizando-a como um “desvio”. A construção dos sentidos: o corpo na relação trabalho x prazer Os cadastros policiais, recortados para a presente análise encontram-se atualmente no arquivo histórico do curso de História (NUDHEO) da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), no Campus Universitário de “Jane Vanini”. 2 216 Foucault (2008, p. 117) ao falar da docilidade dos corpos, nos mostra a dominação do corpo como uma forma de poder: Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. Esse corpo modelado, controlado, põe em funcionamento uma memória sobre a sexualidade insubmissa, ou seja, a prostiNiterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 tuição se realiza pelo uso do corpo para o prazer, não exercendo o que se espera de um corpo dócil, isto é, “[...] um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (op.cit, p.118). Essa docilização dos corpos leva-nos a questionar como é constituído, nesse espaço disciplinar, a prostituta e a prostituição, pois, para Foucault (2008, p. 123), há “[...] lugares determinados [que] se definem para satisfazer não só a necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil”. Um funcionamento, segundo o autor, presente nos hospitais, nos quartéis e nas escolas, cuja tentativa de controlar o ser humano através do corpo, através do trabalho, suprime a sexualidade, exacerba as regras e faz funcionar valores morais. Nessa relação, o corpo é voltado somente para o trabalho, é como se não houvesse tempo para o não fazer nada, assim, os corpos ociosos são submetidos às regras e, como tais regras não podem parar, tornam-se corpos úteis para o trabalho, mas somente para isso, pois com a submissão freia-se também qualquer ato que o faça mudar ou pensar nas relações de forças de trabalho, uma vez que se trata de extrair dos corpos sempre as forças mais úteis. Segundo Dhoquois (2003, p. 43) [...] O corpo pode ser usado e coagido não só pelas condições de trabalho como também pela primazia dos interesses da empresa sobre os do trabalhador. O corpo deste está muito envolvido com seu dever de obediência. O corpo laborioso é um corpo submisso. Esse funcionamento da sociedade disciplinar nos faz pensar no trabalho da prostituta ou na prostituição como trabalho, pois, nesta sociedade, a prostituição vai se colocar em um outro lugar, o lugar do silêncio constitutivo, que se instala historicamente pela opressão e, ao mesmo tempo, pela resistência. Nesse funcionamento, ao se tentar oprimir o trabalho da prostituta/prostituição, o que se produz como efeito são modos de resistência, que vão do enfrentamento absoluto à desobediência silenciosa. Nos modos de opressão pelo Estado, o corpo é tomado como um meio de controle dos sujeitos, no entanto, a prostituta/ prostituição parece se colocar na contramão desse processo, pois o corpo, que é um objeto de controle, de manipulação pela força do Estado, é, no caso da mulher que se prostitui, seu bem, seu material de trabalho, sua mão de obra, o objeto de sua produção. Assim, essa atividade já se constitui na contramão do processo civilizatório, pois, ao usar o corpo como instrumento de trabalho, a prostituta/prostituição é tomada historicamente como sinônimo de vagabundagem, de preguiça, de luxúria. Ou seja, o uso do corpo para o exercício da sua atividade profissional, desqualifica o seu fazer como profissão. Essa contradição marca a constituição da imagem da prostituta através do corpo, que é tomado por ela Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 217 própria como força de trabalho, como objeto de sua produção e pelo poder do Estado como vagabundagem, como ócio, como libertinagem. Nessa direção, o corpo feminino marca o lugar do privado, do interditado, e ao mesmo tempo, ele é “[...] exibido, apropriado e carregado de significação” (PERROLT, 2003, p. 14). A constituição da imagem da prostituta vai se produzindo, então, através daquilo que aparenta, através do seu corpo, pois a prostituta/prostituição se constitui nesse lugar contraditório de uso do corpo, tanto para obter lucro quanto para propiciar satisfação sexual a outrem. Para Foucault (1979, p. 22), é no corpo que [...] se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também eles [os desejos, os desfalecimentos e os erros] se atam e de repente se exprimem, mas nele também eles se desatam, entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito. Ou seja, o corpo é considerado no sentido da configuração biológica da espécie humana, mas também é materialidade significante, é suporte do simbólico. Essa dupla interpretação sobre o corpo nos leva a compreender como a história, através dos fatos, através das marcas no corpo, reclama sentidos (HENRY, 1997). Desse modo, a teoria discursiva à qual nos filiamos mostra-nos que há, na forma material, vestígios, marcas de ruptura que nos permitirão compreender, analisar, através dos gestos de interpretação, como o sentido faz sentido. A Análise de Discurso compreende entre seus conceitos a noção de sujeito, que se constitui pela linguagem, enquanto posição-sujeito. Do mesmo modo, compreende a história como processo de produção de sentidos, atravessada pela contradição; e a língua enquanto possibilidade de discurso, como materialidade onde encontramos o discurso, que para Pêcheux (2009) é efeito de sentido entre locutores, ou seja, é um “[...] processo que se desenvolve de múltiplas formas, em determinadas situações sociais” (ORLANDI, 2007b, p. 54). Sendo assim, é o efeito produzido pela inscrição da língua na história e essa inscrição só pode ser vista através da língua, através do texto, enquanto lugar de materialização da ideologia. Pela Análise de Discurso, portanto, há, na língua e na história, um real, que compreendemos como sendo da ordem do impossível: “[...] não descobrimos, pois, o real: a gente se depara com ele, dá de encontro com ele, o encontra.” (PÊCHEUX, 2008, p. 29), ou seja, não é algo já determinado, mas algo que possibilita a produção dos sentidos, porque o sentido não é estático, é construído em determinadas situações e diferentes sujeitos. Assim, temos a incompletude como o real da língua, pois, “[...] toda língua é afetada por uma divisão, [...], que se sustenta pela 218 Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 existência de um impossível, inscrito na própria ordem da língua” (GADET e PÊCHEUX, 2010, p. 32). Desse modo, a incompletude é a possibilidade de produção dos sentidos, pois sem ela a língua/ linguagem torna-se inconcebível. Nessa direção, Gadet e Pêcheux (2010, p. 30) afirmam que: Para os que sustentam que a língua trabalha com a existência de uma ordem própria, o real da língua reside naquilo que nela faz Um, a assegura no Mesmo e no Idêntico e a opõe a tudo o que da linguagem cai para fora dela, nesse inferno ininteligível que os Antigos designam pelo termo de “barbarismo”: o campo do interdito na linguagem é, assim, estruturalmente produzido pela língua, do interior dela mesma (Grifos nossos). Desse modo, pensar a língua como unidade faz parte de um imaginário, que permite que os sentidos possam ser determinados, restringidos, um eficaz trabalho da ideologia. Entrementes, todo sentido produzido “[...] é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (PÊCHEUX, 2008, p. 53), ou seja, os sentidos sempre podem vir a ser outros devido a características constitutivas da língua: a incompletude, a falha, o equívoco. Essa concepção teórica considera que a língua não é transparente, sendo necessário um dispositivo que auxilie no acesso a sua materialidade, assim, a sua discursividade. A Análise de Discurso compreende o real da história, como sendo a contradição, que possibilita a mudança, o deslocamento, quando se tem o impossível, o alhures. Essa concepção teórica considera que a história deve levar em conta o sujeito, e assim, não pode ser tomada como uma simples sucessão de fatos, um relato, mas um acontecimento no discurso, ou seja, um modo de produção de sentidos. Desse modo, a AD considera não a história propriamente, mas a historicidade, que se encontra no texto, considera, portanto, não partir da história para o texto, mas do próprio texto, uma vez que, através da “trama de sentidos”, a história constitui-se nele. Nessa direção, a Análise de discurso é vista como um processo de desnaturalização, que busca compreender funcionamento da ideologia, ou seja, busca ver na materialidade como as histórias são mobilizadas. Uma história é, de um lado, fatos, acontecimento, e de outro, é a compreensão desses fatos tomados como acontecimentos. Nesse caso, desnaturalizar os sentidos que estão postos, é compreender que algo pode sempre tomar outros sentidos. Os traços da memória histórica materializam-se na língua como efeitos de sentido que, no momento da formulação, dada as condições de produção – o contexto imediato e o contexto sócio-histórico – são colocados em funcionamento. O sujeito é posição-sujeito, pois o seu dizer produz sentidos que são sempre postos em relação a. Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 219 Desse modo, há sentidos que são cristalizados pela sociedade, mas há também os que são silenciados, fazendo com que haja sentidos que instituem cada palavra – é o que ocorre com a palavra “prostituta” – que, ao ser formulada, aciona um já-dito, um pré-construído, que é colocado em funcionamento por diferentes posições-sujeito marcadas pelos modos de inscrição nessa memória. A prostituta/prostituição, ao fazer funcionar uma dada memória discursiva, coloca também em funcionamento o sentido de sujeito-de-direito, que é convocado pelas noções de direitos e de deveres que instalam todo sujeito capitalista, pois, para poder se identificar, para poder ser reconhecido socialmente é necessário se assujeitar aos ditames do Estado. Haroche (1992, p. 51) denomina de “sujeito jurídico da linguística”, ou seja, aquele que “[...] se caracteriza por duas propriedades, no limite, contraditórias: uma vontade sem limites e uma submissão sem falhas”. Nessas condições, a definição de sujeito-de-direito serve para imputar-lhe a noção de direitos e deveres, o que faz com que pense ser dono de seu dizer e de seu fazer, e, assumindo esse lugar, se assujeite ao Estado para que possa fazer uso dos seus direitos e deveres. Segundo Lagazzi (1988, p. 39), a noção de sujeito-de-direito [...] é uma noção histórica, que só se concebe à noção de Estado. Ambas – a de sujeito-de-direito e a de Estado – surgiram concomitantes à fundamentação do poder jurídico que, por sua vez, foi (é) decorrência de modificações econômicas que, a partir do século X, ocasionaram a passagem gradual do feudalismo para o que se concretizaria, mais tarde, como capitalismo. Assim, a noção de sujeito-de-direito vem marcar o momento em que o homem se constitui sobre outras determinações, ou seja, deixa de se assujeitar à religião, à Igreja e, passa, através do Direito (que o torna autônomo), a assujeitar-se ao Estado. De acordo com Lagazzi (op.cit. p. 20) “[...] cada vez mais fortemente o sujeito-de-direito foi se configurando, e hoje a responsabilidade é uma noção constitutiva do caráter humano, da pessoa, do cidadão, sem o que não nos reconheceríamos socialmente”. Diante da afirmação da autora, compreendemos que a ideologia, que produz o efeito de evidência de que somos sempre sujeitos sociais com direitos e deveres, se faz por um esquecimento necessário que produz a ilusão de que somos os donos e a origem do nosso dizer, pois o sujeito relaciona-se com o mundo através de um imaginário que se representa pelo simbólico, ou seja, as crenças, as palavras, as próprias relações interpessoais, significam pela ordem simbólica. Lagazzi (2011) nos mostra como a contradição está marcada no discurso produzindo sentidos. Nessa direção, afirma que a contradição é o que possibilita a mudança, o deslocamento, quando se tem o impossível, o alhures, ou seja, é “[...] a impossibilidade 220 Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 da síntese, reiterando a distância entre contradição e oposição” (LAGAZZI, 2011, p. 279). Assim, a contradição permite a produção de outro sentido que não está marcado pelo já dado, por isso contradição não é o mesmo que oposição. A oposição marca o previsível, não sendo possível produzir outros sentidos, enquanto a contradição é o diferente, é a possibilidade de deslocamento. Entrementes, Orlandi (2002) nos mostra que há discursos que são interditados de tal forma que não permitem a produção de outros sentidos possíveis, como é o caso da prostituta/prostituição. A produção dos sentidos sobre o imaginário da prostituta circula em torno de aspectos histórico-sociais, que visibilizam os sentidos sobre a prostituição produzindo o preconceito. Para Orlandi (2002, p. 197) o preconceito: [...] se constitui nas relações sociais, pela maneira como elas se significam e são significadas. Não é um processo consciente e o sujeito não tem acesso ao modo como os preconceitos se constituem nele. Vêm pela filiação a sentidos que ele mesmo nem sabe como se formaram nele. Conforme abordado em seu livro As formas do silêncio (ORLANDI, 2007). 3 A AD busca, portanto, a compreensão dos sentidos em suas múltiplas possibilidades. A produção dos sentidos ocorre em funcionamentos discursivos, de modo que os sentidos possam vir a serem outros, ou, nas palavras de Orlandi (2002, p. 197), “[...] os sentidos não podem ser os mesmos”, uma vez que dependem das condições de produção nas quais está inserido o dizer. Pensando assim, chegamos à compreensão de que a produção de sentidos sobre a história da prostituição passa pelo viés das condições históricas e sociais. Incluindo-se os sentidos negativos sobre o imaginário da mulher, de forma geral, e mais especificamente, da meretriz. Esses sentidos negativos estão na base do estigma social, do preconceito que sofreram (e ainda sofrem) as mulheres que eram (e são) meretrizes. Desse modo, o preconceito impede, segundo Orlandi (2002, p. 198), a produção de sentidos outros, pois restringe-se ao que já está dado. Assim, para a autora, o preconceito está para a ordem da censura3, que silencia “[...] sentidos possíveis que [...] não podem ser ditos”. O preconceito ocorre, então, na base do silenciamento dos sentidos, na interdição. Nesse caso, certos assuntos são silenciados pela sociedade, pois são ainda considerados tabus, ou seja, passam pelo processo de interdição. A prostituição é um exemplo de tabu, não só ela, mas também toda uma história da sexualidade que foi sendo silenciada por uma sociedade mais conservadora. Foucault (1988, p. 9) nos mostra que, na sexualidade do século XVII, “[...] ainda vigorava uma certa franqueza. As práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade”. Assim, falar de sexo era algo Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 221 S eg u ndo O rla nd i (2002, p. 200), “[...] o politicamente correto silencia o fato de que não se trata só de uma questão de boa vontade. Trata-se de explicitar o político”. Nessa direção, as palavras consideradas “corretas” servem para representar a moral social presente na atualidade, e, ao mesmo tempo, censurar modos de dizer (outras palavras) sobre questões que ainda são consideradas tabus em nossa sociedade. 4 222 tido como comum, não era uma blasfêmia e muito menos algo que somente alguns pudessem falar. Mas, segundo o autor, os discursos sobre o sexo passaram para o “quarto do casal” e para os especialistas, pois somente estes detinham um saber que lhes permitia falar sobre sexo. Esse funcionamento sobre o sexo nos permite compreender de que forma os sentidos vão sendo constituídos e de que forma o silêncio produz sentidos: através do silenciamento de alguns dizeres para que outros predominem. Nota-se que atualmente há uma gama de textos, imagens, filmes, sites que falam sobre sexo e sexualidade de várias formas e com vários sentidos. Mas, por outro lado, esse grande número de informações não significa que falar de sexo atualmente deixou de ser tabu, deixou de existir uma repressão sexual. Isso pode ser visualizado pelos meios de censura que existem na atualidade, pois muitos canais de televisão aberta são obrigados a tirar certas cenas do ar ou utilizam um recurso que mitiga as palavras consideradas politicamente incorretas4. Em O Mal-estar na civilização, Freud (1930) nos mostra como os sentidos foram sendo construídos a partir de muitos imaginários sociais, culturais e históricos que perpassam também os dizeres sobre a prostituição. Nessa direção, para o autor, a própria ideia de civilização, de sociedade, se contrapõe com a de prazer, com a de sexualidade, pois através da sociedade foram se constituindo os modos de se viver, com regras, com direitos e deveres, constituiu-se, assim, o princípio da realidade, que se contrapõe ao princípio do prazer. Para o autor, esses dois princípios fazem parte do ser humano, o que põe em funcionamento, de um lado, o desejo de ser feliz, o imediatismo do prazer, independente de regras, convenções sociais (princípio do prazer), e, de outro, as regras, as normas do como viver em sociedade com o seu igual (princípio da realidade). Essa construção de sentidos perpassa o imaginário sobre a mulher e a prostituição e, dessa forma, sobre a própria sexualidade que constitui todo sujeito. Assim, é interessante, nesse estudo, perceber que falar sobre a prostituição, sobre a sexualidade ainda é algo que produz preconceito na sociedade atual. Frente a essas colocações teóricas, nos deteremos na análise discursiva dos cadastros policiais que materializam os sentidos sobre a mulher e a prostituição, principalmente na relação trabalho-corpo-prazer, que produzem efeitos na prática da prostituição. O equívoco constitutivo das/nas práticas de prostituição Atualmente, o uso dos termos “puta”, “prostituta”, “meretriz”, entre outros, estão sendo questionados por movimentos que buscam o reconhecimento da prostituição enquanto “[...] uma profissão como outra qualquer” (RODRIGUES, 2009, p. 69). Esses grupos passaram a usar os termos “profissionais do sexo” Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 Tais como “Associação das Profissionais do Sexo”; “Rede de Trabajadoras Sexuales de Latinoamerica y el Caribe”; “Trabajadores sexuales argentinas em acción por sus derechos”. 5 ou “trabalhadores do sexo”. Trata-se, pois, do funcionamento do politicamente correto, que, segundo Orlandi (2002), apenas busca silenciar, apagar os sentidos que estão presentes na sociedade, principalmente em relação ao preconceito. Para a autora, o único modo de mudar os sentidos do uso de determinada palavra é através da mudança das condições de produção dessas palavras, pois só assim elas podem sofrer um deslize, um deslocamento, ou seja, é necessário mudar as relações sociais para que os sentidos deslizem, desloquem e permitam que o preconceito tenha fim. Desse modo, alguns grupos5 que pregam a profissionalização da prostituição não aderem ao uso dos termos “puta”, “prostituta”, “meretriz”, ao contrário, propõem mudanças sobre a forma de denominação da prostituição. Assim, esses novos modos de renomeação – que atendem à demanda atual do politicamente correto – produzem a afirmação do estigma social que esta atividade sofreu/sofre, ao invés de exaltar a prostituta/prostituição enquanto profissão. Ou seja, ao designar a prostituta como “profissional”, como “trabalhadora” tenta-se apagar o preconceito que essa atividade produziu ao longo da história. Portanto, ao dizer “somos trabalhadores, somos profissionais” produz-se uma tentativa de silenciamento do estigma social da prostituição para visibilizá-la enquanto “um trabalho como outro qualquer”, sem preconceito nenhum. Mas, enquanto os dizeres sobre a prostituta/ prostituição se derem nas condições de produção atuais, a mudança de designação não produzirá nenhum resultado, porque o estigma social continuará produzindo seus efeitos, ou seja, os sentidos das palavras só mudarão se houver condições históricas para isso, ou seja, a proposta de mudança não assegura a adoção e circulação do novo nome. Nessa relação com o trabalho aparece, então, o equívoco constitutivo das práticas de prostituição, pois toda a contradição – presente na relação prostituição x trabalho e corpo – vem investida por questionamentos presentes no nosso dia a dia, na sociedade: circulando, produzindo sentidos. Afinal, o que é trabalho? O que é esse trabalho na relação com o corpo, o que é o corpo na relação com o trabalho e com o prazer? Há, nas relações sociais, uma insuportabilidade em deixar circular os sentidos sobre o prazer, porque a sexualidade traz para todos os sujeitos um fantasma socialmente insustentável que é o prazer. Historicamente, a relação entre trabalho e prazer é algo inconciliável, principalmente no momento em que a Igreja, como instituição, leva o homem a repudiar o prazer, através da moralidade, atravessando, barrando constantemente a sua relação com a sexualidade. O preconceito funciona, então, como um modo de dar visibilidade a essas questões, pois faz circular pré-construídos nos quais os dizeres sobre prazer/sexualidade são silenciados, ou seja, Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 223 não se pode falar de prazer, não se pode falar sobre o corpo na relação com o prazer. Nessa direção, o preconceito nega os sentidos que traduzem essa interdição, mas, ao mesmo tempo, é a interdição que torna tão forte os efeitos sobre o sexo, que sempre encontra formas de escape, de deslize, de falha, produzindo sentido. Assim, mesmo silenciado, interditado, o dizer sobre o sexo/sexualidade continua incomodando, funcionando nas relações sociais, produzindo efeitos. Nessa direção, o trabalho, pautado por um sistema capitalista, produz sentidos voltados para a concepção do sustento, como forma de edificação do ser humano, sem o qual o homem não se constituiria como sujeito para a sociedade, como um bom cidadão, que cumpre suas obrigações. Por essa razão, a própria relação do prazer com o trabalho fica diluída, pois não há tempo para o prazer (“tempo é dinheiro”), produzindo, assim, efeitos negativos sobre os sujeitos que visibilizam, através de sua atividade, a questão do prazer, ainda que de outrem, como é o caso da prostituta. Portanto, tem-se, nessas condições de produção, a contradição marcada pelo trabalho e pelo prazer, ou seja, ou corpo serve para o trabalho ou serve para o prazer, o que coloca em funcionamento uma impossibilidade de que prazer e trabalho circulem mutuamente. E nessa relação, a prostituta vai se constituir como o lugar do equívoco, do deslize, pois produz um funcionamento em que trabalho e prazer se constituem mutuamente através do uso do corpo na prostituição. Talvez essa contradição não permita que, ainda hoje, no Brasil, haja a legalização da prostituição como profissão, pois essa legalização coloca-se no lugar do interditado, do proibido, permitindo, portanto, como um de seus efeitos, a consolidação do estigma social que marca a prostituta/prostituição. Nesse entremeio, instituem-se as várias imagens projetadas sobre a prostituição que a insere, em alguns momentos, como profissão e, em outros, desqualificando-a como tal, interpretando-a como mero negócio, como veremos a seguir. O cadastro policial Nessas fichas encontram-se os dados básicos de um cadastro: nome, filiação, data de nascimento, cidade, nacionalidade, estado civil, identidade, residência, profissão, local de trabalho, ramo/ negócio, procedência, infração, data/entrada. Logo em seguida há um espaço denominado “Observações”, como já mencionamos. Em alguns dos registros, encontramos profissões como costureiras, manicure, cabeleireira, etc. No caso da ficha acima (figura 1) temos como profissão “costureira” e como ramo/negócio “Atualmente, meretrício”. Percebemos que há, portanto, um desencontro entre o que é profissão e o que é ramo/negócio. 224 Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 Fig. 1. Imagem adaptada de um cadastro policial com o item “observações” Fonte: Núcleo de documentação de história escrita e oral (NUDHEO) A formulação – “Atualmente, meretrício” – produz um funcionamento em que ser meretriz é uma atividade recente, enquanto que ser costureira é uma atividade mais antiga. Essa diferença entre as formulações faz funcionar sentidos de que o sujeito possui uma profissão, mas que não atua nela ou ela é insuficiente para a manutenção própria e da família, sendo necessária a prática do meretrício, razão pela qual a ficha comporta o item profissão e o item ramo/negócio, que, no caso desse cadastro (figura 1), surgem de formas distintas. Nesse mesmo cadastro, aparece, no item observações, uma outra profissão: a de “bailarina”. Nesse item, a profissão “bailarina” juntamente com a formulação “Bar Tropical” – “É bailarina no Bar Tropical, no local onde mora” – produz um deslizamento produzindo efeitos de sentido que toma uma profissão, a de bailarina, ou um local, o bar Tropical, para significar a atividade de prostituição. Os sentidos do que se coloca como paráfrase ou polissemia dependem das condições de produção das formulações e da inscrição em cada formação discursiva na qual o sujeito do dizer se constitui. Assim, bailarina e Bar Tropical representam o espaço do meretrício no social, na cidade de Cáceres. Ou seja, estar no Bar Tropical, ser bailarina, nessas condições de produção, significa exercer a profissão de meretriz, ou seja, caracteriza a imagem da mulher como prostituta. Conforme Orlandi (2007a), através dos objetos simbólicos, podemos compreender como o sentido é produzido, logo, é a formação discursiva que determina o que pode e deve ser dito, portanto, afirmar-se como “bailarina do Bar Tropical” insere o dizer da prostituta, enquanto materialidade, em uma formação discursiva jurídica, ou seja, aquela que autoriza a dança e o local como profissão reconhecida, silenciando a atividade da prostituição. A atividade de bailarina, então, é uma profissão socialmente Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 225 aceita, com local e atividade definidas, o que retiraria a prostituta da ilicitude que o próprio fato de cadastrá-la produz. No entanto, a atividade de bailarina – que é considerada como profissão enquanto a prostituição é considerada ilícita – no registro policial, associada a um local – o bar Tropical – passa a ser considerada apenas uma atividade de prostituição, pois se trata da venda do próprio corpo. Entrementes, há formulações presentes em uma outra ficha de qualificação que tomam o meretrício como profissão, tanto nos itens profissão e ramo/negócio quanto no item denominado observações, como veremos no cadastro a seguir: Fig. 2. Imagem adaptada de um cadastro policial com o item “observações” Fonte: Núcleo de documentação de história escrita e oral (NUDHEO) No caso do cadastro acima (figura 2), os itens profissão e ramo/negócio representam um mesmo lugar, o do meretrício, não havendo uma distinção. Nessa direção, tem-se a inscrição do meretrício como uma profissão – “Ninguém a força a viver dessa profissão” – havendo, portanto, uma descriminalização desse tipo de atividade, que passa a ser considerada, apenas uma comercialização, como qualquer outra, em que a meretriz prestava um serviço e recebia por ele. Vemos, portanto, como o uso do corpo para atividade de prostituição produz sentidos contraditórios, pois, considerado como degradação, o prazer para a sociedade é algo primitivo, feio, que deve ser silenciado, e a meretriz representa o que a sociedade condena e repudia, pois a sua atividade se faz pelo uso do corpo para o trabalho e pela proporção do prazer. Dessa maneira, ao dar prazer através do corpo, a prostituta pode também senti-lo, o que é negado pela sociedade capitalista, pois o corpo propicia o lugar de poder dizer sobre o trabalho e sobre o prazer, numa relação contraditória. Assim, seus efeitos produzem a contradição, tanto negativa, de estranhamento (o uso do corpo para a prostituição) quanto de aceitação pela moral social (o uso do corpo para o 226 Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 trabalho). No entanto, a prostituição também não seria o uso do corpo para o trabalho, para o sustento? E, ao mesmo tempo, não seria o corpo, nessa relação de trabalho, o objeto de proporcionar/ sentir o prazer? Este funcionamento relaciona-se com a contradição presente nos cadastros analisados, pois as marcas presentes – “profissão: costureira; ramo/negócio: Atualmente, meretrício”; “Ninguém a força a viver dessa profissão” – demonstram o lugar da prostituição como profissão e, ao mesmo tempo, funcionam como sua denegação. Historicamente a relação trabalho x corpo constitui o corpo como lugar do sacrifício, do sustento, do viver de acordo com as regras sociais (princípio da realidade), apagando (censurando) o corpo como instrumento de prazer (princípio do prazer). O funcionamento inconciliável entre o princípio da realidade e o princípio do prazer, descritos por Freud (1930), marcam o lugar de ilegitimidade da prostituta/prostituição. Na tentativa de controlar a sexualidade, o prazer, os regulamentaristas buscavam; entre as décadas de 1890 a 1920, não só controlar o lugar em que as prostitutas deviam viver e se prostituir, como também mantê-las sob o jugo da não satisfação sexual, ou seja, “[...] o ideal de puta para os regulamentaristas é a mulher recatada e dessexualizada, que cumpre seus deveres profissionais, mas sem sentir prazer e sem gostar de sua atividade sexual” (RAGO, 1985, p. 92). Ou seja, os efeitos produzidos são os de que as prostitutas deveriam ser “recatadas” e “dessexualizadas” ao realizarem o seu trabalho, pois lhe era interditado o prazer sexual. Desse modo, esse apagamento da possibilidade de prazer coloca a meretriz mais próxima da mulher honesta – a quem também era negado o prazer, pois sendo “recatada” e “dessexualizada”, o sexo servia-lhe apenas ao propósito de gerar a prole e cuidar do lar. Nessa direção, a atividade da prostituta constituiu-se como um lugar de dar prazer e não de obter prazer, assim, a função do trabalho para a meretriz era apenas a de provê-la financeiramente, marcando a contradição constitutiva entre o trabalho e o prazer. O uso do corpo para atividade de prostituição constituía uma forma de resistência da prostituta, pois fazia uso de algo interditado (o corpo), com o qual além de se beneficiar financeiramente, poderia sentir prazer. Os sentidos produzidos nos mostram como a interdição, a censura de falar sobre sexo, está arraigada na sociedade através desse olhar negativo sobre a relação do corpo com o prazer. Nesse sentido, o corpo não serve apenas para o trabalho, para produzir de forma a contemplar os ditames do capitalismo, uma vez que é lugar de sentir e de dar prazer. Nessa direção, a prostituta constitui-se de modo a produzir sentidos que se instalam pela contradição entre trabalho, prazer e corpo. Trata-se de sentidos que, construídos pela moral social, produzem uma contradição que é constitutiva da prostituição, pois, Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 227 apesar de ser renegada pela sociedade, em nenhum momento vemos a tentativa de pôr fim a essa atividade. Assim, a prostituta/ prostituição foi/é considerada um “mal necessário”, devendo ser apenas controlada, mas não extinta. Aqui também se instala uma interessante contradição, pois a prostituição é mantida como um mal necessário para dar prazer ao outro, mas não para o prazer pessoal da prostituta. Dessa maneira, a prostituta é um mal necessário, pois o prazer é também necessário. Assim, se o homem não pode ter prazer com a esposa, devotada ao lar e aos filhos, é necessário alguém que lhe dê prazer, ou seja, se há, por um lado, a mulher-mãe, é preciso que haja a mulher-prostituta. Essa dualidade é historicamente constitutiva na imagem feminina e nasce da imperiosidade de o homem sentir prazer e da interdição do prazer feminino. Desejo e sobredeterminação: a desresponsabilização do Estado sobre a prostituição A necessidade social da prostituta/prostituição se materializa nos cadastros policiais produzindo efeitos de desobrigação e de desresponsabilização do Estado: (01) “É meretriz voluntariamente há 8 anos” (02) “Ninguém a força a viver dessa profissão” (03) “Não vive constrangida em sua profissão de meretriz” Observamos que essas formulações se constituem numa relação parafrástica e polissêmica. Para Orlandi (1998), o jogo sobre as regras da língua é o que afeta a repetição, produzindo deslocamentos, que permitem, através da substituição, que o sentido possa a vir ser outro. Nesse caso, as formulações: “É meretriz voluntariamente há 8 anos”./ “Ninguém a força a viver dessa profissão”. / “Não vive constrangida em sua profissão de meretriz”, produzem efeitos que apagam e subsumem todo o caráter de indução social à prostituição, pois, ao colocar a prostituição como um ato de vontade, de desejo pessoal da prostituta, apagam-se fatores socioeconômicos e culturais, produzindo o efeito de que quem pratica a prostituição voluntariamente o faz por desejo e por prazer. Dessa maneira, a liberdade para ‘escolher’ se tornar meretriz, se é que ela existiu, retirou-a, por outro lado, da condição de mulher submissa e dependente, e conferiu-lhe a condição de uma mulher que é dona de sua própria vida, ou seja, a atividade de meretriz conferiu-lhe um sentido de escolha. No entanto, é preciso salientar que a posição sujeito policial interpreta as falas da prostituta, falando por ela, ao produzir as fichas. Desse modo, produz-se o silenciamento de todas as condições sociais e econômicas que levam a mulher a se prostituir, pois os efeitos que as formulações – (01) “É meretriz voluntariamente há 8 anos”; 228 Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 (02) “Ninguém a força a viver dessa profissão”; (03) “Não vive constrangida em sua profissão de meretriz” – produzem acerca da imagem das prostitutas são os de mulheres que gostam desse tipo de vida, que não se sentem culpadas e que são obstinadas em fazer o que sempre quiseram fazer. Esse efeito confere à mulher a condição de leviandade, pois optam por não mudar o que fazem e o fazem por prazer, por gosto ou por qualquer outra razão de menor valor. Nessa direção, há uma transgressão das regras sociais, nas quais o sujeito não tem o direito de não fazer nada, ele é assujeitado ao Estado, a um sistema capitalista que preza pela produção, assim, enquanto um sujeito-de-direito, possui direitos e também deveres que condicionam o seu modo de vida. Nessa relação, o trabalho é marcado como lugar de desenvolvimento da sociedade. E se o sujeito não produz, se vive somente para o prazer, transgride todas as regras sociais, marcando sua condição na sociedade como: leviano, “vagabundo”. De outro modo, para fugir a esse estigma, é necessário que sofra a interdição do prazer. Ao se formular “É meretriz voluntariamente há 8 anos” (figura 1) – tem-se em funcionamento o sujeito de direito, aquele que “pensa” ser dono do seu dizer e do seu fazer. É, pois, esse sujeito que é ressaltado nessa formulação, pelo funcionamento do advérbio de modo “voluntariamente”, que expressa o modo como se dá a prostituição, ou seja, por vontade do sujeito. Trata-se, pois, de formulações que se filiam ao discurso jurídico, uma vez que diz do sujeito-de-direito que pode, por sua livre e espontânea vontade, praticar a prostituição. O uso do vocábulo “voluntariamente” produz também o mesmo sentido que “voluntariosa”, ou seja, “aquela que age apenas ou principalmente segundo sua própria vontade”. O sujeito-de-direito é, nesse caso, um sujeito sem culpa, que age obstinadamente, que segue seus caprichos sem consideração à vontade de outrem para exercer a sua própria vontade, qual seja a de exercer a prostituição. Desse modo, a prostituição passa a ser atribuída à individualidade da prostituta, pois se é prostituta em razão de sua própria vontade, o que produz efeitos de desobrigação do Estado para com a prostituta/prostituição. Nessa direção, os sentidos que se produz sobre a mulher/ meretriz, com a venda de seu próprio corpo, é o de que ela apaga a necessidade do exercício de uma profissão reconhecida em nome da sua “escolha”, do seu voluntarismo, da sua ausência de culpa. O efeito que esse tipo de discurso produz é o de um sujeito que pensa ser dono de sua vontade e que pensa ser livre. É por essa razão que o seu dizer produz a ilusão de que a prostituta tem o controle sobre si e que não está sujeita às relações de poder, decorrentes dos modos de produção capitalista. Compreendemos, assim, que há, nessa formulação, um processo de desresponsabilização do Estado, como já mostramos, pois se o sujeito policial registra que a prática da prostituição é um ato Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 229 de vontade do sujeito, apaga, desse modo, toda a possibilidade de que ela seja decorrente das mazelas socioeconômicas das mulheres naquele período. Do mesmo modo, desresponsabiliza o aparelho repressor – a polícia – de qualquer ação, pois a prostituição não é crime, mas a indução, por terceiros, dessa prática é criminosa. Ora, se a prostituta afirma que sua ação de prostituir é voluntária, ela isenta de qualquer responsabilidade o aparelho repressor e alguém que, eventualmente, possa estar induzindo-a a tal prática. Nas formulações (01), (02) e (03), notamos uma gradação, ou seja, são dizeres diferentes, mas que produzem os mesmos efeitos de sentido, qual seja o da não obrigatoriedade de ser meretriz. Porém, na formulação (03) – “Não vive constrangida em sua profissão de meretriz” –, além do dizer referir-se ao sujeito-de-direito, a formulação faz remissão também ao atravessamento do discurso jurídico pelo religioso, uma vez que coloca em funcionamento a noção de culpa, implicitando que a prostituta deve constranger-se da atividade que realiza. Assim, em “não vive constrangida”, o funcionamento que se coloca é o de uma mulher que não se constrange, não sente culpa, não se deixa interpelar pelos sentidos instalados pela moral cristã que a prática da prostituição apaga. Trata-se de sentidos que, filiados a uma concepção da moral religiosa, colocam a mulher como alguém que deve manter-se pura, casta e desempenhando com qualidade o papel de boa mãe e esposa. Assim, o efeito que a formulação produz é o de que as relações morais e sociais são subsumidas pelas econômicas, pois não há constrangimento pelo tipo de atividade que se pratica. Desse modo, ser meretriz, de um lado, é ter uma profissão e se colocar como produtiva em um sistema que exige a produção, daí o fato de “não viver constrangida”. Mas, por outro lado, a produtividade da prostituta realiza-se sobre algo interditado – o uso do próprio corpo para a obtenção/doação de prazer –, produzindo um deslize, uma contradição, pois o uso inadequado do corpo, ressaltado pelos valores morais e instituídos pelo discurso religioso, permanece produzindo seus efeitos e afirmando o estigma social para a prostituta, mesmo que ela seja considerada produtiva, conforme a ordem do sistema capitalista. Considerações Finais A Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) assegura à prostituição o status de ocupação, mas não de profissão, apesar de haver inúmeros projetos de lei que pleiteiam essa finalidade. Esse funcionamento moroso, contudo, tem uma razão de ser, pois o trabalho com o corpo deve dignificar o homem e não produzir-lhe prazer. Assim, a negação do status de profissão à prostituta funciona como um castigo, uma punição, pois as regalias conquistadas pelas profissões não devem alcançar as mulheres que usam o corpo para sentir/dar prazer. Portanto, funcionando 230 Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 por um batimento entre a paráfrase e a polissemia, há avanço e há retrocessos, há o mesmo e o diferente, há sentidos novos e sentidos recorrentes em relação às prostitutas/prostituição, pois a sua força de trabalho não pode/deve ser considerada como dignificante, mesmo com tantas ONG’s, mesmo com tantos projetos de lei do legislativo, mesmo com tanta luta pela causa. Se considerarmos os modos de funcionamento capitalista de lidar com as situações sociais, a prostituição poderia até ser elevada à condição de profissão, uma vez que, nesses modos de produção, é o lado econômico que tende a prevalecer. Contudo, é importante assinalar que o discurso que prevalece sobre a prostituta/prostituição é o da moral, o da religião, principalmente pelo poder legislativo do país que, ainda hoje, interpelado por essas discursividades moralizantes, vota contra a legalização da prostituição adulta como profissão. Desse modo, a interdição do uso do corpo na relação com o trabalho, visando a sentir/dar prazer, produz uma contradição permanente para a prostituta, pois ela constitui-se na contramão dos valores morais e mesmo do sistema capitalista, uma vez que ela é produtiva, mas a sua forma de produção não é aceita. Entrementes, a contradição presente na relação trabalho-corpo-prazer demonstra, ao longo da história, que, por mais que se busque restringir, censurar, interditar o prazer, ele aparece em algum lugar, sempre encontra modos de escape. É a necessidade do prazer que, em conflito com os valores morais, sociais e religiosos (princípio da realidade), propicia à prostituição seu lugar de “mal necessário”, pois, o prazer é necessário, produzindo assim uma contradição constitutiva para a produção dos sentidos e dos sujeitos nas práticas de prostituição. Abstract This article aims to analyze the relationship between body-work-pleasure in the practices of prostitution. We question what is the work in relation to the body, which is the body in relation to work and pleasure? In this direction, we intend to address in this study the theory of Discourse Analysis of French line, which has as its theoretical object the discourse, in which we found the marks of disruption that will allow us to understand, through gestures of interpretation, as sense makes sense. Keywords: prostitution; pleasure; profession; body. Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 231 REFERÊNCIAS DHOQUOIS, R. 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Acessado 10 fev. 2010. Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013 233 A milícia e o processo de individuação: entre a falta e a falha do Estado Greciely Cristina da Costa (UNIVÁS) Resumo Neste artigo, refletimos sobre o modo como a falta e a falha do Estado intervêm no processo de individuação ressaltando que a individuação do sujeito pelo Estado, de acordo com Orlandi (2012), é uma questão política dada a relação do indivíduo com a sociedade. Para isso, observamos a configuração da milícia face ao espaço da favela e em relação ao Estado. Ao mesmo tempo, procuramos explicitar algumas discursividades que enunciam a forma pela qual a milícia é identificada em discursos sobre ela, notadamente em uma entrevista realizada com moradores do Rio de Janeiro. Palavras-chave: Discurso; Milícia; Processo de Individuação. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 A gente quase nunca vê. Esse pessoal do extermínio a gente quase nunca vê. Teve até um desses do extermínio, que ele andou preso; ele é policial, porque teve um inquérito, descobriram que ele estava exterminando. Mas ele não foi expulso. Diferente dos outros, ele não foi expulso. Ele continua policial. A milícia funciona mais assim para exterminar. Eles querem manter a paz assim. Não mantém a paz, fechando rua (Entrevistado 22). Agradeço ao Prof. Dr. Ignacio Cano pela concessão de parte de seu material de pesquisa, cuja entrevista com moradores do Rio de Janeiro, alguns de áreas miliciadas, foi coletada pela equipe de pesquisadores do LAV (Laboratório de Análise da Violência), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Na entrevista os sujeitos eram questionados sobre a milícia e sua atuação. 2 Fazem parte da milícia, além dos policiais e ex-policiais, bombeiros e agentes penitenciários, mas esses são m inoria, por isso, preferimos destacar o nome polícia, pois é ele, também, que é enunciado para se referir à milícia. 1 236 Sabemos que o extermínio é crime, mas não é imputado a qualquer sujeito como o Entrevistado 22, acima mencionado, em entrevista sobre a milícia1, denuncia: Teve até um desses do extermínio, que ele andou preso; ele é policial, porque teve um inquérito, descobriram que ele estava exterminando. Mas ele não foi expulso (não foi “devidamente” punido?). Ele continua policial (continua exterminando?) e a milícia funciona assim mais para exterminar. Extermínio, policial, milícia são formas enunciadas no interior de um discurso que aponta para ilegalidade cometida pelo policial e, ao mesmo tempo, para a prática criminosa e para o próprio sujeito que fica impune e, ainda, para a especialidade da milícia: exterminar. Esse discurso está inserido em uma conjuntura sócio-histórica, na qual tornou-se constante tratar a violência policial como legítima, quando autorizada pelo Estado. Tornou-se constante significá-la como legítima para garantir a ordem, a paz e a segurança. Tornou-se constante, para uma parte de nossa sociedade, banalizar o extermínio praticado pela polícia, quando um suposto inimigo está inscrito, supostamente, no lugar social e no espaço ditos de marginalidade, como por exemplo, o morador de/na favela. Por outro lado, ordem, paz, segurança, inimigo, formas materiais submetidas à opacidade da língua e ao seu sistema sempre sujeito a equívocos, têm seus significados deslocados, pois eles reclamam outros sentidos e por isso mesmo podem politicamente se dividir, se contrapor, ressignificar em uma rede de discursividades distintas. O fragmento acima faz parte de um discurso sobre a milícia que põe em cena a polícia de um outro modo, com outros sentidos, na relação com a milícia. Expliquemos. Em 2006, a denominação milícia começou a circular na mídia para se referir à polícia (policiais junto a outros agentes de segurança pública)2 que entrava em áreas de favelas ocupadas por narcotraficantes a fim de “combatê-los”. Mas, ao invés de efetuar mandados judiciais, prisões outorgadas, entre outros procedimentos legais, esse combate consistia na expulsão, até a execução sumária, daquele considerado inimigo, naquele determinado espaço, visando, com isso, a instauração de uma espécie de domínio. Depois do combate, a milícia passava a controlar ilegalmente as relações comerciais e sociais dessas áreas, a partir da imposição de um dispositivo normativo regido pelo discurso, até então dito moral, de enfrentamento da criminalidade e de manutenção da ordem, da paz e da segurança. Essa prática criminosa explicita a polícia com outro Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 nome. Em outros termos, o discurso sobre a milícia explicita uma prática da polícia, primeiramente, porque a milícia assim como a polícia irrompe do interior de uma mesma instituição do Estado, imaginariamente, representante da Lei. A milícia assim se configura nos limites do sentido de polícia e instala imaginariamente a contraparte da Lei, o crime. A milícia é significada e constituída entre a lei e o crime. Esse é um dos efeitos dos discursos sobre a milícia analisados em nossa pesquisa de doutorado (COSTA, 2011). Eles enunciam essa constituição afetada pela formulação de uma tensão, do embate entre o legítimo, o legal e o ilegal, provocados, sobretudo, pela falta e pela falha do Estado enquanto articulador político-simbólico (ORLANDI, 2001a) na contemporaneidade. Neste artigo, procuramos apresentar, através de recortes da tese, de que modo a falta e a falha do Estado intervêm no processo de individuação ressaltando que a individuação do sujeito pelo Estado, de acordo com Orlandi (2012), é uma questão política dada a relação do indivíduo com a sociedade. Para isso, observamos a configuração da milícia em relação ao espaço da favela e ao Estado. Ao mesmo tempo, procuramos explicitar algumas discursividades que enunciam o modo pelo qual a milícia é identificada. Interpelação, Individuação e Identificação Em Do sujeito na história e no simbólico, Orlandi (2001a) apresenta dois movimentos que constituem o processo de subjetivação do sujeito: Interpelação e Individu(aliz)ação. A autora explica que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia, no simbólico, constituindo assim a forma-sujeito histórica (PÊCHEUX, 1975; ORLANDI, 2001a), enquanto o Estado, “com suas instituições e as relações materializadas pela formação social que lhe corresponde” (p. 106) individua essa forma-sujeito. Orlandi acentua que desse processo resulta um indivíduo responsável e dono de sua vontade, com direitos e deveres. Segundo ela, uma vez individuado, esse indivíduo, ou melhor, esse sujeito individuado estabelece uma relação de identificação com uma ou outra formação discursiva produzindo diferentes efeitos. E assim, nas palavras da autora, se constitui em uma posição-sujeito na sociedade. E isto deriva de seus modos de individuação pelo Estado (ou pela falha do Estado), pela articulação simbólico-política através das instituições e discursos, daí resultando sua inscrição em uma formação discursiva e sua posição sujeito que se inscreve então na formação social com os sentidos que o identificam em sua posição sujeito na sociedade (ORLANDI, 2012, p. 228). Em Por uma teoria discursiva da resistência do sujeito, Orlandi (2012) retoma esses pressupostos para fazer avançar teoricamente a reflexão sobre a constituição do sujeito na relação com a resistência pensada discursivamente. Com esse propósito, neste estudo, a autora assinala que o “Estado, em uma sociedade de mercado predominantemente, falha em sua função de articuNiterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 237 Zaluar & Conceição (2007) retornam ao sign ificado etimológ ico da palavra milícia, que sugere serviço militar (militia, de origem latina: miles quer dizer soldado e itia se refere a estado, condição ou atividade), para expor a maneira como essa denominação é tomada em diferentes países. Comumente ela denomina força militar composta “de cidadãos ou civis que pegam em armas para garantir sua defesa, o cumprimento da lei e o serviço paramilitar em situações de emergência, sem que os integrantes recebam salário ou cu mpra m f u nção especificada em normas institucionais” (p.90). Deu nome ao exército oficial do Canadá; na Suíça, ao exército oficial de reserva; às tropas de reserva, da Austrália e, também, do Canadá. Em países que não têm o que se chamou polícia, milícia dá nome a um policiamento regional. O modo como as autoras conduzem sua exposição nos dá a impressão de que a ideia de segurança e de defesa estrutura as distintas milícias. Mas o sentido de segurança e defesa é bastante ambíguo. Milícia Talibã é, também, denominação do movimento fundamentalista islâmico, cujo preceito é político-religioso e, como sabemos, sua prática é terrorista. 3 238 lador simbólico e político. E funciona pela falha. Isto é, a falha do Estado” (p. 229). Para Orlandi, essa falha não diz respeito à falta de interesse, descaso, nem significa que o mercado substitua o Estado. Trata-se de uma falha necessária, estruturante do sistema capitalista contemporâneo. Falha que incide sobre o processo de individuação e, portanto, intervém no processo de identificação. Sobre esse último, Pêcheux (1982) propõe pensar a ideologia como um ritual com falhas. Nesse sentido, a falha é o lugar do possível (ORLANDI, 2012, p. 230), lugar em que a ideologia “se abre em ruptura, onde o sujeito pode irromper com seus outros sentidos e com eles ecoar na história” (idem, ibidem, p. 231), pode então, produzir outros efeitos no processo de identificação. Em relação às formas ideológicas constitutivas da contemporaneidade, Orlandi (2012, p. 226) apresenta duas hipóteses. Segundo a autora, há na contemporaneidade, duas formas ideológicas que regem o imaginário citadino: 1. O mito da completude (a sociedade como um todo organizado e coeso) criando a interpretação da desagregação (aquilo que fica fora dela) e 2. em uma perspectiva neoliberal, o fato de que a reciprocidade, a solidariedade cedem lugar à rivalidade, à competição, à marginalidade. Por esse viés, podemos situar a milícia primeiro em relação à cidade como constituída especificamente em um espaço: o da favela. Espaço esse segregado. Espaço, cuja ausência do Estado é visível e a arbitrariedade das forças policiais também. Em segundo, no ponto de encontro da falha e da falta no Estado, cujo resultado é o confronto ideológico entre aquilo que é ou não dito como marginal. A reflexão de Orlandi, sobretudo, nos leva a compreender a milícia como uma das formas de relação do Estado (ou a sua falta/falha de/na relação) com os sujeitos históricos sociais. Forma essa que, por sua vez, interfere no modo como os sujeitos individuados identificam a milícia, como ela se constitui a partir de um discurso sobre ela. Milícia e Estado: Modos de Individuação A denominação milícia3 , na relação com diferentes definições, se inscreve em um processo discursivo desencadeado pela substituição de uma denominação por outra. Seu funcionamento discursivo é permeado de equívocos, é, por isso, colocada o tempo todo em suspenso, em nossa pesquisa (COSTA, 2011). Para tecermos algumas considerações sobre ela, neste momento, trazemos uma definição – como veremos equívoca, sobretudo, em seu modo de denominar – formulada no interior dos estudos sociológicos, na qual a milícia é um grupo armado irregular e se define pelos seguintes eixos: 1. controle de um território e da população que nele habita por parte de um grupo armado irregular; Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 2.caráter em alguma medida coativo desse controle dos moradores do território; 3. ânimo de lucro individual como motivação principal dos integrantes desses grupos; 4. discurso de legitimação referido à proteção dos habitantes e à instauração de uma ordem que, como toda ordem, garante certos direitos e exclui outros, mas permite gerar regras e expectativas de normatização da conduta; 5. participação ativa e reconhecida de agentes do estado como integrantes dos grupos (CANO & IOOT, 2008, p. 59). Estes eixos, por sua vez, deslocam o sentido de militar de milícia, ao passo que fazem referência a um grupo composto por agentes de segurança do Estado (policiais militares e civis, bombeiros, agentes penitenciários), interessados no controle, na coerção, na extorsão, na instauração de uma ordem e normatização da conduta num determinado espaço, de determinados sujeitos. Esse espaço, referido acima como território, não diz respeito a qualquer espaço. Sabemos que a milícia invade, em sua maioria, favelas dominadas por traficantes, ou seja, enunciar território, para se referir ao espaço visado pela milícia, é trazer para dentro dessa definição a problemática em torno da relação de poder(es) que existe nesse espaço, pois, além de o termo presentificar posições divergentes na forma como a favela se significa nessas condições de produção, ele remete a espaço institucionalizado, que está diretamente ligado ao poder de Estado, faz parte dele. Como nos explica Orlandi (2011a): Se, de um lado, podemos pensar uma definição jurídica para território – limitação da força imperativa das leis ao território que as promulga – de outro, podemos pensar a definição política: condição da terra que faz parte de um Estado. Mas desde que o poder está em jogo temos a possibilidade de intervenção. Portanto estas definições não são inertes, nem politicamente ‘neutras’. Há sempre a necessidade de ‘órgãos’ competentes, legítimos que exerçam territorialidade (p. 20 – grifos da autora). E, quando se trata da favela e no que se refere à presença de “órgãos” legítimos, neste espaço, já se delineiam, ao menos, duas problemáticas postas pela questão da territorialidade. Primeiro, porque a favela é dita, em termos jurídicos, como ilegal, uma vez que é resultado de ocupações ilegais, de construções irregulares, definida no Boletim Oficial da Secretaria de Serviços Sociais da Cidade como grupo de habitações “de alta densidade, construído de maneira desordenada com material inadequado, sem serviços públicos e sobre terrenos utilizados de maneira ilegal sem o consentimento do proprietário” (cf. DRUMMOND, 1981, p. 2 – tradução nossa). Mesmo que essas áreas tenham sido submetidas Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 239 ao projeto de urbanização, denominadas favela-bairro, elas são consideradas, pelos órgãos públicos, bairros não-oficiais, tendo em vista sua condição fundiária. Muitas daquelas que conseguiram a regularização da propriedade, por outro lado, não se eximiram de sua configuração estereotipada de favela, por outras razões, dentre as quais podemos citar o domínio de narcotraficantes. Há um forte imaginário social, que sustenta a configuração de favela enquanto ilegal desde seu surgimento. Segundo Drummond (idem), essa visão do poder público sobre a favela consiste em isolála, marginalizá-la nas suas diferenças de maneira a denunciar um gueto fora da lei que necessita de ordem. Para Donzelot (2009, p. 47), o isolamento de uma população pobre, numa parte da cidade, autoriza uma gestão interna desta população por uma administração especial, que se encarrega de conhecer suas necessidades específicas e conter sua expansão – nós diríamos seus excessos? Eis aqui, um segundo momento envolvendo essa problemática da territorialidade. Apoiando-nos na afirmação desse autor e articulando-a com a de Orlandi (2011a) acima mencionada, podemos dizer que o órgão de Estado que se faz presente neste território é a polícia. Mas, qual é a prática da polícia, nesse espaço dito ilegal? Como também sabemos, a polícia, às vezes, divide espaço com os traficantes de drogas, que, em certa medida, gerenciam a favela e são significados como um poder paralelo – nossa análise esbarra, já adiantamos, num recorrente significante: domínio, que, de certo modo, é significado não só na relação com os limites geográficos, mas com o poder exercido pelos narcotraficantes e, também, pela milícia. Poder esse que, em certas favelas, se sobrepõe ao Estado. Com efeito, já se configuram aí relações de força entre o que é dito legal (a polícia, o Estado) e ilegal (a favela, os traficantes), em nossa sociedade. Há o reconhecimento de que a polícia enquanto representante do Estado é legal, de que os narcotraficantes são criminosos, ilegais e de que a favela, mesmo tendo juridicamente reconhecida sua ocupação, é significada como ilegal, em determinadas condições. Por exemplo, quando ocorre uma incursão da polícia na favela, todos se tornam suspeitos, tomados como supostos “ilegais”. Se a polícia age com violência, executa um morador, sua prática é justificada, pois um imaginário, que funciona eficazmente, no Brasil, condena o morador de favela ao lugar de marginalidade. Se a polícia executa traficante, o discurso do Estado é o de que a violência foi legítima. É comum ouvirmos dizeres tais como o de que matar “bandido”, “criminoso”, “assaltante”, “traficante” não é crime. Esse é um discurso recorrente na sociedade brasileira. A violência policial é justificada, nesse discurso, por causa dos sentidos atribuídos à favela e aos seus moradores, apagando suas reais condições de existência. O que vemos, então, é que a territorialidade exercida pela polícia se sustenta pela/na violência. 240 Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 Essas questões ressoam no que permite a formação, a ação da milícia, a nosso ver, seu lugar de policial – agente de segurança do Estado, suposto representante da Lei – disposto num espaço tão já marginalizado como é o da favela. Tanto é assim que algo falha ao caracterizar a milícia, na citação acima, enquanto “grupo armado irregular”. Ao se dizer irregular, se apaga, se esquece o ilegal; se enfatiza o armado, mas não o criminoso. No entanto, é esse mesmo dizer que nos permite chegar à possibilidade de enunciar grupo de policiais ilegais, por exemplo. O ilegal tem a ver diretamente com o rompimento do princípio básico do poder legislativo, dizer ilegal é dizer contrário à Lei e, portanto, ao Estado. Irregular, por sua vez, direciona, com contornos menos visíveis e puníveis, os sentidos em movimento na relação com o Estado, com a favela, com o favelado, com a própria milícia. Isso tem consequências na produção de evidências, no jogo de representações sociais, no processo de interpelação e individuação dos sujeitos, em nossa formação social. Visto sob outro prisma, irregular ainda nos leva a refletir se a milícia rompe com o Estado. Neste sentido, a milícia coloca o Estado noutra relação com a territorialidade, com suas instituições e no que diz respeito a ele mesmo em sua função de articulador simbólico-político no processo de individuação dos sujeitos, pois, como reflete Orlandi (2011a): a forma sujeito histórica – em nosso caso capitalista – é individuada pelo Estado, em sua função simbólico-política – pelas instituições e discursos – e é o indivíduo, assim produzido por esse modo de individuação, que, pelo processo de identificação, vai se inserir/identificar com esta ou aquela formação discursiva, constituindo-se em uma posição-sujeito específica na formação social (p. 11). É o modo de individuação na relação com o processo de identificação que está em jogo, nesse caso. A ideologia é o ritual com falhas e o equívoco na definição de milícia aponta para uma delas. A existência da milícia põe, assim, em foco uma complexa problemática na relação entre cidade, Estado e sujeitos, pois, a partir do domínio de favelas sustentado por práticas violentas, sobretudo, a do extermínio, de coerção em busca de lucro, um grupo ligado às forças de segurança do Estado – policiais reformados, ou na ativa, oriundos das polícias civil, militar, do corpo de bombeiros, agentes penitenciários – subjuga ilegalmente esses espaços e seus moradores, especificamente, no Rio de Janeiro. Ou seja, a milícia comete crimes, mas ancorada em um discurso moral de enfrentamento da criminalidade – semelhante ao da polícia, que talvez seja ainda mais forte que o lugar de policial –, ela expulsa, extermina traficantes e depois, sob o pretexto de manter os locais “seguros”, se impõe na favela intervindo na vida dos moradores: cobra taxas de manutenção da segurança, interfere no transporte alternativo, nos serviços de telefonia e internet, no Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 241 comércio, na compra e venda de gás em busca de lucro, controla a entrada e a saída dos moradores, visitantes dos bairros. E, ainda, pune com o extermínio qualquer um que seja considerado como inimigo, a saber: usuários de drogas, ladrões, opositores, invasores, moradores etc. Até pouco tempo não havia uma lei que a considerasse em sua instância criminosa. Um projeto de lei, que dá existência jurídica à milícia, ao prescrever os crimes praticados por ela, é formulado em 2008. Entretanto, através de um dispositivo normativo próprio, a milícia, com o argumento de “manter a segurança”, instaura uma série de normas que estabelece uma determinada ordem. Esse dispositivo se baseia na prática de violência como método de “proteção” e valida a circulação/imposição dessas outras leis nas áreas dominadas. Os sujeitos que moram ou circulam por elas têm de se submeter às leis dos milicianos. São essas normas que organizam as relações sociais nestes espaços. Derivam da ocupação de uma posição de poder, nesses locais, a formulação e imposição de (novas) leis que regem este espaço e as condições de existência. Por conseguinte, os moradores têm de se submeter às novas regras sob a ameaça de punição. Com isso, pode-se dizer que a Lei e o Estado falham no processo de individuação do sujeito? Essa hipótese dirige a compreensão dos discursos sobre a milícia, a observação da ligação entre Espaço, Sujeito, Estado e Sociedade, em suas múltiplas formas de significá-la. Na “medida em que seus membros são agentes de estado, são a representação da autoridade, ganharia sentido o seu discurso de se opor à criminalidade” (CANO & IOOT, 2008, p. 67). Esse é um dos efeitos ideológicos produzidos, no imaginário, pelo lugar de policial. É desse lugar, enquanto membro do aparato policial, que se sustenta o discurso moral, que apresenta como defesa a execução sumária. Defesa, proteção, segurança são significantes marcados fortemente pelo equívoco, permeados de ambiguidade e produzem efeitos nesse discurso. Por um lado, tem seus sentidos estabilizados na medida em que naturalizam as ações milicianas: julgar, condenar, punir, executar. Um dos vestígios desse efeito estabilizante é o apoio que a milícia recebeu de autoridades do setor de segurança pública, de alguns governantes e de moradores de algumas favelas. Por outro lado, esses sentidos são deslocados em discursos que relacionam a milícia à insegurança, à arbitrariedade, à extorsão, ao extermínio etc. Vejamos outro fragmento da entrevista realizada com moradores do Rio de Janeiro, no qual é formulado o apoio à milícia. Observem, no entanto, que esse apoio aparece na formulação de um dizer “citado”, de dentro, de lá que é atribuído a outro sujeito, ao morador de uma área miliciada, pelo entrevistado, que, por sua vez, se coloca no lugar de fora. Esse discurso aparece alicerçado na ideia de tranquilidade, liberdade, proteção, segurança que a 242 Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 milícia oferece em troca de um valorzinho ao contrário do tráfico de drogas que era horrível. O entrevistador pergunta o que a comunidade está achando da milícia: E64: Eu estive conversando com um morador recentemente, de lá, e ele falou: “Olha, meu irmão, melhorou muito, melhorou muito, entendeu? O pessoal paga um valorzinho lá... melhorou, a gente não tem aquele negócio de ter que chegar tarde ter que ser parado ali pelo traficante, não tem isso mais, os moradores são identificados direitinho, então”. O tráfico lá era horrível, era um tráfico pesado, favela do Barbante em Inhoaíba, hoje não, a milícia dominou os moradores estão tranqüilos. Até perguntei isso recente a um amigo que mora lá, “Como é que está lá aquela região?”, “Ih, rapaz, acabou, a milícia dominou tudo, está uma maravilha agora. Não há aquele problema mais de você ficar preocupado, sair com a família, sair com o carro, porque a milícia tomou posse lá e acabou o problema”. Então os moradores aceitaram a idéia porque tem mais liberdade para sair, tem mais liberdade de entrar com o carro, por exemplo, você vai entrar com o carro numa comunidade dessas está arriscado você perder o carro. A letra E corresponde a Entrevistado e o número subsequente, à ordem em que aparece na entrevista. 4 Para este sujeito, a cobrança de taxa não é problema. O problema é o traficante, é a insegurança, o roubo do carro, a falta de liberdade, o constrangimento. E frente a essa situação, o domínio da milícia é uma maravilha. Neste discurso, domínio pode ser substituído por administração? A administração da milícia é uma maravilha? Desta posição discursiva, parece que o controle exercido pela milícia é significado como segurança. A milícia sabe quem é morador e não o submete ao constrangimento de ser parado ali pelo traficante, pois os moradores são identificados direitinho e estão tranquilos, tem mais liberdade para sair, entrar com o carro. Em outros discursos, a cobrança da taxa, como veremos mais abaixo, é dita dinheiro exigido com violência, ou seja, esse dizer explicita o gesto com que a taxa é cobrada, é extorsão, um crime, uma violência. Aqui, a forma-material enunciada para se referir a ela é valorzinho, que descarta o sentido de violência e explicita outra relação com a milícia. A taxa é insignificante para este sujeito. Ele não se sente submisso à milícia, mas protegido por ela. De que modo se dá a produção destas evidências para este sujeito? O sujeito deste discurso é interpelado pela prática ideológica da milícia que o faz esquecer a ilegalidade dela e atribuir a ela o status de autoridade em seu grau máximo, o do domínio, aqui o soberano. A milícia tomou posse, ou seja, a chegada da milícia é significada como instauração de uma autoridade num espaço antes ocupado pelo tráfico. Diante do tráfico, compara o sujeito, a “gestão”/o governo da milícia é uma maravilha. Essas discursividades ratificam a eficácia do discurso contra a criminalidade formulado pela milícia. Por outro lado, a prática violenta no momento em que a milícia “entra” no bairro é explicitada. O uso da violência, a demonstração de poder no confronto e a expulsão dos traficantes Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 243 garantem aos milicianos temor de um lado e respeito da comunidade, de outro. A milícia se impõe. E6: Houve confronto com os traficantes, dominaram mesmo algumas áreas, a milícia dominou. Aqui o Parque Jardim Bangu, traficante não se cria ali porque a milícia se instalou e acabou. Esse dizer, que incide em dominar, explicita que a autoridade exercida pela milícia é instaurada pelo combate seguido de vitória frente aos traficantes, enquanto a milícia dominou, se instalou e acabou se inscreve numa rede de sentidos que coloca a milícia como força maior, poder absoluto. Desnecessário dizer mais. Pois ela é capaz de pôr um ponto final, mortal no tráfico de drogas. Afinal, traficante não se cria ali: não mora, não domina, não vive... É pela violência que a milícia se impõe. Atualmente, acumulam-se, no Disque-Denúncia do Rio, milhares de denúncias de extorsão, homicídio, tortura, tráfico de drogas, corrupção, entre outros crimes cometidos pelas milícias. São sintomas de que são muitos os sujeitos que significam a milícia como criminosa. Com efeito, essas denúncias nos apontam outras questões referentes ao significado, novamente ligadas ao papel de policial em nossa sociedade, considerado defensor enquanto parte da instituição policial e quando se integra à milícia pode constituir-se como criminoso, pode ser dito fora da Lei? Sobre a polícia são evocados diferentes sentidos na constituição de discursos que circulam na conjuntura atual sobre a milícia. Esses sentidos são convocados pela memória discursiva a confrontar-se na história de modo ressignificado, disperso, atravessado com outros dizeres que imputam à polícia outras imagens, especialmente, se projetadas a partir de sua relação com a milícia. Uma delas é explicitada na denúncia de engajamento de policiais em ilegalidades, descrita por Philip Alston5, relator da ONU. Ele afirma que as Relatório da Sociedade Civil para o Relator da Especial da ONU para Execuções, sumárias e extrajudiciais. Rio de Janeiro, 2007. 5 244 polícias estaduais, especialmente a polícia militar do Estado, trabalha rotineiramente em outro emprego, quando estão de folga. Alguns formam ‘milícias’, ‘grupos de extermínio’, ou ‘esquadrões da morte’ e outros grupos que agem com violência inclusive execuções extrajudiciais, que ocorrem por vários motivos. Primeiro, procuram dar ‘proteção’ a comerciantes, fornecedores de transporte alternativo, em que outros são forçados a pagar para este grupo. Dinheiro exigido com violência. Segundo, para evitar facções saiam de seu controle. Pessoas suspeitas de fornecer informações ou colaborar com outras facções são mortas. Em terceiro lugar, apesar de alguns não serem criados como grupos de extermínio de fato, os relacionamentos ilícitos que eles desenvolvem com outros elementos mais poderosos e afluentes da comunidade, resulta freqüentemente no engajamento de assassinatos de aluguel (ALSTON, 2007 apud RIBEIRO, 2008, p. 14 – grifos nossos). Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 É interessante e importante ressaltar que, neste discurso, como em muitos outros, a discussão na busca de se definir, de se delimitar o papel da milícia ignora a condição de existência do sujeito submetido ao seu domínio. Um vestígio desse esquecimento pode ser explicitado, por exemplo, no momento em que ao se referir ao sujeito que é forçado a pagar, se enuncia outros: em que outros são forçados a pagar para este grupo. Dinheiro exigido com violência. Há marcada na formulação uma indeterminação do sujeito que ressoa no discurso seu apagamento. Em contrapartida, na mesma formulação, a prática de exigir dinheiro enfatiza a violência. Como dissemos anteriormente, aqui a taxa exigida pela milícia é discursivizada como violência. Ao contrário, de valorzinho, que mostramos em um dos fragmentos anteriores. O processo de produção de evidências desses dois discursos, portanto, percorre direções de sentido diferentes. Ainda em relação ao discurso de Philip Alston, é importante dizer que seu discurso indistingue polícia de milícia. Nesse caso, a denominação nomeia outro ofício, como se milícias, grupos de extermínio ou esquadrões da morte, entre outros, fossem ramos de atuação da polícia. Esse efeito é produzido pelo dizer outro emprego. Milícia aparece então significada como um ramo de atividade paralelo da polícia, cuja principal atividade é a execução. Esse dizer marca outra face da polícia. Por conseguinte, é possível visualizar duas posições discursivas antagônicas sobre a polícia, que, no entanto se recobrem. No caso daquele sujeito que a apoia, ela é interpretada como protetora. Para outros, como criminosa. O Espaço Simbólico-Político da Favela A autora analisa um poema postado por um sujeito navegador situado no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, cujo discurso produz efeitos de r upt u ra e deslizamento dos estabilizados, construindo um lugar de resistência, pautado no “não” de desacordo f rente ao “não” do Estado, o “não” maior da morte. Texto apresentado na II Jornada e-Urbano - Cidade e Tecnologia digital: modos de significação do espaço, realizada no dia 28 de junho de 2011, no auditório do IEL/ UNICAMP, gentilmente cedido pela autora. 6 O “modo como se dispõe o espaço é uma maneira de configurar sujeitos em suas relações, de significá-los” (ORLANDI, 2011b, p. 01). Um exemplo: o policial na favela, como é identificado pelo sujeito morador, deste lugar social, neste espaço? Em outra instância, inúmeras vezes o sujeito que mora na favela, o favela(do) é tomado, é significado por esse espaço e vice-versa. Ao longo de muitos anos o processo de criminalização da favela recai sobre seus habitantes marginalizando-os. Efeito da segregação. Romão (2011) sublinha algumas negativas historicamente constituídas que recaem sobre a favela, sobre o favelado. Descrevendo a favela como “lugar de direitos negados”, a autora enfatiza que a nomeação favelado-bandido é legitimada por uma voz exterior à favela, que impõe o não “à vida como imperativa e como única via possível”6. Esse modo de significar a favela está relacionado à constituição da milícia face ao Estado, pois o não imposto à favela está ligado à ausência do Estado, de instituições públicas, de acesso aos serviços públicos etc. É importante frisar que a (falta de) segurança aparece entre essas faltas, pois a ideia de espaço perigoso circula desde o surgimento das favelas cariocas, significando-as. Com efeito, a polícia é chamada para intervir, cuja prática, desde então, é violenta. Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 245 Nesse trabalho, Medeiros mostra que o movimento social Posso me identificar se configura como um movimento de resistência a tal inscrição. 7 246 Dito de outra maneira, a favela se constitui como espaço na falta do Estado. Um espaço marcado pela falta do Estado, metaforizada na falta de recursos, na falta de infraestrutura, de regularização, etc. Um espaço cujos lugares deixados vazios vão sendo ocupados de diferentes formas. Valladares (2005) assinala que aos morros, que inicialmente foram ocupados por ex-combatentes da guerra de Canudos, foram destinados imaginariamente os pobres, negros, desempregados, imigrantes. Com isso, as favelas passaram a ser vistas como o espaço dos excluídos. O preconceito que recaía sobre esses sujeitos expandiu-se e se sedimentou na favela. O que, por sua vez, contribuiu rapidamente para a construção da favela como lugar de marginalidade. Os sujeitos foram afetados pelos sentidos desse espaço. Esse processo, no qual percebemos um efeito de metonimização que nos remete à afirmação de que o “desempregado, o desvalido sem domicílio, o inativo sem utilidade, o exilado sem pátria, o prisioneiro a quem se nega o nome ao se chamar por uma matrícula, o imigrante sem direito... são todos definidos por uma falta” (SCHALLER, 2002, p. 151). No tocante ao morador da favela, a falta é sobredeterminada por sua relação com o espaço, na construção estereotipada de seu lugar. Os favelados tornam-se favelados pela ocupação ilegal de uma propriedade, ditos a partir de então como: subversivos, marginais, promíscuos, doentes, preguiçosos, vagabundos, perigosos, desordeiros, imorais. Assim são historicamente significados como “favelados, fora da lei sobre um terreno que não lhes pertence” (DRUMMOND, 1981, p. 1) até chegarem a ter visibilidade a partir de interesses políticos, como eleitores e, em 1950, através de um recenseamento realizado pelo governo, deslocados minimamente para a posição de trabalhadores. De acordo com Medeiros, o lugar de inscrição do morador de favela configura-se, na atual conjuntura, como um lugar “fora-dentro: fora dos direitos, mas neles incluído pelas penalizações. É esta a sua posição-sujeito na formação discursiva que faz significar cidadão em nossa formação social” (2011, p. 2127). Em resumo, o que queremos ressaltar é que a configuração da favela como um espaço à margem, segregado, criminalizado recai sobre o sujeito-morador identificando-o, por exemplo, nesta posição-sujeito fora-dentro no interior de nossa formação social. Por conseguinte, tanto a configuração desse espaço como um espaço de faltas quanto a inscrição de seus moradores nessa determinada posição discursiva fora-dentro resultam da individuação pelo Estado, de seu papel como articulador político-simbólico que ora falta, ora falha. Nessa direção, a falha permite a corrupção e violência policial, a instalação do narcotráfico enquanto a falta do Estado e suas instituições deixa um lugar vazio. A narrativa seguinte trata da descrição de um homem de proezas, valente, de grande coração e nos mostra uma versão de Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 como a instalação de um domínio teria ocupado o vazio provocado pela ausência do Estado: Um dia chegou à favela um homem – Zé da Barra. Vinha do Piraí. Já trazia grande fama. Suas proezas eram conhecidas. Era um valente, mas um grande coração. E Zé da Barra chegou e dominou a favela [...] E a favela que não conhece polícia, não conhece impostos, não conhece autoridades, conheceu Zé da Barra e a ele teve que obedecer. E Zé da Barra ficou sendo o chefe incontestável da Favela (COSTALLAT, 1995, p. 37 apud VALLADARES, 2005, p. 34). Uma falta é preenchida? Um lugar “vazio”, sem representante, sem referência é preenchido. De que modo? À favela, que não conhece polícia, não conhece impostos, não conhece autoridades, é imposta um chefe, que a dominou. O léxico, especialmente, autoridades, chefe, dominou, no nível da formulação, que relaciona a favela a um domínio, à ausência de autoridades, a partir de condições de produção determinadas, nos conduz à figura daquele que manda, Zé da Barra. A incidência, do nível interdiscursivo no eixo da formulação, configura um lugar de poder, de mando ocupado por ele. O lugar de chefe significado como de comando, de domínio, de autoridade produz, por conseguinte, o seu avesso: o lugar do submisso. É o que de certa forma se textualiza em: E a favela que não conhece polícia [...] conheceu Zé da Barra e a ele teve que obedecer. Desliza dessa narrativa uma série de já-ditos estereotipados: favela não tem lei, não tem Estado, não tem governo, não paga impostos, não tem ordem... Podemos dizer que a figura de Zé da Barra substitui o Estado, nesse espaço, sobretudo, no processo de individuação desse sujeito? Na atual conjuntura é possível supor que Zé da Barra é então substituído pelo narcotraficante, pela polícia, pela milícia? Um dos entrevistados tem uma resposta possível: E30: Assim, eu moro lá desde que eu nasci, e assim desde que eu me conheço por gente tem esse chefão que é o [Zé X]8 que manda em tudo lá, que comanda, não deixa entrar tráfico, não deixa bandido roubar, se alguém roubar ele corre atrás. E ele tem todo um, como é que se diz? Um grupo, né? De policiais, que são policiais, mas trabalham pra ele, entendeu? Assim, eu acho, na minha opinião, que foi um tipo de dominação meio que carismática. Esse [Zé X] ele é um ex-policial e acabou... assim... aquele negócio... [...] Ele é tipo assim um líder que no carisma começou a mandar, entendeu? [...] Carisma e poder. O nome mencionado na entrevista foi alterado. 8 Contrapondo o discurso sobre Zé da Barra com esse sobre Zé X, podemos dizer que Zé da Barra é substituído por Zé X. Ele faz a segurança: não deixa entrar tráfico, não deixa bandido roubar e se alguém roubar ele corre atrás. Ele substitui a polícia, aliás, ele é ex-policial e tem em torno dele uma organização, um grupo de policiais, mas exerce seu papel conforme o seu próprio comando, afinal é ele que manda em tudo lá, ou seja, ele já se coloca como aquele que não segue regras vindas da corporação. Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 247 Observem como é forte o lugar de (ex)policial no dizer: ele é ex-policial e acabou... assim... aquele negócio. Este sujeito parece enunciar que Zé X pôs fim à criminalidade. Se alguém roubar ele corre atrás é modo de não dizer o que se faz com aquele que rouba: bate, expulsa, mata, ou, ainda, um modo de enunciar que o assaltante não fica impune. Zé X pôs fim à impunidade. O sujeito que enuncia esquece que Zé X é ex, que ele ocupa um lugar ilegalmente. Os policiais, por sua vez, trabalham para ele e não para o Estado. Aqui o verbo entendeu parece frisar e, ao mesmo tempo, confidenciar o poder de Zé X em relação a esses policiais. Contraditoriamente, aqui parece lembrar que os policiais se submetem ao poder dele, ilegalmente. Ele é a autoridade, chefão, tipo assim um líder. Vejam que duas discursividades se articulam neste discurso. Dizer chefão é enunciar o poder, o autoritarismo que configuram a imagem de Zé X, ao passo que descrevê-lo como tipo assim um líder que exerce um tipo de dominação meio que carismática – e notem que o termo aqui não é domínio, nem comando –, no qual também se define que a dominação é meio que carismática é (d)enunciar, talvez, a estratégia que o leva a constituir-se no lugar do Estado. O sujeito entrevistado conclui: carisma e poder. Duas características, ou melhor, dois sentidos que funcionam articulados no processo de individuação desse sujeito, pois elas fazem parte da imagem construída de Zé X, que não é líder religioso, não é líder comunitário, nem líder político, é um líder, cuja constituição se dá numa indefinição entre o autoritarismo e, diferente de Zé da Barra, o carisma. Que sentido tem carisma em tais condições discursivas? Poder e carisma conferem a ele, legitimidade. Assim como nesse discurso, observamos, ao longo de nossa pesquisa, os processos discursivos desencadeados por formas de significar, modos de individuação instituídos na relação com o espaço político-simbólico, os quais se desenvolvem na falha/ falta do Estado. Algumas Considerações E1: Dois milhões e meio de pessoas, são vidas. Sem governos, sem governo, sem estado. Então, quer dizer, dois milhões e meio de pessoas sem governo, você está me entendo? Sem estado. Estado pratica violência duas vezes, pela ausência dele e quando ele entra na comunidade. Esse enunciado de base situa as condições de produção de significação que circunscrevem o acontecimento discursivo da milícia: muitas vidas expostas à violência, à dupla violência pela presença e ausência do Estado, sujeitos sem direitos (sem governo, sem estado) num espaço de negações (sem governo, sem estado). Segregados. É diante desse sujeito, nesse espaço, que a milícia se impõe, à sombra do Estado, pois ele falta/falha, na maneira como está investido no modo de existência da prática de milícia e de existência desses dois milhões e meio de pessoas. São condições 248 Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 de produção que atravessam, constituem discursos de fora e de dentro das áreas miliciadas à medida que engendram efeitos de evidência. Ocorre que um significante, recorrentemente, enunciado para significar milícia, contribui, especialmente, para a compreensão de sua prática, em seu acontecimento discursivo. Por isso, voltamo-nos para ele. Trata-se de domínio (dominar, dominada, dominou, dominação), investido e revestido de poder. Observamos que diferentemente de controle atribuído à polícia, de comando dito para o narcotráfico, a milícia é interpretada, identificada como domínio. Domínio dá sentido à milícia, a partir de duas instâncias: domínio imposto, forçado, violento, sem possibilidade de oposição, cuja significação é determinada por uma formação discursiva opressora, permeada de indeterminações, de indistinções, de silêncio, produzida pela falha do Estado; e domínio instaurado como autoridade, gestor, poder, cujo lugar, tendo ao lado o sentido de controle inscrito numa formação discursiva administrativa, se configura na falta do Estado. Falha e falta do Estado, em seu papel de articulador político-simbólico, ambas, em constante movimento, são determinantes para a compreensão do modo como se configura a milícia no discurso sobre ela, sobretudo, na tensão que se instala entre o estatuto de legal e de legítimo. Com efeito, onde o Estado falta, o princípio de legitimidade é evocado e sustentado pela ideia de defesa, de segurança. Face à falha, as práticas de violência, sobretudo, de invasão, de violação de direitos, de estupro, de extorsão e de extermínio significam a milícia, em sua ilegalidade como criminosa. Por conseguinte, explicitam a sua constituição ilegal e a impunidade policial. A polícia em seu grau máximo de violência, “invisível” dado seu lugar de policial, cuja violência se naturalizou, em certa medida. Da falha do Estado resulta a milícia como desdobramento da polícia. Visto do lugar de policial, de certa forma, a autoridade, conferida à polícia pelo Estado, reveste a milícia de legitimidade e institui outro significado para sua prática. Na base desse processo, está a oferta de segurança. Um dos entrevistados diz que sua comunidade apoia a milícia, a partir do reconhecimento desse lugar de policial: E5: Apoio. Apoio, apoio total. Aplauso mesmo. Porque agora a gente sabe que não tem marginal, não tem ninguém cheirando por aí, porque parou, tiroteio não tem mais, é muito raro a gente ouvir um tiro e porque são policiais, então são pessoas que vão oferecer segurança pra gente. Esses deslocamentos, de um lugar para outro, de um lugar permeado por outro, em conflito com outro, provocam o deslizamento dos sentidos. Dispersão. O que nos mostra o discursos sobre Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013 249 é uma complexa rede de relações, de significações, posta em movimento pela milícia, que se (nos) situa face ao social, que intervém nas condições reais de existência, ou seja, nos coloca face ao real. Podemos dizer que legitimidade, legalidade e ilegalidade estão em movimento e funcionam a partir de certos lugares na sociedade. Esse movimento transita por outros discursos, deslocando os sentidos de um lugar para outro. E, se quem decide os sentidos é o político (ORLANDI, 2001b, p. 10), o embate entre legitimidade e legalidade também é regido por ele. O político divide, na língua, os sentidos de ordem, paz e segurança e permite que, em determinados discursos, eles sejam significados como desordem, guerra e insegurança. Abstract In this article, we reflected on how the lack and failure of the State intervenes in the process of individuation underscoring that the individuation of the subject by the State, according to Orlandi (2012), is a political issue because of the relationship of the individual with society. For this reason, we observed the configuration of the militia in the space of slum and in relation to the State. At the same time, we explicate some discursivities, which set out the way in which the militia is identified in discourses about it, especially in an interview conducted with residents of Rio de Janeiro. Keywords: Discourse; Militia; Process of Individuation. 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Consideramos alguns aspectos da relação entre a língua oficial do Brasil e uma língua indígena ao se denominar em língua macuxi o trabalho policial para retirar os brasileiros da terra indígena. A reflexão tem como aporte teórico-metodológico a Análise do Discurso (PÊCHEUX, 1969, 1975; ORLANDI, 1990, 1999). Palavras-chave: Análise do Discurso; língua portuguesa; língua indígena; índios. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013 Neste trabalho, apresentaremos uma análise da língua enquanto forma material (ORLANDI, 1999), ou seja, a língua em seu imprescindível entrelaçamento com a história forjando a possibilidade do equívoco. Essa reflexão é assim possível por adotarmos como aporte teórico-metodológico a Análise do Discurso, conforme proposta por Pêcheux (1993 [1969], 1997 [1975], dentre outros) e, aqui no Brasil, por Orlandi (1990, 1999, dentre outros). Para este artigo também nos valeremos das proposições de Guimarães (2000, 2005). Em pesquisa de doutoramento, analisei textos acerca da disputa pela terra entre índios e brasileiros em um arquivo constituído por escritos divulgados online, e oriundos de três diferentes instâncias: foram compiladas manchetes jornalísticas, cartas abertas de grupos políticos e cartas de associações indígenas de Roraima. Desse conjunto, para este trabalho restrinjo-me às manchetes jornalísticas e, mais especificamente, enfoco a denominação dada a uma intervenção policial cuja finalidade era auxiliar na retirada de brasileiros da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. No que se apresenta como notícia objetiva e neutra, discutiremos o embate na construção de sentidos, construção na qual também está funcionando o fino jogo estabelecido pela língua indígena, incrustada na língua oficial do Estado brasileiro, ao se denominar o trabalho policial “Operação Upatakon”. Passo a situar brevemente o fato que foi objeto das manchetes jornalísticas aqui analisadas. Desde abril de 2005, logo após a terra indígena Raposa Serra do Sol ter sido homologada, a Polícia Federal e a Força Nacional de Segurança passaram a ser mobilizadas em nome do Governo Federal e enviadas a Roraima sob a justificativa de manutenção da paz entre índios e não índios. Ou, em outros termos, a “Operação Upatakon” foi dada como necessária para garantir que se efetivasse o decreto assinado pelo Presidente da República e pelo Ministro da Justiça. Essa intervenção teve três “edições”, sendo que a terceira perdurou por mais de um ano e meio (de março de 2008 até o final de outubro de 2009), operação cujo corpo chegou a ser constituído por quinhentos policiais. Um momento dos mais críticos da investida dessas forças policiais pode ser situado em 2008. O mês de abril, bastante conturbado, foi marcado, por um lado, pela intensificação da pressão dos índios para que os fazendeiros desocupassem suas terras e, por outro, os adversos à forma como a homologação fora realizada – em área contínua – tentavam, de diversas formas, revogar essa decisão. A título de exemplo, os fazendeiros que cultivavam arroz na terra indígena organizaram manifestações na capital (Boa Vista), interditaram estradas e queimaram pontes para impedir a entrada dos policiais nas fazendas situadas nas terras indígenas em questão. Ao lado disso, sobressaiu um enfrentamento explícito no âmbito da lei entre o governo de Roraima e o Governo Federal 254 Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013 Esse prefeito, que ficou conhecido como líder dos arrozeiros, foi eleito deputado federal de Roraima (DEM), obtendo o segundo maior número de votos entre os que compõem a atual legislatura (2011 - 2015). 1 em torno da manutenção ou não da força policial para retirar os fazendeiros. Vale registrar que, no final do mês de abril, houve um episódio de grande violência: dez índios foram feridos na terra Raposa Serra do Sol – oito deles foram baleados – e, como acusados, foram presos o prefeito de Pacaraima, dez de seus funcionários, além de seu filho.1 Para a análise das manchetes, inicialmente observamos que, com a Constituição de 1988, a Língua Portuguesa passa a ser em relação ao Estado – língua oficial do Estado brasileiro, não mais à nação segundo se verificava nas constituições anteriores. Ao lado disso, ao formular o reconhecimento das línguas indígenas, tem-se que a Língua Portuguesa é oficial, mas não é única. Vale ressaltar que, com esse gesto, autoriza-se constitucionalmente saber que no Brasil são praticadas em torno de 200 línguas. O Brasil é, pois, um país multilíngue. (GUIMARÃES, 2000). A isso se soma outro fator que altera o “espaço de enunciação” no Brasil, conforme propõe Guimarães (2005): em 1988 a individualidade do índio deixa de ser ignorada, ou seja, garante-se que cada índio em particular – sem a obrigatoriedade do coletivo –, seja reconhecido enquanto aquele que pode ingressar em juízo, legalmente. No entanto, o modo de distribuir as línguas em relação – o “espaço de enunciação” – funciona pela desigualdade com que as línguas são distribuídas para seus falantes. E isso intervém afetando o funcionamento de cada uma dessas línguas. No tocante às línguas indígenas, elas são reconhecidas como línguas dos índios sem que isso altere a representação da língua do/para o Estado. Há uma língua em que o cidadão brasileiro deve se expressar, a língua oficial do Estado, a Língua Portuguesa. Com isso, o Estado reserva às línguas indígenas poderem ser “elementos de caracterização dos índios” e, sobretudo, não poderem ser faladas “enquanto elemento de política de Estado.” (GUIMARÃES, 2000, p. 178) Vale notar um dado posterior a essa reflexão: atualmente no Brasil há dois municípios em que línguas indígenas foram estabelecidas como línguas cooficiais. E isso somente foi possível na última década: em 2002, em São Gabriel da Cachoeira (AM), as línguas indígenas Nheengatu, Tukano e Baniwa passaram ao status de cooficial. E, mais recentemente, em 2010, o Guarani passou a ser segunda língua oficial do município de Tacuru (MS). Atualmente, podemos, então, observar que, à exceção dessas quatro línguas, o Estado brasileiro reserva às demais línguas indígenas - estimadas em torno de cento e oitenta - poderem ser “elementos de caracterização dos índios” e, sobretudo, não poderem ser faladas “enquanto elemento de política de Estado.” Ou seja, ainda não estamos distante do que concluiu Guimarães (2005, p. 178) ao dizer que “não existem no Brasil enquanto seres falantes” os índios ou quaisquer outros que falem uma língua que não a portuguesa. Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013 255 Além disso, para refletir sobre a seleção de uma língua indígena para denominar uma intervenção cuja finalidade é retirar os brasileiros da terra indígena, cumpre também observar que, sobre o Brasil e a língua que nele se fala, ainda labora o imaginário de unidade linguística, mecanismo comum à construção das identidades nacionais modernas. No caso brasileiro, ecoa forte o que nos diz que no Brasil só se fala uma língua, a Língua Portuguesa. Aspecto esse que computa sumariamente na relação entre as línguas no espaço brasileiro de enunciação. Nesse sentido, vale notar que o jornalismo dito de referência, ao pôr em circulação a língua oficial, constitui-se e institui e recorta determinados leitores no espaço de enunciação brasileiro que, como vimos, possui natureza política e existe sob o signo da desigualdade. Assim, o que se estampa como manchete não escapa a esse funcionamento político. É considerando esse funcionamento que, em lugar de harmonia, mais se põe em relevo o embate instaurado entre línguas, embate cujo teor a tradução não pode aplacar. Ou seja, não pressupondo um claro saber oferecido na relação entre os termos das línguas, pode-se questionar: Upatakon faz saber o quê e a quem? O que vai sendo necessariamente silenciado ao se dizer em uma língua e não em outra – ao se denominar em macuxi em detrimento do português? Inicialmente, no processo pelo qual se nomeia a operação Upatakon, pode-se levantar que a direção em que a tradução se realiza parte de “nossa terra” para Upatakon, não o contrário, posto que a língua portuguesa é a língua oficial do Estado. Dessa forma, com a/pela nomeação em língua indígena, o Estado desfaz o gesto que fizera outrora, com seus diversos atos de política linguística que, como se sabe, culminam com a imposição do uso exclusivo da língua portuguesa, em 1757, pelo Édito dos Índios, do Marquês de Pombal. Como diz Mariani (2003), em reflexão sobre o processo por ela denominado “colonização linguística”: “No caso da colonização lingüística brasileira, a política lingüística estabelecida pelo Diretório dos Índios e a ação de Pombal constituem elementos cruciais no processo de apagamento das línguas indígenas e da língua geral. Estas línguas foram ficando cada vez mais ausentes da construção discursiva que oficializa uma história da colonização e, também, da história da própria língua portuguesa no Brasil.” (MARIANI, 2003, p. 8. Grifos nossos.) Em Upatakon, nomeação compreendida como gesto político-linguístico de Estado, podemos pinçar o trajeto oposto ao que foi instituído pelo “processo de apagamento das línguas indígenas”, forjadas de modo que permaneceram fora da história oficial sobre a(s) língua(s) no Brasil. Assim sendo, o movimento de nomeação em língua indígena funciona em relação a esse processo histórico. Ou seja, é em relação ao apagamento das línguas indígenas em nossa história que Upatakon rende existência ao que se registra, em língua portuguesa, no texto constitucional de 1988. 256 Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013 Mais que isso, queremos acentuar que na formulação Upatakon são os índios que dizem “nossa terra”, pois, como nos foi dado saber desde a homologação em 2005, aqueles que podem dizer “nossa terra” em relação à Raposa Serra do Sol são somente os índios das cinco etnias que lá vivem: Ingarikó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana. Isso, se se quer remeter aos aspectos legais por um corte cronológico mais recente. Pela referência assim construída para o que a tradução nos indica pelo pronome possessivo ‘nossa’, dá-se voz exclusiva aos índios. Com Upatakon, se o Estado toma a voz é para os índios dizerem, ou melhor, no que o Estado diz Upatakon não é mero discurso sobre, como tem costumado ser quando se trata dos índios no Brasil. (ORLANDI, 1990) É por ser em língua indígena que Upatakon su-porta o gesto de expulsão dos brasileiros que teimavam em permanecer na Raposa Serra do Sol. E isso não se deixa reduzir a simples mecanismo de tradução para bem informar os leitores das notícias sobre a disputa pela terra: é línguas-e-história. Estar/Ser em uma ou outra língua é mobilizar sentidos que se constituem em duas diferentes Formações Discursivas. Ou seja, Upatakon condensa aquilo que pode e deve ser dito pelos índios ao passo que em “nossa terra” outra é a determinação: brasileiros são os que podem e devem assim dizer. Pelos aspectos que levantamos, especialmente pelo gesto inverso do Estado em relação às línguas indígenas, propomos que há pistas para outra redivisão, diferente da que propõe Guimarães (2000, 2005), quanto ao espaço de enunciação brasileiro. Há nesse gesto de nomeação um movimento que, embora possa parecer singelo e de pouca monta, pode apontar uma agitação de sentidos, o que se efetua pelo gesto reverso empreendido pelo Estado, rompendo – de fato – a proibição do uso de quaisquer línguas indígenas no Brasil. Revela-se plausível que a língua indígena pode, sim, ser falada “enquanto elemento de política de Estado”, contrariamente ao que foi praticado durante séculos. Articulando a partir do que nos ensina Pêcheux (1993), a língua pôde vir a ser outra. Da perspectiva da Análise do Discurso, o fato de poder assim denominar o trabalho policial não é da ordem da língua enquanto estrutura, mas desse mecanismo em uma conjuntura sociopolítica específica, que, no Brasil, produz-se na desigualdade do “entre línguas”, como vimos. A despeito disso, como sabem os analistas do discurso, os sentidos não se constituem isoladamente, mas “em relação a”. Como afirma Orlandi (1999), retomando Pêcheux, “Os sentidos não estão nas palavras elas mesmas. Estão aquém e além delas. (...) As palavras falam com outras palavras. Toda palavra é sempre parte de um discurso. E todo discurso se delineia na relação com outros: dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória”. (ORLANDI, 1999, p. 42-43) Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013 257 Nesse sentido, remetemos a LEAL (2011), pesquisa de mestrado em que investigamos o funcionamento da expressão “o povo roraimense”. 3 Essas manchetes são de abril de 2008, da Folha Online (04 e 08/04/2008. www.folhaonline.com.br), da Folha BV (07/04/2008. www. folhabv.com.br) e do G1 (09/04/2008. www. g1.globo.com). 2 258 No caso em questão, urge destacar que a nomeação em língua indígena é dada em um complexo com outras relevantes construções discursivas de referência, mesmo que só nos atenhamos aos termos e expressões que com Upatakon circulam no espaço do jornalismo online sobre disputa da terra entre índios e brasileiros. Vejamos um pouco desse funcionamento. Um dos elementos fundamentais dessa trama de sentidos é, certamente, o modo como os sentidos do termo ‘Roraima’ são construídos. Considerando o conjunto das manchetes, organiza-se uma totalidade harmônica entre o governo e todos os que vivem no estado, uma unidade cuja demanda é inequívoca e certeira.2 Permeiam as manchetes que é “Roraima”/ “Governo”/ “Governador de Roraima” que “pede a Lula que PF saia de reserva”, que “pede no STF suspensão da Operação Upatakon 3”, que “entra com ação para paralisar operação da PF em reserva indígena” ou que “pede liminar no STF para suspender operação em reserva”.3 Por esse modo de anunciar, os que vivem no estado e sua representação política são apresentados como um único bloco de idênticos, sem dissonância e, assim, se delineia o interesse comum pela suspensão da Operação Upatakon. Ou seja, o jornalismo não concebe existência fora dessa comunhão plena quanto a extirpar o que ratificaria a terra como posse dos índios (através da retirada dos fazendeiros da Raposa Serra do Sol). Diante disso, urge questionar isso que se apresenta como homogeneidade unânime do querer: onde restam os milhares de índios que têm lutado pela demarcação/homologação da Raposa Serra do Sol por mais de três décadas? Enfim, onde restam os não índios que também compartilham o princípio de que a terra pertence, por direito, aos índios? Como significam em relação a Roraima os que exigem a retirada de qualquer um que não seja índio da terra Raposa Serra do Sol? Como parte dessa rede de sentidos, observamos que, em 2009, diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, qual seja, a ratificação da extensão em área contínua decretada em 2005 para a terra Raposa Serra do Sol, o prazo estipulado para a saída dos fazendeiros vai sendo circunscrito como artifício faltoso de normas e tempo necessários para ser uma obra exequível. Torna-se manchete que “Deputados pedem maior prazo para desintrusão”; “Deputados pedem regras para saída de reserva em RR”; “Comissão da Câmara deve pedir ao STF prazo maior para a saída de não índios”; “Arrozeiro pede mais prazo para deixar reserva em Roraima”.4 De modo geral, por essa forma de apresentar a situação – restrita pelas manchetes jornalísticas às solicitações de dilatação do prazo –, o cerne da questão do direito dos índios à posse da terra no Brasil e o processo de luta pela efetivação desse direito é deslocado para outro aspecto cujo fundamento são os brasileiros, não os índios. Por tal deslocamento é que se pode dizer de prazo e que se pode qualificá-lo como abreviado, não razoável, enfim, Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013 Essas manchetes foram publicadas, respectivamente, por Folha BV, 28/04/2009; G1, 28/04/2009; Folha BV, 27/04/2009 e Folha Online, 26/04/2009. 5 Para uma ref lexão com mais vagar acerca do direito à posse e à propriedade da terra, ver LEAL, Maria do Socorro Pereira. Índios & brasileiros: posse da terra brasilis nos discursos jornalístico online, político e indígena. Tese de doutorado (2011) realizada sob a orientação da Profª Drª Bethania Mariani. Disponível em www.uff.br. 4 um prazo que torna impraticável a saída dos fazendeiros da terra indígena. Com isso, transcorre como natural que não haja manchete para fazer relembrar que a Raposa Serra do Sol fora homologada há quatro anos e que, na ocasião, a todos os não indígenas foi dado o prazo de até um ano para saírem da região. Considerando o funcionamento da memória do/no jornalismo, sempre tornando a si mesma, como pôde escapar das manchetes o fato de que há um limite cronológico sendo distendido desde abril de 2006? E, frente à solicitação de regras para tal saída, as manchetes não poderiam remeter à Constituição Brasileira como norma quando estipula os direitos indígenas à terra? Ao lado disso, no que tange aos políticos e fazendeiros, eles são positivamente distintos em torno da ação implicada pelo verbo repetido nas manchetes dos sítios jornalísticos (de Roraima, de São Paulo, do Rio de Janeiro): eles são projetados na posição dos que “pedem” prazo, o que aponta aquiescência e disposição favorável quanto à saída da terra indígena. Por esse viés da solicitude, o que é posto em evidência não é uma possível intransigência ou mesmo má vontade. Sobretudo, não há pistas nas manchetes que sinalizem os fazendeiros como transgressores da lei ao permanecerem na terra Raposa Serra do Sol. Não há palavra aí que os desabone como ilegítimos na terra indígena. Da perspectiva da Análise do Discurso, podemos dizer que tal funcionamento não é sem estabelecer relação com sentidos opostos sobre os políticos e fazendeiros, sentidos postos em circulação fora da esfera do jornalismo dito de referência, admissíveis de serem articulados em outra Formação Discursiva. Enfim, certo é que, em não se trazendo esses aspectos como notícia – ou seja, silenciando sentidos produzidos tendo os índios como ponto de partida –, são fortalecidos outros sentidos, especialmente a manutenção do direito à propriedade da terra pelos brasileiros em detrimento do direito à posse indígena da terra.5 Nesse sentido, depreendemos que a tradução de Upatakon para a língua portuguesa foi sempre oferecida no corpo do texto, jamais na manchete, espaço que, conforme ensinam os manuais de elaboração do texto jornalístico, deve privilegiar com precisão o alvo relevante de um conteúdo a ser transmitido. O que se apresenta como “estratégia jornalística” de construção da manchete (LAGE, 2002), só pode aí funcionar como isca de captura do leitor por poder mobilizar desigualmente uma das duas línguas em jogo. São, portanto, sentidos já sedimentados e predominantes como efeito de uma relação dinâmica, desigual, contraditória da conjuntura linguístico-histórica brasileira. Além de estar alocada fora do limite de destaque da notícia, a tradução pouco comparece. E quando isso ocorre, a expressão fica restrita entre parênteses (nossa terra) ou na estrutura frasal acompanhada de “quer dizer” ou “significa”, sem que nenhuma Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013 259 As manchetes são, respectivamente dos sítios www.g1.globo.com, 18/04/05; www.folhabv.com.br, 05/09/2007; w w w.g1.g l o b o. c o m , 11/04/08; www.folhabv.com.br, 26/02/2008; www.folhabv.com.br, 01/03/2008. 7 Prato do cotidiano dos índios Macuxi, Wapixana, Taurepang preparado à base de peixe cozido no tucupi (líquido extraído da mandioca) e pimentas diversas (murupi, olho-de-peixe, malagueta, trótróimû, canaimé, con forme a época e região) usadas em qua nt idade b em acima do usual para os não índios. Além disso, folhas de pimenta malagueta fazem parte do caldo. 6 260 observação seja dada como necessária sobre essa relação das línguas em questão. Ou seja, tudo se dá como se “Upatakon (nossa terra)” não pudesse provocar nenhum mal-estar no leitor. Vejamos em alguns trechos de notícias como se textualiza a relação entre os termos: “operação Upatakon, que significa ‘nossa terra’ na língua Macuxi”; “A retirada dos produtores rurais da reserva Raposa Serra do Sol foi batizada com nome de Operação Upatakon 3 (Nossa Terra)”; “No interior da reserva, uma das tarefas dos policiais será esclarecer a população sobre o objetivo da Upatakon – expressão da língua macuxi que significa ‘nossa terra’”; “O nome Upatakon na língua Macuxi quer dizer ‘nossa terra’”; “A Operação Upatakon I (que significa nossa terra, na língua Macuxi)”.6 Diante da pouca frequência da tradução, certamente algumas hipóteses podem ser levantadas, considerando a presença corriqueira de termos de outras línguas na língua portuguesa. Seria o caso de esse termo da língua macuxi ter sido apropriado pelos falantes e englobado à língua portuguesa? Upatakon teria se tornado inteligível para os falantes do português e sua tradução, desnecessária e obsoleta? Com Upatakon ocorrera processo semelhante a, por exemplo, coffee break, paper, menu ou mesmo damurida7 (em Roraima)? Não parece ser esse o caso. A despeito da clareza e objetividade apregoadas pelo dizer jornalístico, da perspectiva discursiva ressaltamos que é da posição de filiação a dada língua – a portuguesa – que o jornalismo institui seu dizer como óbvio para si e seus leitores. Ou seja, dispor a língua indígena na manchete como se o macuxi circulasse como transparente para os pretensos leitores não é dar ênfase positiva a essa língua. Antes, destacamos o apagamento daquilo que tão-somente o macuxi possibilita, conforme já mencionamos: a expulsão dos brasileiros das terras indígenas. Nesse sentido, simultaneamente à raridade da tradução de Upatakon, observamos que o emprego do termo também foi sendo substituído. Assim, onde se poderia dizer Operação Upatakon dizse “Força Nacional se une à PF”, “Federais e Força Nacional” ou simplesmente “PF”. Com isso, o que se mostrar é o deslizamento de uma língua pela outra, mecanismo carregado de sentidos na formação social brasileira, como já vimos apontando antes. Não obstante, não se dizendo mais Upatakon, foi possível estampar como manchete, em 2009, após todas as ratificações da posse indígena da terra: “Fazenda de Quartiero será desocupada em condição de terra arrasada”. (www.folhabv.com.br, 30/04/2009). Frente a esse enunciado, em perfeitas condições de gramaticalidade e de aceitabilidade, o que nos intriga, portanto, é de outra ordem: a do discurso, cuja propriedade diz respeito ao funcionamento da língua na história, nas relações com outros textos, outra memória, outros sentidos. Assim, na naturalidade da formulação “fazenda de Quartiero” está necessariamente esquecido que a referida fazenda Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013 situa-se na Raposa Serra do Sol, terra declarada indígena em todas as instâncias legais cabíveis, inclusive pelo STF, um mês antes da publicação dessa manchete. Da perspectiva do que não foi lembrado, seria possível dizer, por exemplo, que “a terra dos índios volta maltratada a seus legítimos donos”. Mas, essa provável construção, também em perfeitas condições de gramaticalidade e de aceitabilidade semântica, é impedida de vir a ser manchete, porta sentidos “fora do lugar”, por assim dizer. Assim, é pela presença de certas manchetes, mas também pela ausência de outras, que determinados sentidos ganham existência e passam a ser formulados (oferecidos-e-recebidos) já habitando um “natural” do dizer. Como se sabe, há muito se formula a garantia da posse indígena da terra brasilis, mas esses dizeres não têm circulado com tanto vigor, nem se têm traduzido em fato inequívoco no funcionamento social, como mostra a continuidade dos embates pela terra entre índios e brasileiros: permanece a instabilidade, a disputa dos sentidos, a exemplo do que se verifica em torno da textualidade das diversas leis. Diante disso, ao jornalismo não cabe a prerrogativa de eximir-se do que é inerente ao funcionamento da língua: é mesmo ao fazer o que diz ser uma escolha neutra em prol da informação objetiva que ele se encontra no político da língua, já tomando partido, inclusive, quanto ao embate das línguas que são praticadas no Brasil. Abstract This paper has as its main issue the expression “Upatakon (our land)” in headlines of the online journalism about the dispute of land between Indians and Brazilians. We analyze some aspects of the relation between the official language of Brazil and the Indian language to denominate in Macuxi language the police work to remove the Brazilians out of the indigenous land. This work is based on the Discourse Analysis theoretical framework, as explained in works of Michel Pêcheux. (PÊCHEUX, 1969, 1975; ORLANDI, 1990, 1999). Keywords: Discourse Analysis; portuguese language; indian language; Indians. REFERÊNCIAS GUIMARÃES, Eduardo. Língua de civilização e línguas de cultura: a língua nacional do Brasil. In: BARROS, Diana L. P. de (Org.). Os discursos do descobrimento: 500 e mais anos de discursos. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo; FAPESP, 2000. Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013 261 ______. Apresentação Brasil: país multilíngue. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 57, n. 2, jun. 2005. ______. A Língua Portuguesa no Brasil. Ciência e Cultura, São Paulo, SBPC, 2005. LAGE, Nilson. Estrutura da notícia. São Paulo: Ática, 2002. 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Nas análises, privilegiam-se os embates em notícias que tematizam a inauguração de um Restaurante Universitário em instituição pública do Rio de Janeiro. Palavras-Chave: produção de real, sentido, prática discursiva, enunciação. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 263-, 1. sem. 2013 Introdução O presente artigo tem sua motivação em um encontro intempestivo entre um interesse teórico voltado para a produção de sentido na linguagem e um evento, no mínimo, inusitado: a recente inauguração (ou teria sido um simples “teste de funcionamento”, conforme se alegou mais tarde?) do Restaurante Universitário de uma universidade pública do Rio de Janeiro, momento para o qual foi convidada a “comunidade universitária”, ou melhor, parte dessa mesma comunidade, uma vez que se impediu o acesso de um dos segmentos mais interessados no evento – os estudantes. Acerca do interesse teórico indicado anteriormente, seria preciso dizer que, não obstante vasta tradição de estudos sustentar a cisão entre a dimensão verbal e aquilo que seria seu exterior, optamos por uma perspectiva discursiva a partir da qual a recusa a essa aparente cisão é correlata da afirmação de uma dinâmica de coengendramentos. Com efeito, parece-nos indispensável interrogar o que sustentamos quando optamos por apreender a relação entre o verbal e seu entorno como efeito de um processo, ao mesmo tempo, assimétrico e simultâneo. Delineado o problema em torno do qual nos debruçamos, caberia igualmente justificar a opção pelo evento “abertura do Restaurante Universitário da Uerj”. Trata-se de anunciada “inauguração” para a qual, na qualidade de docentes da referida universidade, recebêramos “convite” enviado por correio eletrônico em mala direta institucional. Tendo sido citado nominalmente no referido convite, o governador do Estado tornou-se presença esperada no evento, gerando apreensão na comunidade acadêmica e a consequente convocação de manifestação pública pelo movimento estudantil, a se realizar durante a divulgada “inauguração”. Esse foi o suposto motivo do impedimento do acesso dos estudantes ao restaurante, sendo mantida sua circulação limitada a uma área exterior e distante do local da “inauguração”, com a utilização de cordões de isolamento sustentados por um quantitativo considerável de funcionários da segurança da Universidade. Os conflitos resultantes desse tensionamento foram prontamente noticiados nos portais eletrônicos dos grandes jornais e em programas de rádio. No dia seguinte à abertura, nota emitida pela Reitoria da Universidade se referira ao evento como um simples “teste para o funcionamento do Restaurante Universitário”. Acrescente-se que foi frustrada a expectativa de presença do governador do Estado ao evento. Objetivos e quadro teórico Eis alguns questionamentos que inspiram a discussão a ser encaminhada no presente artigo: que polêmicas se sustentariam a partir das tensões entre o evento “inauguração”, anunciado no convite que circulara amplamente, e o evento “inauguração 264 Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 simbólica” ou “teste de funcionamento”, conforme passou a declarar a nota divulgada no dia seguinte ao ocorrido? Considerando os sentidos que se afirmam ou se negam nessas polêmicas, em que medida é possível tratar do socius como produção que se realiza também por meio da linguagem? Pretendendo argumentar favoravelmente à impossibilidade de descolar a divulgação de um convite e a produção de nota oficial, textos jornalísticos e emissões radiofônicas da situação empírica que tais textos antecipam e relatam, que conceituação é preciso propor acerca do verbal e do social? Que outros problemas estariam subjacentes à conceituação proposta? De que referenciais dispomos para sustentar que a produção de sentido não reside exclusivamente nas situações empíricas, nem apenas nos textos que favorecem seus arranjos e as relatam, mas em um encontro assimétrico e simultâneo entre essas dimensões? Já dissemos anteriormente ser possível considerar ao menos dois modos de apreensão dessa relação entre o verbal e seu entorno. Nosso intuito com o presente artigo reside em explorar a conceituação em torno dos efeitos de sentido na linguagem, considerando o social e o verbal como dimensões em constante interdelimitação. Só aparentemente a linguagem faria referência a eventos que lhe seriam exteriores. Seu poder de representação, tomado largamente como sua principal propriedade, se ativa, produzindo um duplo apagamento: de um lado, um esquecimento de que os contornos assumidos por aquilo que se “transmite” nos textos não passam de estabilizações sempre provisórias, em permanente reconfiguração; de outro lado, um esquecimento de que a própria situação de interação verbal investe na produção do ato que a institui e se legitima no curso mesmo de sua enunciação. Partimos de uma distinção proposta entre significado e sentido, a qual reforça a impossibilidade de sustentar a estabilidade de um significado mais básico, dito genericamente “literal”, como ponto de partida de qualquer variação. Entre outros referenciais possíveis, a obra de M. Bakhtin parece oferecer elementos importantes para o encaminhamento da discussão em tela. Tal distinção, no entanto, aponta para uma necessária teorização acerca de dois problemas: de um lado, a já referida articulação entre o linguístico e seu entorno; de outro, o problema do tempo, tendo em vista as insuficiências de uma perspectiva meramente cronológica dos eventos. Considerando o frequente apagamento de uma reflexão conceitual mais efetiva em torno da dinâmica de engendramentos simultâneos entre o verbal e o extraverbal na tradição dos estudos da linguagem, a motivação que sustenta o presente texto nos indica a necessidade de recorrer a referenciais oriundos de outros territórios disciplinares. Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 265 Linguagem e mundo: a distinção entre significação e sentido como afirmação da vida Se é possível delimitar um solo conceitual a partir do qual as reflexões ora propostas emergem e ganham consistência, esse é o de uma perspectiva discursiva caracterizada, entre outros aspectos, por uma recusa da anterioridade do social frente aos textos que se produzem e que, ao menos aparentemente, a ele remeteriam. Tal recusa impulsiona a compreensão acerca dos processos de produção de sentido, evitando circunscrevê-los unicamente nas relações de oposição entre as palavras – tal como, em linhas gerais, se observou na concepção de língua como sistema de signos – ou na referência que as expressões linguísticas estabeleceriam com o estado de coisas que lhes é exterior – segundo pretenderam destacar abordagens formalistas. Parece-nos conveniente iniciar por um trabalho negativo, explicitando os diferentes traços de um contorno que dicotomiza linguagem e mundo, encontrando pontos de contato entre abordagens historicistas e logicistas a que uma perspectiva discursiva viria se contrapor. Em linhas gerais, a anterioridade e, em certo sentido, a naturalidade das configurações sociais em relação ao plano linguístico remetem a um senso comum que goza de intenso prestígio não apenas no âmbito das ciências da linguagem, mas também em outros campos do saber. Com efeito, postula-se a existência de um mundo mudo e caótico que demandaria das comunidades humanas sistemas cuja propriedade essencial asseguraria a inteligibilidade e a comunicabilidade dos eventos. A esses sistemas de representação caberiam fundamentalmente duas propriedades: a de decomposição dos eventos do mundo em diversos elementos, constituindo-os em palavras que nomeiam os seres, caracterizam-nos ou os qualificam, denotam eventos e expressam circunstâncias, permitindo sua compreensão pelos indivíduos, e a de reorganização desses elementos decompostos segundo certos princípios de ordenação, assegurando a transmissão de conteúdos. A aposta na anterioridade de um real empírico – natural e mudo, é preciso insistir – caracteriza tal concepção, considerando que os diversos elementos que compõem as formas instituídas no mundo se encontrariam em relativa instabilidade. Caberia à linguagem pôr à disposição do falante formas que tornariam harmoniosamente inteligíveis e, consequentemente, comunicáveis os eventos demasiadamente caóticos. A dupla recusa que mencionamos anteriormente situaria as propostas de teorização acerca da produção de sentido no âmbito dos estudos do discurso em diálogo, de um lado, com os fundamentos de uma semântica de base lexical e, de outro, com as orientações formalistas de base sentencial. No entanto, além 266 Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 do necessário trabalho negativo exigido pela emergência de uma disciplina não prevista no campo do saber, espera-se ainda que a dupla recusa mencionada se institua, convocando os pesquisadores da área do discurso a um trabalho de teorização não restrito, por razões óbvias, à mera redefinição conceitual. Entre as abordagens discursivas, observa-se, com maior frequência, o confronto com uma concepção lexical, segundo a qual o significado, sendo propriedade do signo, gozaria de certa estabilidade. O contexto exerceria papel secundário, sendo convocado apenas como possibilidade de desfazer ambiguidades. Esse papel secundário conferido ao contexto se justificaria, em perspectiva lexical, por um posicionamento em torno do significado como provocado por uma estabilidade prévia, um acordo que se manifestaria na permanência de certos traços do significado nas situações de troca verbal. Segundo Bakhtin, a precedência da estabilidade em relação ao variável seria decorrência de uma aproximação demasiada entre o sinal e o signo linguístico. Segundo o autor, a estabilidade é característica do sinal como “entidade de conteúdo imutável”, que demandaria do falante de uma língua mera identificação, daí a impossibilidade da pura “sinalidade” nas línguas humanas. O que torna a forma linguística signo “não é sua identidade como sinal, mas sua mobilidade específica” (BAKHTIN, 2004, p. 94). Desse modo, o que se sustenta é a instabilidade da significação em confronto com a multiplicidade de contextos situacionais em que ocorrem. A autonomia do signo como remetendo unicamente a duas faces – a do significante e a do significado – abranda-se em favor da mobilidade das interações nas quais se inscrevem. Considerando que “... não lidamos com a palavra isolada funcionando como unidade da língua, nem com a significação dessa palavra, mas com o enunciado acabado e com um sentido concreto: o conteúdo desse enunciado” (BAKHTIN, 2000, p. 310), a multiplicidade de significado, longe de ameaçar a unidade da palavra, é sua característica constitutiva: “a multiplicidade de significações é o índice que faz de uma palavra uma palavra” (BAKHTIN, 2004, p. 130). Dessa forma, desloca-se, com tal discussão, o contexto de uma função complementar à dimensão constitutiva do sentido na linguagem. Os signos não poderiam comportar em si parcelas do significado do enunciado, sob o risco de considerar que, nas interações, se compartilhariam sequências de signos que justificassem compreender-lhes os significados isoladamente, em vez de enunciados dotados de um projeto de dizer e de certa expectativa de resposta. A esse respeito, a distinção proposta por Bakhtin entre tema e significação é relevante: esta remete a “elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos” (BAKHTIN, Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 267 2004, p. 129), enquanto aquele se refere aos contornos individuais e não reiteráveis da enunciação. “O tema da enunciação é concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual ela pertence” (BAKHTIN, 2004, p. 129). Tal distinção nos leva a perceber, de um lado, que não há qualquer razão para se considerar, como tradicionalmente se faz, certo conjunto de traços mais básicos de significado (sua literalidade) a que outros se juntariam. A relação com a palavra não se reduz ao mero reconhecimento de sua dimensão identitária. Disso decorreria a insistência do autor em ressaltar a compreensão como atividade responsiva. “A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica” (BAKHTIN, 2004, p. 132). Com efeito, já reunimos elementos suficientes a respeito da contribuição do autor, cujas reflexões vêm sendo retomadas, desde os anos oitenta, por abordagens discursivas de base enunciativa e pragmática. Segundo Bakhtin, o tema remeteria ao sentido do enunciado como único e não reiterável, deixando à significação uma parcela ao mesmo tempo dotada de maior estabilidade e não isolável. O sentido de um enunciado efetua-se a partir de sua inscrição situacional, a que comparece sempre como resposta. O enunciado está repleto de ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra ‘resposta’ é empregada aqui em sentido lato): refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles (BAKHTIN, 2004, p. 316). Evidenciar a presença de “ecos” e “lembranças” no enunciado corresponde a um projeto bastante forte no campo dos estudos do discurso remetendo à impossibilidade de autonomia de um texto frente a outros textos, tal qual o confirma a larga aceitabilidade do interdiscurso como um primado. Tal posição daria uma resposta contundente à suposta oposição entre literalidade e expansão da significação, advogando que a produção de sentido se sustentaria na multiplicidade de vínculos que dão consistência à rede interdiscursiva, produzidos como efeitos sempre provisórios e não como traços localizáveis. Ainda em relação ao fragmento anterior, como não perceber certa compreensão, mesmo contrabandeada, do enunciado como remetendo a “ecos” que lhe são anteriores, mas também antecipando posicionamentos? Como deixar de ressaltar que cada enunciado, além de “congelar” sentidos recuperados em alguns já emitidos, antecipa, supõe, anuncia outros, dos quais ele próprio se torna um “eco”, ainda que em potencial? Se a dimensão histórica, em Bakhtin, é circunscrita a uma leitura do tempo como sucessão de eventos, pretendemos destacar 268 Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 acima uma outra leitura do tempo, não como sucessão de eventos organizados em sequência cronológica, mas como cortes, instantes que não cessam de abrir passado e futuro, simultaneamente. Supõe-se assim que cada ato de linguagem inaugura o instante, redefinindo passado e futuro. Parece-nos evidente que a questão que insiste aqui apontaria para o potencial de produção de mundos na linguagem, para o qual o problema do tempo se torna debate imprescindível, uma vez que não há precedência de nenhum dos dois planos. Dessa forma, a defesa de uma dinâmica de engendramentos simultâneos entre linguagem e mundo parece passar por uma redefinição de ambos os planos, recusando conceber o mundo como plano das ações materiais e o linguístico como plano do simbólico, reduzido à representação. Práticas discursivas e produção de mundos: o caso da inauguração do bandejão da UERJ Desdobrando as discussões anteriores, neste item procederemos à análise do que, de maneira razoavelmente superficial, diremos tratar-se de textos que circularam em torno do evento “inauguração” do bandejão da Uerj. Se qualificamos o que dissemos antes como “razoavelmente superficial”, é porque reconhecemos a enorme dificuldade em evidenciar os laços entre o verbal e seu entorno de outro modo, pretendendo eliminar qualquer possibilidade de se vislumbrar entre os dois planos a determinação de um sobre o outro. Ou seja, trata-se de evitar que se considere possível a existência de um evento como “inauguração” independente da produção de uma massa de textos: convite, confirmações, explicitações de ausências, programação, reservas, entre tantos outros. O esforço que empreendemos aqui se dirige exatamente sobre a explicitação dos laços de coconstrução entre o verbal e o não verbal. Retomando o que anunciamos no início deste artigo, chamou-nos especial atenção ter havido inicialmente a circulação de um “convite” para a “inauguração” do Restaurante Universitário, em nome do governador do Estado e do reitor da Universidade, dirigido à “comunidade universitária”. No dia seguinte ao ocorrido, no entanto, uma nota oficial amplamente divulgada na Universidade e citada extensamente ou na íntegra em textos da grande imprensa passa a se referir ao evento como “teste de funcionamento”. A breve retomada da tensão que neste artigo investigamos já oferece algumas indicações dos materiais considerados nas análises aqui propostas: há, inicialmente, dois modos de designar o evento em concorrência. Dessa forma, dialogamos com o imperativo metodológico em que se mantém “uma certa concepção de corpus que privilegie a perspectiva do não uno, do múltiplo” (ROCHA, 2003, p. 207). Essa opção se sustenta na ideia de que o Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 269 interdiscurso prevalece sobre o discurso, devendo o pesquisador intervir na montagem do córpus de análise, investindo na explicitação de posicionamentos em confronto. Considerando o propósito de problematizar os engendramentos simultâneos entre linguagem e mundo, elegemos como córpus de análise o convite para a inauguração, a nota oficial, divulgada no dia seguinte, e seis notícias, encontradas a partir de busca realizada na página eletrônica “Google”, utilizando os descritores “restaurante universitário Uerj” e “bandejão Uerj”. Adotaram-se os seguintes critérios para seleção das ocorrências listadas: (i) data de publicação, restringindo-nos aos textos divulgados no próprio dia do evento e no dia subsequente, e (ii) página eletrônica de origem, considerando-se os portais “oglobo. globo.com”, “noticias.yahoo.com.br”, “mancheteonline.com.br” e “sidneyrezende.com.br”. Entre os demais resultados da busca, observamos a repetição das mesmas notícias, em outras páginas, com publicação em data posterior. Já a indicação da fonte original das notícias não se deu regularmente em todos os casos. Inicialmente, procedemos a um levantamento dos diferentes modos de apresentar ao coenunciador o evento ocorrido, considerando como designações os grupos nominais utilizados nessas referências. Tal encaminhamento pressupõe que haja à disposição do falante um conjunto bastante diversificado de elementos linguísticos que permitem apresentar um referente ao coenunciador. Trata-se de instruções ao coenunciador que propõem a identificação de algo em determinado contexto. No caso em análise, a referência oferece meios de apresentar a própria situação e os participantes nela envolvidos, além de argumentar sobre certa relação entre o evento “abertura do Restaurante Universitário” e a “manifestação de estudantes”. A respeito da referência, trata-se de “atividade que implica a cooperação dos coenunciadores e poderá malograr, caso o coenunciador, por exemplo, se engane de referente” (MAINGUENEAU, 2001, p. 179-180). Apresentamos inicialmente, em sua integralidade, o texto do convite que circulara por mala direta e impresso na Universidade, na semana anterior ao evento: O Chanceler da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Excelentíssimo Senhor Governador Sérgio Cabral, e o Magnífico Reitor, Professor Ricardo Vieiralves, têm a honra de convidar V. Sa. para a cerimônia de inauguração do Restaurante Universitário da UERJ, a ser realizado no dia 12 de setembro de 2011, às 12h, no campus Maracanã Vejamos a seguir alguns dos modos a partir dos quais os eventos foram apresentados nos textos em análise. Os fragmentos destacados seguem numerados nas sequências em que aparecem aqui, acompanhados da referência à fonte. 270 Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 (F1) Na segunda-feira, 12 de setembro, foi feito um teste para o funcionamento do Restaurante Universitário no campus Maracanã, com a presença de um grupo de professores, técnicos administrativos e alunos. A abertura do RU para a comunidade acadêmica acontece ainda este mês, em data a ser divulgada oportunamente. [Nota Uerj] Em dissonância com o que fora divulgado por meio de convite com circulação virtual e impressa na Universidade, a nota oficial emitida pela Reitoria refere-se a “um teste para o funcionamento”. Ressaltando o deslizamento suposto pela alternância de uma designação a outra, destaque-se o fato de que uma “inauguração” remete a “cerimônia de entrega de uma obra”, “uma primeira apresentação”, o “início” de algo. Uma cena de inauguração se institui, criando certa relação entre os promotores do evento (no caso, alguém que realizou uma obra pública) e os participantes, que são convidados interessados / testemunhas do que se inaugura. Já um “teste de funcionamento” não chega a pressupor rituais de formalidade esperados em uma inauguração e também não demandaria convites amplamente distribuídos. Em um teste, espera-se que os participantes escolhidos possam avaliar o sucesso ou não do empreendimento. Se a voz oficial parece insistir em um “teste de funcionamento”, o que se reitera, no entanto, nos demais textos é o signo “inauguração”, como se pode observar abaixo. Tal reiteração se dará tanto na enunciação do jornalista, quanto na fala atribuída aos estudantes que participaram da manifestação, em trechos apresentados em relato: (F2) “A inauguração no novo bandejão da Uerj, na manhã desta segunda-feira, terminou em tumulto entre vigias e estudantes.” [Notícia 1] (F3) “A estudante do 10º período de História, Carolyna Barroca, de 23 anos, disse que foi uma das agredidas durante a confusão: − A manifestação era pacífica e tomei um soco no peito de um segurança. Uma menina foi jogada no chão e várias outras apanharam. O bandejão é público e eu não posso usar. A inauguração foi só para um grupo de convidados.” [Notícia 1] Como se vê, a designação “teste de funcionamento” ocorre apenas nos trechos atribuídos à voz institucional, seja através da nota na íntegra, quanto em citações dela: (F4) “Por meio de nota, a assessoria da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) esclareceu na tarde desta segunda-feira que o tumulto entre estudantes e seguranças durante um teste de funcionamento do novo bandejão da universidade teria sido provocado pelos próprias manifestantes.” [Notícia 2] Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 271 Na sequência abaixo, permanece o privilégio conferido à referência à “inauguração”, empregado também em sua forma verbal correlata: (F5) “Seguranças da Uerj estão fazendo um cordão de isolamento em torno do bandejão da universidade, que foi inaugurado na manhã desta segunda-feira, para evitar que estudantes entrem no local. Mais cedo, houve tumulto entre os alunos e os vigias.” [Notícia 3] A alternância entre as duas designações mencionadas acima constitui um cenário de embate entre posicionamentos distintos, a cuja atenuação se assiste como mecanismo de emergência de certo grau de mediação, correspondendo a um ideal de notícia como “transmissão de informações” ou ainda como índice que pretenderia reforçar certa “objetividade” pressuposta em tal gênero de discurso. A referida atenuação se instituiria a partir da recuperação do signo largamente utilizado na fala dos alunos – “inauguração” – a que se passa a qualificar na expressão “inauguração simbólica”: (F6) “De acordo com a assessoria da UERJ, o bandejão começará a funcionar em menos de um mês, mas houve uma inauguração simbólica que reuniu o reitor Ricardo Vieira Alves, representantes de professores, de funcionários e de alunos” [Notícia 5] Em F6, a presença da expressão “inauguração simbólica” parece ressaltar a existência de algum tipo de comemoração que, a despeito do esperado, não redundará em um início de funcionamento do “bandejão”. Esse destaque se sustentaria na oposição indicada pela utilização da conjunção “mas”, em que “começar a funcionar” se projeta como ação futura em relação à “inauguração simbólica” realizada. Tal leitura é reiterada em F7, quando “uma inauguração simbólica” é reformulada por “a comemoração”: (F7) “Uma inauguração simbólica foi realizada nesta segunda-feira, onde alunos que estariam no local queriam participar da comemoração, mas foram impedidos de entrar pelos seguranças da própria instituição”. [Notícia 6] Dessa forma, percorrer os diferentes modos de designar o evento ocorrido nos deu acesso a certos embates, opondo as vozes que sustentam ter havido “uma inauguração” sem a presença do principal segmento interessado na obra em questão – os estudantes – às que passaram a indicar a ocorrência de um “teste de funcionamento”, cujo acesso limitado estaria, por consequência, justificado. Uma terceira voz parece compor o cenário, referindo-se a uma “inauguração simbólica”, que, de um lado, reforçaria a existência de uma comemoração e, de outro, destacaria que tal evento não marca o início do funcionamento do “bandejão”. Ao longo da leitura das notícias, outra entrada relevante aponta para a relação proposta entre a “manifestação” e o “tu272 Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 multo”. Percebemos que, em certos fragmentos, a “manifestação” é apresentada razoavelmente equivalente ao “tumulto”: (F8) “Menos de 100 manifestantes, muitos de fora da Uerj, fizeram uma manifestação em frente ao prédio onde está localizado o Restaurante. Alguns manifestantes, mais exaltados, foram contidos pelos seguranças depois de agredirem dois estudantes e uma funcionária da vice-reitoria, que está neste momento em atendimento médico” Em F8, insinua-se uma correspondência entre a “manifestação” e o “tumulto”, apresentando este como decorrência do tipo de movimento proposto, em que alguns “manifestantes” se encontravam “mais exaltados”. Atribuir aos estudantes a categoria de “manifestantes” já supõe certa personalização dos atos em curso, uma vez que a ação de “manifestar” é tomada como atributo dos indivíduos a que se referem. Recuperando-se o relato atribuído a estudante, explicitado em F3, ao contrário da suposta correspondência entre “manifestação” e “tumulto”, o que se observa é a indicação da responsabilidade sobre o “tumulto” à agressividade dos seguranças da Universidade. Confronte com o seguinte trecho de F3: “A manifestação era pacífica e tomei um soco no peito de um segurança. Uma menina foi jogada no chão e várias outras apanharam”. Retomando o que vimos destacando até aqui, é possível observar que a referência ao teste de funcionamento parece se restringir aos fragmentos em que são apresentados relatos atribuídos à administração central da Universidade. A referência à “inauguração” é reiterada também na enunciação do jornalista. Tal recorrência vai concedendo estatuto de “informação” a esses fragmentos. A preferência por uma designação em detrimento de outra não parece ser proveniente apenas de uma escolha. Não se pode afirmar, por consequência, que tal escolha reflita uma observação mais autorizada do empírico. Interessa-nos aqui indicar a reiteração como mecanismo de produção de objetividade da notícia. Os contornos que o evento vai ganhando se fortalecem ou enfraquecem a partir da repetição de certas expressões em detrimento de outras. (F9) “Após a inauguração do novo bandejão da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), na manhã de segunda-feira, ter terminado em tumulto entre vigias e estudantes, a sub-reitora de Extensão e Cultura da Uerj, professora Regina Henriques, argumentou que os preços do restaurante da universidade foram calculados a partir de uma pesquisa”. [Notícia 4] Com efeito, F9 parece evidenciar de modo bastante instigante o encontro entre diferentes vozes, cujo encadeamento promove o apagamento dos embates que vão se constituindo ao longo dos textos e no confronto entre eles. Parece ser possível aqui aproximar o trabalho do jornalista daquele descrito por Deleuze (2007) acerca do métier do pintor. Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 273 Apenas ilusoriamente o jornalista estaria diante da folha em branco quando se propõe a narrar um evento. Trata-se, antes, de imaginar a folha (ou a tela do computador) povoada de clichês. “Com efeito, se o pintor estivesse diante de uma superfície em branco, poderia reproduzir nela um objeto exterior que funcionaria como modelo” (DELEUZE, 2007, p. 91). Antes de preencher a tela em branco, o pintor inicia seu trabalho esvaziando-a dos clichês que a povoam: (...) ele não pinta para reproduzir na tela um objeto que funciona como modelo; ele pinta sobre imagens que já estão lá, para produzir uma tela cujo funcionamento subverta as relações do modelo com a cópia (DELEUZE, 2007, p. 91). No caso da notícia, os clichês parecem residir em um modo recorrente de se referir às manifestações, conferindo destaque a seus desdobramentos em detrimento dos motivos que os geram. Os clichês se atualizam e se repetem indefinidamente de uma notícia para outra. Eles emergem mesmo quando se pretende atribuir igual destaque às diferentes vozes. Vejamos o fragmento a seguir: (F10) “A partir daí, há três versões do conflito. Em uma delas, alunos contaram que um grupo teria tentado entrar no bandejão - onde professores, funcionários e alunos convidados participavam do primeiro teste de funcionamento do bandejão.” [Notícia 4] O discurso indireto livre corresponde a uma forma de apresentação do relato que se caracteriza por uma mistura de vozes em que “não se pode dizer exatamente que palavras pertencem ao enunciador citado e que palavras pertencem ao enunciador citante” (MAINGUENEAU, 2001, p. 153). 1 274 Em F10, anunciam-se “três versões” para “o conflito”. Embora se pretenda, ao menos aparentemente, conferir igual destaque às três versões, é inevitável perceber que se supõe a existência do “conflito”. As polêmicas residiriam apenas nas versões. Seguindo com a leitura do fragmento em análise, observa-se a série proposta pelos alunos: inauguração, tentativa de entrada, impedimento, conflito com a segurança. Essa série parece ser contraditória com outra, atribuída à administração central da Universidade: teste de funcionamento, manifestação exaltada/conflito. Na primeira série, vê-se que o tumulto é gerado desde o impedimento da entrada dos estudantes. Na segunda, o tumulto parece decorrência natural do tipo de manifestação proposta, das atitudes exaltadas de alguns participantes. Essas séries correm paralelas, instituem a “produção de mundos” divergentes. O que se realiza na notícia é o encontro entre essas séries, que se observa, por exemplo, na presença da expressão “teste de funcionamento”, na apresentação da série atribuída aos estudantes. Se é possível restituir essa expressão como indicador da presença da voz da administração central da Universidade, tal elemento pode ser considerado como marca de uma citação em discurso indireto livre1, entrelaçando-se no relato que vinha sendo atribuído aos estudantes, como se pode recuperar com o verbo “contaram”. Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 Pretendendo sustentar, em consonância com a hipótese de uma semântica global, a multiplicidade de sentidos em concorrência, apontamos outra entrada possível para apreensão dos diferentes embates que atravessam as notícias de jornal: as diferentes formas de apresentação do discurso relatado. Um aspecto a ser considerado remete aos traços semânticos dos termos dicendi mobilizados: (F11) “De acordo com Gabriel Siqueira, também estudante de História e membro do Conselho Superior de Ensino e Pesquisa, o protesto era para reclamar do valor do bandejão. Os alunos alegam que em outras instituições públicas de ensino os preços são mais baratos”. [Notícia 1] (F12) “Por meio de nota, a assessoria da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) informou na tarde desta segunda-feira que o tumulto entre estudantes e seguranças durante um teste de funcionamento do novo bandejão da universidade teria sido provocado pelos próprios manifestantes. Alguns deles, mais exaltados, segundo a nota, teriam agredido dois estudantes e uma funcionária da vice-reitoria. O texto diz ainda que dois seguranças ficaram feridos e um carro teve o vidro quebrado”. [Notícia 1] (F13) “A universidade também informou os valores a serem cobrados por refeição, questionados pelos manifestantes: estudantes cotistas pagarão R$ 2 pela refeição; não-cotistas R$ 3; e funcionários R$ 5,31”. [Notícia 1] Nos três fragmentos anteriores transcritos da notícia 1, percebem-se estatutos distintos sendo conferidos a cada uma das vozes em relato. Em F11, a voz do estudante é introduzida, modalizada a partir da expressão “de acordo com...” e através do verbo “alegar”. Já a voz institucional é apresentada tanto em F12 como em F13 igualmente por modalização – “segundo a nota” – e pelo verbo “informar”. Desse modo, à voz dos estudantes caberia certa posição reativa, considerando que os traços semânticos do verbo em questão apontariam para um caráter opinativo / explicativo do relato. No que tange à voz institucional, confere-se estatuto de origem da informação, atribuindo-lhe traço de “objetividade”. O que dizemos parece apenas reforçar as observações anteriores acerca do trabalho do jornalista com clichês; as oposições que se atualizam parecem não se afastar muito do esperado, quando o que se noticia é um protesto contra a medida tomada pela administração de um estabelecimento. Os fragmentos que seguem comprovam a recorrência da distribuição das vozes já observada acima, bem como o lugar conferido a cada uma delas: (F14) “Por meio de nota, a assessoria da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) esclareceu na tarde desta segunda-feira que o tumulto entre estudantes e seguranças durante um teste de funcionamento do novo bandejão da universidade teria sido provocado pelos próprios manifestantes”. [Notícia 2] Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 275 (F15) “A universidade também informou os valores a serem cobrados por refeição, questionados pelos manifestantes”. [Notícia 2] (F16) “Os alunos faziam uma manifestação contra os preços das refeições − que irão custar de R$ 2 a R$ 5,31. Alunos alegaram ter levado socos e pontapés dos seguranças e um deles acabou com o braço arranhado. Já a Uerj informou, em nota, que os próprios manifestantes teriam agredido dois estudantes, uma funcionária e dois seguranças”. [Notícia 3] No entanto, é preciso ir além de um mero levantamento das pistas em análise, que nos levariam à evidência de diversas cenas se superpondo, em um regime de variação contínua. Tal encaminhamento nos manteria restritos a uma concepção representacional da linguagem, supondo que o evento “abertura do Restaurante Universitário” teria sido anterior à sua divulgação na imprensa e ao pronunciamento, em nota, por parte da Administração central da Universidade. Cabe não perder de vista dois aspectos que julgamos fundamentais na argumentação favorável a uma concepção de coengendramento entre linguagem e mundo. O primeiro desses aspectos residiria em perceber que a abertura do Restaurante Universitário não se dá sem a produção simultânea de uma “massa” de textos à qual só se pode ter acesso parcialmente. Observe-se o fragmento a seguir como exemplo do que vimos argumentando: (F17) “Apesar dos relatos da existência de feridos, segundo a Polícia Civil, não foram registradas ocorrências da confusão nas três delegacias da região, até o final da tarde de ontem”. [Notícia 3] O que em diversas situações ganha estatuto de informação objetiva não são ações empíricas, mas tão somente encadeamento de relatos, como os que se explicitam em F17. Nesse fragmento, são retomados os relatos que indicaram haver feridos em confronto com a voz atribuída à “Polícia Civil”. Essa voz se manifesta desautorizando “os relatos da existência de feridos”. Como outro exemplo, diríamos que não nos parece possível deixar de observar que a organização de cordões de isolamento, o impedimento do acesso de centenas de estudantes ao local tenha se dado sem que uma ordem, sem que conversas, orientações normativas tenham circulado. Do mesmo modo, a presença de centenas de estudantes pressupõe panfletos de convocação, mensagens de celulares, postagens em páginas eletrônicas de redes sociais, confecção de faixas, confirmações, possíveis desistências, tudo isso é produzido também por meio de textos. Dessa forma, o problema do tempo na linguagem ganha importância quando se rejeita o senso comum em torno do qual um dado estado de coisas seria anterior aos textos que lhe fariam 276 Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 referência. Quando a relação entre linguagem e mundo é concebida em termos da anterioridade deste sobre aquela, não há outra dimensão do tempo implicada aí senão a que percebe o histórico como sucessão de presentes, aprisionando-o em uma cronologia. Se, em Bakhtin, já havia a sensibilidade acerca de uma problematização do sentido que rejeita a primazia da estabilidade frente à variação, na perspectiva discursiva tal como vem sendo desenvolvida por D. Maingueneau, o problema do tempo parece insistir, mesmo que não esteja explicitamente indicado. Com efeito, é possível ressaltar, no conceito de prática discursiva, de D. Maingueneau (1997), a síntese, de um lado, da recusa da anterioridade do social sobre o linguístico e, de outro, da proposta de indissociabilidade entre a linguagem e a produção de modos de existência. A recusa residiria em considerar que, com a noção de prática discursiva, emerge um posicionamento a partir do qual “não se dirá ... que o grupo gera um discurso do exterior, mas que a instituição discursiva possui, de alguma forma, duas faces, uma que diz respeito ao social e a outra, à linguagem” (MAINGUENEAU, 1997, p. 55). A inflexão proposta residiria em considerar não mais os grupos em sua existência empírica exterior à linguagem, ressaltando-o sim como uma “face” da instituição discursiva. Tal é a ressalva apresentada pelo autor: “é preciso ainda deixar bem claro que visamos aos grupos que existem unicamente por e na enunciação, na gestão destes textos (...)” (MAINGUENEAU, 1997, p. 56). A proposta que igualmente se faz com a referida noção indica uma necessária reflexão por parte do linguista em torno dos modos de organização dos grupos – passo fundamental para o reconhecimento de que o conceito de prática discursiva teria outro impacto além da mera ampliação da noção de discurso. A esse respeito, Rocha afirma que se trata de redimensionar o objeto de estudo, o qual indica uma dupla produção: “por um lado, a produção de enunciados segundo um determinado sistema de regras; por outro, o complexo institucional implicado com tal produção” (ROCHA, 1997, p. 51). Esse redimensionamento é assim avaliado como “um salto qualitativo na formulação teórica do autor: a inclusão da dimensão institucional, cuja produção se encontraria submetida às mesmas coerções que regulam os enunciados” (ROCHA, 1997, p. 52). Considerações finais Neste artigo, retomamos uma discussão fundamental para a constituição do campo dos estudos do discurso: a reflexão em torno do sentido na linguagem como produção. Tal debate nos coloca invariavelmente em contato com um conjunto de problemas que, em diversos momentos, foram retirados do campo dos estudos do discurso. Entre as questões tratadas, destacamos aqui a necessária reflexão sobre o social e o problema do tempo. Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 277 A esse respeito, ver Maingueneau (2005). 2 278 Percorremos o referencial bakhtiniano com o intuito de apresentar uma concepção em torno do papel do contexto no privilégio do sentido como remetendo ao único e ao não reiterável. Tal concepção é parte imprescindível de uma teorização sobre a linguagem que se recusa a restringi-la a uma dimensão de “reapresentação” dos eventos supostamente exteriores. Considerando todo ato humano como um texto em potencial, Bakhtin oferece elementos importantes para a afirmação acerca da produção de mundos como processo que se efetua no plano linguístico e extralinguístico. Na sequência, ao retomar a noção de prática discursiva, ressaltamos que o avanço necessário de uma teorização em torno dos vínculos entre o linguístico e o extralinguístico como planos em concorrência na produção de mundos consideraria inevitavelmente o problema do tempo. Tal problema parece merecer mais atenção, já que o que se pretende afirmar com ele é a possibilidade de criação de sentido. Se o que se observa nesses textos, à primeira vista, é uma disputa de versões entre textos que retomam um evento passado, ainda que em uma distância de tempo consideravelmente pequena, explicitamos as considerações necessárias para afirmar que não se trata apenas de “versões”, transmitindo eventos anteriores. O congelamento das forças em embate constitutivo das narrativas parece provocar um apagamento da dimensão interventiva da linguagem sobre o real, cujos contornos passamos a explorar. Em linhas gerais, pode-se dizer que a notícia, como gênero do discurso, pretende-se à narrativa supostamente objetiva de um evento, indicando possíveis envolvidos, coordenadas de espaço e tempo, motivações presumidas, entre outros elementos. Diríamos, provisoriamente, que, ao sustentar o plano linguístico como instaurador de novos mundos, recusamos a posição segundo a qual a notícia figura como “transmissão de informação”. A objetividade obsessivamente perseguida por manuais de redação dos grandes jornais seria, antes, efeito provocado por certos procedimentos enunciativos do que qualidade inerente a esses textos. A coexistência entre o evento “inauguração” e o evento “teste de funcionamento” (ou ainda, como aparecerá em algumas notícias, “inauguração simbólica”) instaura-se produzindo diferentes modos de inscrição dos participantes envolvidos, bem como formas diversas de explicitar a passagem da “manifestação” ao “tumulto”. Com efeito, a diversidade de pistas apresentadas contribui com a hipótese de que o sentido não se encontra em uma única dimensão do texto, mas as atravessa todas, em menor ou maior grau, tal como se sustenta com a hipótese de uma semântica global2. Tal modo de conceber o sentido parece permitir a aproximação entre os estudos do discurso e a filosofia de G. Deleuze, já que a variação de sentido como atualização em permanente provisoNiterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 riedade de formas dá expressão a forças. “O sentido é então uma noção complexa: há sempre uma pluralidade de sentidos – uma constelação, um complexo de sucessões, mas também coexistências – que faz da interpretação uma arte” (DELEUZE, 1976, p. 3). Abstract In this paper, we discuss different ways of conceiving the articulation between linguistic and nonlinguistic domains, refusing the point of view, which presupposes the anteriority of the latter over the former. Our theoretical basis draws from the work of Bakhtin, Maingueneau and Deleuze, in order to support three main issues: the primacy of variation over stability of sense, the concept of time and the dynamics of coengenderings between language and reality. In the analysis, we highlighted the clashes reported in different news about the inauguration of a canteen in a public university of Rio de Janeiro. Keywords: production of reality; sense; discursive practice; enunciation. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. de Michel Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 2004. _____. Estética da Criação Verbal. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _____. Francis Bacon: lógica da sensação. Trad. de . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007b. _____. Nietzsche e a filosofia. Trad. de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976. MAINGUENEAU, D. A gênese dos discursos. Trad. de Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2005. _____. Análise de Textos de Comunicação. Trad. de Cecília Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001. _____. Novas Tendências em Análise do Discurso. Trad. de Freda Indursky. Campinas: Pontes; Ed. da Unicamp, 1997. ROCHA, D. “A opção por um espaço discursivo de análise: questões metodológicas”. In: PAULIUKONIS, M. A. L.; GAVAZZI, S. (Org.). Texto e discurso: mídia, literatura e ensino. Rio de Janeiro: Lucena, 2003. p. 197-208. Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 279 _____. Produção de subjetividade: para uma cartografia dos discursos das publicações sobre videojogos. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Ensino de Línguas). São Paulo: PUC-SP, 1997. 280 Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013 Análise discursiva do Plano de Desenvolvimento Institucional do CEFET/RJ: uma proposta de resistência a um discurso institucional hegemônico1 Fábio Sampaio de Almeida (CEFET-RJ UnED) Maria Cristina Girogi (CEFET-Celso Suckow) Resumo 1 O trabalho de onde se originou este artigo (ver GIORGI, 2012) centra-se na discussão sobre o papel dos ensinos médio e técnico no PDI do CEFET/RJ. Gragoatá Considerando as mudanças em curso na organização da rede federal de educação profissional e tecnológica, buscamos problematizar o papel do discurso como mecanismo de produção e manutenção de relações de saber e poder hegemônicas que engendram subjetividades de uma comunidade heterogênea como um projeto hegemônico em um documento oficial do CEFET/RJ. Nosso objetivo é identificar a construção discursiva da noção de comunidade como grupo que sustenta o discurso institucional de apoio ao projeto de transformação em Universidade Tecnológica, considerando de que modo o referido documento pode dar visibilidade à heterogeneidade que constitui uma instituição na qual coexistem os níveis médio, técnico e superior. Para tal, apresentamos uma análise discursiva do Plano de Desenvolvimento Institucional do CEFET/RJ e, como referencial teórico, seguimos as propostas de uma análise do discurso enunciativa, que se orienta pelas noções de interdiscurso (MAINGUENEAU, 2005) e de dialogismo (BAKHTIN, 2000; 2004) e pelas relações entre poder, saber e subjetividade (FOUCAULT, 1987, 1996; 2004). Entendemos que nossas análises linguísticas remetem, no documento analisado, a duas reflexões relevantes. A primeira é uma valorização de saberes que relacionam a instituição a um ensino pautado na eficiência, produtividade, organização e desenvolvimento, semelhante a qualquer empresa comercial ou industrial, que prioriza principalmente atitudes necessárias no mercado de trabalho capitalista, e em lugar de formação de um trabalhador, o adestramento, a docilização de corpos que possam ser úteis ao mercado de trabalho. A segunda seria a homogeneização da comunidade como grupo que, mais do que sustentar PDI, respalda discursivamente o projeto de Universidade Tecnológica. Palavras-chave: discurso institucional; ensino profissional e tecnológico; produção de subjetividade; relações poder/saber. Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 As instituições federais de educação profissional de nível médio sofreram recentemente uma reformulação. A maioria dos Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs) e escolas técnicas foi transformada pelo governo Lula em Institutos Federais de Educação Ciência e Tecnologia (IFETs), e apenas os três mais antigos, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Paraná, não passaram por tal processo. O último já alcançou o nível de Universidade Tecnológica (antes mesmo da transformação das outras unidades em IFETs) e os dois primeiros, atualmente ainda CEFETs, pleiteiam o mesmo, contrariando a proposta governamental dos Institutos Federais Tecnológicos. Nesse contexto, percebemos nas políticas públicas federais um investimento na ampliação da educação profissional e tecnológica pública realizada especialmente na criação de Instituições de Ensino Superior que teriam, segundo o MEC, como princípio articular as dimensões do ensino, da pesquisa e da extensão. Dessa forma, na prática, extinguem-se instituições que eram apenas de nível médio, que passam a funcionar como instituições de ensino superior, com maior autonomia administrativa e pedagógica. A complexidade desse contexto político e econômico atravessa o plano da discursividade local, materializando-se em documentos que chegam a ser exigência para o próprio funcionamento da instituição de nível superior, como será apresentado. No caso do CEFET/RJ, entendemos que o projeto de transformação em Universidade Tecnológica (UT) está estrategicamente redigido em um desses documentos, o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI). No presente artigo, pretendemos identificar, por intermédio da análise desse PDI, a construção discursiva da noção de comunidade como grupo que sustenta o discurso institucional do CEFET/RJ de apoio ao projeto de transformação em UT, tendo em vista de que modo um documento pode representar ou dar visibilidade aos grupos e interesses que constituem os diversos níveis de ensino aí presentes, a saber: médio, técnico e superior. Para tal, o texto está organizado em quatro partes. A primeira é uma breve apresentação da instituição. Na segunda, se problematizam o seu papel e as relações de saber e poder que a constituem. A terceira exibe o PDI e o contexto de produção que o instituiu como documento obrigatório para instituições de ensino superior. No quarto bloco, introduzimos o referencial teórico-metodológico e procedemos nossas análises. E por último, nossas considerações finais. O CEFET/RJ: entre o profissional e o tecnológico No que se refere à relação trabalho e educação, pode-se afirmar que há, desde os tempos do Brasil Colônia, a preocupação com os interesses da elite e a desvalorização de qualquer atividade relativa a trabalho. Ao longo dos anos, cada vez mais, 282 Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 reforça-se a ideia de que o trabalho manual está aliado ao povo, aos desfavorecidos da fortuna, ao passo que o intelectual é reservado aos homens de posses. Dando um salto no tempo, é apenas no início do séc. XX que surgem, não por acaso, políticas públicas favoráveis ao ensino técnico-profissional no Brasil, a partir do momento em que se entende ser preciso diversificar as atividades econômicas em prol do nosso desenvolvimento industrial. Funda-se, então, a Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Brás, para formar mão de obra qualificada (ver BRANDÃO, 1997). Acompanhando todas as mudanças que sabemos ter ocorrido no sistema educacional brasileiro, e após muitas denominações, chegamos ao Centro Federal de educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET/RJ, instituição atual, que se define em sua página como um centro que: (...) é desafiado e se desafia, permanentemente, a contribuir no desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro e da região. Atento às Diretrizes de Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior do país, volta-se a uma formação profissional que deve ir ao encontro da inovação e do desenvolvimento tecnológico, da modernização industrial e potencialização da capacidade e escala produtiva das empresas aqui instaladas, da inserção externa e das opções estratégicas de investimento em atividades portadoras de futuro – sem perder de vista a dimensão social do desenvolvimento. Assim se reafirma como uma instituição pública que deseja continuar a formar quadros para os setores de metalmecânica, petroquímica, energia elétrica, eletrônica, telecomunicações, informática e outros que conformam a produção de bens e serviços no país (Disponível em: www.portal.cefet-rj.br/a-instituicao/historico.html) Tais palavras nos permitem compreender que a instituição tem características bastante específicas, não se configurando como uma instituição de ensino básico, tampouco como uma de ensino superior. Em suma, trata-se de uma instituição atualmente tão peculiar, que sequer pode ser chamada escola, uma vez que nela convivem, além dos ensinos Médio e Técnico, o Ensino Superior, com cursos de graduação e pós-graduação, lato e stricto sensu. E é por conta dessa diversidade que recorremos a Foucault, no intuito de melhor entender de que modo o discurso estabelece relações de poder / saber e produz certos modos de subjetivação. Discurso, poder e produção de subjetividade na escola Foucault, a nosso ver, é fundamental, quando se pretende conceber um novo modo de entender o sujeito – não como ser pré-linguístico, mas sim constituído em meio a questões históricas, relações de poder, saberes. Foucault (1996) desenvolve ideias acerca da relação entre as práticas discursivas e os poderes que as atravessam, postulando a existência de diversos procedimentos Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 283 em nossa sociedade que controlam e regulam a produção dos discursos. Torna-se visível a relevância da linguagem como elemento, que, em lugar de representar, constitui uma realidade discursiva. Como consequência, o sujeito, para o filósofo, não preexiste à sua constituição na/pela linguagem e as subjetividades são também resultados de operações discursivas. Não existem, portanto, estruturas permanentes que constituem a realidade; e o discurso, como prática social, é produzido desde relações de poder e não deve mais ser tratado como conjunto de signos, e sim como prática, que, em lugar de representar, de somente designar, pode construir os objetos sobre os quais fala (FOUCAULT, 2004, p. 55). Entendemos que devemos estar atentos a essa produção de discursos na escola, espaço no qual a distribuição de poder e saber é reconhecidamente desigual, além de procurar descristalizar falas que se justificam a partir de processos educativos, que, muitas vezes, acreditamos serem inevitáveis ou naturais, quando esses são apenas decisões que, como afirma Jardine (2007), poderiam ter sido tomadas em outros sentidos. A escola nem sempre foi esse modelo que disciplina, normaliza, divide e distribui tempos e espaços, classifica, diagnostica, sanciona e o qual reproduzimos; esse modelo é simplesmente resultado de embates de poder. Uma escola com base na organização fabril, cujo papel transcende à formação educacional, tem como objetivo final formar corpos disciplinados e dóceis que não questionem e mantenham a hegemonia vigente: a do capital. O sujeito do conhecimento constitui-se historicamente por meio de “um discurso tomado como uma conjuntura de estratégias que fazem parte das práticas sociais” (FOUCAULT, 1996, p. 11). Com base em Nietzsche, Foucault (1987) nos faz entender que o saber não é algo que se impõe ao sujeito, mas, ao contrário, algo que o origina. O saber seria “aquilo que se pode falar”, o que tem valor, ou seja, aquilo que adquiriu o status de acadêmico, científico. Não são apenas conteúdos, mas relações de poder. Imprescindível relacionar a questão dos saberes com a escola, que é, por um lado, lugar fundamental para a construção de subjetividades; e, por outro, instituição marcada e atravessada pela configuração social. Dessa forma, reiteramos que há que se discutir o modo como se estabelecem as relações de poder no âmbito da escola, sempre levando em conta o lugar que ela ocupa na configuração da sociedade atual. Voltando à constituição peculiar da instituição CEFET/RJ, onde saberes diversos coexistem, seria ingênuo pensar que os docentes de níveis distintos seriam valorizados da mesma forma, ainda que muitos professores que lecionam no ensino básico também atuem na pós-graduação, por exemplo. Mas, como nos ensina Foucault – opondo-se à tese de que haja formas e sujeitos 284 Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 de conhecimento dados previamente, sem sofrer influências das condições de existência sociais, políticas e econômicas, as quais seriam simplesmente depositadas no homem –, relevante são as práticas sociais, sendo estas o conjunto de regras tácitas que devem ser obedecidas, que se relacionam com a constituição de domínios de saber. Na realidade, as práticas sociais constroem os domínios do saber, originando não só conceitos e objetos como também novas formas de sujeito. Nesse sentido, os antes valorizados saberes relativos ao ensino profissional de nível médio passam a ceder espaço àqueles vinculados ao ensino superior. Outra contribuição foucaultiana relevante para nós seria a análise da relação entre as práticas sociais de controle e vigilância e o nascimento do poder, que permitem entender como se estabeleceu, ao longo do tempo, o nexo entre o sujeito e a constituição da verdade. Mais especificamente, as práticas judiciárias ocidentais no que tange ao modo de julgar o homem a partir de seus “erros” são um modo de definir tipos de subjetividade e formas de saber, pois originaram modelos de verdade que ainda fazem parte de nossa sociedade em diversos domínios, na política, no comportamento diário e, também, na ordem da ciência, uma vez que: “Até na ciência encontramos modelos de verdade cuja formação releva das estruturas políticas que não se impõem do exterior ao sujeito do conhecimento, mas que são, elas próprias, constitutivas do sujeito do conhecimento” (FOUCAULT, 1996, p.27). É a partir da reforma e da reorganização dos sistemas judiciário e penal que surge o que Foucault chama de sociedade disciplinar: a sociedade contemporânea, que substitui o saber de inquérito por um saber de “vigilância”, na qual vivemos até hoje e do qual a escola é um exemplo. No próximo item apresentamos nosso córpus que, em nosso entendimento, é exemplar da sociedade disciplinar, proposta por Foucault. O PDI: um breve histórico Nos anos 90, como resultado de conceitos econômicos deslocados para a área educacional, difunde-se cada vez mais a ideia de que tudo pode e deve ser avaliado com o objetivo de melhorar a qualidade do que é produzido. Nesse sentido, é preciso controlar as instituições, e a LDB 9.394/96 legitima o já existente controle burocrático sobre as instituições educacionais, incluídos nestas professores, técnico-administrativos e alunos. Em meio a esse contexto e como exemplificação de referido controle, origina-se o PDI, a partir de duas atribuições definidas na LDB de competência do MEC: o credenciamento e a avaliação institucional. Suas devidas regulamentações, contudo, são postergadas, uma vez que o plano passa a figurar no cenário nacional somente em julho de 2001, ao tornar-se um dos elementos obrigatórios dos processos de credenciamento das Instituições de Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 285 Ensino Superior (IES), além de um dos itens a ser considerado na avaliação institucional. Em março de 2002, por meio de uma resolução do CNE, outorga-se mais poder ao plano, que passa a ser obrigatório para o protocolo de autorização de cursos e de credenciamento de IES (SEGENREICH, 2005, p. 152). Em 2002 são publicadas pelo MEC as Diretrizes para Elaboração do PDI, com o objetivo de dirimir quaisquer dúvidas com relação ao plano e servir como diretriz para sua elaboração. Segundo Segenreich, no entanto, essas diretrizes têm como real propósito: [...] sacramentar o enfoque ‘credencialista’ conferido ao PDI na Resolução 10/2002 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2002). Tendo em vista a natureza normativa do documento, ele é uma boa fonte para avaliar o papel que o MEC espera que o PDI desempenhe dentro e fora da instituição universitária. (SEGENREICH, 2005, p. 153) No mesmo ano, por meio da publicação de uma resolução reforça-se a ideia do PDI como instrumento de planejamento e avaliação ao estabelecer a obrigatoriedade geral de recredenciamento das universidades e IES do país, tornando-se o plano o centro da avaliação para o dito recredenciamento. Esse pequeno histórico permite identificar uma contradição entre o documento que deveria ser uma referência de fato para a avaliação institucional numa perspectiva formativa e o documento que passa a ser condição para o credenciamento/recredenciamento das Instituições de Ensino Superior, servindo, a nosso ver, mais como instrumento de controle, do que como diretriz. Em 2004, por força de lei, reforça-se a ideia do PDI como instrumento de controle, já que esse passa uma das etapas obrigatórias para garantir a uma instituição seu status de nível superior. Em 2006, dispõe-se, por intermédio de decreto, acerca do exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação de instituições de ensino superior e cursos superiores de graduação, além de, no sistema federal de ensino, exigir-se uma nova adequação dos procedimentos de elaboração e análise do PDI, que passa, então, a ser regulamentado. Desse modo, consiste num documento em que se definem a missão da instituição de Ensino Superior e as estratégias para atingir suas metas e objetivos, pautados em indicadores de desempenho. Ou seja, trata-se, em resumo, de um instrumento legal para a aferição da qualidade da gestão; um plano estratégico. É, portanto, como já visto, referência para qualquer critério ou processo de avaliação relativa a Instituições de Ensino Superior e, mais: uma exigência para que elas existam e se instituam como tal. 286 Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 Pode-se entender o PDI como resultado concreto e efetivo de uma política; um documento que não surge ao acaso, mas que, de fato, representa uma política de avaliações relacionada à tendência de aplicar a todas as instituições os mesmos princípios e métodos administrativos do mundo empresarial, em consonância com as políticas públicas que vêm sendo adotadas no país. E assim, em meio a tantos discursos que se produzem pela e na comunidade CEFET/RJ, por grupos diversos, surge um documento privilegiado para, de certa forma, constituir discursivamente o que a instituição é ou pretende ser. Um documento elaborado exatamente com o objetivo de falar por essa comunidade – em que coexistem os ensinos Médio, Técnico e Superior, além de docentes que atuam ora no Médio e no Superior, ora no Técnico e no Superior, ora nos três níveis – a partir do ponto de vista do Ensino Superior. O CEFET/RJ elaborou, até o momento, dois PDI: o primeiro referente ao período de 2005-2009 e o segundo ao de 2010-2014. Nossas análises se baseiam na versão impressa do segundo PDI, que está em vigor, por ter sido essa a distribuída aos servidores de todas as unidades, garantindo maior circulação dentro da instituição. Passamos agora às considerações de ordem teórica e metodológica, no que tange à opção por uma perspectiva discursiva de análise dos enunciados do PDI do CEFET/RJ. Dialogismo e interdiscurso: por uma semântica da resistência no discurso e nos grupos sociais Buscando dar visibilidade ao papel da linguagem na construção de sentidos sobre a escola e seus atores em um texto institucional, recorremos a uma perspectiva discursiva de cunho sócio-histórico (BAKHTIN, 2000; 2004) e enunciativo (MAINGUENEAU, 2005; 2002). Bakhtin (2000) nos ensina que os discursos envolvem a relação sujeito-linguagem numa determinada situação de comunicação, isto é, remetem ao diálogo entre interlocutores e entre discursos e compreendem a interação como ação inerente às práticas sociais; práticas essas sempre situadas em determinado contexto histórico e social e sujeitas a diversas coerções. O autor prescreve que todo discurso é dialógico, construído tendo como base outro discurso, pelo qual, por conseguinte, é atravessado e cujas marcas carrega. Os sentidos não devem ser entendidos como estáveis ou preestabelecidos dentro de um enunciado, uma vez que este, unidade real da comunicação, atualiza-se a cada relação que se estabelece entre os interlocutores. E é no cruzamento de enunciados que se preserva a memória social. Em sendo assim, todo discurso é construído tomando como base um Outro, e suas marcas nos permitem um acesso a outras enunciações. Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 287 Nesse sentido, a proposta de Maingueneau (2005) sobre o primado do conceito de interdiscurso é também relevante para o objetivo da pesquisa. O autor entende que qualquer prática discursiva se deve considerar a partir da alteridade, pois qualquer que seja a identidade que um discurso possa assumir, ela é sempre indissociável de seu Outro. Visando operacionalizar a noção de interdiscurso, o autor propõe uma tripartição conceitual: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. Como afirma, estas não são unidades preestabelecidas e estáveis, e sim uma abstração conceitual. O universo discursivo compreende o conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem em uma dada conjuntura. Devido à sua grande extensão, Maingueneau afirma que esse é pouco útil ao analista e constitui apenas possibilidade de domínios a serem estudados. Neste artigo seriam todas as formações discursivas que atuaram e atuam na constituição de discursos da e sobre a educação. Já campos discursivos são o conjunto de formações discursivas em concorrência – enfrentamento aberto, aliança, indiferença aparente, por exemplo, – entre discursos que possuam a mesma função social e que divirjam em relação à maneira de exercê-la. Os diferentes discursos sobre o papel da escola técnica, sobre o ensino profissionalizante ou sobre a educação tecnológica são exemplos de campos discursivos. Finalmente, espaços discursivos são subconjuntos de formações discursivas cuja inter-relação é relevante para a análise. É o recorte que resulta das hipóteses fundadas no conhecimento dos textos e da história destes, que serão confirmadas ou rejeitadas no decorrer da pesquisa. Cabe acrescentar que a configuração do espaço discursivo deve ser assumida pelo pesquisador e, portanto, este deve explicitar os critérios que legitimam essa escolha. É essa visão que norteia a seleção dos enunciados analisados neste artigo e de outros que constituíram o córpus da pesquisa. Buscamos observar de que modo se constroem os discursos em um documento institucional e, para tal, como os efeitos de sentido produzidos têm a ver com o lugar sócio-histórico de onde o tema é falado e o modo como é falado. Para este artigo, foram selecionados os enunciados que fazem referência, pelo uso do termo “comunidade”, a um grupo de indivíduos que atuam verbalmente na sustentação do discurso institucional em questão. Sabe-se que o que constitui efetivamente uma comunidade são os discursos que ela produz, por conseguinte nenhuma instituição pode existir enquanto tal sem produzir discursos, que a atravessem e a constituam. Assim, a partir de uma perspectiva discursiva, é certo que se deve compreender o PDI como discurso em meio a seu contexto de produção e, como afirmam Rodrigues e Rocha (2010, p. 207): 288 Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 [...] observar como os discursos estão-se construindo requer que os tomemos como um modo de apropriação da linguagem socialmente constituído. Sendo assim, mais do que com o conteúdo temático, os efeitos de sentido que se produzem têm a ver com o lugar sócio-histórico de onde o tema é falado e, consequentemente, com o modo pelo qual ele é falado. Trata-se de uma complexidade que só faz ratificar um modo de funcionamento discursivo compatível com os princípios de uma semântica global. (RODRIGUES; ROCHA, 2010, p. 207) Nossa aposta é que, se existe um discurso que enuncia a partir do CEFET/RJ, Instituição de Ensino Superior, esse discurso não pode ser homogêneo e representar um único ponto de vista. Acreditamos, portanto, que seja possível identificar ao menos dois sujeitos que falem de lugares sócio-históricos, se não opostos, pelo menos distintos. Mesmo porque nenhum enunciador enuncia sozinho, sempre se podem identificar outras vozes, pela presença ou pelo apagamento. A escolha da designação “comunidade” como modo de entrada no texto, então, é responsiva a uma dupla compreensão. Por um lado, o fato mesmo de o discurso implicar necessariamente a organização social de comunidades discursivas (MAINGUENEAU, 2005), ou seja, ele é elemento constitutivo dessa organização, na qual os sujeitos discursivos são produzidos ao mesmo tempo em que produzem textos. Por outro, o vocabulário constitui na perspectiva de uma semântica global um dos planos que integra a produção de sentido nos enunciados (MAINGUENEAU, 2005). Destacamos que nos interessa a possibilidade de uma mesma unidade lexical ser explorada semanticamente no plano do discurso de modos distintos por diferentes formações discursivas, isto é, de uma mesma palavra designar, e assim, produzir diferentes referentes, ainda que no mesmo texto. Nesse sentido, pretendemos reconhecer possíveis pontos de controvérsia, outras vozes enunciadas ao longo do documento que nos permitam melhor compreender a comunidade construída discursivamente no documento, desde os efeitos de sentido que nele se produzem, uma vez que acreditamos, como Rocha (2003, p. 202), na “possibilidade de o Mesmo já se constituir em pista para localizar o Outro (nos pequenos deslizamentos que se verificam)”. Para tal, destacamos os enunciados nos quais o termo “comunidade” atua como sujeito de ações que possuem um traço semântico dicendi, seja uma fala mais explícita ou uma ação que implica indiretamente uma fala. O termo “comunidade” aparece pela primeira vez na apresentação do PDI em dois momentos: Este Plano de Desenvolvimento Institucional do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET/ RJ para o período 2010-2014, aprovado pelo Conselho Diretor na Sessão Extraordinária de 16 de dezembro de 2010, ao expressar avanço em relação às diretrizes estabelecidas no PDI Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 289 2005-2009 apresentado ao Ministério da Educação com base no novo estatuto do Centro e na organização acadêmica atinentes aos Decretos 5.224 e 5.225, de 1o de outubro de 2004, reflete o posicionamento da comunidade interna no sentido de assumir a continuidade de uma trajetória de formação que congrega o desenvolvimento da educação tecnológica nas dimensões de ensino, pesquisa e extensão. Todo PDI traz desafios àqueles que se constituem como agentes e beneficiários do projeto nele presente. No caso de uma instituição de educação tecnológica, sua comunidade acadêmica – docentes, técnicos-administrativos e alunos – e a sociedade – aí compreendidos diferentes grupos sociais, o mundo produtivo e o poder público constituído. Apesar de o segundo enunciado explicitar a constituição dessa comunidade “docentes, técnicos-administrativos [sic] e alunos”, outorga ao referente uma unicidade, uma homogeneidade no mínimo questionável, principalmente porque, como já afirmamos, se existe um discurso que enuncia a partir do CEFET/RJ, esse não pode ser homogêneo e representar um único ponto de vista. Mesmo porque nenhum discurso poderia. É, a nosso ver, no mínimo, redutor afirmar que, dentro do quadro heterogêneo que constitui essa ou qualquer instituição, existe uma comunidade homogênea que assume um movimento em nome do Ensino Superior. Retomamos o fragmento que define “comunidade acadêmica” sobre o qual devem ser tecidas ainda algumas considerações. A primeira sobre a definição de agentes e beneficiários de uma instituição de educação tecnológica. Se “Todo PDI traz desafios àqueles que se constituem como agentes e beneficiários do projeto nele presente” e é necessário indicar quais são os agentes e beneficiários nessas instituições, é porque tais agentes e beneficiários são particulares. Os agentes seriam a comunidade acadêmica específica da instituição e no que se refere à sociedade – que cumpriria o papel do beneficiário – são especificados “diferentes grupos sociais, o mundo produtivo e o poder público constituído”. Entendemos que, pela indefinição presente em “grupos sociais diversos” e pela impossibilidade de se vincular o “poder público constituído” a apenas um segmento das instituições públicas educacionais, estabelece-se um laço específico entre a instituição de educação tecnológica e o mundo da produção, que não estaria dado, não seria óbvio ou natural, mas que, inegavelmente, representa um laço que vem se construindo ao longo da história do nosso ensino profissional. Percebemos que o ponto crucial gira em torno da questão da identificação do grupo ou dos grupos que discursivamente dão sustentação ao discurso do PDI. Para tal, identificamos, em um primeiro momento, duas designações que poderiam contribuir com esse processo: Comunidade e CEFET/RJ. Uma leitura detida do documento nos possibilita identificar traços que as distinguem. 290 Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 Enquanto ao CEFET/RJ se atribuía no plano uma identidade aparentemente individualizada de caráter institucional, a comunidade é identificada com diferentes grupos (docentes, técnico-administrativos e discentes) e muitas vezes colocada no mesmo nível da comunidade externa. Há, assim, uma oposição entre o lugar da instituição e o daqueles que a constituem, justificando nossa opção por centrar as análises no termo comunidade com o objetivo de identificar, no PDI em nome de quem se fala, quando se fala da comunidade do CEFET/RJ, ainda que não pensemos ser coerente essa cisão entre um lugar institucional e a comunidade formada por aqueles que constituem os coletivos que a ocupam. Fragmento 1 Fragmento Termo dicendi No exercício cotidiano de sua atuação, tal intenção im- apontadas plica prosseguir em: diálogo - investir permanentemente nas dimensões quantita- debatidas tiva e qualitativa dos projetos de ensino, pesquisa e extensão, levando em conta o contexto de desenvolvimento e demandas apontadas no diálogo com atores sociais e debatidas com a comunidade interna; (p. 15) No primeiro fragmento, o enunciador do documento, ao reforçar a continuidade das ações que já são executadas no âmbito da instituição, a fim da ter “sua institucionalidade reconhecida como Universidade Tecnológica” (CEFET, 2010, p. 15), atribui ao CEFET/RJ o investimento permanente nas três dimensões de ensino, pesquisa e extensão. Leva em consideração, para isso, duas ordens de coisas estabelecidas: o contexto de desenvolvimento e as demandas. Uma vez que não fica claro, a partir da leitura do texto, a que contexto se refere, passamos às considerações acerca das demandas, “apontadas” a partir do “diálogo” com atores sociais, que devem ser “debatidas” com a “comunidade” do CEFET/RJ. Com relação à questão da demanda, entendemos haver no enunciado uma divisão em dois momentos, de diálogo e debate, nos quais os participantes são distintos. Faz-se, portanto, necessário perguntar quem seriam esses atores sociais ou, mais relevante, por que a comunidade interna é excluída deste grupo. Enquanto os que atuam socialmente determinam quais são suas demandas, a comunidade interna desempenha o papel operacional de debater modos de encaminhamento dessa demanda. Desse modo, apesar de o uso de termos como “diálogo” e “debate” apontar para uma equivalência entre ações ou posicionamentos sociais, identifica-se na materialidade linguística a oposição que dá sustentação à visão taylorista de trabalho, por meio da qual o “mundo produtivo” pensa quais são as suas necessidades, restando à instituição formadora de mão de obra executar a tarefa Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 291 de operacionalizar meios de atendê-las. Interessante notar que, ao contrário do que pode parecer, a ação de debater no enunciado em questão está subordinada à ação de dialogar, já que o debate realizado pela “comunidade interna” se realiza a partir do que já fora estabelecido no diálogo com os “atores sociais”. Sendo assim, esse falar nada mais é do que atender à vontade do outro, que não é a própria comunidade interna, que, nesse momento, tem a função de servir à externa ou pelo menos à sua parte significativa: o “mundo produtivo”. Fragmento 2 Fragmento Termo dicendi [...] reflete o posicionamento da comunidade interna reflete no sentido de assumir a continuidade de uma trajetó- posicionamento ria de formação que congrega o desenvolvimento da educação tecnológica nas dimensões de ensino, pesquisa e extensão. (p. 5) No fragmento 2, constrói-se discursivamente uma ação a partir de um “posicionamento” tomado pela “comunidade interna” que assume “a continuidade de uma trajetória de formação que congrega o desenvolvimento da educação tecnológica nas dimensões de ensino, pesquisa e extensão”. Analisando o caráter dicendi do verbo “refletir” e do substantivo “posicionamento”, concluímos que é preciso identificar uma voz que tenha sustentado um posicionamento e qual foi esse posicionamento para que o mesmo esteja sendo refletido no discurso institucional. Identifica-se, assim, uma construção semelhante à noção de discurso narrativizado proposto por Sant’Anna (2004), segundo a qual há o apagamento de alguns dos constituintes da enunciação relatada. Conforme a autora, no discurso narrativizado presente no gênero notícia apagam-se as referências de coenunciadores, de tempo e de lugar e de como o enunciador-jornalista haveria tido acesso às informações que relata. Apenas é possível verificar a existência de uma enunciação anterior por meio da presença de um termo de “força dicendi” que, no entanto, não esclarece o contexto dessa enunciação. Já no caso identificado no PDI, não são os coenunciadores e o contexto espaço-temporal que se apagam, mas sim o dito. É possível identificar um enunciador, a “comunidade interna”, e um termo dicendi, o “posicionamento”, mas não aquilo que efetivamente foi dito para garanti-lo. O efeito produzido pelo apagamento da voz da comunidade interna faz crer na homogeneidade de sua opinião. Desse modo, o enunciador do PDI estabelece uma aliança entre o discurso institucional e o discurso da comunidade interna explicitada pelo verbo “assumir”, garantindo respaldo ao projeto do PDI. 292 Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 Fragmento 3 Termo dicendi Fragmento Desejava-se o reconhecimento externo do Centro concepção como Instituição de Ensino Superior, com ciência da decisões importância da manutenção e crescimento dos cursos técnicos de nível médio, já firmemente estabelecidos. Desde então, como atestam a produção e a divulgação de documentos e eventos que materializam a concepção e as decisões da comunidade sobre o tema, a Instituição aguarda o encaminhamento do MEC ao pleito apresentado oficialmente mediante exposição de motivos e projetos, notadamente em dezembro de 2005, setembro de 2007 e abril de 2009. (p. 18) As mesmas considerações poderiam ser feitas no fragmento 3, com relação às decisões tomadas pela comunidade. Constrói-se a imagem da “comunidade” como sujeito que “concebe” e “decide”, ou seja, atua discursivamente, mas se apaga novamente aquilo que foi dito, ficando apenas a lógica da aliança com o discurso institucional. Nele também é reforçada a oposição entre a “instituição”, no papel de enunciador do PDI, e a “comunidade”, ambos os sujeitos distintos e independentes, já que a cada um cabem diferentes ações. Considerando a diversidade do quadro docente e discente da instituição (indiscutivelmente a maioria atuando no Ensino Básico), parece pouco crível o consenso no que se refere ao reconhecimento externo do centro como Instituição de Ensino Superior, já que isso seria desconhecer ou não reconhecer a comunidade pragmática da qual se faz parte. Fragmento 4 Fragmento Termo dicendi As orientações internas da proposta de adesão ao apreciadas REUNI, apreciadas na comunidade e referendadas pelo Conselho Diretor, fortalecem e atualizam objetivos, estratégias e ações constantes deste Plano de Desenvolvimento Institucional, levando em conta que as diretrizes gerais desse Programa guardam consonância com o projeto de Universidade Tecnológica que articula níveis de ensino e integra atividades de ensino, pesquisa e extensão. (p. 26) Relevante no fragmento 4, uma vez mais, a separação entre comunidade e dimensão institucional, nesse caso o Conselho Diretor. A primeira aprecia, enquanto o segundo referenda. A nosso ver, ou está omissa a ação de aprovar a proposta de adesão ao REUNI ou o Conselho Diretor, em lugar de referendar, apenas aprovou, sem que a comunidade tomasse uma decisão sobre o Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 293 tema, visto que o verbo “referendar”, dentro desse contexto específico, apontaria para o ato de aceitar algo que já foi previamente aprovado por outrem. Uma vez mais, se fala de comunidade em um projeto que apenas contempla o Ensino Superior. Além disso, a ação atribuída à comunidade, “apreciar”, destaca apenas uma tomada de consciência e não um posicionamento efetivo. Fragmento 5 Termo dicendi Fragmento Investir nas ações de extensão já existentes e reconheci- reconhecidas das pela comunidade interna e externa (p. 51) No fragmento 5, a comunidade interna é colocada em posição análoga à externa quanto ao papel de “reconhecer” ações de extensão já existentes no CEFET/RJ. O verbo de traço dicendi “reconhecer” indica um posicionamento passivo da comunidade em relação a uma ação ativa, a de investir, realizada por um sujeito que não é referenciado, mas que pode ser vinculado à instituição, já que o PDI é um discurso institucional. Fragmento 6 Fragmento Termo dicendi Apoiar a comunidade interna na elaboração de pro- elaboração jetos a serem desenvolvidos mediante financiamento externo (p. 70) Já no fragmento 6, a comunidade interna é construída como aquela que elabora projetos. Não obstante, o que parece ser uma ação efetiva de autonomia, na verdade, passa distante das atividades de planejamento da instituição, uma vez que a comunidade precisa ser apoiada na realização dessa ação, ainda que não se explicite por quem. Parece que a questão a ser destacada é o interesse que demonstra o enunciador institucional nos financiamentos externos de projetos, já que são eles que garantem as verbas que, além de dar destaque à instituição por sua atuação, propiciam a ampliação de condições de infraestrutura, de compra de materiais, livros e equipamentos. No que tange ao fragmento 7, asseveramos que a aparente forma ativa presente no ato de “avaliar” que se atribui discursivamente à comunidade não se sustenta a partir do momento em que serão avaliados “objetivos, estratégias e ações” de um PDI que já possui, pelo menos no plano discursivo, o pleno apoio dessa comunidade. 294 Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 Fragmento 7 Termo dicendi Fragmento Em consonância com a diretriz de democratização do avaliados planejamento, gestão e avaliação institucional, este PDI deverá ter seus objetivos, estratégias e ações permanentemente acompanhados e avaliados pela comunidade do Centro, ensejando planos plurianuais e operacionais específicos para efetivação das metas estabelecidas. Nos planos operacionais serão consideradas as prioridades e definida a programação associada à disponibilização de recursos. Em resumo, se relacionamos as considerações feitas ao longo das análises, pode-se entender comunidade, como um sujeito homogêneo, a quem são atribuídas, em geral, tarefas de execução, distantes do planejamento da instituição. À comunidade interna cabe pensar um modo de encaminhar a realização das demandas da comunidade externa, representada pela figura do “mundo produtivo”. Pensar cabe àqueles órgãos e Setores Institucionais que são designados separadamente e, em oposição à comunidade acadêmica, àqueles que certamente encabeçam a hierarquia do Organograma. No próximo item serão apresentadas as considerações finais de nosso artigo. Breves considerações finais Tomando como base a relação poder/saber proposta por Foucault (2004), fazem-se necessários questionamentos acerca da valorização de determinados saberes em detrimento de outros, que propiciam em um determinado momento, por meio de uma imposição institucional, a substituição de uma lógica histórica e socialmente construída, que valoriza os ensinos Técnico e Médio, por outra que opta pelo ensino Superior como identidade institucional. Ainda que os primeiros possuam maior número de alunos, de docentes, além de maior reconhecimento social, pois é inegável que, quando se fala em CEFET/RJ, ainda “a antiga Escola Técnica”, entra em cena o ensino de nível Médio e não o Superior. Nossas análises linguístico-discursivas apontam a valorização de saberes que relacionam uma instituição de ensino à eficiência, produtividade, organização e desenvolvimento, que deve funcionar de forma semelhante a qualquer empresa comercial ou industrial. Valores que implicam uma formação que prioriza não só habilidade, mas principalmente atitudes necessárias ao mercado de trabalho capitalista. Em lugar de formação de um trabalhador, o adestramento, a docilização de corpos úteis ao mercado de trabalho. E, para tal modo de funcionamento, é funNiterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 295 damental entender a comunidade como massa homogênea, que aceita e não questiona, que executa e não formula. Para concluir, entendemos que em uma instituição peculiar que se pretende uma universidade tecnológica, na qual convivem níveis de ensino diversos, mesmo em um documento que se enuncie a partir do ponto de vista do Ensino Superior, seria possível identificar diferentes vozes e posicionamentos por meio de marcas explícitas de heterogeneidade. Entretanto, por mais que, reiteradamente, a comunidade seja dividida entre docentes, técnico-administrativos e discentes, é tratada como uma unidade, massa homogênea a quem só se atribuem ações para dar sustentação a projetos alheios. Uma comunidade única oposta, discursivamente, à figura da instituição CEFET/RJ. Abstract Considering the ongoing changes within the federal organization of professional and technological education, this paper aims at discussing the role of discourse as a mechanism of production and maintenance of knowledge and power hegemonic relationships that engender subjectivities in a heterogeneous community as a hegemonic project in an official document from CEFET/RJ. Our goal is to identify the discursive construction of the notion of community, in the sense of a group which holds the discourse that supports the project of institutional transformation from CEFET/RJ to Technological University, considering the way that the document brings visibility to heterogeneity in that institution, in which coexist different levels as high school, technical and graduation as well. To accomplish this task we performed an analysis of CEFET’s Institutional Development Plan. As the theoretical framework is proposed an enunciative discourse analysis, based on the notions of interdiscourse (MAINGUENEAU, 2005), dialogism (BAKHTIN, 2000, 2004) and the relationship among power, knowledge and subjectivity (FOUCAULT, 1987, 1996, 2004). The linguistic analysis leads to a couple of relevant reflections: the first one relates teaching to efficiency, productivity, organization and development as it is the case of any capitalist enterprise where, instead of training the worker, inputs docilization of bodies that may be useful to the market; the second would be the homogenization of the community as a group, that not only sus296 Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013 tains PDI but also provides discursive support to the Technological University project. Keywords: institutional discourse; technological and professional education; subjectivity production; relationship power/knowledge. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004. BRANDÃO, M. 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Além da ADC, o presente estudo procura desenvolver um diálogo transdisciplinar com a pesquisa histórica do contexto em que foi gestada nossa atual Carta Magna, com o Direito Constitucional e a Teoria Geral do Estado, notadamente no que toca ao valor social e jurídico das constituições na contemporaneidade. Para a operacionalização da análise ora desenvolvida, tomamos como instância discursiva de análise a Constituição Federal de 1988, diploma normativo que inaugura o Estado de direito brasileiro, assim como adotamos como referência a discussão que Fairclough (2003) faz sobre a noção de significado acional e a categoria analítica estrutura genérica. Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica, significado acional, estrutura genérica, Constituição Federal. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 Introdução A história das formações sociais é marcada por tensões, conflitos e confrontos de forças ou vontades de diversas ordens que configuram um mosaico de antagonismos sociais extremamente complexo. É uma história de lutas sustentadas por estratégias de linguagem que instauram ordens postas como necessárias e que raramente têm sua dimensão ético-política problematizada (FERREIRA, 2007). A Constituição brasileira é exemplo de um empreendimento discursivo que tem sua história fundada nessas mesmas tensões, que são sempre materializadas na linguagem. O estudo aqui proposto volta-se para a construção do gênero discursivo jurídico-normativo constitucional, a partir de sua dimensão ideológica, procurando compreender como o emprego de formas linguísticas particulares contribui para o estabelecimento e para a sustentação de relações de dominação no interior do discurso e fora dele (THOMPSON, 2009). Para tanto, tomamos como instância discursiva de análise a Constituição Federal de 1988, diploma normativo que inaugura o Estado de direito brasileiro, por meio da fixação de uma ordem simultaneamente jurídica, discursiva e sociológica. Nesse contexto, a perspectiva particular do discurso oferecida pela Análise de Discurso Crítica – ADC, em sua vertente mais proeminente, a Teoria Social do Discurso, de Norman Fairclough (2001; 2003), oferece elementos interessantes para pensarmos o objeto em questão. Toma-se como referencial teórico a compreensão da ADC do discurso como um momento de práticas sociais, dialeticamente interconectado com outros elementos. Partindo do paradigma funcionalista da linguagem, Fairclough (2003) postula que o discurso figura no interior das práticas sociais de três maneiras distintas, como formas de agir, como formas de representar e como formas de ser. Fornece, por essa via, um modelo de análise a partir de três tipos de significados – acional, representacional e identificacional. Para a operacionalização da análise ora desenvolvida, adotamos como referência a discussão que Fairclough (2003) faz sobre a noção de significado acional e a categoria analítica estrutura genérica. Além da ADC, o presente estudo procura desenvolver um diálogo transdisciplinar com a pesquisa histórica do contexto em que foi gestada nossa atual Carta Magna, com o Direito Constitucional e a Teoria Geral do Estado, notadamente no que toca ao valor social e jurídico das constituições na contemporaneidade, assim como no que diz respeito a uma concepção culturalista da Constituição e do Estado, entendendo que o direito é fenômeno social e é norma. Impossível é a pretensão de separar um do outro (REALE, 2010, p. 7). 300 Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 O contexto histórico da década de 1980 e a Constituinte de 1988 Muitos historiadores situam, na década de 1980, um estágio de transformações geopolíticas profundas vivenciadas pelo mundo, ocasionando uma mudança de época. Pode-se dizer que, ao longo desta década, atingiu seu ápice um longo processo, que se estendeu desde o pós-guerra, de superação da idade industrial e início da era da informação ou pós-industrial. O modo de produção capitalista adquiriu um novo rosto, procurando conciliar o ímpeto voraz do mercado em meio às novas demandas do intercâmbio entre nações, com os anseios sociais e com a necessidade de um controle, mesmo que mínimo, do Estado sobre a economia. Todo este contexto produziu reflexos profundos sobre a sociedade brasileira. Durante esta década, o Brasil busca acompanhar a tendência de proliferação de governos neoliberais vivenciada em todo o mundo. Esse direcionamento econômico, que se inicia ainda no período ditatorial, se estenderá durante o processo de redemocratização e será um fator fortemente determinante para a conformação da nova ordem jurídica inaugurada no Brasil com a promulgação da Constituição de 1988, notadamente no que diz respeito à ordem econômica e financeira adotada pelo Estado brasileiro. Justamente por ser um período de superação de uma duradoura ditadura, o anseio por participação nos rumos do país era muito sentido em toda a nação. Nesse ínterim, a população foi mobilizada a interferir nos destinos do Estado. Um movimento emblemático do engajamento político popular que marcou a década de 1980 foi o chamado movimento das “diretas já”. O povo brasileiro foi às ruas, em 1984, para exigir a volta das eleições diretas para presidente. Dentro desse contexto de intensas transformações e de forte apelo popular, configurou-se o ambiente político-jurídico que deu origem à Assembleia Nacional Constituinte de 1987, nascedouro da Constituição Federal promulgada em 1988. As atenções e esperanças dos brasileiros voltaram-se para esse momento histórico de instituição de uma nova ordem jurídico-constitucional no país. Havia um desejo de que ela não só fixasse os direitos dos cidadãos e os institutos básicos da nação, mas também fosse a fonte para solução de uma série de problemas que marcavam a sociedade brasileira àquela época e que estavam, contudo, muito fora do alcance das matérias de uma Constituição (FAUSTO, 2008, p. 288). Jorge Miranda, notável constitucionalista português, ao elaborar um extenso histórico dos sistemas constitucionais mais proeminentes de todo o mundo, dedica uma seção do seu estudo ao constitucionalismo brasileiro. Esse autor, ao fazer sua análise Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 301 da evolução histórica das constituições brasileiras, afirma que o período que se estende desde 1930 até a Constituição atual apresenta algumas notas características, alguns traços essenciais, que o autor reúne em três grandes aspectos: 1) evolução com soluções de continuidade e com frequentes crises político-militares; 2) sucessão, quase alternância de governos autoritários e de governos liberais e democráticos; e 3) proliferação de constituições (5 constituições desde 1934, contra 2 apenas desde a independência até este ano) (MIRANDA, 2002, p. 148). De fato, a história do surgimento do poder constituinte originário, isto é, da necessidade de imposição de uma nova ordem constitucional, vem sendo acompanhada por quadros de grande turbulência, que trazem consigo a marca das revoluções. O Brasil, na condição de um país de dimensões continentais, que teve sua formação étnica e cultural marcada por intensa miscigenação, assim como uma formação política e econômica fincada numa posição de subordinação e dependência (seja do ponto de vista da colonização, seja no âmbito do subdesenvolvimento), não poderia ter o histórico de sua formação jurídico-normativa constitucional isenta dos influxos da complexidade social que o caracteriza historicamente. Esta constatação traz, de imediato, uma importante consequência para a análise que propomos no presente trabalho. Se todos os atos políticos e jurídicos, porque linguísticos, comportam (ou até mesmo exigem) uma abordagem crítica que leve em consideração sua dimensão ético-política, tanto mais o será a Carta Magna de 1988. Isso porque esse documento de índole normativa de status superior possui como traço marcante de sua formação, conforme o percurso histórico aqui apontado procurou demonstrar, o confronto de forças e vontades opostas, a presença de disputas por poder fincadas em realidades históricas, enfim, a luta pela hegemonia dos sentidos (FERREIRA, 2007). Ela pode ser considerada, portanto, uma produção cultural, tanto quanto a decisão política fundamental, que se consubstancia em texto e que atribui fundamento de validade para as demais normas do ordenamento jurídico. Uma das justificativas para a necessidade de uma incursão pela história diz respeito ao interesse de se afirmar, neste trabalho, a dimensão sociológica, culturalista e histórica do discurso jurídico-normativo, dos textos de lei. Todos eles, ao mobilizarem sentidos, ingressam na perigosa trama do discurso e se inscrevem no fluxo da luta hegemônica ou das lutas por representações. Breves considerações sobre o valor social e jurídico das constituições Segundo Bonavides (2001, p. 205): “o poder constituinte é essencialmente um poder de natureza política e filosófica, vinculado ao conceito de legitimidade imperante numa determinada 302 Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 época”. As constituições tais como as conhecemos hoje surgem enquanto fruto de uma reivindicação revolucionária principalmente da classe burguesa, no século XVIII, para reposicionar esta legitimidade de que fala Bonavides − legitimidade de “constituir” e dar as feições do Estado-nação. Para a burguesia, essa legitimação situava-se não mais nas duas titularidades clássicas – a divina e a monárquica –, mas deveria ser entregue à nação, em um primeiro momento, e ao povo, posteriormente, com o advento das sociedades democráticas. Para o constitucionalismo moderno, o chamado neoconstitucionalismo, a Constituição nas sociedades contemporâneas assume um valor normativo supremo, um status de superioridade, que não consiste em uma “verdade” inerente às constituições, mas sim em um valor social, político e ideológico, construto moldado na história de sua evolução, pelo empenho em aperfeiçoar os meios de controle do poder, em prol do aprimoramento dos suportes da convivência social e política. No presente da história, pode-se falar em superioridade constitucional, subordinação a ela de todos os poderes por ela constituídos, o que se manifesta exemplarmente nos mecanismos atuais de controle de constitucionalidade (MENDES & BRANCO, 2011, p. 61). Não se tolera a produção de norma contrária à Constituição, porque isso seria usurpar a competência do poder constituinte. Este, sim, passa a ser a voz primeira do povo, condicionante das ações dos poderes por ele constituídos. A Constituição assume seu valor mais alto por sua origem – por ser o fruto do poder constituinte originário (Ibidem, p. 55). Dessa forma, podemos esboçar, neste ponto da discussão, um quadro preliminar do valor social e jurídico das constituições oferecido pelo Direito Constitucional. Atualmente, nos ordenamentos jurídicos dos países de regimes políticos de índole democrática, as Constituições caracterizam-se por seu status superior. Elas possuem supremacia por consubstanciarem o ideal máximo de representatividade e de expressão da vontade do povo, considerado o titular do poder constituinte, isto é, do poder de “constituir” o Estado, dar as feições da ordem que se sobreleva à nação. Para Bonavides (2001): Nas formas democráticas a Constituição é tudo: fundamento do Direito, ergue-se perante a Sociedade e o Estado como valor mais alto, porquanto, de sua observância deriva o exercício permanente da autoridade legítima e consentida. Num certo sentido a Constituição aí se equipara ao povo cuja soberania ela institucionaliza de modo inviolável. E o povo, em sua potencialidade, numa acepção política mais genérica, deixa de ser unicamente o elemento ativo e militante que faz nas urnas, de modo direto, e nos parlamentos, pelas vias representativas, a vontade estatal, para incluir em seu raio de abrangência toda a nação como um corpo de ideias, sentimentos, opiniões e valores (BONAVIDES, 2001, p. 206). Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 303 Além disso, o regramento constitucional se caracteriza pela absorção de valores morais e políticos, sobretudo em um sistema de direitos fundamentais autoaplicáveis. Tudo isso sem prejuízo de se reafirmar contemporaneamente a ideia de que o poder deriva do povo, que se manifesta ordinariamente por seus representantes. Toda essa carga simbólica de supremacia e ideal de representação compõe o quadro contemporâneo de status das Constituições, como ícone máximo dos princípios democráticos e de efetivação da justiça. “A esse conjunto de fatores vários autores, sobretudo na Espanha e na América Latina, dão o nome de neoconstitucionalismo” (MENDES & BRANCO, 2011, p. 62). Somando-se a essa realidade, e como consequência dela, tem-se proliferado nas maiores democracias do mundo um fenômeno de valorização cada vez maior das Cortes Constitucionais, as Cortes Supremas na chefia do Poder Judiciário, que possuem, entre outras atribuições, a nobre tarefa de zelar pelo ordenamento jurídico e pela “guarda da Constituição”. O crescente desprestígio dos órgãos de representação político-democrática, impulsionado principalmente pelos frequentes escândalos de corrupção, reflete-se em uma onda de supervalorização dos meios judiciais. A análise linguística e socialmente orientada do texto constitucional aqui empreendida pretende, entre outras reflexões, questionar o ideal de máxima representatividade que a Constituição Federal de 1988 tem ostentado desde seu surgimento até os dias de hoje. Nossas considerações recaem, portanto, sobre a problemática que o discurso da representatividade jurídica instaura, a partir do panorama fornecido pelas noções de gênero e estrutura genérica oriundas da ADC. Em outras palavras, que estratégias são mobilizadas para a estruturação genérica de um discurso de representatividade dos anseios do povo na Constituição Federal de 1988? Que vozes estão presentes na construção desse discurso? Quais as estratégias de linguagem postas em cena no desenho das feições do Estado de direito brasileiro? Que representações são mobilizadas? Que exclusões esse discurso legitima? Significado acional e ADC: o gênero discursivo normativo constitucional em questão A Análise de Discurso Crítica é uma abordagem dos fenômenos linguísticos que engloba diversas vertentes, dentre as quais a Teoria Social do Discurso (TSD), de Norman Fairclough, é uma das mais proeminentes. Dada sua notável aceitação e divulgação entre as abordagens críticas da linguagem, tornou-se comum a referência ao pensamento faircloughiano como ADC, prática que, como se pôde perceber em momentos anteriores, está sendo adotada neste trabalho. Desse modo, quando mencionamos ADC neste trabalho, estamos nos referindo à perspectiva proposta por Fairclough. 304 Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 Fairclough (2003) assevera desde o início de seu trabalho que sua proposta de abordagem crítica da linguagem tem um direcionamento interdisciplinar. Sua compreensão do discurso como um momento de práticas sociais, dialeticamente interconectado a outros elementos, tem como uma de suas consequências mais notáveis oferecer um ponto de vista privilegiado acerca das questões de linguagem para estudiosos das diversas áreas das ciências sociais. Em muitas dessas áreas – e o Direito não se diferencia nesse aspecto – frequentemente ocorre o confronto com questões de linguagem e a necessidade de trabalhar com materiais de linguagem, tais como, no caso do Direito, textos escritos, como o são os textos normativos que compõem o ordenamento jurídico. Para operacionalizar sua proposta analítica, Fairclough parte dos postulados da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) de Halliday (1978), que são apropriados com o intuito de alcançar uma abordagem dos aspectos materiais dos textos profícua para os fins da ADC. Na obra Analysing Discourse (2003), Fairclough realiza uma articulação teórica entre as macrofunções de Halliday e os conceitos de gênero, discurso e estilo, para adotar, ao invés das funções da linguagem, três tipos de significados: o acional, o representacional e o identificacional. Esses três tipos de significados dizem respeito a três principais maneiras de o discurso figurar no interior de práticas sociais: como modos de agir (significado acional), como modos de representar (significado representacional) e como modos de ser (significado identificacional) (RAMALHO & REZENDE, 2006, p. 59). Empreendemos uma análise do gênero discursivo normativo constitucional, tomando como instância de análise a Constituição brasileira vigente. Foi adotado o ponto de vista do significado acional, isto é, as formas particulares de ação social por meio dos textos no interior das práticas sociais. Nas palavras de Fairclough, gêneros constituem o aspecto especificamente discursivo de modos de ação e interação no decorrer de eventos sociais (FAIRCLOUGH, 2003, p. 65). Enquanto modo do discurso que figura em práticas sociais, isto é, como uma faceta da ordem de discurso, um gênero pode ser definido como um mecanismo articulatório que controla o que pode ser usado e em que ordem. Assim, quando se analisa um texto em termos de gênero, focaliza-se a configuração e a ordenação do discurso em termos das práticas sociais articuladas para sua produção. Dentre as categorias analíticas empregadas por Fairclough para o estudo dos gêneros, destacamos a estrutura genérica. Inicialmente, a abordagem da estrutura genérica de um texto pressupõe a consciência da volatilidade dos gêneros quando abordados in concreto, seu grau de estabilização relativo. Pressupõe que as propriedades de gêneros concretos variam de diferentes maneiras: em escala de atuação, em grau de estabilização Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 305 e homogeneização, em níveis de abstração etc. (RAMALHO & REZENDE, 2006, p. 62-63). Dessa forma, ao analisar textos concretos segundo a perspectiva do significado acional, antes de se analisar gênero, analisamos a estrutura genérica, isto é, o modo de articulação dos diferentes gêneros presentes e ausentes no uso abordado em particular, de maneira a perceber como o discurso estudado atua no interior das práticas em que se insere, como ele figura no seio das lutas hegemônicas, com tendência para a estabilização e naturalização de representações e identidades, ou em direção à mudança. Essa reflexão é muito cara ao Direito e à abordagem do discurso jurídico. Isto porque o Direito sempre conviveu com a perene contradição entre a necessidade de estabilização de seus institutos e categorias – tendo em vista sua inclinação finalística de estabelecimento de uma ordem, da imposição de um ordenamento – e a igual exigência de dinamicidade, com vistas a acompanhar as mudanças ocorridas no todo social. O ideal da ordem jurídica seria refletir a ordem social, em termos mesmo especulares. E, para muitos juristas e operadores do Direito em geral – por uma ingenuidade indefensável ou por uma disposição volitiva condenável –, esse constitui o ideal sempre perseguido ou, pior ainda, alcançado. A abordagem de um texto em termos de gêneros nos leva a pensar o modo como a forma linguística interioriza e contribui para ações sociais e interações em eventos sociais. A partir dessa constatação, pode-se avaliar um texto particular a partir da escala de atuação do gênero empregado nele. Alguns gêneros são relativamente locais em escala, outros podem ser considerados de escala global (FAIRCLOUGH, 2003, p. 65-66). Dessa forma, podese refletir, acerca do texto normativo constitucional, em termos de qual seria sua escala de atuação e como esse aspecto influenciaria o modo de (inter)ação entre os participantes do evento discursivo em questão, isto é, o Legislador, os cidadãos e o ordenamento jurídico pátrio. Além disso, a abordagem da estrutura genérica nos leva a refletir acerca da mudança de gêneros e da combinação de gêneros. Como já mencionado anteriormente, não há que se trabalhar com uma tipologia fixa de gêneros do discurso, e sim com a constatação de que gêneros particulares são frutos de combinações de gêneros pré-existentes. O discurso, situado no nível das práticas sociais, caracteriza-se por uma cadeia de eventos (prática), que envolve uma cadeia ou rede de formas comunicativas diferentes, que irão caracterizar uma cadeia de gêneros (FAIRCLOUGH, 2003, p. 66). A análise da cadeia de gêneros constitui mais um passo do estudo da estrutura genérica de um discurso concreto. Dessa forma, Fairclough (2003, p. 66) aponta passos fundamentais para o procedimento do estudo da estrutura genérica de um texto: 306 Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 M E N D E S , G . F. ; FORSTER JÙNIOR, N. J. Manual de redação da presidência da república. 2 ed. Brasília: Presidência da República, 2002. 1 a) Análise da cadeia de gêneros; b) Análise da mistura de gêneros em um texto particular; c) Análise de gênero individual em um texto particular: c.1) Atividade; c.2) Relações sociais; c.3) Tecnologia de comunicação. Cada um desses passos representa um nível de abordagem da estrutura genérica; do mais amplo ao mais restrito. Para o estudo da Constituição Federal, texto de natureza normativa que, por um lado, apresenta traços formais tão propensos à regularidade e à objetividade; e, por outro, mobiliza, evoca e busca reunir representações sociais tão instáveis quanto às vicissitudes contingenciais da sociedade que lhe cumpre regulamentar, a abordagem da estrutura genérica poderá ser muito frutífera para lançar considerações relevantes acerca do modo de funcionamento desse discurso no contexto das práticas sociais que o envolvem. No caso do discurso que fornece ocasião para o empreendimento analítico ora em curso, pode-se dizer que os padrões composicionais bastante rígidos e a forte pressão pela estabilização e objetivação das representações postas em cena são marcas que interpelam o analista ao primeiro olhar. O discurso jurídico-normativo constitucional emerge de instituições fortemente tendentes à fixidez. De fato, a própria estruturação do texto, seu modo de organização e sistematização já prenunciam essa disposição à permanência. Procuramos demonstrar neste trabalho que, a par da escolha por formas rígidas de estruturação dos textos jurídicos normativos, não é possível esvaziar o sentido ideológico que se radica no interior dessas formas. Ao contrário, até mesmo a escolha por formas de estruturação tão estáveis e homogêneas contribui decisivamente para compreender a norma jurídica constitucional como um produto ideológico. “O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico” (BAKHTIN/ VOLOSHINOV, 2004, p. 32). Uma marca preliminar dos padrões de estruturação rigorosos diz respeito ao fato de que todo texto normativo produzido no Brasil precisa obedecer à sistemática de organização de matérias expressa no “Manual de Redação da Presidência da República”1, distribuindo-se em: livros, títulos, capítulos, seções, subseções, artigos, incisos, parágrafos, alíneas. É parte da proposta analítica desenvolvida neste trabalho combalir as estruturas do esqueleto firme em que se apoiam as Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 307 representações mobilizadas nos textos jurídico-normativos, especialmente na redação constitucional; e desvelar o encadeamento de valores, o estabelecimento de fronteiras, as assimetrias e disputas por poder que estão presentes na Constituição, assim como estão presentes em qualquer outro texto com inscrição sócio-histórica; e, mais que isso, reclamar atenção séria para essa problemática, a fim de situar as questões éticas e políticas no centro e no princípio dos estudos da linguagem e, porque não dizer, na dogmática e na ciência jurídicas. Fairclough (2003), no interesse de traçar o caminho das pedras a ser seguido pelo analista, realizou um escalonamento do grau de estabilização dos gêneros do discurso, sugerindo uma útil diferenciação entre gêneros situados, gêneros deslocados ou desencaixados e pré-gêneros. Tais espécies genéricas, apresentadas em nível crescente de abstração e generalização, constituem instrumentos indispensáveis para o desvelamento da cadeia de gêneros presente em um texto particular. A análise da cadeia de gêneros diz respeito justamente à identificação das espécies genéricas presentes em um texto, dentro dessa escala apresentada por Fairclough (2003). Portanto, trata-se de saber quais gêneros situados, quais gêneros desencaixados e quais pré-gêneros encontram-se presentes no texto em estudo. Essa tarefa é indissociável do segundo passo no percurso analítico da estrutura genérica: a análise da mistura de gêneros em um texto particular. Isto porque, se o primeiro movimento consiste em identificar, o segundo consiste em avaliar como tais gêneros encontram-se relatados no texto em estudo. Trata-se de saber como os gêneros encontram-se combinados, se de forma competitiva, hierárquica, alternada, ou justaposta. Tendo como base a Constituição, pode-se dizer que o gênero situado em questão é o gênero normativo, o texto de lei, com os traços básicos que já foram mencionados aqui. No que diz respeito aos pré-gêneros, a análise adquire novo impulso. O texto constitucional, dada sua finalidade de dar as feições do Estado de direito, apresenta um pré-gênero principal que o atravessa de ponta a ponta: a descrição. Basicamente, o texto descreve quais os termos da ordem jurídica que se sobreleva à sociedade brasileira, lança os atributos, as características, e define os institutos que irão sustentar a ordem da nação. A par de ser o mais proeminente, a descrição não é o único pré-gênero que compõe a cadeia de gêneros no discurso constitucional. Articulada à descrição, encontra-se também a injunção. A estrutura genérica do texto constitucional caracteriza-se por uma mescla de descrição e injunção, em que a primeira apresenta clara proeminência e manifesta-se no uso de verbos impessoais, de formas sintáticas de oração sem sujeito ou de processos de indeterminação. 308 Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 Descrição Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil [...] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos [...] Injunção Art. 1º [...] Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 5º [...] II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; Art. 5º [...] XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; Art. 4 º [...] Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. Como se pode observar pelos trechos apontados, há uma diferença, mesmo que tênue, entre as construções linguísticas dos dois conjuntos de textos apontados. No primeiro caso, em geral, são formas sintáticas de orações sem sujeito ou de sujeito indeterminado. No segundo, há sempre um sujeito que “age” nas estruturações sintáticas das orações: “o povo”, “ninguém”, “todos”, Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 309 “a lei”, “a República Federativa do Brasil”. São as formas de ação do Estado sobre a sociedade, sua relação com o seu outro, os cidadãos. Na análise da mistura de gêneros, portanto, o aspecto de maior relevância – que atravessa toda a estruturação genérica do discurso jurídico constitucional – é o grau de estabilização e homogeneização das formas, emblemático do impulso em direção à fixidez. O último passo no percurso analítico da estrutura genérica, a análise do gênero individual, proporciona considerações nesse mesmo direcionamento. O estudo do gênero individual empregado em um texto particular inclui a abordagem de três aspectos: atividade, relações sociais e tecnologias de comunicação. Passemos ao estudo desses aspectos, tendo por base a prática discursiva constitucional. Já foi mencionado que os eventos sociais dizem respeito a atividades acima de tudo, tanto em seu aspecto discursivo como não discursivo. Por conta disso, uma distinção preliminar entre eventos sociais em que a atividade de natureza discursiva predomina, em comparação com outras nas quais o discurso, embora presente, constitui elemento secundário apresenta desmembramentos importantes. Esta primeira distinção já se nos apresenta frutífera para a abordagem crítica do discurso jurídico tomado como base para nossa análise: o texto normativo, isto é, a lei (tomada em sentido amplo); o gênero normativo em geral, do qual a Constituição é uma espécie. Qual seria, cumpre questionar, a predominância de atividade nos eventos sociais em que a lei é posta em xeque? Seria a atividade discursiva? De fato, a lei é primordialmente, e originalmente, discurso (e esta afirmação traz consigo desdobramentos muito importantes). Constitui a lei um texto ou um conjunto de textos, uma série ordenada e sistemática de textos que são lidos, escritos, pronunciados, proferidos, remetidos, distribuídos, aplicados. Sob esse ponto de vista, incontestavelmente, a lei é discurso. O raciocínio nessa direção nos faria afirmar a predominância da atividade discursiva no que diz respeito aos gêneros normativos. Contudo, a atividade predominante no discurso jurídico normativo não é a mesma do discurso jurídico dos operadores do direito, por exemplo. A lei exerce um papel muito específico no seio da sociedade, possui, por esse motivo, um poder diferenciado, força cogente e inescusável. A lei se sobrepõe às relações sociais, regendo-as, impondo-lhes limitações, fronteiras (para usar uma expressão mais familiar aos estudos culturais e, portanto, capaz de lançar nova luz sobre o modo como o discurso jurídico “age” sobre a sociedade). Estas fronteiras demarcadas pelos dispositivos de lei, aqui em questão os dispositivos constitucionais, não são sugeridas ou apontadas, são impostas realmente. Impostas, por constituírem fruto de um processo legislativo legítimo, previamente autorizado 310 Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 pela lei ou pela constituição, que tem sua fonte de legitimidade no povo e que se realiza por meio de um sistema republicano democrático representativo. Para além de questionar essa representatividade política – noção que constitui objeto de inúmeros estudos em diversos ramos do conhecimento: Ciência Política, Teoria do Estado, Ciência Jurídica, Ciências Sociais, entre muitos outros –, o presente trabalho propõe questionar a representatividade discursiva, isto é, o discurso que constitui a base para todo esse processo. A questão da predominância de uma ou outra atividade é importante nesta discussão porque pode ser muito esclarecedora da atitude ética de quem se debruça sobre o problema. Isto porque afirmar categoricamente que predomina a atividade de natureza jurídica – afinal a Constituição não é discurso, simplesmente, como as demais produções culturais humanas; ela é, na verdade, uma ordem positiva, que traduz, reflete a ordem social – implica uma postura objetivista de compreensão seja do direito, seja do discurso, seja da ordem social. Implica pressupor uma ordem natural, posta como necessária, que pode ser simplesmente transposta para o texto da lei, já que é anterior à linguagem. É possível traçar um paralelo entre os propósitos de atividade da Constituição, enquanto gênero individual aqui tratado, com a análise da mistura de gêneros outrora feita. Segundo esta, o pré-gênero descritivo surge em proeminência no texto constitucional, combinado com ocorrências narrativas de menor destaque. A estruturação genérica possui, portanto, um direcionamento privilegiado para a exposição, descrição e enumeração dos termos de uma ordem: a ordem jurídica constitucional brasileira. Em termos de gênero e escolhas de linguagem, o Estado de direito não é “construído” discursivamente, mas sim “descrito”, representado (em termos especulares). Um tipo de orientação como esta poderia nos dirigir, de imediato, ao entendimento de que o propósito comunicativo encontra-se privilegiado no nosso gênero de estudo. Afinal, trata-se de dizer, de comunicar aos interessados, os cidadãos, o povo, como é o Estado, quais suas características. Queremos, contudo, desenvolver aqui uma compreensão voltada justamente para o contrário. Pretendemos demonstrar que a construção do discurso constitucional se dá em meio a possibilidades de escolhas éticas, da mesma maneira que qualquer outra forma de discurso, tendo em vista que as decisões de sentido não seguem uma lei natural, sendo tão somente o resultado de elementos contingenciais que definem uma configuração hegemônica específica e constituem um momento particular das lutas por representações. Os significados mobilizados não são verdades pré-existentes à linguagem, mas empreendimentos de representação que se manifestam em estratégias de linguagem como estas aqui analisadas do ponto de vista da estrutura genérica. O propósito da atividade no gênero Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 311 constitucional aqui em estudo é muito mais estratégico, porque dirigido à legitimação de formas de controle social por meio do discurso. O segundo aspecto da análise do gênero individual diz respeito ao estudo das relações sociais que são travadas entre os sujeitos envolvidos na prática discursiva em questão. Em conformidade com o raciocínio que vem sendo desenvolvido até aqui se pode facilmente constatar um elevado grau de hierarquia e distanciamento social entre os sujeitos envolvidos no processo. Constitui um traço marcante na configuração discursiva dos textos normativos – e, neste aspecto, da Constituição, em particular, em função do seu status diferenciado em meio ao ordenamento jurídico – a afirmação da força institucional de que promana o discurso, em detrimento daqueles que a ele se submetem. Há um sujeito autorizado e detentor da voz, que não torna possível o diálogo. Nessa linha de raciocínio, atinge-se, por fim, o último aspecto do estudo dos gêneros individuais, as tecnologias de comunicação. Dentro da classificação proposta por Fairclough (2003), seria possível enquadrar a prática do discurso constitucional como comunicação unidirecional não mediada. Unidirecional porque não oferece ocasião para o diálogo entre as partes – pelo menos não um diálogo imediato. Não mediada porque, a priori, não consiste em um discurso especializado para tecnologias de comunicação mais elaboradas. Esta simples classificação é, contudo, problemática, como toda taxionomia. Isso porque os meios de comunicação institucional têm se diversificado muito em função da oferta de novas formas de transmissão de informação. Exemplos disso são as duas leis recentemente sancionadas no Brasil, pela presidenta Dilma Rousseff, voltadas para aprimorar a transparência dos atos da administração pública em relação a seus usuários, os cidadãos: a lei de acesso à informação (Lei nº 12.527/2011) e a lei que cria a comissão da verdade (Lei nº 12.528/2011). Tem-se construída, portanto, uma ponte de acesso para a promoção de um diálogo entre indivíduos e instituições na contemporaneidade, que pode e deve ser merecedor de atenção renovada por parte dos críticos da sociedade e do discurso. Hoje, a Constituição pode ser acessada através da internet a qualquer momento e, da mesma forma, os atos institucionais que dizem respeito a ela. Os impactos da mediação sobre a ordem do discurso jurídico constitucional na atual sociedade da informação constitui uma temática possível e relevante para prováveis pesquisas. As proposições de Emendas à Constituição, nas Casas do Congresso Nacional, estão disponíveis ao domínio público por meio da internet e da televisão. O julgamento acerca da constitucionalidade das leis e atos normativos pelos membros da Suprema Corte brasileira são televisionados em tempo real 312 Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 para todo o país. Além disso, a comunicação rápida e livre por meio das redes sociais tem sido um portal de acesso à intervenção social e política, sinalizando a formação de um novo tipo de protagonismo político do povo. Trata-se, como se pode observar nas considerações feitas aqui, de uma problemática extremamente complexa, que pode se submeter a análises com vários direcionamentos. Pelo que foi exposto, pode-se perceber que o desvendamento do modo de estruturação genérica da Constituição tem muito a contribuir para a compreensão de como esse discurso atua em meio às disputas por poder e representação, principalmente no que concerne às escolhas linguísticas que antecedem os padrões rigorosos de composição empregados nesse texto, em função do seu ideal de objetividade. Não se deseja, com tais palavras, questionar propriamente o princípio democrático – embora este fosse, talvez, um desejo legítimo – da possibilidade de intervenção do povo sobre a determinação da ordem das leis. Trata-se de descortinar o exercício do poder por meio do discurso, materializado em escolhas linguísticas como essas. Conclusão Pelas considerações até aqui esboçadas, foi possível perceber que a visão de gêneros operacionalizada na ADC é especialmente marcada pela mobilidade e dialogicidade. Não há que se trabalhar com uma tipologia fixa dos gêneros, uma vez que as formas de ação e interação por meio dos textos no interior das práticas sociais são tão voláteis quanto ao contexto sociocultural no qual elas ocorrem. Há uma relação de proximidade dialética muito forte entre gêneros e práticas sociais, “de tal modo que mudanças articulatórias em práticas sociais incluem mudanças nas formas de ação e interação, ou seja, nos gêneros discursivos” (RAMALHO & REZENDE, 2006, p. 62), da mesma maneira que a mudança genérica pode contribuir para a mudança social por meio do discurso. Resumidamente, portanto, no âmbito do significado acional, os gêneros constituem formas de ação por meio do discurso, modos pelos quais discursos agem no interior das práticas sociais concretas. A análise dos dados demonstra que o desvendamento do modo de estruturação genérica da Constituição tem muito a contribuir para a compreensão de como esse discurso atua em meio às disputas por poder e representação, principalmente no que concerne às escolhas linguísticas que antecedem os padrões rigorosos de composição empregados nesse texto, em função do seu ideal de objetividade. As escolhas que antecedem a conformação genérica dos textos da Lei em geral – isto porque muitas das reflexões apliNiterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 313 cam-se à Lei em sentido amplo – e da redação constitucional em particular, tomada no presente estudo como exemplo mais emblemático e, porque não dizer, problemático, das ocorrências destacadas, refletem e refratam um posicionamento ideológico e um direcionamento político claramente ancorados nos anseios do contexto histórico e social em que foram geradas. Mais que isso, tais ocorrências trazem impressas em si marcas sensíveis da disparidade das posições de poder dos sujeitos envolvidos no processamento desse discurso, assim como os rastros da luta hegemônica travada entre eles. Uma das considerações importantes a serem lançadas pelo presente estudo diz respeito ao entendimento de que o Estado de direito, os elementos que o constituem, as regras que regem seu funcionamento são construções sócio-histórico-discursivas, facetas de processos sociais mais amplos. Por esse motivo, a investigação crítica da problemática de sua discursividade reclama de forma precípua a consideração da dimensão ético-política desse empreendimento de linguagem. É na persecução desse olhar sobre a formação discursiva da ordem jurídico-normativa constitucional brasileira que se centra este estudo, procurando compreender as fronteiras estabelecidas na edificação dessa ordem, as escolhas que antecedem a construção dos objetos de linguagem, suas implicações sociais, por intermédio da investigação linguística. Para além desses objetivos, a orientação crítica da proposta de Análise do Discurso de linha faircloughiana relaciona-se ao seu ideal transformador. Assim, é notadamente no caráter emancipatório da disciplina que se acentua sua orientação crítica. Para o estudo de práticas simultaneamente sociais e discursivas tão complexas, tais como a prática jurídica – especificamente neste estudo a prática jurídico-normativa constitucional –, este horizonte oferecido pela ADC pode constituir um contributo indispensável. Segundo esse horizonte, a linguagem nos convida continuamente a intervir nela, com o fim de desvelar posicionamentos ideológicos, relações de dominação e esquiva, disputas por poder, que são travadas em seu interior. A proposta de intercâmbio dialógico entre estruturas e eventos, pela via das práticas, proporciona uma postura revolucionária acerca da linguagem, como espaço privilegiado de intervenção sobre a sociedade, potencialmente geradora da transformação social. Abstract The study proposed here turns to the construction of normative constitutional legal discursive genre, from its ideological dimension, seeking to understand how the use of particular linguistic forms contributes to establishing and sustaining relations of domination within and outside spe314 Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013 ech (Thompson, 2009). It takes as theoretical reference the ADC’s understanding of discourse as a moment of social practices, dialectically interconnected with other elements. Besides ADC, this study seeks to develop a dialogue with transdisciplinary research historical context in which it was gestated our current Constitution, the Constitutional Law and the General Theory of the State, especially when it comes to social and legal constitutions value in contemporary. For the operationalization of the analysis just outlined, we take as an instance discursive analysis the 1988 Federal Constitution, legislation that opens the normative rule of Brazilian law, as well as we adopt by reference the discussion that Fairclough (2003) does about the notion of actional meaning and the analytical category generic structure. Keywords: Critical Discouse Analysis; actional meaning; generic structure; Federal Constituition. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2004. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10ª. ed. 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Mesmo assim, podemos extrair, especialmente a partir de Vigiar e Punir, o significado atribuído ao corpo em sua obra. Para isso, expomos, primeiramente, algumas relações entre corpo e poder disciplinar. Em seguida, discutimos o corpo dentro da sociedade de controle, abordando questões discutidas na contemporaneidade, dentre as quais a exposição espetacularizada do corpo na mídia. Para Foucault, o corpo é ao mesmo tempo um invólucro e uma superfície que se mantém ao longo da História. Ao contrário do sujeito que não existe a priori, que é constituído nas relações de poder-saber, o corpo em Foucault preexiste como superfície e é transformável, moldável por técnicas disciplinares. Em algumas das inúmeras entrevistas dadas por Foucault, ele afirmou que, embora estivesse preocupado em fazer uma história do sujeito moderno, ou seja, uma história da subjetivação, ele também estava preocupado com a história do corpo. Deste modo, concomitantemente à história do sujeito moderno, Foucault fez uma história política do corpo. Essa preocupação foucaultiana com o corpo tem dado interessantes frutos. Vários trabalhos exploram a ação que sofre o corpo pelas técnicas de poder presentes em instituições como escolas, hospitais, prisões, dentre outras. As influências das ideias foucaultianas podem ser encontradas em estudos históricos e em abordagens sobre o corpo na sociedade contemporânea (COURTINE, 2008; VIGARELLO, 2006). A modernidade trouxe consigo todo um conjunto de procedimentos discursivos e institucionais sobre a educação do corpo. Grande parte da obra foucaultiana foi dedicada a compreender um sistema de exercícios corporais que seriam a própria expressão do poder na modernidade. Para Foucault, o corpo é a peça central sem a qual o poder não tem condições de ser exercido. Segundo ele, modernidade e “disciplinarização” do corpo são correspondentes. Ao descrever o funcionamento da sociedade moderna, ele desvendou o funcionamento de uma série de dispositivos disciplinares, presentes no interior das instituições, que tomaram o corpo como objeto de sua ação. Foucault considera o sujeito histórico e constituído pelos acontecimentos discursivos e práticos. Ele problematiza a questão do sujeito em sua relação com o saber-poder, relaciona o poder à construção do verdadeiro de uma época e mostra que a verdade é uma construção histórica. O autor relaciona também o poder ao corpo, visto que sobre o corpo são impostas proibições e obrigações dos sujeitos, tornando-o alvo de controle exercido cotidianamente na vida dos sujeitos. 318 Niterói, n. 34, p. 317-330, 1. sem. 2013 No século XX, segundo Foucault (2005, p. 301), é relevante a importância da Medicina, “dado o vínculo que estabelece entre as influências científicas sobre a população e sobre o corpo”. A Medicina é um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população e que tem efeitos disciplinares e regulamentadores. A norma é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar. Vista por Foucault como uma tecnologia de poder, a biopolítica vai implantar mecanismos que têm funções bem distintas das funções que eram as dos mecanismos disciplinares. Nos mecanismos implantados pela biopolítica, “vai se tratar, sobretudo, é claro, de previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais [...]; de intervir no nível daquilo que são as determinações desses fenômenos gerais [...]. Vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai ser preciso encompridar a vida; vai ser preciso estimular a natalidade” (FOUCAULT, 2005, p. 293). O poder repressor e punitivo, descrito por Foucault, dá lugar à regulamentação da vida, tem a capacidade de produzir alguma coisa relacionada à sua manutenção, de acordo com a liberdade de escolha do sujeito. É a dimensão biopolítica da sociedade de controle, uma forma de poder que rege e regulamenta a vida, assimilando-a e reformulando-a. Trata-se do poder da vida e não sobre a vida. O aparecimento do biopoder sobre o homem enquanto ser vivo gera um poder contínuo, científico, que é o poder de fazer viver. Tudo isso originou duas séries: 1) corpo-organismo (disciplina no corpo individual); 2) população– processos biológicos (regulamentação da vida e da morte). Na opinião de Foucault, o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no ‘como’ da vida, a partir do momento em que, portanto, o poder intervém, sobretudo nesse nível para aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências [...] (FOUCAULT, 2005, p. 295). Ao governar os sujeitos para que tenham uma vida melhor, com saúde e mais longa, a biopolítica faz com que eles produzam mais para a sociedade. O sujeito tem que ser saudável para que seja produtivo socialmente. Desta forma, o poder também é positivo. Na atualidade, é possível identificar a sobreposição de três dispositivos de poder na sociedade. O primeiro deles, magistralmente descrito por Foucault no livro Vigiar e Punir, é o disciplinar. Ele incide sobre a otimização do corpo em termos de um sistema de recompensas em vista de condutas almejadas e de vigilância e correção, para a prevenção ou correção de comportamentos indesejáveis. Ele ainda pode ser observável em instituições seNiterói, n. 34, p. 317-324, 1. sem. 2013 319 miabertas como escolas, empresas, hospitais, como também nas famosas instituições de confinamento, caso dos manicômios e prisões. Ao se dirigir à superfície corporal, esses dispositivos proporcionam uma ortopedia moral e a constituição de um indivíduo normalizado segundo os imperativos morais e até mesmo mercadológicos. O segundo dispositivo é o da segurança, que promete atuar na preservação e no cuidado da vida de uma população biologicamente determinada exigindo, em troca, a restrição de suas liberdades, a obediência a suas normativas e o pagamento adequado de seus impostos. Essa proteção em função dos riscos e perigos internos ou externos possui um elevado ônus, posto que, muitas vezes, está embutida a anuência dos cidadãos à atuação extralegal do Estado e de seus mecanismos diante de outras populações potencial ou realmente consideradas perigosas. O terceiro é aquele dispositivo que não incide, principalmente, no corpo ou, enfaticamente, na vida biológica, mas opera ao nível do controle das mentes, suas aspirações e desejos. Em sociedades mais desenvolvidas, entre as quais o declínio do trabalho material é acompanhado da ascendência do trabalho imaterial, a planta industrial é sucedida da ampliação das organizações transnacionais, muitas delas virtuais, como o Google, cada vez mais as mentes estão em conexão entre si. Daí ser fundamental a criação de sonhos e desejos, dominar e controlar a arte do possível, delimitar as situações nas quais pensamos atuar livremente e assim por diante. Importante é salientar que esses três dispositivos atuam conjuntamente, ainda que seja possível mostrar que no recrudescimento da industrialização houve atuação enfática da disciplina; na formação e consolidação dos Estados nacionais, a acentuada operacionalidade do dispositivo da segurança; e nas sociedades pós-industriais e de serviços, marcadas pela decisiva influência da realidade virtual engendrada pela automação dos processos industriais e dos imperativos midiáticos sobre a política e as ideologias, a predominância dos dispositivos de controle. Corpo e poder disciplinar A sociedade disciplinar se instaura a partir do início do século XVIII (FOUCAULT, 2005), compreendendo todos os dispositivos que regulam hábitos e comportamentos, com objetivos de assegurar a obediência às instituições disciplinares que organizam o campo social. As estratégias utilizadas pela sociedade disciplinar eram centradas no corpo. As tecnologias disciplinares se destinavam a todos os sistemas de vigilância ou instituições disciplinares: a prisão, a fábrica, o asilo, o hospital, a escola, entre outras. Foucault assinala que, no século XIX, o poder assume outro paradigma – o biopoder –, que se caracteriza como um poder exercido por máquinas que organizam o “cérebro e os 320 Niterói, n. 34, p. 317-330, 1. sem. 2013 A noção de espetáculo, desenvolvida por Guy Déb ord (19 97 ), p er m ite -nos re f le t i r sobre a natureza das representações de corpo na sua apresentação contemporânea. O corpo contemporâneo ocupa um lugar central, e nas mídias se torna mais explicitamente um corpo-espetáculo, esta construção se articula fortemente com o consumo: é o surgimento do corpo-mercadoria. E o espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupa totalmente a vida social (DEBORD, 1997). 1 corpos”, um poder responsável não só pelo corpo individual, mas pela vida da população. O poder que toma por objeto a vida em duas funções nas sociedades modernas: “a ‘anatomo-política’ e a ‘biopolítica’ e as duas matérias nuas, um corpo qualquer, uma população qualquer” (DELEUZE, 1992, p. 80). Foucault interpretou o corpo como uma superfície para o exercício de relações de poder, como um “caminho” para a subjetivação. Na opinião de Dreyfus e Rabinow (2010, p. 125), “um dos maiores empreendimentos de Foucault foi sua habilidade em isolar e conceituar o modo pelo qual o corpo se tornou componente essencial para a operação de relações de poder na sociedade moderna”. Para o filósofo francês, o corpo também é uma interpretação dependente de determinado “olhar”, ou seja, o corpo terá diferentes valores, dependendo de quem olha e do lugar de onde ele é olhado. Assim, o valor do corpo depende do lugar que ele ocupa. Essa percepção de Foucault (2007) sobre o corpo pode ser ilustrada com a análise que ele faz da tela de Velásquez “As meninas”, no início do livro As palavras e as coisas. Essa tela retrata o próprio Velásquez pintando um quadro e algumas pessoas ao seu lado observando o modelo que está posando para o pintor, mas que, no entanto, não aparece na tela. Simultaneamente, o artista não pode ver a si mesmo e o objeto de sua representação. Da mesma forma, só podemos olhar para nosso próprio corpo através do olhar do outro e foi assim que Velásquez se retratou, através do olhar do outro. Com isso, Foucault (2007) afirma que todo olhar “já é uma interpretação”, uma posição, um lugar de poder. Que relação pode ser estabelecida entre o corpo e a análise foucaultiana sobre a tela de Velásquez? O corpo é sempre uma interpretação e o olhar interpretativo que o sujeito lança sobre seu corpo depende do olhar lançado pelo outro sobre esse mesmo corpo. Na contemporaneidade, a busca incessante da mulher pela imagem de um corpo “perfeito” reside no desejo de capturar o olhar do outro para o seu corpo. Tendências exibicionistas alimentam as novas modalidades de construção do corpo, numa “espetacularização do eu1”, que visa à obtenção de um efeito: o reconhecimento nos olhos do outro e, sobretudo, o cobiçado fato de ser visto. Nesse contexto, a subjetividade é estruturada em função da superfície visível do corpo, que se torna um espaço de criação e um campo propício para a expressão do que cada um é. Os processos de subjetivação, por meio das relações de poder-saber, como descritas e analisadas por Foucault, atuam sobre o corpo do indivíduo através de técnicas disciplinares, ou seja, por meio do disciplinamento e governo do corpo. As novas formas de subjetivação cada vez mais se relacionam com os modelos idealizados de corporeidade. O culto à magreza e a rejeição dos corpos fora dos padrões dominantes se engajam aos discursos contemporâneos de disciplinamento e de controle dos corpos Niterói, n. 34, p. 317-324, 1. sem. 2013 321 femininos como forma de reafirmar as relações de poder. Assim, possuir um corpo magro, atualmente, está relacionado, também, à questão simbólica do “poder”. Portanto, a sociedade do consumo e do espetáculo, na qual as imagens de mulheres belas, felizes e bem-sucedidas estão sempre em “cartaz”, produz um cenário perfeito para que o sujeito feminino deseje transformar seu corpo para corresponder ao desejo cultural e assim garantir um lugar no palco desse espetáculo e atrair o olhar do outro. Os dispositivos disciplinares contemporâneos utilizam a vigilância fundada em saberes racionais e normativos. Estes “saberes” sempre visam uma maior eficiência do corpo, mais saúde, bem-estar, longevidade etc. Isso torna a vigilância algo desejado e não desprezado. Esta é uma grande astúcia da sociedade de controle: o poder controlador passa a ser desejado como algo positivo e prazeroso. Foucault reforça a produtividade do poder e afirma que ele não é sinônimo de repressão, nem pode ser visto como um produto exclusivo do Estado. Segundo o filósofo, se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos no nível do desejo [...] e também no nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares (FOUCAULT, 2008, p. 148-9). Na afirmação seguinte, a ideia da positividade do poder é reforçada por ele: Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele ‘exclui’, ‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’, ‘esconde’. Na verdade, o poder produz: ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais de verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção (FOUCAULT, 2009, p. 161). [Grifos do autor] O micropoder não tem uma ação exclusivamente negativa, ele pode ser também exercido de forma construtiva. Positivamente, ele produz comportamentos e corpos através de classificações, normatizações e adestramentos. Podemos exemplificar a produtividade do poder com a questão do corpo. Provavelmente, em nenhuma época se falou tanto em corpo como na contemporaneidade. São manuais de conduta, de como alcançar um corpo propagado espetacularmente pela mídia. Há um grande aparato científico em torno do corpo. No campo dermatológico, muitos jovens, desde os 20 anos, visitam regularmente o dermatologista para evitar os efeitos do envelhecimento. Assim, as rugas que surgiriam aos 50 anos são prevenidas precocemente. Ao serem 322 Niterói, n. 34, p. 317-330, 1. sem. 2013 incentivados a praticarem determinados comportamentos, estes jovens produzirão corpos plenamente previsíveis e adestrados. Apesar das vantagens dos saberes normativos, não podemos ignorar o objetivo desses saberes de produzir “corpos dóceis”; corpos submetidos a um regime de poder. Segundo Foucault (2009, p. 118), “esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem um relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’”. No livro Vigiar e Punir Foucault (2009) expõe o funcionamento do “modelo carceral” na sociedade contemporânea de forma mais explícita. Ele resgata o Panoptikon2, estrutura arquitetônica idealizada pelo filósofo e jurista inglês Bentham (1748-1832), para simbolizar o poder disciplinar. As disciplinas se manifestam em sua forma pura e originária na prisão, especialmente na utopia benthaminiana da prisão perfeita, em que o regime de vigilância ocorre de modo ininterrupto e invisível. Dessa maneira, os prisioneiros não sabem “quando” estão sendo vigiados e por isso comportam-se constantemente como se estivessem sendo vigiados. Neste aspecto reside a genialidade e a perversidade do sistema panóptico: mesmo que nenhum vigia esteja na torre, os prisioneiros agem como se estivessem sendo vigiados. Na concepção de Foucault, o panóptico é o dispositivo que melhor caracteriza o poder disciplinar posto ser ele pensado como um sistema arquitetural constituído de uma torre central e um anel periférico que permite a quem se posiciona no centro visualizar tudo e a todos sem que seja visto. Isso faz com que aqueles que são vigiados tenham sempre a sensação de que estão sendo observados, de modo que se pode chegar ao momento em que a consciência da vigilância faz com que seja desnecessária uma vigilância extensa e objetiva. O panóptico de Bentham seria “o princípio geral de uma nova ‘anatomia política’ cujo objeto e fim não são a relação de soberania, mas as relações de disciplina” (FOUCAULT, 2009). Princípio este que, ao aplicar o mecanismo da disciplina, possibilita a construção de um novo tipo de sociedade que se alinha a um modo de aplicação disciplinar. Como bem discrimina Foucault, temos duas imagens da disciplina. Edifício circular em que cada prisioneiro ocupa uma cela, totalmente visível para quem estiver na torre de vigilância situada no centro da construção. Os vigilantes da torre podem ver tudo sem ser vistos pelos prisioneiros nas suas celas. 2 Num extremo, a disciplina-bloco, a instituição fechada, estabelecida à margem, e toda voltada para funções negativas: fazer parar o mal, romper as comunicações, suspender o tempo. No outro extremo, com o panoptismo, temos a disciplina-mecanismo: um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder tornando-o mais rápido, mais leve, mais eficaz, um desenho das coerções sutis para uma sociedade que está por vir. O movimento que vai de um projeto ao outro, de um esquema da disciplina da exceção ao de uma vigilância generalizada, repousa sobre uma transformação histórica: a extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII, sua multiplicação através de todo Niterói, n. 34, p. 317-324, 1. sem. 2013 323 o corpo social, a formação do que se poderia chamar grosso modo a sociedade disciplinar (FOUCAULT, 2009, p. 184). Baseado no panoptismo, o poder disciplinar estabelece uma nova forma de exercício de poder: a vigilância invisível que permite classificar, qualificar e punir. Ao se debruçar sobre as radicais modificações de um poder soberano para as sutis técnicas de poder disciplinar, a partir do século XVII até o século XIX, Foucault mostra como o sujeito deixa de ser supliciado e passa a ser assujeitado ao poder soberano. A maneira como o poder se transforma entre o final do século XVIII e início do século XIX, ou seja, término da sociedade monárquica e começo da sociedade estatal objetiva governar tanto os indivíduos, através de procedimentos disciplinares, quanto a população em geral. O nascimento da biopolítica ocorre no sistema do Liberalismo, um exercício do governo que busca maximizar seus efeitos e reduzir seus custos. Através de uma tecnologia de poder, a governamentalidade tem como foco a população, conjunto de indivíduos que são controlados com o objetivo de assegurar uma melhor gestão da força de trabalho dentro da sociedade capitalista (REVEL, 2005). Em torno das disciplinas impostas ao corpo-máquina e do controle regulador no corpo-espécie desenvolveu-se a organização do poder sobre a vida. Na opinião de Machado (2008), o poder disciplinar age por meio da inscrição dos corpos em determinados espaços, do controle do tempo sobre eles, da vigilância contínua e da produção de saber através das práticas de poder. Nas palavras de Machado, a disciplina é “uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de poder [...]. É o diagrama de um poder que não atua no exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipula seus elementos, produz seu comportamento [...]” (p. 17). No século XX, segundo Foucault (2005, p. 301), é considerável a importância da Medicina, “dado o vínculo que estabelece entre as influências científicas sobre a população e sobre o corpo”. A medicina é um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população e que vai ter efeitos disciplinares e regulamentadores. A norma é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar. Ao governar os sujeitos para que tenham uma vida melhor, com saúde e mais longa, a biopolítica faz com que eles produzam mais para a sociedade. O sujeito tem que ser saudável para que seja produtivo socialmente. Desta forma, o poder também é positivo. Na sociedade monárquica, o poder emanava de uma única pessoa, o rei, e a questão central era a morte. O rei decidia quem iria morrer e não se questionava esse poder que era dado apenas a ele. Na sociedade atual isso não acontece. Hoje, os governantes querem preservar a vida. A governabilidade gira em torno da 324 Niterói, n. 34, p. 317-330, 1. sem. 2013 longevidade dos sujeitos. Não é à toa que a população mundial alcançou o patamar de 7 bilhões de habitantes. Há uma política globalizada para preservar e, consequentemente, prolongar a vida. Isso faz com que os sujeitos sejam produtivos por mais tempo e também consumam cada vez mais. Além do princípio da disciplina, ele descreveu a modernidade por meio de outro conceito, o de biopoder, também fundamental para que se possa abordar o corpo na modernidade. A disciplina recortou o corpo na sua individualidade para a reprodução dos exercícios e a produção dos corpos dóceis, enquanto o biopoder tomou o corpo no conjunto da população, exercendo um exercício de governo da vida por meio do controle dos nascimentos, das mortes, das práticas sexuais, além da moradia, da instrução, do trabalho, tomando os corpos em conjunto e aplicando-lhes as leis e normas (FOUCAULT, 2005, p. 293). Tanto quanto para as disciplinas, o nascimento do “corpo organismo” também foi fundamental para o aparecimento do biopoder, que tomou o conjunto dos corpos dando-lhes a face de uma população. Assim, a disciplina sobre os corpos individuais e o biopoder como um poder sobre a vida das populações compuseram, conjuntamente, todo um arsenal de aparatos dentro das instituições que sustentaram a sociedade moderna e uma forma específica de governo, chamada por Foucault de governamentalidade, que funcionou até bem pouco tempo. Nos anos 80, ele afirmou que estávamos deixando de ser modernos e anunciou que o próximo século seria deleuziano. Corpo e sociedade de controle Na contemporaneidade, a maior atenção dedicada ao corpo e às práticas relacionadas a ele apenas reforça e solidifica seu controle e dominação. É paradoxal a relação entre corpo e poder: quanto maior a atenção sobre o corpo, maior é o controle sobre ele. Na tentativa de compreender a crise da modernidade podemos seguir a sugestão de Foucault, isto é, recorrer às análises de Deleuze sobre a “sociedade de controle”. Para o autor, Foucault demonstrou que os limites temporais do modelo disciplinar estavam claramente demarcados e que este havia entrado em crise na segunda metade do século XX. Deleuze (1992) demonstra a crise disciplinar por meio da crise dos modos de confinamento como a prisão, o hospital, a fábrica, a escola e a família. Do ponto de vista do autor, os confinamentos da disciplina eram moldes produtores de subjetividades, ao passo em que os controles são uma “modulação”, isto é, uma moldagem que pode ser transformada continuamente, produzindo uma situação flexível da subjetividade que é a chave do controle. As antigas instituições, como a fábrica, o hospital, a prisão e a escola se transformaram em empresas, modificando a gramática que havia sido produzida pela sintaxe disciplinar, que se torna obsoleta na Niterói, n. 34, p. 317-324, 1. sem. 2013 325 sociedade de controle. Ao analisarem o conceito deleuziano de sociedade de controle, Negri e Hardt (2004) consideram que a sociedade de controle pode também ser compreendida como uma intensificação das disciplinas. O corpo e a vida são matéria farta para o exercício da disciplina e do biopoder, produzindo corpos dóceis, na sociedade disciplinar. A sociedade de controle, como um novo modelo de sociedade ou como a intensificação das disciplinas, também tem o corpo como substrato de sua produção subjetiva. O que é o corpo no interior da sociedade de controle? Neste contexto há uma intensificação dos controles sobre o corpo, traduzidos em uma ampliação e transformação da biopolítica. Trata-se do surgimento da ideia de que há corpos que podem desaparecer para que outros possam viver seguramente, em um mundo controlado pelas novas modalidades tecnológicas. Por outro lado, há também novas formas corporais de resistência e transgressão, as quais se apropriam das novas tecnologias e das artes, por exemplo. Uma gestão autônoma da vida e do corpo é uma empreitada transgressora no interior das tecnologias de controle. Para Deleuze, “os anéis da serpente são ainda mais complicados que os buracos da toupeira” (DELEUZE, 1992, p. 225-6). No século XX, passamos de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle. Para Deleuze, a sociedade midiática é uma sociedade de controle. Essa sociedade aperfeiçoou as técnicas de controle, que agem quase despercebidas, de modo bastante natural, de maneira sutil, principalmente na publicidade. Na escola, por exemplo, uma técnica de controle é a lista de frequência, que verifica cotidianamente a presença ou não dos alunos na sala de aula. Na opinião do autor, o controle é mais nefasto do que a disciplina. Assim, o século XX foi disciplinador e o século XXI é controlador. Atualmente, há um discurso mercantil, de base econômica e mercadológica, na mídia, que leva o sujeito a consumir comida calórica (fast food) para que seja necessário o uso de produtos ligth e/ou diet, ou então fazer plásticas para ter o corpo cultuado na publicidade desses produtos. Há um investimento político dos corpos nos anúncios publicitários do tipo “como perder 7cm em 10 dias”, “emagreça 5 quilos em dois meses”. Assim, o sujeito é controlado sem perceber. Ele vai fazendo transformações no corpo para entrar na ordem do discurso midiático: “seja magro!”. Esse discurso reafirma o ponto de vista de Foucault (2008, p. 147): “encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: ‘Fique nu... mas seja magro, bonito, bronzeado!’” Não se restringindo mais aos círculos institucionais, as disciplinas refinaram-se, expondo-se como táticas flexíveis de controle e indiciando, conforme Deleuze (1992, p. 216), a reformulação das sociedades disciplinares em sociedades de controle, “que 326 Niterói, n. 34, p. 317-330, 1. sem. 2013 funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea”. Com esta transição, intensificou-se uma biopolítica, que, de acordo com Revel (2005, p. 27), “representa uma grande Medicina Social‟ que se aplica à população a fim de governar a vida”, a fim de impor as formas de “bem-estar social”, inserindo a vida no campo do poder. O biopoder, segundo Gregolin (2007, p. 19-20), “materializa-se no governo de si: o sujeito deve autocontrolar-se, modelar-se a partir das representações que lhe indicam como deve (e como não deve) ser o seu corpo”. Isso remete ao que Foucault denomina governamentalidade, o governo de si e do outro por meio de técnicas que produzem identidades. Há uma moldagem do corpo, que ocorre como uma tática flexível de controle, caracterizando, conforme Deleuze (1992, p. 216), a transição da sociedade disciplinar para a sociedade de controle. A mídia exerce esse controle contínuo, intensificado por uma biopolítica, que se repete sem cessar. O corpo é concebido como “uma realidade biopolítica” (FOUCAULT, 2008), como alvo de uma política de “controle-estimulação” que objetiva trabalhá-lo, produzi-lo, expondo aos sujeitos as maneiras de pensar e de agir “adequadas” para a sociedade e incitando-os à interiorização e à incorporação destas convenções idealmente construídas. As novas tecnologias de gerenciamento da vida e do corpo são corolários de transformações profundas na forma de produção de conhecimento sobre a vida. Com o advento da Biologia Molecular e das biotecnologias, o conceito de vida se transformou em um código a ser desvendado, o DNA. A partir dessa nova categorização da vida, o corpo passou a ser a decorrência de um conjunto de informações que devem ser melhoradas e reproduzidas (ORTEGA, 2008). Assim, a nova gestão do corpo é a administração do corpo saudável, construído por meio de uma alimentação cientificamente balanceada, exercícios físicos controlados, o controle do estresse e da felicidade, específicos para cada singularidade molecular. O controle genético do corpo ainda faz parte de um conjunto de análises futurológicas, embora já existam como rotina em consultórios médicos os exames de detecção de certos tipos de cânceres, como, por exemplo, um tipo específico de câncer de mama. Na presença de marcadores genéticos em exames de sangue, algumas mulheres já realizaram mastectomização preventiva, isto é, a extração das mamas como prevenção, em nome da saúde perfeita. A ideia do risco para a saúde e para o corpo saudável começa a tomar contornos importantes para o biopoder, na medida em que o cuidado para com a vida, já pensado por Foucault como definidor da modernidade, se desloca em virtude da tecnologia. A biopolítica incidirá sua ação no seu objeto de regulação política: a população. A conduta agora não é mais do homem Niterói, n. 34, p. 317-324, 1. sem. 2013 327 como indivíduo disciplinado, mas da população como contingente economicamente regulada. O efeito disso será a construção de uma sociedade que trabalha suas tecnologias de poder no sentido de fazer da ação coletiva, uma rentabilidade cada vez maior. No final do século XIX e início do século XX, o Estado preparou, com toda a sutileza e aprendizado das antigas formas de poder, o que estamos vivenciando cada vez mais no tecido social e dentro de um processo inconsciente: mais do que disciplinar e vigilante, a sociedade se caracteriza por um controle virtual do indivíduo e da população. As novas tecnologias do século XXI (audiovisuais, internet, cartões de crédito etc.), empreendendo o deslocamento das relações de poder para o campo virtual, caracterizam a nova forma do poder: a sociedade de controle. Ao ponderar sobre esse tipo de sociedade, Gregolin afirma que na sociedade de controle (que se desenvolve nos limites da modernidade), os mecanismos tornam-se cada vez mais “democráticos”, cada vez mais interiorizados pelos sujeitos: esse poder é exercido por máquinas que organizam o cérebro (redes de informação) e os corpos (em sistemas de bem-estar, atividades monitoradas etc.) (GREGOLIN, 2007, p. 18). Segundo Deleuze, não vivenciamos mais apenas o confinamento e a vigilância, que sequestram a vida do indivíduo e da massa à qual ele pertence, mas o controle, que modula ilimitadamente a vida. Hardt e Negri (2004) caracterizam a sociedade de controle como um cenário propício e indispensável para a formação e o desenvolvimento do arquétipo representado pela figura do Império e de toda a sua sistemática de regulação e justificação. Para os autores, a sociedade de controle deve ser entendida como aquela (que se desenvolve nos limites da modernidade e se abre para a pós-modernidade) na qual mecanismos de comando se tornam cada vez mais ‘democráticos’, cada vez mais imanentes ao campo social, distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos. [...] A sociedade de controle pode [...] ser caracterizada por uma intensificação e uma síntese dos aparelhos de normalização de disciplinariedade que animam nossas práticas diárias e comuns, mas, em contraste com a disciplina, esse controle estende bem para fora os locais estruturados de instituições sociais mediante redes flexíveis e flutuantes (HARDT e NEGRI, 2004, p. 42-3). Palavras finais A imagem do corpo se tornou imprescindível, de modo que podemos afirmar que hoje o eu é o corpo. A subjetividade foi reduzida ao corpo, sua imagem, saúde, juventude e longevidade. O predomínio da dimensão corporal na constituição identitária permite sugerir, como fez Ortega (2005), a existência de uma “bioidentidade”. Como afirma o autor, se, por um lado, para 328 Niterói, n. 34, p. 317-330, 1. sem. 2013 construir a “bioidentidade”, é preciso se submeter a uma bioascese, ou seja, adequar o corpo às normas científicas existentes sobre a saúde, os exercícios físicos, a longevidade, a nutrição; por outro, é preciso ajustar o corpo às normas e padrões da sociedade do espetáculo. Não possuímos uma visão pura do nosso próprio corpo, mas somente uma “interpretação” acerca dele, bem como dos outros corpos. Assim como se modificam historicamente as condições concretas de produção social, política e econômica dos corpos, mudam-se de forma igualmente histórica as condições da sua estetização. É redundante afirmar que as concepções e padrões estéticos se transformam ao longo da história. Basta notar que o século XX foi muito rico em diversidade estética, fazendo, literalmente, desfilar na passarela da mídia sucessivas modas, recorrências, variados padrões corporais e também tecnologias, muitas delas médicas, de produção e modelagem dos corpos segundo uma estética corporal que se modifica historicamente. Não é o corpo que muda ao longo do tempo, mas sim o nosso olhar/ discurso sobre ele. Abstract In this paper, we reflect about the biopolitics of the body through the effects of meanings produced by the mechanisms of power / knowledge in the discourse of self-care and how the disciplinary and control devices act on the body presented in media. Keywords: biopolitics; body; control. REFERÊNCIAS COURTINE, Jean-Jacques. O corpo anormal – História e antropologia culturais da deformidade. In: CORBIN, A.; COURTINE, J-J.; VIGARELLO, G. (Orgs.). História do Corpo: 3. As mutações do olhar. O século XX. Tradução Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 253-340. 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Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 330 Niterói, n. 34, p. 317-330, 1. sem. 2013 A pequena família guineana: abordagem discursiva do continuísmo histórico num discurso pela independência Beatriz Adriana Komavli de Sánchez (UERJ) Resumo O propósito deste trabalho é analisar o discurso oficial pela independência da Guiné Equatorial pronunciado por um mandatário espanhol, representante do ditador Francisco Franco, no 12 de outubro de 1968. Esse pronunciamento faz parte de uma pesquisa maior que se propõe a explicitar a noção de Hispanidade. O 12 de outubro, data da chegada de Cristóvão Colombo na América, conhecida como ‘descoberta’ da América, foi justamente escolhido pelas autoridades guineanas daquele momento para comemorar a independência da jovem nação africana. A essa peculiaridade soma-se o fato da Guiné Equatorial ser a única nação africana que tem como língua maioritária oficial o espanhol. Guiados pela visão dialógica bakthiniana, adotamos como marco teórico a Análise do Discurso (AD) que considera os estudos enunciativos. Observamos uma rede de filiações identitárias que se tecem entre a Mãe pátria e a ex-colônia africana. A instância subjetiva que se manifesta num tom de exaltação está em consonância com um continuísmo histórico no que diz respeito à língua espanhola e a valores morais perpassados pela religião cristã. Isso se faz patente sobre tudo na reescritura do processo da colonização espanhola. Palavras-chave: pequena família; independência; Guiné Equatorial; Análise do Discurso; Hispanidade. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013 Introdução Este trabalho tem como objetivo analisar um documento histórico, o discurso oficial de 12 de outubro de 1968 pronunciado pela independência da Guiné Equatorial. Esse pronunciamento faz parte de uma pesquisa maior que se propõe a explicitar a noção de Hispanidade. Consideramos o discurso apresentado um achado no decorrer de nossa pesquisa historiográfica, não só no sentido de algo encontrado, resgatado da memória institucional, mas também e, sobretudo, pela conotação de riqueza, uma vez que à força da data da ‘descoberta’ da América soma-se o fato muito curioso, peculiar, de ter sido escolhida pelas próprias autoridades guineanas daquele momento justamente para proclamar a independência dessa nação africana. Além disso, esse tipo de discurso, com essas formações discursivas relativas à língua, à religião e aos valores morais nos pareceu de reaparição tardia uma vez que na América, a partir de 1950, esses pronunciamentos sofrem um apagamento frente ao avanço do multiculturalismo como movimento político. O interesse é redobrado na medida em que a Guiné Equatorial é a única nação africana que tem como língua majoritária oficial o espanhol, fato muito pouco conhecido até pelos próprios hispano-falantes e estudantes de língua espanhola como LE. Esclarecemos que além do espanhol são línguas oficiais o francês, em segundo lugar desde 1998, e o português, em terceiro, desde 20/07/2012. Ressaltamos que estas línguas são segundas em relação a outras nativas tais como o fang e o bubi, entre outros grupos étnicos. Por si só esses dados instigam o interesse de um estudo, mas em nosso caso as repercussões foram redobradas na medida em que nos levou a constatar regularidades e, como consequência do anterior, nos possibilitou repensar critérios de recorte de nossa investigação. Marco teórico Passamos, então, a expor algumas considerações sobre o dia festivo, comemorativo pelo 12 de outubro. Essa data vigente no calendário oficial espanhol e em muitos países hispanofalantes tem sido objeto de ressignificações ao longo do tempo. Esse fato, por si só, indica que o/s sentido/s tem/têm se deslocado. Os discursos pelo ‘Dia da Raça’, ‘Dia da Hispanidade’, vigoraram com força entre finais do século XIX e a primeira metade do século XX e respondem a circunstâncias históricas e políticas muito particulares. Esses discursos oficiais, pronunciados por presidentes ou altos mandatários do governo, tratavam de um âmbito não de objetos materiais senão de dependências simbólicas e de parentesco. Esse vínculo exaltado com a ‘mãe pátria’ foi tão relevante que se materializou não só em outros domínios associados, tais como nas políticas educativas e nos posicionamentos políticos das Academias de Língua e Letras da América de aquela época, 332 Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013 como na criação de uma bandeira da raça, hinos e numa série de práticas sociais. Atualmente, a construção de um arquivo com estes pronunciamentos se nos apresenta como uma tarefa instigante e desafiadora. Sua leitura, sua descrição hoje, provoca um efeito de raridade que, segundo Foucault ([1969]1995), faz com que pertençam a um espaço privilegiado, “entre a tradição e o esquecimento”, uma vez que o regime de enunciabilidade tem mudado: A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que fora de nós, nos delimita. A descrição do arquivo desenvolve suas possibilidades (e o controle de suas possibilidades) a partir dos discursos que começam a deixar de ser os nossos. (idem, p. 150-151) A visão dialógica de Bakthin e a Análise do Discurso de linha francesa que considera os estudos enunciativos ajudarão a destacar algumas marcas linguísticas da rede de filiações identitárias que se teciam entre a Espanha e as ex-colônias materializadas nos discursos oficiais pelo 12 de outubro. O gênero pronunciamento é assim caracterizado por Daher (2000): No gênero pronunciamento político, o enunciador costuma anunciar de forma explícita a quem se dirige, embora possa dirigir-se a muitos outros destinatários que não os diretamente anunciados, valendo-se de outros recursos. Estes direcionamentos podem ser recuperados nos discursos por meio de diferentes marcas linguísticas. Outra particularidade desse discurso político presidencial é a de que o enunciador tem garantido pelo poder do cargo empírico que ocupa o direito ao pronunciamento - já que seu papel social assim o autoriza e legitima. A certeza de um auditório no qual se incluem não só os destinatários explicitamente designados por ele em seu discurso, mas uma multiplicidade de “ouvintes” é outra marca importante desses discursos. (DAHER, 2000, p. 86) Foucault, em sua arqueologia, afirma que os limites do enunciado são os outros enunciados com os quais se pode estabelecer um espaço de correlações, na medida em que tratam do mesmo domínio de objetos, e mais ainda: “não há enunciado que, de uma forma ou de outra, não reatualize outros enunciados” ([1969]1995, p. 113). Essa relação não só é possível de ser estabelecida com outros enunciados passados como também condiciona, inaugura, um leque de relações possíveis futuras. Aqueles enunciados renegados são reformulados por Maingueneau (2008, p. 37) em termos de ‘interdito’ de um discurso, do ‘dizível faltoso’. Esses vínculos conformam um jogo enunciativo que é preciso examinar. Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013 333 Nesta aproximação destacamos o processo designativo que conforma, desenha objetos de discurso. Esse processo compreende estratégias de substituição, de paráfrases, de sinonímia, etc, criando, por um lado, a ilusão de uma equivalência entre as palavras e, por outro, a estabilização do referente. Esse processo funciona simultaneamente descrevendo e qualificando. Orlandi (apud KARIM, 2001, p. 83-108) refere-se a dito mecanismo em termos de reescritura. Para a autora, a reescritura é um mecanismo constitutivo da linguagem que nos possibilita nomear algo ou alguém de modos diferentes, parafraseando-o. Do conflito, da tensão que subjaz entre a paráfrase (o mesmo) e a polissemia (o diferente), surge o sentido como efeito. Para melhor entender e contextualizar nossa aproximação ao processo de descolonização africana, recorremos aos aportes de Anderson ([1983] 2011), obrigatórios para compreender o surgimento de uma nação. Em sua clássica obra de referência para os estudiosos das ciências sociais, Anderson (idem, p. 32) assim define o conceito de nação, guiado por uma visão antropológica: “uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”. “Imagina-se” e não “inventa-se”, uma espécie de fraternidade horizontal que atravessa todos os integrantes que, sem se conhecerem, conformam esse conceito moderno aglutinante que se materializa em práticas. Anderson, no capítulo 6, intitulado ‘A última onda’, aborda de maneira geral o surgimento das nações nos territórios coloniais na África e na Ásia. Afirma que nos novos estados da segunda pós-guerra “um enorme número dessas nações veio a ter línguas oficiais europeias, ...herança do nacionalismo oficial imperialista” (p. 164-5). O autor afirma que a criação e difusão de instituições de ensino possibilitou a formação de quadros de funcionários e intelectuais bilíngues que seriam os dirigentes das novas nações. Aventuramo-nos a pensar que nesse aspecto a jovem Guiné não foi exceção nessa ‘última onda’ de surgimento de nações. Uma festa compartilhada pode cumprir a função de afiançar, também, laços culturais. A propósito das festas nacionais, Tateishi (2005, p. s/d) aponta dois tipos de celebrações da memória pública: “a que insiste na continuidade da nação desde o passado histórico, e a que celebra a nação moderna a partir da ruptura com o passado”. Conflitos internos na Espanha adiaram a definição de uma data comemorativa nacional até que as celebrações pelo IV Centenário da Descoberta da América em 1892, logo a perda em 1895 de Cuba e de Porto Rico em 1898, o crescente expansionismo dos Estados Unidos na América, a tentativa fracassada no norte da África e os regionalismos internos aceleraram a necessidade de reatar laços com as ex-colônias americanas, agora estimadas como ‘filhas’ sob um novo prisma da política externa, cujo pro334 Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013 pósito era recuperar um prestígio perdido. Para isso, seguindo a Tateishi (2005), a mãe pátria recorre a seu passado exaltando-o. A coincidência da data com o dia festivo religioso da Virgen del Pilar, aliada à ideologia dessa hispanidade, mostrou-se muito eficaz para consolidar a data comemorativa: “trata-se assim de pôr de manifesto a pureza moral da nacionalidade espanhola: a categoria superior, universalista, de nosso espírito imperial, da Hispanidade, (...) defensora y missioneira da verdadeira civilização, que é a Cristiandade” (VALLS, 1999 y ABÓS, 2003, apud TATEISHI, 2005, p. s/d). No entanto, a festividade só ganha estatuto legal no 9 de janeiro de 1958. Segundo o mencionado autor, a festa do 12 de outubro na Espanha não se encaixaria em nenhum dos dois tipos apontados no parágrafo anterior. Nesse sentido é coincidente com Juliá (1990) que, em seu artigo jornalístico Vieja nación, fiesta imperial, assim qualifica esta comemoração “festa impossível da nação espanhola”. Se é imperial, se é impossível para Espanha, como qualificá-la para as ex-colônias? Na América, a proposta, feita pela União Ibero-Americana em 1912, de adotar a data do 12 de outubro como Dia da Raça foi rapidamente acolhida por muitos governos. Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez, a partir da organização política das comunidades indígenas, pelo decreto no 2028 de 10 de outubro de 2002, rebatiza a data que atualmente celebra o Dia da resistência Indígena. Mais próximo temos o decreto 1584/2010 sobre feriados nacionais e dias não laboráveis da atual presidente argentina, Cristina Kirchner, quem assim redesigna a data: Dia do Respeito à Diversidade Cultural. Como qualificá-la quando essa data que celebra também um outrora império é escolhida por dirigentes da nascente nação africana para celebrar a independência, justamente a ruptura com um passado? Não restam muitas opções; trata-se, então, de celebrar um continuísmo. Para entender esses deslocamentos de sentido, é mister considerar que até a metade do século XX predominou uma maneira única, monolítica, de entender a unidade cultural de cada nação que dá lugar, na segunda metade desse século, ao multiculturalismo. Heymann (2007, p. 16-17) aponta que, em escala mundial, esse processo foi motivado: pela desagregação da União Soviética, pela descolonização da África, pela constituição de novos blocos econômicos (UE e Mercosul), pelo processo de globalização e pelos movimentos migratórios. Grupos inteiros que tinham permanecido no esquecimento, neste caso os descendentes que restaram das diversas comunidades indígenas, lutaram pelos seus direitos e reivindicaram seu lugar na memória agora transformada em valor, um dever moral de reconhecer múltiplas identidades, tal como aponta Heymann (2007). Consideramos então que é esse novo regime de enunciabilidade que nos possibilitará a descrição discursiva. Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013 335 Contextualização do discurso Pág i n a of icia l do Governo da República da Guiné Equatorial: ht t p://w w w.g u i neaecuatorialpress.com/ Consulta realizada em 15/11/2012. 1 336 É indispensável fazer um percurso histórico, nem que seja sucinto, para melhor entender as condições de produção do pronunciamento objeto deste trabalho. Com essa finalidade destacamos alguns fatos relevantes que foram pesquisados pela internet, já que nos defrontamos com a inexistência de obras ou artigos sobre a história da Guiné Equatorial em importantes bibliotecas universitárias. Esse apagamento da história é muito significativo. Durante a segunda metade do século XV o território da atual Guiné Equatorial foi objeto de interesse da Coroa Portuguesa para o comércio de escravos. Em 1777 Espanha e Portugal assinam o Tratado de São Ildefonso pelo qual passa a ser possessão espanhola. Em 1827 Espanha autoriza a exploração para a Coroa Britânica. Em 1861 para colonizar e retomar o controle, Espanha envia pela força um contingente de cubanos. Logo após a perda de Cuba em 1895 e de Porto Rico em 1898, últimos bastiões do poderio espanhol, cresce o interesse pelo território africano. Na Conferência de Berlim realizada em 1888, as nações imperiais europeias repartem o território e a fatia que corresponde a Espanha diminui. Essa redução acentua-se com o Tratado de Paris em 1900. Durante a Primeira Guerra Mundial e a Guerra Civil Espanhola cresce o interesse colonizador, são criadas instituições educativas e há investimento sanitário. Um ministro espanhol visita pela primeira vez a colônia em 1948, agora rentável pela produção e exportação de café e de madeiras. O primeiro movimento insurgente Monalige (Movimento de Liberação da Guiné) tem aparição em 1952. Em 1959 a colônia passa a ser considerada uma região espanhola e a população passa a ter os mesmos direitos que os colonos. Quatro anos após ganha o status de autonomia. Todas essas bondades não foram suficientes e as Nações Unidas continuaram pressionando para fixar uma data para a libertação do território guineano. Em 1967 uma conferência institui-se no intuito de criar uma Constituição. A partir dela há liberdade para a criação de partidos políticos e livre expressão de ideias, fato curioso, pois esses eram diferenciais com relação ao território espanhol daquela época, sob o poderio franquista. Das primeiras eleições surge Francisco Macías Nguema como presidente, fruto de uma coligação governamental. Foram as próprias autoridades que escolheram a data do 12 de outubro para celebrar a sua independência. Logo após, a jovem nação independente passa por um período negro, coincidente com a época das ditaduras sofridas em vários países. Macías se adjudica plenos poderes, suspende a constituição de 68, a população sofre com derramamento de sangue e terror, e até ordena a queima de bibliotecas, como nos velhos tempos do nazismo1. O atual e segundo presidente da Guiné Equatorial é Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, no poder desde 1979. A página oficial Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013 do governo, logo embaixo da portaria, apresenta assim o país: Um país cujo desenvolvimento cresce dia a dia. O brasão de armas tem o lema Unidade, Paz, Justiça. É o país africano com maior PIB per capita e seu índice de desenvolvimento (IDH) é 0,538, ainda distribuído de forma muito desigual. Esse crescimento em grande parte se deve à produção e exportação de petróleo e gás desde 19902. Aproximações ao discurso de 12 de outubro de 1968 Dado s ob t ido s de h t t p ://w w w. b r a s i le s col a.com/ge og rafia/guine-equatorial. ht m Con su lt a r ea l izada em 16/11/2012. 3 Dada a extensão do discurso não o apresentamos em anexo. Remetemos o leitor a http:// e s .w i k i s o u r c e . o r g / wiki/Discurso_del_12_ de_octubre_de_1968_ por_la_independencia_ de_Guinea_Ecuatorial Consulta realizada em 06/04/2012. 4 (1) A pr udê ncia do Caudilho da Espanha; (2) Uma data histórica exemplar: 12 de outubro; (3) A independência da Guiné Equatorial, no marco da emancipação africana; (4) Problemas e esperanças da nova etapa; (5) A obra da Espanha na Guiné; (6) O início da descolonização; (7) A Guiné Equatorial não está sozinha; (8) Língua espanhola; (9) Harmonia racial; (10) Guiné independente e Espanha. 2 A sessão foi realizada no Salão do Trono do Palácio Presidencial em Santa Isabel de Fernando Poo, no dia 12 outubro de 1968. Foi pronunciado pelo representante do chefe do Estado Espanhol, Francisco Franco, o Ministro de Informação e Turismo, encarregado de Assuntos Exteriores, D. Manuel Fraga Iribarne, ante o presidente da República da Guiné Equatorial, D. Francisco Macías3. Para nosso pesar, nossas buscas pelo discurso do primeiro presidente guiné-equatoriano foram infrutíferas. O discurso divide-se em dez tópicos e tem uma extensão de sete páginas. Apresentamos os títulos desses tópicos numerados esclarecendo que a nossa tradução de todos os fragmentos citados se encontram nas notas finais: (1) La prudencia del Caudillo de España; (2) Una fecha histórica ejemplar: 12 de octubre; (3) La independencia de Guinea Ecuatorial, en el cuadro de la emancipación africana; (4) Problemas y esperanzas de la nueva etapa; (5) La obra de España en Guinea; (6) La puesta en marcha de la descolonización; (7) La Guinea Ecuatorial no está sola; (8) Lengua española; (9) Armonía racial; (10) Guinea independiente y España4. Como em todo discurso, outras vozes comparecem de maneira mais ou menos explícita, direta ou indiretamente, para conformar sua malha. Apresentamos essas vozes seguidas de números entre parênteses que indicam a localização nos tópicos acima numerados. São estas as marcas de heterogeneidade discursiva: o então vice-presidente do governo espanhol, o Almirante Carrero Blanco (6); um lema (‘o melhor índio é o índio morto’); um historiador (Toynbee) e o filósofo mexicano José Vasconcelos. Ressaltamos que essas três últimas vozes são trazidas no tópico (9) Harmonia racial. A título de interdiscurso são lembrados: duas sessões da Conferência Constitucional celebrada no Ministério de Assuntos Exteriores Espanhol, presididas por Fernando María Castiella; um referendum e duas eleições (6); as Nações Unidas e a Organização da Unidade Africana (7). Chamaram em especial nossa atenção as designações relativas a Francisco Franco e à colonização espanhola. Apresentamos a seguir um levantamento não exaustivo do processo de reescritura desses e de outros objetos do discurso. Destacamos que no tópico (1) o Ministro Iribarne insta que se renda homenagem a Franco. Já a colonização espanhola é designada em outros termos. Em todo o discurso só há uma ocorrência da palavra descolonização no subtítulo (6). Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013 337 Francisco Franco: A prudência do Caudilho da Espanha; Sua Excelência o Chefe do Estado espanhol; sua previsão; sua prudência; a altura de suas ambições e a firmeza de seus propósitos; o generalíssimo Franco, o homem clarividente e veraz; a decisiva parte; o artífice com vocês da prazerosa e esperançosa realidade (1); nosso Chefe de Estado (10). 6 A colon i zação da Guiné: uma obra (1); uma história que acaba; o início de uma longa e difícil empresa; a incorporação ao Cristianismo e à Civilização um vasto cenário geográfico e um enorme conjunto de povos dispares; uma “Política de Missão” (2); a obra providente da Espanha ao longo de quase dois séculos de vida em comum (4); A obra da Espanha na Guiné; sua presença nestas terras; nossos missionários; a doutrina redentora do Cristianismo; uma enorme força moral; a possibilidade de entrar num âmbito de ideias e de conceitos; o acesso ao mundo da civilização cultural e técnica; a primeira etapa –etapa fundacional e transcendental -da presença da Espanha na Guiné (5). 7 Espanha: o seio da Espanha (2); a cujos filhos (8). 8 A independência da Guiné: o nascimento de um novo Estado (1); outra história que começa; uma nova filha emancipada da tutela materna, uma nova nação independente (2); neste momento histórico; o berço desta nação que vai nascer (3); neste momento transcendental (4); a independência destas terras (6); a aparição de uma nação soberana cuja Constituição (8); uma nação independente, encarregada de realizar seu próprio destino; o Estado nascente; o momento da separação jurídica e política entre a Espanha e a República da Guiné Equatorial; o primeiro dia na história livre da Guiné Equatorial (10). 9 A língua espanhola: o vínculo mais forte; a segunda do mundo pelo número de nações e de gentes que a cultivam li5 338 Francisco Franco: La prudencia del Caudillo de España; Su Excelencia el Jefe del Estado español; su previsión; su prudencia; la altura de sus miras y la firmeza de sus propósitos; el Generalísimo Franco, el hombre clarividente y veraz; la decisiva parte; el artífice con vosotros de la gozosa y esperanzadora realidad (1); nuestro Jefe del Estado (10)5. A colonização da Guiné Equatorial: una obra (1); una historia que acaba; la iniciación de una larga y difícil empresa; la incorporación al Cristianismo y a la Civilización un vasto escenario geográfico y un enorme conjunto de pueblos dispares; una “Política de Misión” (2); la obra providente de España a lo largo de casi dos siglos de vida en común (4); La obra de España en Guinea; su presencia en estas tierras; nuestros misioneros; la doctrina redentora del Cristianismo; una enorme fuerza moral; la posibilidad de entrar en un ámbito de ideas y de conceptos; el acceso al mundo de la civilización cultural y técnica; la primera etapa –etapa fundacional y transcendental –de la presencia de España en Guinea (5)6. Espanha: el seno de España (2); a cuyos hijos (8)7. A independência da Guiné Equatorial: el nacimiento de un nuevo Estado (1); otra historia que comienza; una nueva hija emancipada de la tutela materna, una nueva nación independiente (2); en este momento histórico; la cuna de esta nación que va a nacer a la independencia (3); en este momento transcendental (4); la independencia de estas tierras (6); la aparición de una nación soberana cuya Constitución (8); una nación independiente, encargada de realizar su propio destino; el Estado naciente; el momento de la separación jurídica y política entre España y la República de Guinea Ecuatorial, el primer día en la historia libre de Guinea Ecuatorial (10)8. A língua espanhola: el vínculo más fuerte; la segunda del mundo por el número de naciones y de gentes que la cultivan literaria y coloquialmente; su segunda lengua de cultura; su lengua para la relación universal, la que les abre las puertas del mundo; el precioso legado de un idioma universal; un lazo; la lengua española como su idioma oficial(8)9. A grande família: una gran familia de pueblos, de distintas razas y en varios continentes, compañía segura y leal; esa gran familia, unida entre sí por lazos de comunidad y no de sociedad, historia común, el mismo Dios en el mismo idioma, de la vida idéntico sentido transcendente; los lazos de esta familia, lazos familiares; lazos flexibles, cambiantes en lo contingente, inconmovibles en la intimidad, de profunda identificación; en el seno de esta familia, que es una familia vuestra, entrañablemente acompañados; el día de la gran fiesta familiar, el Día de la Hispanidad (7); doscientos millones de hispanoparlantes (8)10. A pequena família: otra pequeña familia, una familia restringidísima que es la inmediatamente nuestra; nuestros dos pueblos; cuyos lazos; vuestra mejor compañía, unos estrechos lazos de amistad, de ayuda mutua, de relación constante (10)11. Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013 Continuação notas 9, 10 e 11. terária e coloquialmente; sua segunda língua de cultura; sua língua para a relação universal, a que abre as portas do mundo; o preciosos legado de um idioma universal; um laço; a língua espanhola como seu idioma oficial(8). 10 A grande família: uma grande família de povos, de distintas raças e em vários continentes, companhia segura e leal; essa grande família, unida entre si por laços de comunidade e não de sociedade, história comum, o mesmo Deus no mesmo idioma, da vida idêntico sentido transcendente; os laços desta família, laços familiares; laços flexíveis, mutáveis no contingente, incomovíveis na intimidade, de profunda identificação; no seio desta família, que é uma família de vocês, intimamente acompanhados; o dia da grande festa familiar, o Dia da Hispanidade (7); duzentos milhões de hispanofalantes (8). 11 A pequena família: uma outra pequena família, uma família restringidíssima que é a imediatamente nossa; nossos dois povos; cujos laços; vossa melhor companhia; uns estreitos laços de amizade, de ajuda mútua, de relação constante (10). Resolvemos designar o enunciador que depreendemos deste discurso como ‘enunciador bom missionário’, seguindo a lógica imperialista exposta, se a própria colonização só é designada e assumida em termos de uma política de missão, ‘a obra’ só está completa com a emancipação dos filhos que agora civilizados e cristãos não mais dependem da sua tutela. A tentativa renegadora é tão forte que só verificamos uma única ocorrência da palavra descolonização no subtítulo (6). Nesse sentido nos chamou a atenção uma série de negativas que merecem um comentário na medida em que são condizentes com a tentativa de silenciar um passado imperial e, pelo signo religioso, transformá-lo numa obra missionária. Trata-se das seguintes negações polêmicas: a) Porque Espanha não praticou jamais uma política misericordiosa, de exploração econômica, de manutenção do nativo no terror, na ignorância e na doença. (3) Não há condições, não temos colocado a vossa independência o menor marco. (10) c) Nem a Espanha nem os espanhóis sentiram-se nunca alheios, indiferentes ou superiores àqueles povos com os que conviveram e aos que incorporaram à civilização ocidental e cristã. (10) Consideramos que (a) e (c) refutam argumentos contrários à colonização de detratores não identificados, enquanto (b) possivelmente responde tanto a pressões internas da Monalige quanto externas, exercidas pelas Nações Unidas e outras organizações africanas. Considerações finais As aproximações ao discurso de 12 de outubro de 1968 pela independência da Guiné Equatorial mostraram-se muito profícuas por vários motivos. Mais uma vez confirmamos que a noção de hispanidade que se depreende dessa materialidade linguística se afasta da definição ampla e vaga encontrada nos dicionários. Ao mesmo tempo verificamos a insistência da exaltação da língua espanhola e de valores morais sob o signo do cristianismo, sem distinção de continentes. Essas formações discursivas atravessaram mares e deixaram uma impronta nos territórios colonizados pela coroa espanhola. Sob a visão espanhola daquela época, há uma grande família conformada por todas as nações cristãs, de língua espanhola e com idêntico sentido transcendente, um vínculo horizontal que superaria as fronteiras geográficas. Há também ‘outra pequena família’, esta pequena família é a guineana e é pequena porque aponta aos vínculos bilaterais entre a Espanha e a jovem nação africana. Além disso, repetimos, é a única no continente africano que tem o espanhol como língua oficial majoritária. É tão pequena que quase é invisível até para os próprios hispanofalantes, hispanistas e alunos de espanhol como língua estrangeira. Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013 339 Com este trabalho também confirmamos mais uma vez que a data de 12 de outubro serviu de cartaz político para a Espanha resgatar um prestígio internacional perdido. A hispanidade de finais do século XIX e da primeira metade do XX foi fortemente marcada pelo conservadorismo e na Espanha pelo nacional-catolicismo de Franco. Nesse sentido coincidem vários autores como Glozman (2008), González (2005) e Tateishi (2005). Para finalizar apontamos que desde a segunda metade do século XX o multiculturalismo começa a se projetar como movimento político e esfarela e dessacraliza, por assim dizer, uma visão monolítica de língua e de cultura. Abstract The purpose of this work is to analyze the official speech given by a Spanish authority, representative of the dictator Francisco Franco, in October 12 of 1968, which was related to the independency of the Equatorial Guinea. This pronouncement is part of major research proposed to explicit the notion of Hispanicity. October the 12th, day of the arrival of Christopher Colombus in America, also known as the “discovery” of America, was chosen by Guinean authorities of the time to celebrate the independency of the new African nation. An additional peculiarity of the Equatorial Guinea is its uniqueness as the only African nation to have Spanish as the main official language. Guided by the dialogical bakthinian vision, we adopt as our theoretical standpoint the Discourse Analysis (DA), which takes into account enunciative studies. We observe a net of identity affiliations that is interweaved between the Mother Nation and the African ex-colony. The subjective instance that is manifested in an exaltation tone is in concordance with a historical continuism with respect to the Spanish language and the moral values steeped by the Christian religion. This is mostly observed in the rewriting of the process of Spanish colonization. Keywords: small family; independency; Equatorial Guinea; Discourse Analysis; Hispanicity. REFERÊNCIAS ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. 2a reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 340 Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013 DAHER, Maria C. F. G. Discursos presidenciais de 1o de maio: a trajetória de uma prática discursiva. Tese de doutorado em Linguística Aplicada ao ensino de línguas. PUC-SP, 2000. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 4a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, [1969]1995. GLOZMAN, M. La Academia Argentina de Letras y el peronismo (1946-1956). Anclajes XIII, 2008, p. 129-144. GONZÁLEZ, M. M. Hispanidad e Hispanismo para profesores brasileños de Español. XI Congreso Brasileño de Profesores de Español, 2007, Salvador. Actas del XI Congreso Brasileño de Profesores de Español. São Paulo: Librería Española e Hispanoamericana - Casa del Lector, p. 2-8. 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Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013 341 Resenhas Foi “análise de discurso” que você disse? Silmara Dela Silva ORLANDI, Eni Pulcinelli. Foi “análise de discurso” que você disse? “Análise de discurso: Michel Pêcheux.” Textos selecionados por Eni Puccinelli Orlandi. Campinas-SP: Pontes Editores, 2011. Acontece que tem sido qualificado como “análise de discurso” toda prática que deriva seja do campo das leituras de arquivo (desde que corpora sejam constituídos), seja do campo da análise linguística do “fio do discurso” (desde que esse “fio” ultrapasse as fronteiras da frase). (PÊCHEUX, 2011, p. 147) Falar de Michel Pêcheux (1938-1983) é, sem dúvida, falar de um teórico que não se esquivou dos desafios de seu tempo. Como filósofo, trouxe em seus escritos a reflexão sobre a epistemologia e os limites da ciência, questionando fronteiras entre disciplinas. Como analista de discurso, propôs o estudo de um novo objeto – o discurso – contemplado por uma teoria discursiva que se questiona sobre a materialidade dos sentidos e, desse modo, constitui-se no entremeio, no espaço em que a linguagem se inscreve na história. Ler Michel Pêcheux é, ao mesmo tempo, deparar-se com a sua densa reflexão teórica e com a angústia de se fazer ciência – e ciências humanas – em seu tempo. Mas é também, sem nenhuma dúvida, constatar a relevância e a atualidade de seu pensamento, e a coragem de sua proposta teórica que, ao inscrever-se no entremeio, coloca questões para diferentes campos do saber, desloca sentidos aceitos como evidentes, abala certezas diante do positivismo científico. É um panorama do pensamento de Pêcheux, exposto em alguns de seus escritos entre meados da década de 1960 e início de 1980, que encontramos na obra “Análise de discurso: Michel Pêcheux”, organizada pela professora Eni Puccinelli Orlandi, publicada pela Pontes Editores no final de 2011. A obra, que está em sua terceira edição, reúne textos menos conhecidos do autor francês, alguns deles publicados postumamente. Como bem sintetiza Orlandi em sua apresentação do livro, são textos menos conhecidos porque foram “publicados em revistas de pouca circulação, ou apresentados em colóquios e mesmo em jornais.” (2011, p. 14). São textos menos conhecidos, mas não menos relevantes para a compreensão do pensamento de Michel Pêcheux: nesse Gragoatá Niterói, n. 34, p. 345-349, 1. sem. 2013 Michel Pêcheux foi pesquisador do Departamento de Psicologia no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), o centro nacional de pesquisas na França. 1 346 conjunto de 18 escritos, vemos a marca da inquietação teórica, da “inquietação do discurso”, como afirma Denise Maldidier (2003), ao relatar o percurso de Pêcheux na formulação de sua teoria do discurso. São textos que trazem a marca da reflexão sobre a linguagem que se faz, a cada momento, por uma tomada de posição, como nos diz o próprio Pêcheux ([1983] 1990). Apresentar este conjunto de textos é, antes de mais nada, um desafio: em razão da intensa reflexão teórica que neles se materializa, qualquer tentativa de síntese será sempre redutora. Ainda assim, dizer sobre eles é uma necessidade frente ao cenário atual em que o fazer pesquisa em ciências humanas em geral e, em particular, em linguística, apresenta-se ainda marcado por dificuldades e limitações muito semelhantes àquelas constatadas por Pêcheux em seu texto “As Ciências Humanas e o ‘Momento Atual’” (1969), um dos artigos que compõem este livro. Dizer sobre esta obra é também uma necessidade diante do cenário da própria análise de discurso na atualidade. Como nos adverte Pêcheux, no fragmento de mais um dos textos do livro – “Leitura e Memória: Projeto de Pesquisa” (1990) –, que trouxemos como epígrafe para esta resenha, são inúmeras as práticas de análise que reivindicam para si a chancela da análise de discurso, ainda que nem todas essas perspectivas trabalhem, de fato, a relação entre linguagem, sujeito e historicidade na constituição dos efeitos de sentido. É diante dessa aparente perda das origens, desse esquecimento com relação ao que de fato constitui o objeto discurso, que retomar a leitura de Pêcheux e de sua proposta teórica configura-se como um gesto necessário e urgente também no “momento atual”. Como seria impossível discorrermos adequadamente sobre o conteúdo dos 18 artigos que compõem a obra nesta breve reflexão, propomos apresentá-la a partir da organização dos escritos que a compõem em três eixos temáticos que, a nosso ver, sintetizam esse conjunto de reflexões pecheutianas. São eles: i) a reflexão sobre a ciência e o fazer científico; ii) a reflexão sobre a linguagem e a sua relação com a teoria do discurso; iii) a proposta de uma teoria do discurso e a abordagem de noções que constituem o seu quadro teórico. No primeiro eixo temático, a que chamamos a reflexão sobre a ciência e o fazer científico, estão os escritos que materializam a preocupação do filósofo Michel Pêcheux com as ciências humanas, de um modo geral, e com as especificidades e limites de seus campos de atuação, quais sejam as ciências sociais e a psicologia social, em particular.1 É nesse eixo temático que incluímos seis artigos de Pêcheux, a saber: “Reflexões sobre a Situação Teórica das Ciências Sociais e, Especialmente, da Psicologia Social”, texto assinado sob o pseudônimo Thomas Herbert, de 1966; “Nota Sobre a Questão da Linguagem e do Simbólico em Psicologia”, escrito em parceria com Françoise Gadet, Claudine Haroche e Paul Henry, Niterói, n. 34, p. 345-349, 1. sem. 2013 O livro de Françoise Gadet e Michel Pêcheux foi publicado na França em 1981, com o título La langue introuvable. No Brasil, A língua inatingível: o discurso na história da linguística tem a sua primeira publicação em 2004. 2 em 1982; “As Ciências Humanas e o ‘Momento Atual’”, de 1969; “Posição Sindical e Tomada de Partido nas Ciências Humanas e Sociais”, de 1976; “Foi ‘Propaganda’ Mesmo que Você disse?”, de outubro de 1979; e “As Massas Populares são um Objeto Inanimado?”, de 1978. Para além dos questionamentos sobre a ciência, que tomamos como eixo norteador, nesse primeiro conjunto de artigos vemos, de fato, uma variedade de questões sendo contempladas, que incluem desde análises de práticas e dizeres correntes à época, das quais destacamos as considerações de Pêcheux sobre as propagandas governamentais, no artigo “Foi ‘Propaganda’ Mesmo que Você disse?”, até a reflexão sobre a prática militante e o posicionamento teórico, em “Posição Sindical e Tomada de Partido nas Ciências Humanas e Sociais”. Entretanto, o caráter inovador dessas reflexões de Pêcheux está em considerar a relação de todas essas práticas com a linguagem. Como nos diz Orlandi, em sua apresentação da obra, a partir de Pêcheux, “sabe-se que nada, nenhum campo de conhecimento, é indiferente à linguagem.” (2001, p. 12, grifo da autora). A reflexão sobre a linguagem é o ponto alto de um segundo conjunto de textos que encontramos nesta obra. Nesse segundo eixo temático, a que chamamos a reflexão sobre a linguagem e a sua relação com a teoria do discurso, incluímos cinco textos, que são: “Há uma via para a Linguística Fora do Logicismo e do Socilogismo?”, escrito em parceria com Françoise Gadet, em 1977; “A Língua Inatingível”, entrevista de Pêcheux e Françoise Gadet por ocasião do lançamento do livro “A língua intangível” ([1981], 2004),2 que seria publicada apenas em 1991; “A Aplicação dos Conceitos da Linguística para a Melhora das Técnicas de Análise de Conteúdo”, de 1973; “Análise Sintática e Paráfrase Discursiva”, escrito em parceria com Jacqueline Léon, em 1980, e publicado em 1982; e “Efeitos Discursivos ligados ao Funcionamento das Relativas em Francês”, de 1981. Desse segundo conjunto, destacamos o diálogo dos dois primeiros textos com a obra “A língua inatingível”, de Pêcheux e Gadet ([1981], 2004), na reflexão acerca de uma nova via para a linguística e os estudos de linguagem, para além dos extremos que sempre pautaram os estudos linguísticos, que são o estudo da forma ou o estudo das determinações sociais sobre o linguístico, e o deslocamento da análise discursiva em relação à hermenêutica, especificamente abordada no texto “A Aplicação dos Conceitos da Linguística para a Melhora das Técnicas de Análise de Conteúdo”. Justamente como a via para além do logicismo e do sociologismo, e como um modo de se pensar o sentido para além do conteúdo é que se configura a proposta teórica da análise de discurso de Michel Pêcheux. Na relação entre o estudo da forma e as suas implicações para o discurso se centram os outros dois artigos que incluímos nesse eixo temático, que tomam como ob- Niterói, n. 34, p. 345-349, 1. sem. 2013 347 jeto, respectivamente, a análise sintática e as orações relativas em francês, de uma perspectiva discursiva. Como podemos observar, a reflexão de Michel Pêcheux sobre a linguagem já se faz, desde o seu início, a partir de um posicionamento teórico que não pressupõe a imaginária neutralidade do cientista, mas a posição de teórico, o lugar do fazer científico como um lugar dentre outros. É nesse lugar que Michel Pêcheux institui a posição de analista de discurso. A apresentação da perspectiva teórica da análise de discurso e algumas considerações sobre o seu quadro teórico são o cerne do terceiro eixo temático em que organizamos os textos desta obra. Nesse caso, temos sete textos, a saber: “Língua, ‘Linguagens’, Discurso”, de 1971; “Especificidade de uma Disciplina de Interpretação (A Análise de Discurso na França)” e “Sobre os Contextos Epistemológicos da Análise de Discurso”, publicados apenas em 1984; “Análise de Discurso e Informática”, de 1981; “Leitura e Memória: Projeto de Pesquisa”, publicado somente em 1990; “Ideologia – Aprisionamento ou Campo Paradoxal?”, de 1982; e “Metáfora e Interdiscurso”, também com publicação póstuma, em 1984. Os textos que compõem este último eixo temático em muitos pontos dialogam com as obras mais clássicas de Pêcheux, que apresentam a análise de discurso por ele proposta em diferentes momentos, dos quais podemos mencionar “Análise Automática do Discurso” ([1969] 1997a), “Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio” ([1975] 1997), e “O discurso: estrutura ou acontecimento” ([1983] 2008). Além de apresentar o traçado geral da análise discursiva, nesse conjunto de textos, Pêcheux aborda noções teóricas fundantes, como ideologia, interdiscurso e metáfora. O nosso gesto de divisão dos artigos que compõem este livro em três eixos temáticos, de fato, é apenas um dentre os vários gestos de leitura possibilitados por esses escritos, bem como pela obra de Pêcheux como um todo. No conjunto desses textos, questionar o lugar da ciência e as suas fronteiras não se faz sem uma preocupação com a linguagem que, por sua vez, é fundante para a proposta da análise de discurso enquanto disciplina. Falar em Michel Pêcheux e de seus escritos, como já nos advertia Orlandi (2008), é levar em conta o entremeio, esse lugar de fronteiras móveis, de reconhecimento de questões que ficam e que sempre retornam, porque estão sempre já-lá. Ao apresentar essa coletânea de produções de Michel Pêcheux, traduzida por pesquisadores ligados à análise de discurso no Brasil, Eni Orlandi destaca essa organização como sendo mais uma de suas homenagens a Pêcheux, cujas ideias chegaram ao Brasil, no início da década de 1980, justamente trazidas por ela. De fato, é também de Orlandi e do grupo de pesquisadores da análise de discurso que se desenvolveu no Brasil, a partir da leitura 348 Niterói, n. 34, p. 345-349, 1. sem. 2013 de Pêcheux, a tradução de praticamente a totalidade das obras de Pêcheux que temos hoje publicadas no país. A organização e publicação de “Análise de discurso: Michel Pêcheux” é, sem dúvida, mais uma homenagem a Pêcheux, mas, como nos lembra Orlandi (2011), não é a única. A homenagem a Michel Pêcheux se presta no dia a dia dos analistas de discurso em atuação nas diversas instituições de ensino e pesquisa brasileiras, que estabelecem com a teoria discursiva uma relação teórica consistente. Como afirma Orlandi, na apresentação da obra que organiza: “... não se ‘recebe’ simplesmente um autor. Estabelece-se uma relação com a obra deste autor, sempre a partir de uma posição nossa em nossa tradição de reflexão e na história do conhecimento que produzimos no Brasil.” (2011, p. 13). É por isso que diante da interrogativa que trouxemos para o título desta resenha, parafraseando o título de um dos artigos de Pêcheux que compõem esta coletânea, podemos responder: é “análise de discurso” sim que dissemos. Análise de discurso que se constitui a partir da leitura dos textos fundadores de Michel Pêcheux, parte deles reunidos nesta obra. Contudo, uma análise de discurso que continua a escrever a sua história, sem deixar de considerar aquilo que é próprio ao discurso, esse seu objeto: a relação com a linguagem, com os sujeitos, com a ideologia. REFERÊNCIAS GADET. F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível: o discurso na história da linguística. Tradução de Bethania Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas-SP: Pontes Editores, 2004 [1981]. MALDIDIER, D. A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux hoje. Tradução de Eni Puccinelli Orlandi. Campinas-SP: Pontes Editores, 2004. ORLANDI, E.P. Ler Michel Pêcheux hoje. In: Análise de discurso: Michel Pêcheux. Textos selecionados por: Eni Puccinelli Orlandi. Campinas-SP: Pontes Editores, 2011. p. 11-20. ______. Nota ao leitor. In: PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. 5 ed. Campinas-SP: Pontes Editores, 2008. p. 7-9. PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. 5 ed. Campinas-SP: Pontes Editores, 2008 [1983]. ______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni P. Orlandi et al. 3 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997 [1975]. ______. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso. Tradução de Bethania Mariani et al. 3ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997a [1969]. p. 61-161. Niterói, n. 34, p. 345-349, 1. sem. 2013 349 Gumbrecht: latência na história José Luís Jobim (UFF) GUMBRECHT, Hans Ulrich. After 1945: Latency as Origin of the Present. Stanford: Stanford University Press, 2013. Na leitura do novo livro de Hans Ulrich Gumbrecht, duas dimensões chamam a atenção: uma diz respeito à forma, outra ao conteúdo. No que diz respeito à forma, é importante assinalar que se trata de uma obra que não segue estritamente o padrão de textos acadêmicos, com um enunciador distanciado de terceira pessoa. Em After 1945: Latency as Origin of the Present, há também um enunciador que é narrador-personagem, produzindo opiniões em primeira pessoa. De fato, no livro convivem os dois tipos de enunciador, e o leitor atento já pode perceber isso a partir do sumário: lá se podem encontrar formulações mais tradicionais, como pares opositivos (No Exit / No Entry; Bad Faith / Interrogations; Derailment / Containers) ou titulações que parecem remeter a elaborações conceituais (Forms of Latency), mas também se apresenta a voz de um narrador-personagem em primeira pessoa (Unconcealment of Latency? My Story with Time). Este narrador-personagem produz um efeito de subjetividade confessional e reflexiva. A reflexão não serve apenas para ilustrar alguma argumentação produzida, mas ganha extensão e densidade, ao dialogar intensamente com a teorização que se elabora, mesmo contra o desejo de Gumbrecht, que declara: “Não tive intenção de desenvolver, ilustrar ou aplicar nenhuma “teoria” (muito menos “método”) – entretanto muito do meu trabalho com o problema existencial tirou proveito e dependeu do pensamento de muitos predecessores, colegas e estudantes.” O efeito de subjetividade confessional ganha verossimilhança não somente nas suas menções mas também nas suas omissões, como a de nomes de personagens que se relacionam com o narrador-personagem. Como exemplo do primeiro caso, podemos citar os familiares; como exemplo do segundo, o de Hans Robert Jauss (citado pela relação funcional como ex-orientador, não pelo nome). O resultado final da mistura do texto “objetivo” com o “subjetivo” é interessante, porque há uma certa direção de sentido conduzindo o leitor a entender as conclusões a que chega o narrador-personagem na parte final do livro como relacionadas à argumentação “objetiva” anteriormente produzida. Quanto à estruturação do conteúdo, ao elaborar uma descrição de algumas situações culturais da década de 1945-1955, procurando depreender a stimmung (o clima, a atmosfera sóGragoatá Niterói, n. 34, p. 351-354, 1. sem. 2013 cio-cultural) daquele período, Gumbrecht, entre outras coisas, seleciona um universo de autores e textos que ele interpreta como sendo instâncias comprobatórias da existência dos topoi por ele organizados em pares nos capítulos da obra, como títulos. Esses pares designariam uma direção de sentido disseminada amplamente. Por exemplo, em relação ao par No Exit / No Entry (sem entrada/ sem saída), Gumbrecht afirma: “O desespero de não ser capaz de sair e o desespero de não ser capaz de entrar (…) são onipresentes em textos da década seguinte ao fim da segunda guerra mundial – não somente em textos daquelas culturas cujas nações participaram nas ações militares.” Como a escolha dos autores e obras é feita em função de uma demonstração da existência de lugares-comuns, configurados nos pares que dão título a capítulos, o repertório de textos escolhidos para análise segue essa lógica, e é bem eclético quanto ao gênero e à qualidade. No caso dos textos mais próximos dos estudos literários, a seleção abrange autores mais valorizados pela tradição recente, como Becket, Camus, Faulkner, Gottfried Benn, Paul Celan, Bertolt Brecht, Boris Pasternak, Francis Ponge, Jean-Paul Sartre, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, e autores que só são lidos por professores de literatura como dever profissional, como Giovannino Guareschi, Yuri Triponov, Luis Martín-Santos. No entanto, há também textos filosóficos, matérias de jornal, cartas. De fato, Gumbrecht não entra na questão do mérito (ou da ausência dele) no universo textual abordado, já que faz dele um uso demonstrativo, por assim dizer. Ao tematizar a situação do pós-guerra, ele a interpreta como “global”, porque envolveria uma rede de desafios, preocupações e encaminhamentos de soluções que afetariam não somente as nações mais intensamente envolvidas no conflito, mas também outras, como o Brasil. Alguns contornos daquela situação, segundo ele, ainda estariam presentes hoje, mas a percepção disso não seria a mesma do passado. Gumbrecht desenvolve bons argumentos para sustentar que os temas, provocações e tarefas daquele período não eram percebidos então como novos ou surpreendentes, mas como problemas recorrentes, derivados de tempos anteriores. Ele aponta a emergência de um sentimento crescente de impaciência e frustração sobre a escassez de soluções à vista, e considera isso como resultado da ausência de novas respostas a antigas perguntas. Claro, nem sempre se conhece a abrangência do que pode vir a ser articulado como pergunta (ou como resposta), e o livro busca, entre outras coisas, tematizar a situação de latência, conceito chave no livro: “Em uma situação de latência e na presença de um clandestino nós estamos certos de que algo (ou alguém) tem uma articulação material, que significa que requer espaço. Obviamente, não somos nem capazes de dizer exatamente de onde vem essa certeza nem onde o que está latente poderia precisamente estar. E 352 Niterói, n. 34, p. 351-354, 1. sem. 2013 porque não estamos familiarizados com a identidade do objeto ou pessoa latente, não temos garantia de que poderíamos reconhecer o latente se em algum momento aparecesse. Evidentemente o que está latente pode muito bem modificar-se enquanto permanece indetectável. No entanto, o mais importante é que não temos razão para acreditar – nenhuma razão sistemática, pelo menos – que aquilo que uma vez se tornou latente vai algum dia se mostrar ou tornar-se completamente esquecido.” O narrador-personagem argumenta que a vida de sua geração foi marcada pela expectativa e pela esperança de que algo “latente” viria à tona e se mostraria, permitindo aos membros dessa geração escaparem da longa sombra de um Stimmung cuja origem nunca foram capazes de identificar. Essa expectativa e esperança de um desvelamento da latência e, por consequência, de um sentimento geracional de “redenção” nunca teria sido preenchida. Gumbrecht considera que aquilo que emergiu depois de 1945 não poderia realmente ser chamado de “latência”, embora fosse possível descrever como Stimmung, isso é, tanto como uma atmosfera abrangente quanto como um clima experimentado subjetivamente: “Recordar-se de Stimmungen pode dar a certeza retrospectiva de que algo negligenciado, ignorado, e algumas vezes mesmo perdido teve um impacto decisivo na vida de um momento histórico – e frequentemente continua a ser parte do que compõe cada presente subsequente.” O uso do termo cronótopo (criado por Bakhtin para configurar o tempo em correlação com o espaço e uma weltanschauung inserida em determinada forma), para designar uma certa construção de sentido do tempo, foi uma opção interessante também, porque remete a um tempo significativo, ainda que efetivamente venha a significar coisas diferentes. E o que veio a significar, para o narrador-personagem? Em suas próprias palavras, ele declara: “Cresci com a expectativa de que um dia alguma coisa se tornaria clara, alguma coisa que eu não sabia – que eu acreditava não saber ainda – o que era.” Ao resumir, então, sua experiência com o cronótopo de sua geração, o narrador-personagem elabora sobre o seu passado e de sua geração: “Então minha história com o tempo (e, de novo, eu assumo que não foi somente minha história individual) foi uma expectativa constante e constantemente frustrada de que algo crucial se mostrasse – e o esforço de uma vida inteira para adaptar as visões de futuro e passado a esse ciclo repetido de expectativas e frustrações.” Por outro lado, o modo de dar sentido ao tempo será, na visão do narrador, diferente para seus netos do que foi para ele, porque o futuro não será mais experimentado como um horizonte de possibilidades a partir das quais se podem fazer escolhas, Niterói, n. 34, p. 351-354, 1. sem. 2013 353 mas como uma multiplicidade de ameaças vindo em direção do ser humano. A exaustão de recursos naturais do planeta e o aquecimento global, frutos da ação humana no passado, não são algo que pode ser deixado para trás, mas, isto sim, algo que invade o presente dos netos do narrador. Um presente cada vez mais alargado de simultaneidades, em que, inclusive por causa das tecnologias cada vez mais desenvolvidas de armazenamento de dados, nada é deixado de lado. Com um presente que se alarga cada vez mais, surgiria a impressão de que nos encontramos em um momento de estagnação, e de que o tempo não seria mais agente de mudança, mas, se não é possível mais deixar nada para trás, também não é possível descartar completamente o cronótopo anterior: “... meus netos podem continuar a usar e reciclar os conceitos do velho cronótopo – embora ele não mais corresponda ao comportamento cotidiano deles dentro das dimensões modificadas do passado, futuro e presente.” Ponto a ser destacado, segundo o narrador, é como o novo cronótopo do presente estendido se relaciona com um período de latência na década posterior à segunda guerra mundial: “Parece uma hipótese plausível que o período pós-guerra de latência foi uma primeira ruga no correr sem obstáculos do ‘tempo histórico’, isto é, uma primeira ruga no ‘tempo histórico’ como um cronótopo cujas três condições chave de deixar o passado para trás, atravessar um presente de mera transição e entrar no futuro como um horizonte de possibilidades tinham sido tão consideradas como garantidas por gerações anteriores que elas confundiam essa topologia específica com o ‘tempo em si’ ou com a ‘história em si’”. Refletindo criticamente sobre a geração que passou por isso, o livro de Gumbrecht é uma contribuição marcante para uma melhor compreensão do passado e de seus efeitos no presente e na imaginação sobre o futuro. 354 Niterói, n. 34, p. 351-354, 1. sem. 2013 Organizadores deste número BETHANIA MARIANI Com Pós-doutorado pela Stanford University (USA), é professor associado IV da Universidade Federal Fluminense (UFF), bolsista 1C do CNPq (com projeto em vigor entre 2011 e 2014); entre 2008/2011 recebeu bolsa Cientista do Nosso Estado pela FAPERJ. É parecerista ad hoc do programa PROCIENTISTA da UERJ, e, também, atua como parecerista para FAPERJ, FAPESP, FAPEMIG, CNPq, CAPES, UNESB, PUCCAMP, UNICAMP, dentre outras instituições. É membro da ABRALIN, da ALED e integra Comitê Editorial de Revistas Científicas. É especialista em Análise do Discurso, em História das Ideias Linguísticas e em Psicanálise. Coordena o Laboratório Arquivos do Sujeito (www.uff.br/LAS) que tem parceria com laboratórios nacionais e internacionais. Além das atividades de docência, pesquisa e orientação, foi chefe de departamento em três diferentes períodos. Constituiu e coordena o Grupo Teorias do Discurso (GTDIS). Coordena o projeto Divulgação Científica em Análise do Discurso: investigação e inovação (FAPERJ, 2013/15). Além de artigos em revistas científicas e capítulos de livros, publicou vários livros, dos quais citamos dois, estes em parceria com outros pesquisadores, Discurso e... e Discurso, arquivo e..., ambos publicados pela FAPERJ (2012). VANISE MEDEIROS Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com estágio de doutorado-sanduíche na Universidade Paris 3 (França com bolsa CAPES), é professor adjunto III, com dedicação exclusiva, da Universidade Federal Fluminense (UFF), atuando na área de Letras (graduação e pós-graduação), com ênfase em Linguística, Análise de Discurso e História das Ideias Linguísticas. Coordena a Linha 2 (Teorias do texto, do discurso e da interação) da Pós-Graduação em Estudos de Linguagem. É bolsista 2 do CNPq e Jovem Cientista do Estado pela FAPERJ. Integra e coordena com Bethania Mariani o Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS), com parcerias com os laboratórios Corpus (UFSM) e EL@DIS (USP-Ribeirão Preto). É membro do grupo de pesquisa interinstitucional GTDIS (Grupo de Teoria do Discurso). Publicou vários artigos, capítulos de livro e livros. Dentre suas mais recentes publicações estão os livros Ideias Linguísticas: formulação e circulação no período JK (2011) e Discurso e... (2012) em parceria com Bethania Mariani, o livro Discurso, arquivo e... (2012), com Bethania Mariani e Silmara Dela-Silva, e o livro Dois campos em (des) enlaces: discursos em Pêcheux e Lacan (2013) em parceria com Bethania Mariani e Lucília Maria Abrahão e Sousa. Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 355 Colaboradores deste número AMANDA E. SCHERER Pós-doutorado pela Université de Rennes 2 (França), é professor associado IV da Universidade Federal de Santa Maria. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise do Discurso, atuando principalmente em História das Ideias Linguísticas e Sujeito entre Línguas. Atualmente, coordena o Projeto Internacional Apprendre la citoyenneté par lécole pour pratiquer dans une société démocratique entre a Université de Franche-Comté (França) e a Universidade Federal de Santa Maria (Brasil), financiado pelo PESI (Partenariat Educatif de Solidarité Internationale), como também coordena juntamente com a Prof.ª Verli Petri as parcerias institucionais entre o Laboratório Corpus (UFSM), o Labeurb (Laboratório de Estudos Urbanos/Unicamp) e o Projeto PALADIS (UNESP/São José do Rio Preto). Dentre os vários textos publicados, citamos A História e o Político na Produção Científica sobre a Linguística: um exemplo do Fundo Documental Neusa Carson em parceria com Verli Petri, na Revista Fragmentum (2013), e o livro Discurso: circulação, fragmentação e funcionamento pela autora organizado, editado pelo PPGL de Santa Maria (2007). ANGELA BAALBAKI Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Letras também pela mesma universidade e doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é professor assistente de Linguística da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desenvolve pesquisas na área de Análise de Discurso de linha francesa, e coordena o projeto de pesquisa Divulgação científica: análise discursiva de estudos da linguagem em periódicos dos séculos XIX e XXI. É autora, entre outros, do artigo Análise discursiva de revista de divulgação científica: o lugar da memória do futuro, na Revista do GEL, em 2012, e do livro Linguística III, organizado em parceria com Silmara Dela-Silva et alii, publicado pela Fundação CECIERJ (2013). ARACY ERNST-PEREIRA Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), possui mestrado e doutorado em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Realizou estágio pós-doutoral na Universidade de Paris III, Sorbonne-Nouvelle. É professor titular da Universidade Católica de Pelotas (UCPEL), atuando no Programa de Pós-Graduação em Letras. É membro do LEAD (Laboratório em Estudos em Análise de Discurso) e pesquisadora na área de Análise do Discurso. É autora, entre outros, de O Casaco de Arlequim. Uma reflexão sobre a semântica proposta por Michel Pêcheux, publicado em Estudos da Língua(gem) (Vitória da Conquista Edições, 2005), e do livro Linguagens. Metodologias de ensino e pesquisa, organizado em parceria com V. Leffa, publicado pela EDUCAT/Pelotas, RS (2012). 356 Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 BEATRIZ ADRIANA KOMAVLI DE SÁNCHEZ Possui graduação em Fonoaudiologia e em Psicologia pela Universidad de Buenos Aires (UBA), graduação em Letras PortuguêsEspanhol pela Universidade Estácio de Sá (UNESA), especialização em Espanhol Instrumental para Leitura, e mestrado em Linguística pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Trabalha no Centro de Cultura Anglo-Americano. Desde março de 2010, é professor assistente no Setor de Espanhol da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atua na especialização de Espanhol Instrumental para Leitura. É doutoranda no Programa em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense (UFF/CAPES), na linha de pesquisa Teoria do Texto, do Discurso e da Interação. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise do Discurso. Dentre suas produções, está O projeto LICOM/LETI: um grande espaço que convida à reflexão, texto publicado nos Anais do XIV Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol (Niterói, 2013). BELMIRA MAGALHÃES Com Pós-Doutorado em Análise de Discurso pelo Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, atua como professor associado IV na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), nos cursos de Ciências Sociais e Letras, na graduação e na pós-graduação. Suas pesquisas e produções são desenvolvidas nas áreas de Análise do Discurso Político; Literatura e Estudos de Gênero. Seus trabalhos têm ênfase nos estudos sobre ideologia e inconsciente, história, política, gênero, literatura e sociedade. Atualmente, coordena o Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da UFAL. Dentre suas publicações, citamos as mais recentes, seu livro Contradição Social e Representação do Feminino, publicado pela Edufal (Maceió, 2011), e seu artigo Discurso, ideologia, inconsciente no livro Discurso e.... organizado por Bethania Mariani e Vanise Medeiros, publicado pela Viveros de Castro Editora Ltda. (2012). BRUNO DEUSDARÁ Professor adjunto de Linguística (Instituto de Letras/UERJ) e de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira (Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira/UERJ). Atua no Programa de Pósgraduação em Letras (área de concentração em Linguística) do ILE/ UERJ. Doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e mestre em Letras, área de concentração em Linguística, pela UERJ. Atuou como professor I de Língua Portuguesa da rede pública estadual do Rio de Janeiro e como professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). Suas áreas de interesse são Análise do Discurso, Estudos Enunciativos, Pesquisa-intervenção, Interface linguagem e trabalho, Produção de subjetividade, Práticas intersemióticas e Ensino de língua materna. É autor, entre outros, de Trajetórias em Enunciação e Discurso: conceitos Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 357 e práticas, livro organizado em parceria com V. Santanna, publicado pela Claraluz (São Carlos, 2007). DÉCIO ROCHA Possui mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), D.E.A. em Sciences du Langage pela Université Paris III Sorbonne-Nouvelle (França), doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e estágio pós-doutoral na Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente é professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde trabalha com Linguística, Linguística Aplicada e Análise do Discurso (Graduação e Pós-graduação no Instituto de Letras) e Francês (na Educação básica do Instituto de Aplicação. É autor, entre outros, de Cartografias em análise do discurso: rearticulando as noções de gênero e cenografia, publicado na DELTA (PUC-SP, 2013), e de Perspectiva foucaulltiana, capítulo do livro Texto ou discurso? organizado por Beth Brait et alii (Contexto, 2012). ERCÍLIA ANA CAZARIN Graduada em Letras pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Santo Ângelo e pela Faculdade de Formação de Professores e Especialistas de Educação de Camaquã, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Santo Ângelo. Possui mestrado e doutorado em Letras, na área de Teorias do Texto e do Discurso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É membro do LEAD (Laboratório em Estudos em Análise de Discurso), pesquisadora na área de Análise do Discurso, e professora no Programa de Pós-Graduação da Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). Publicou os livros Heterogeneidade discursiva: relações e efeitos de sentido do discurso-outro no discurso político de L. I. Lula da Silva (1998) e Identificação e representação política: uma análise do discurso de Lula (2005), ambos pela Editora Unijuí. É uma das organizadoras dos livros Ensino e aprendizagem de línguas: língua portuguesa (Ed. Unijuí); Práticas discursivas e identitárias: sujeito e língua (Editora Nova Prova, Porto Alegre); Língua, escola e mídia: en(tre)laçando teorias, conceitos e metodologias (Editora da UPF, 2011). EVANDRA GRIGOLETTO Doutora em Teorias do Texto e do Discurso pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é professora de Língua Portuguesa do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, atuando nas linhas de pesquisa Análises do Discurso e Análises de Práticas de Linguagem no Campo de Ensino. Em suas pesquisas, tem-se dedicado às questões relacionadas ao funcionamento do discurso midiático, analisando especialmente diferentes discursividades inscritas no espaço virtual. Publicou O Ensino a Distância e as 358 Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 Novas Tecnologias: o funcionamento do discurso pedagógico nos Ambientes Virtuais de Aprendizagem, na Revista Eutomia (UFPE, 2011), e coorganizou o livro Discursos em rede: práticas de (re)produção, movimentos de resistência e constituição de subjetividades no ciberespaço, publicado pela Editora da UFPE (2011). FABIELE STOCKMANS DE NARDI Doutora em Teorias do Texto e do Discurso pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007), é professora de Língua Espanhola do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, atuando nas linhas de pesquisa Análises do Discurso e Análises de Práticas de Linguagem no Campo de Ensino. Em seus projetos, tem-se dedicado especialmente às questões que tratam a relação entre língua, cultura e identidade no âmbito das teorias do discurso. É coorganizadora do livro Discursos em rede: práticas de (re)produção, movimentos de resistência e constituição de subjetividades no ciberespaço, publicado pela Ed. Universitária – UFPE (Recife, 2011), e de Foucault com Pêcheux: entre a estrutura e o acontecimento, publicado no livro Foucault com outros nomes: Lugares de Enunciação organizado por Pedro de Souza et alii, publicado pela Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa (2009). FÁBIO SAMPAIO DE ALMEIDA Doutorando em Linguística Aplicada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Letras, na área de Linguística, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é professor de Língua Espanhola do CEFET-RJ UnED Petrópolis. Tem experiência na área de Linguística Aplicada, com ênfase em Estudos do Discurso e Pragmática. Dentre seus textos publicados, temos A prática do concurso público para professores: uma seleção para o trabalho? publicado no livro Trajetórias em Enunciação e Discurso: Práticas de Formação Docente, organizado por Maria Del Carmen Daher et alii (2009). FERNANDA SURUBI FERNANDES Mestre em Linguística pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), pesquisadora do centro de Estudos e Pesquisa em Linguagem/CEPEL. Participa do Grupo de Estudos em Análise de Discurso (GEAD), do Departamento de Letras, e do Grupo de Estudos Marxiano (Gemarx), do Departamento de Direito, ambos da UNEMAT. Atualmente é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (IFMT) e professora na Universidade do Estado de Mato Grosso. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise de Discurso. Dentre suas publicações, estão O corpo na relação trabalho X prazer, na Revista Rua (Labeurb/UNICAMP) (2013), e A Incompletude, o Real e a Contradição em Diferentes Materialidades Sobre a Imagem Feminina, no livro Redes Discursivas: a língua(gem) na pós-graduação, organizado por Olimpia Maluf-Souza et alii, editado pela Pontes (2012). Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 359 FREDA INDURSKY É licenciada em Letras pela UFRGS. Possui Licence en Lettres - Faculté des Lettres et Sciences Humaines de Besançon; Maîtrise en Lettres Faculté des Lettres et Sciences Humaines de Besançon. Doutora em Ciências da Linguagem pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora titular, aposentada, atua como professora convidada junto ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ministrando disciplinas e orientando mestrandos e doutorandos cujos projetos se inscrevam na Linha de Pesquisa Análises Textuais e Discursivas, onde sua pesquisa também está inscrita. Publica em periódicos científicos nacionais e internacionais. Autora e organizadora de vários livros e capítulos de livros. Dentre eles, foi reeditado o livro A fala dos quartéis e as outras vozes pela Editora da UNICAMP (2013), e, em parceria com Solange Mittmann e Maria Cristina L. Ferreira, organizou o livro Memória e História na/da Análise do Discurso, publicado pela Mercado de Letras (2011). GRECIELY CRISTINA DA COSTA Possui mestrado e doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. Durante seu doutoramento, realizou um estágio de pesquisa (doutorado sanduíche) na Université de Paris XIII (França). Atualmente, é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem e coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Linguagem (NUPEL), da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise de Discurso. Dentre suas publicações, temos Linguagem e Historicidade, livro organizado em parceria com Débora Massmann publicado pela Editora RG (2013), e Denominação: um percurso de sentidos entre espaços e sujeitos, artigo publicado na Revista Rua (2012). HELSON FLÁVIO DA SILVA SOBRINHO Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), participou como professor convidado no Programa de Pósgraduação em Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da UFAL na Linha de pesquisa Sociedade, Identidade e Pensamento Social. Lecionou a disciplina Análise do Discurso no curso de Especialização em Linguística e Literatura Brasileira na Academia Alagoana de Letras (2006-2008). Atualmente é professor de Linguística, Análise do Discurso na Faculdade de Letras da UFAL (Graduação e Pós-Graduação). Também atua no Curso de Especialização em Gerontologia Social da Faculdade de Serviço Social da UFAL. Tem experiência nas áreas de Linguística, Análise do Discurso (AD), Sociologia e Educação, dedicando-se principalmente aos temas Discurso, Língua, Velhice, Sociedade, Mídia e Educação. É membro do Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística (PPGLL-UFAL) e do Colegiado da Graduação em Letras; atua ainda no Comitê Assessor de Pesquisa e Pós-Graduação da UFAL. Dentre 360 Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 suas publicações estão o livro Análise do Discurso: fundamentos e prática do qual foi um dos organizadores, e o livro Discurso, Velhice e Classes Sociais, ambos publicados pela Edufal (Maceió, 2009 e 2007, respectivamente). JOSÉ LUÍS JOBIM Com pós-doutorado na Stanford University (USA), atualmente é professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor associado IV da Universidade Federal Fluminense (UFF). É consultor ad hoc para avaliação de pós, qualis e auxílios da CAPES, parecerista ad hoc do CNPq, da FAPERJ e da FAPESP, e referee/peer reviewer da Agenzia Nazionale di Valutazione del sistema Universitario e della Ricerca (ANVUR, Itália), e membro do Advisory Board de Harvard. É Cientista do nosso Estado pela FAPERJ. Seu projeto atual visa a uma análise crítica dos fundamentos alegados por produtores de textos (literários, teóricos, críticos) dos séculos XX e XXI sobre sua própria escrita, considerando questões como o estatuto da autoria; as diferentes perspectivas sobre os (novos e antigos) suportes da escrita; as textualidades do agora. Dentre os vários artigos e livros publicados, recentemente destacam-se A crítica literária e os críticos criadores no Brasil e Literatura e cultura: do nacional ao transnacional, ambos os livros publicados pela Editora da UERJ (2012 e 2013, respectivamente). LUCIENE JUNG DE CAMPOS Graduada em Psicologia pela PUC-RS, mestre em Organizações e Recursos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutora em Estudos da Linguagem: Teorias do Texto e do Discurso também pela UFRGS, é professora do Centro de Ciências Humanas e do Programa de Pós-graduação de Mestrado em Turismo na Universidade de Caxias do Sul (UCS). É pesquisadora do CNPq com ênfase em Psicanálise, Análise do Discurso e Análise Institucional. É também psicanalista. Dentre suas publicações, encontram-se a organização do número da Revista Organon – Autoria nas entre-linhas editada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2012, e o artigo O Museu é o Mundo: Intervenção na Cidade e Estranhamento do Cotidiano nos Fluxos Urbanos, publicado no v. 4 da Revista Rosa dos Ventos (UCS, 2012). LUCÍLIA MARIA ABRAHÃO E SOUSA Com doutorado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/ USP) e livre-docência em Ciências da Informação e da Documentação pela mesma instituição, é docente com dedicação exclusiva no Curso de Graduação em Ciências da Informação e da Documentação e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, ambos da FFCLRP/USP; professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da UFSCAR. É bolsista 2 do CNPq e parecerista ad hoc do CNPQ e FAPESP, além de membro da ABRALIN, Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 361 ALED, ALFAL, GEL e GT de Análise do Discurso da ANPOLL. É especialista em Análise do Discurso. Coordena o Grupo de Pesquisa Discurso e Memória: movimentos do sujeito, e o E-L@DIS (Laboratório Discursivo – sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimentos), financiado pela FAPESP. Publicou vários livros, além de artigos em revistas científicas e capítulos de livros. Dentre seus textos mais recentes estão o livro que organizou com Amanda Scherer, Língua, museu e patrimônio (2013), e o que organizou com F. Galli, De fragmentum a mosaico (2012). MARCHIORI QUEVEDO Possui licenciatura em Letras pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), especialização em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e mestrado em Letras pela Universidade Católica de Pelotas (2012). Atualmente é doutorando em Letras pela UCPel. É membro do LEAD (Laboratório em Estudos em Análise de Discurso) e pesquisador na área de Análise do Discurso. Professor de ensino básico técnico e tecnológico do Instituto Federal Sul-rio-grandense de Educação, Ciência e Tecnologia. Publicou Análise da prova de redação (vestibular da UFPel 2002) em livro organizado por W. B. Brauner Analisando Provas Interdisciplinares e Dissertativas – Processo Seletivo verão 2002, publicado pela Editora da UFPel (Pelotas, 2004). MARIA CLARA GOMES MATHIAS Doutoranda em Linguística Aplicada no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará (UECE); mestre em Linguística por este mesmo programa; advogada e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFCE); e licenciada em Letras pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Participa, como membro, do Grupo de Pesquisa de Estudos de Mídia e Tensões Sociais no Contemporâneo (GEMTES/UECE) e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Pragmática (NIPRA/UECE). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Estudos Críticos da Linguagem. Atualmente desenvolve trabalhos interdisciplinares voltados para a investigação do discurso jurídico e sua política de representação. Publicou, em parceria com R. Ferreira, Significado Representacional e Pós-Marxismo: a Construção Interdiscursiva do Estado de Direito Brasileiro na Constituição da República e a Possibilidade de um Modelo Constitucional Agonístico, nos Anais eletrônicos do III Simpósio Nacional e I Simpósio Internacional de Discurso, Identidade e Sociedade – Dilemas e Desafios da contemporaneidade (III SIDIS, 2012, Campinas-SP). MARIA CRISTINA GIORGI Possui graduação em Letras Habilitação Português Espanhol pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2002), graduação em Letras Habilitação Português Espanhol pela Universidade do Estado do Rio 362 Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 de Janeiro (2002), mestrado em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2005) e doutorado em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é professora titular do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca dos ensinos Médio e Técnico e na Pós-graduação de Relações Étnico-raciais. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em Análise do Discurso, atuando principalmente nos seguintes temas: análise do discurso, gênero de discurso, intertextualidade, formação docente, concurso público, ensinos médio e técnico, questões étnico-raciais. É autora de vários artigos em periódicos, capítulos de livros e livros na área da AD, entre os quais se destaca a obra Trajetórias em enunciação e discurso:práticas de formação docente, em coautoria. MARIA DO SOCORRO PEREIRA LEAL Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), mestrado e doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF) na área de Análise do Discurso. É professora do curso de Letras da Universidade Federal de Roraima (UFRR), atualmente atuando na graduação e na pós-graduação. Em 2009, ganhou o edital para a publicação de dissertação da Editora da UFRR, pela qual publicou o livro Raposa Serra do Sol no discurso político roraimense (2012). É membro do Grupo de Teoria do Discurso (GTDis), vinculado ao Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS), coordenado pela Prof.ª Bethania Mariani, do Departamento de Ciências da Linguagem da Universidade Federal Fluminense (UFF). É coorganizadora do livro Estudos de linguagem e cultura regional: vertentes poéticas e linguísticas, publicado pela Editora UFRR (Boa Vista, 2013). MARIA ONICE PAYER Mestrado e doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atuou como Pesquisadora no Laboratório de Estudos Urbanos do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Labeurb/Nudecri/Unicamp). É professor titular na Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS) em Pouso Alegre (MG), onde trabalha no Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem (CAPES/ MEC) e nos cursos de Pós-graduação Lato Sensu e de Graduação em Letras. Exerceu nesta Universidade a coordenação de Pesquisa da área de Ciências Humanas, e participa de funções administrativas em conselhos diversos. É parecerista da CAPES e FAPESP, Editora da UNB e membro de Conselhos Editoriais de periódicos da Área, em IES públicas e privadas. Coordenou o GT de Análise de Discurso da ANPOLL, no qual atualmente é coordenadora da linha de pesquisa Subjetivação e Processos de Identificação. É membro regular de Associações de Pesquisa. Publicou os livros Memória da Língua. Imigração e Nacionalidade (Ed. Escuta) e Educação Popular e Linguagem (2a. ed., Ed. Unicamp), além de muitos capítulos de livros, artigos em periódicos especializados e anais de congressos da área. Orienta pesquisas em nível de pós-graduação e graduação. Lidera no CNPq Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 363 o Grupo de Pesquisa Discurso, Memória e Processos de Subjetivação, trabalhando com a relação Sujeito/Língua(s) e pesquisando sobre a memória discursiva sobretudo em contextos de imigração, a identificação com as línguas, leitura e escrita, mídia e subjetivação na sociedade contemporânea. Atualmente também faz formação em Psicanálise. MARIE-ANNE PAVEAU Professora de Linguística na Universidade de Paris 13 Sorbonne Paris Cité (França), membro do Centro de Estudo de Novos Espaços Literários (Cenel), a pesquisadora desenvolve trabalhos articulando discurso, contexto e cognição social. Dentre os temas a que se dedica estão os contextos e dados culturais, o corpo, os objetos e os ambientes cognitivos, normas éticas e linguísticas, filosofia do discurso. Também desenvolve pesquisas sobre história e epistemologia das ciências da linguagem. Em destaque está a formulação da noção de pré-discurso encontrada no livro Les prédiscours. Sens, mémoire, cognition, publicado por Presses Sorbonne Nouvelle (Paris, 2006). NÁDIA PEREIRA DA SILVA GONÇALVES DE AZEVEDO Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), fonoaudióloga pelo Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação (IBMR, Rio de Janeiro), especialista em Patologias da Linguagem (UNICAP), especialista em Linguagem pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia (CFFa), mestre em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente é professor adjunto II da Universidade Católica de Pernambuco, atuando na Graduação em Fonoaudiologia e como coordenadora, professora e pesquisadora no Programa de Pós-graduação stricto sensu em Ciências da Linguagem. É líder, juntamente com a Prof.ª Fátima Vilar de Melo, do grupo de pesquisa do CNPq Linguagem, Distúrbio e Multidisciplinaridade, tendo como áreas predominantes: Linguística, Letras e Artes. Teve aprovado projeto, como coordenadora, no Edital Universal do CNPq, intitulado Sommercamp: Terapia intensiva da gagueira em adolescentes e adultos no Recife-Pernambuco-Brasil, em que trabalharam também os Professores Jörg Mussman e Maria do Carmo Oliveira, da Universidade de Giessen, Alemanha. É autora, entre outros, de Fonoaudiologia e pedagogia especial em um sistema escolar inclusivo na Alemanha, em parceria com Joerg Mussman, publicado em Educação em Revista (UFMG, 2012). OLIMPIA MALUF SOUZA Possui mestrado e doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é professor titular no Departamento de Letras da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), pesquisadora em grupo de pesquisa da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora em grupo de pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É coordenadora do projeto de extensão Análise de discurso: aspectos teóricos e práticos, 364 Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 do Departamento de Letras; e colaboradora do Grupo de Estudos Marxianos (GEMARX), do Departamento de Ciências Jurídicas. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise do Discurso. Publicou em coautoria O corpo na relação trabalho x prazer na Revista Rua (Labeurb/Nudecri/Unicamp, 2013), e coorganizou o livro Discurso, Sujeito e memória publicado pela Pontes (2012). REGINA BARACUHY Possui doutorado em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), e mestrado em Língua Portuguesa pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Atualmente é professor associado I da Universidade Federal da Paraíba nos Programas de Graduação no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV) e no Programa de Pósgraduação em Linguística (PROLING). Desenvolve e orienta pesquisas na área de Análise do Discurso. É autora de livros na área de Análise do Discurso, tais como: Práticas Discursivas Contemporâneas: Corpo, Memória e Subjetividade (2011) e Práticas Discursivas Contemporâneas 2: Corpo, Identidade e Mídia (2012). Também é Líder do Grupo de Pesquisa Círculo de Discussões em Análise do Discurso (CIDADI), além de orientar Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) no Curso de Graduação em Letras Virtual (EAD). RUBERVAL FERREIRA Professor adjunto do Curso de Letras e do Programa de PósGraduação em Linguística Aplicada (PosLA) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). É graduado em Letras pela Universidade Estadual do Ceará/FAFIDAM, mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFCE) e doutor em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas(IEL/UNICAMP). Realizou Estudos Doutorais Livres na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris (França) como pesquisador convidado. É membro do GT Práticas Identitárias em Linguística Aplicada da ANPOLL e da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN). É coordenador do Grupo de Estudos de Mídia e Tensões Sociais no Contemporâneo (GEMTES), e um dos fundadores do Centro de Estudos em Pragmática, ligado ao Programa de Pósgraduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Atua nas áreas de Semântica e Pragmática, Estudos do texto/discurso e Mídia. É autor do livro Guerra na Língua: Mídia, Poder e Terrorismo (EDUECE, 2007) e coautor dos livros Políticas em Linguagem: Perspectivas Identitárias (São Paulo: Editora Mackenzie, 2006), Linguagem e Exclusão (Uberlândia: Editora da UFU, 2010), Tópicos em Lexicologia, Lexicografia e Terminologia (Fortaleza: UFC, 2006), Fortaleza e suas Tramas: Olhares sobre a Cidade, e A Civilização Francesa Revisitada (Fortaleza: EDUECE, 2010). Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 365 SILMARA DELA SILVA Professor adjunto II da UFF, no Departamento de Ciências da Linguagem, atuando na graduação e nos programas de pós-graduação em Estudos de Linguagem (Instituto de Letras) e em Mídia e Cotidiano (Instituto de Arte e Comunicação Social). É pesquisadora do Laboratório Arquivos do Sujeito (www.uff.br/LAS) e os seus estudos têm como foco a análise dos discursos da/sobre a mídia. Atualmente coordena o projeto de pesquisa Mídia, sujeito e sentidos: o discurso midiático na constituição do sujeito urbano brasileiro, financiado pela FAPERJ, e publicou, dentre outros, A análise de discurso e a formação do jornalista, na Revista Entremeios (2013), e organizou o livro Ler e fazer análise de discurso, em parceria com Vanise Medeiros et alii, publicado pela FAPERJ/UFF (2013). SIMONE DE MELLO DE OLIVEIRA Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com estágio de doutorado-sanduíche na École Normale Supérieure de Lettres et Sciences Humaines de Lyon (França) (Convênio Capes/Cofecub). Atualmente é pesquisadora do Laboratório Corpus, bolsista PNPD/CAPES; membro do corpo editorial da revista Letras da UFSM; e publicou, entre outros, O funcionamento da autoria nos blogs de divulgação científica, na revista Linguagem em (Dis)curso (2011). TÂNIA AUGUSTO PEREIRA Doutora em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), dentro da linha de pesquisa Discurso e Sociedade, e mestre em Letras pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), é professora efetiva no Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Desenvolve pesquisas no campo da Linguística inseridas na área da Análise do Discurso de linha francesa. É autora, entre outros, do livro Práticas discursivas contemporâneas 2: corpo, identidade e mídia, em parceria com R. Baracuhy et alii, publicado pela editora Marca de Fantasia, em 2012, e de O corpo gordo na revista Veja: uma análise discursiva, publicado na Revista Signum: Estudos da Linguagem (2013). VERLI PETRI Pós-doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Maria UFSM, com estudos concentrados em Teorias do Texto e do Discurso, atuando nas áreas de Análise de Discurso, Ensino de Língua Estrangeira, Língua Portuguesa, Discurso literário, Constituição do sujeito, Narratividades Urbanas, Instrumentos Linguísticos e História das Ideias Linguísticas. Atualmente é tutora do Grupo PET (Programa de Educação Tutorial) do curso de Letras da UFSM, coordenadora acadêmico-científica do Laboratório Corpus (PPGL), bem como 366 Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 orienta trabalhos de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da mesma instituição. Publicou, entre outros, Gramatização das línguas e instrumentos linguísticos: a especificidade do dicionário regionalista na Revista Língua e Instrumentos Linguísticos (2012), e coorganizou o livro Análise de discurso em perspectiva: teoria, método e análise, publicado pela Editora da Universidade Federal de Santa Maria (2013). ZÉLIA MARIA VIANA PAIM Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), tem experiência na área de Letras, atuando principalmente em Língua Portuguesa, Análise de Discurso, Linguística, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa, História das Ideias. É professora em Disciplinas Complementares de Graduação (DCG) na Universidade Federal de Santa Maria. Publicou, entre outros, As relações de força constitutivas dos percursos de produção de sentidos: o relato de viagem no século XVI, na Revista Interfaces (2012). Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013 367 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Instituto de Letras Revista Gragoatá Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/nº Campus do Gragoatá Bloco C - Sala 518 24210-201 - Niterói - RJ e-mail: [email protected] Telefone: 21-2629-2608 Normas de apresentação de trabalhos 1 A Revista Gragoatá, dos Programas de Pós-Graduação em Letras da UFF, aceita originais sob forma de artigos inéditos e resenhas de interesse para estudos de língua e literatura, em língua portuguesa, inglêsa, francesa e espanhola. 2 Os textos serão submetidos a parecer da Comissão Editorial, que poderá sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo. 3 Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8 páginas, no caso de resenhas. Devem ser apresentados em duas cópias impressas sem identificação do autor, bem como em CD, com título do artigo em português e em inglês, indicação do autor, sua filiação acadêmica completa e endereço eletrônico no programa Word for Windows 7.0, em fonte Times New Roman (corpo 12, espaço duplo), sem qualquer tipo de formatação, a não ser: 3.1 Indicação de caracteres (negrito e itálico). 3.2 Margens de 3 cm. 3.3 Recuo de 1 cm no início do parágrafo. 3.4 Recuo de 2 cm nas citações. 3.5 Uso de sublinhas ou aspas duplas (não usar CAIXA ALTA). 3.6 Uso de itálicos para termos estrangeiros e títulos de livros e períodicos. 4 As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em caixa alta; vírgula; data da publicação; abreviatura de página (p.) e o número desta. (Ex.: SILVA, 1992, p. 3-23). 5 As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão ser apresentadas no final do texto. 6 As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do texto, obedecendo às normas a seguir: Livro: sobrenome do autor, maiúscula inicial do(s) prenome(s), título do livro (itálico), local de publicação, editora,data. Ex.: SHAFF, Adan. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1991. Artigo: sobrenome do autor, maiúscula inicial do(s) prenome(s), título do artigo, nome do periódico (itálico), volume e nº do periódico, data. Ex.: COSTA, A.F.C. da. Estrutura da produção editorial dos periódicos biomédicos brasileiros. Trans-in-formação, Campinas, v. 1, n.1, p. 81-104, jan./abr. 1989. Gragoatá Niterói, n. 34, p. 367-366, 1. sem. 2013 Normas Gragoatá 7 As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa reprodução gráfica. Deverão ser identificadas, com título ou legenda, e designadas, no texto, de forma abreviada, como figura (Fig. 1, Fig. 2 etc). 8Os originais serão avaliados a partir dos seguintes quesitos: 8.1 adequação ao tema; 8.2 originalidade da reflexão; 8.3 relevância para a área de estudo; 8.4 atualização bibliográfica; 8.5 objetividade e clareza; 8.6 linguagem técnico-científica. 9 A responsabilidade pelo conteúdo dos artigos publicados pela Revista Gragoatá caberá, exclusivamente, aos seus respectivos autores. 10 Os colaboradores terão direito a dois exemplares da revista. Os originais não aprovados não serão devolvidos. Próximos números Número 35 Tema: Textualidades contemporâneas de ruína e resistência Organizadoras: Maria Lúcia Wiltshire e Sonia Torres Prazo para entrega dos originais: julho de 2013 Ementa: Ficções do pós-humano: Subjetividade humana como construção em ruínas, mundo pós-ideológico, colapso de fronteiras, zonas de deslizamento ontológico, da alegoria e do estranho, onde o conflito humanismo vs. pós-humanismo é travado. O pensamento utópico (distópico, ecotópico, e-tópico, heterotópico, religioso) e crise da tecnotopia na modernidade tardia; fusão de temporalidades, ecologia não-antropocêntrica, visão não-logocêntrica do saber; regimes de produção, reprodução e legitimação da arte. Número 36 Tema: Estudos de linguagem e ensino Organizadoras: Beatriz Feres, Mariangela Rios de Oliveira e Telma Pereira Prazo para entrega: dezembro de 2013 Ementa: O ensino de língua materna e de língua estrangeira no Brasil e os estudos linguísticos: interfaces, contribuições e desafios. Aproveitamento dos resultados de pesquisa na área dos estudos de linguagem para o ensino /aprendizagem de línguas. 370 Niterói, n. 34, p. 369-372, 1. sem. 2013 Normas UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Instituto de Letras Revista Gragoatá Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/nº Campus do Gragoatá Bloco C - Sala 518 24210-201 - Niterói - RJ e-mail: [email protected] Telefone: 21-2629-2608 General Instructions for Submission of Papers 1. The Editorial Board will consider both articles and reviews in the areas of language and literature studies, in Portuguese, English, French and Spanish. 2. In considering the submitted papers, the Editorial Board may suggest changes in their structure or content. Papers should be submitted in CD, with the title both in Portuguese and English, author’s identification, academic affiliation and electronic address, together with two printed copies, without author’s identification, typed in Word for Windows 7.0, double-spaced, Times New Roman font 12, without any other formatting except for: 2.1 bold and italics indication; 2.1 3cm margins; 2.3 1cm indentation for paragraph beginning; 2.4 2cm indentation for long quotations; 2.5 underlining or double inverted commas (NEVER UPPERCASE) for emphasis; 2.6 italics for foreign words and book or journal titles. 3. Papers should be no more than 25 pages in length and reviews no more than 8 pages. 4. Authors are required to resort to as few footnotes as possible, which are to be placed at the end of the text. As for references in the body of the article, they should contain the author’s surname in uppercase as well as date of publication and page number in parentheses (eg.: JOHNSON, 1998, p. 45-47). 5. Bibliographical references should be placed at the end of the text according to the following general format: Book: initial’s author’s pre name(s) in uppercase, author’s surname, title of book (italics), place of publication, publisher and date. (eg.: ELLIS, Rod. Understanding second language acquisition. Oxford: Oxford University Press, 1994). Article: author’s surname, initial’s author’s pre name(s) in uppercase, title of article, name of journal (italics), volume, number and date. (eg.: HINKEL, Eli. Native and nonnative speakers’ pragmatic interpretations of English texts. TESOL Quarterly, v. 28, n° 2, p. 353376, 1994). 6. Tables, graphs and figures should be identified, with a title or legend, and referred to in the body of the work as figure, in abbreviated form (eg.: Fig. 1, Fig. 2 etc.) Niterói, n. 34, p. 369-372, 1. sem. 2013 371 Normas Gragoatá 7. Papers should contain two abstracts (a Portuguese and an English version), no more than 5 lines in length. In addition, between 3 to 5 keywords, also in Portuguese and in English, are required. 8. Originals will be evaluated from the following items: 8.1 appropriateness to the theme; 8.2 originality of thought; 8.3 relevance for the study area; 8.4 bibliographic update; 8.5 objectivity and clarity; 8.6 technical-scientific language 9. The responsibility for the content of articles published in the journal Gragoatá sole discretion of their respective authors. 10. Authors, whose articles are accepted for publication, will be entitled to receive 2 copies of the journal. Originals will not be returned. 372 Niterói, n. 34, p. 369-372, 1. sem. 2013 PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL Título conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br) após a implementação de um Programa Socioambiental com vistas à ecoeficiência e ao plantio de árvores referentes à neutralização das emissões dos GEE´s – Gases do Efeito Estufa. Esta revista foi composta na fonte Book antiqua.12 Impresso na Editora e Papéis Nova Aliança Ltda-Me., em papel Pólen Soft 80g (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa) produzido em harmonia com o meio ambiente. Esta edição foi impressa no outono de 2014