GRAGOATÁ
n. 34
1o semestre 2013
Política Editorial
A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional
de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem
contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a
análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e
Literatura.
ISSN 1413-9073
Gragoatá
Niterói
n. 34
p. 1-372
1. sem. 2013
© 2012 by
Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense
Direitos desta edição reservados à– Editora da UFF – Rua Miguel de Frias, 9 – anexo – sobreloja – Icaraí – Niterói – RJ – CEP 24220-900 – Tel.: (21) 2629-5287 – Telefax: (21)2629-5288
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Ricardo Borges
Semestral
400 exemplares
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Editora
filiada à
G737
Gragoatá. Publicação dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da
Universidade Federal Fluminense.— n. 1 (1996) - . — Niterói : EdUFF, 2014 –
26 cm; il.
Organização: Bethania Mariani, Vanise Medeiros
Semestral
ISSN 1413-9073
1. Literatura. 2. Linguística.I. Universidade Federal Fluminense. Programas de
Pós-Graduação em Estudos de Linguagem e Estudos de Literatura.
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GRAGOATÁ
n. 34
1o Semestre 2013
Sumário
Apresentação ..................................................................................
Vanise Medeiros, Bethania Mariani
7
ARTIGOS
Disciplinarização dos Estudos em Análise de Discurso ....... 15
Bethania Mariani, Vanise Medeiros
A emergência do sujeito desejante no discurso do MST ....... 27
Freda Indursky
Au nom des noms. Mémoire et démémoire discursives
en résistance ................................................................................... 39
Marie-Anne Paveau
O vazio como condição: um movimento de sentidos
a partir do horror ........................................................................... 61
Lucília Maria Abrahão e Sousa
Desejo de desejo na mercadoria e o olhar do artista .............. 77
Luciene Jung de Campos
Materialidades discursivas e o funcionamento
da ideologia e do inconsciente na produção de sentidos ....... 95
Belmira Magalhães, Helson Flávio da Silva Sobrinho
Arquivo, memória e acontecimento em uma política
de Fundos Documentais .............................................................. 113
Amanda E. Scherer, Simone de Mello de Oliveira, Verli Petri, Zélia Maria
Viana Paim
Para além do efeito de circularidade: interpretando as noções
de pré-construído e articulação a partir de enunciados idem
per idem ........................................................................................... 131
Aracy Ernst-Pereira, Ercília Ana Cazarin, Marchiori Quevedo
Uma análise discursiva de sujeitos com gagueira .................. 145
Nádia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo
Discurso sobre a criança: a questão do ludicismo ................ 167
Angela Baalbaki
Processos, modos e mecanismos da identificação entre o
sujeito e a(s) língua(s) ................................................................. 183
Maria Onice Payer
Identificação, memória e figuras identitárias: a tensão
entre a cristalização e o deslocamento de lugares sociais .... 197
Evandra Grigoletto, Fabiele Stockmans De Nardi
Corpo, trabalho e prazer: as práticas de prostituição em
cadastros policiais ....................................................................... 215
Fernanda Surubi Fernandes, Olimpia Maluf Souza
A milícia e o processo de individuação: entre a falta
e a falha do Estado ...................................................................... 235
Greciely Cristina da Costa
Das línguas na história: “Upatakon (Nossa Terra)” ............ 253
Maria do Socorro Pereira Leal
A interface linguagem/mundo como produção simultânea:
quando estudantes enfrentam a administração central
em uma universidade pública ................................................... 263
Bruno Deusdará, Décio Rocha
Análise discursiva do Plano de Desenvolvimento
Institucional do CEFET/RJ: uma proposta de resistência
a um discurso institucional hegemônico ................................ 281
Fábio Sampaio de Almeida
Maria Cristina Giorgi
O significado acional no discurso da Constituição
Brasileira: o gênero discursivo normativo constitucional
em questão .................................................................................... 299
Ruberval Ferreira, Maria Clara Gomes Mathias
A biopolítica dos corpos na sociedade de controle ............... 317
Regina Baracuhy, Tânia Augusto Pereira
A pequena família guineana: abordagem discursiva do
continuísmo histórico num discurso pela independência .... 331
Beatriz Adriana Komavli de Sánchez
RESENHAS
Foi “análise de discurso” que você disse? ............................. 345
Silmara Dela Silva
Gumbrecht: latência na história .............................................. 351
José Luís Jobim
ORGANIZADORES DESTE NÚMERO ................................ 355
COLABORADORES DESTE NÚMERO ............................... 356
NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS .......... 369
Apresentação
Esta revista tem como fio condutor estudos contemporâneos
em Análise de Discurso, contemplando tanto artigos que se
inscrevem no quadro teórico da Análise de Discurso iniciada
por Pêcheux e reterritorializada por Orlandi quanto artigos
de lugares teóricos outros afins, como a História das Ideias
Linguísticas, e ainda aqueles desenvolvidos também sob o
termo discurso, como os estudos discursivos com base em
Foucault, Maingueneau, Bakhtin, Deleuze e Fairclough. Nela
podem ser lidos artigos que concernem à questão do sujeito, da
nomeação e do inominável, do nome próprio, do real, do desejo,
da ideologia, do arquivo, da memória, da prática científica, da
língua, do enunciado, da identificação, bem como artigos que
refletem sobre a questão da arte, do corpo, da doença, da criança,
do aprendizado de línguas, da criminalização, da violência,
do Estado, da terra, dos índios, da propaganda política, das
instituições de ensino, da Constituição Brasileira e da sociedade
de controle e disciplinar.
No primeiro artigo desta Revista, “Disciplinarização
dos estudos em Análise do Discurso”, Mariani e Medeiros, as
organizadoras, refletem sobre o estado atual das pesquisas em
Análise de Discurso no Brasil. Advertem sobre a homonímia do
termo ‘discurso’, ‘Análise do Discurso’, dentre outros, apontando,
por isso, ser crucial pensar a história de uma disciplina a
partir de sua historicidade ("memória da conjuntura teórica
que a constitui"), do processo de sua disciplinarização como
produção de saber ("os mecanismos político-acadêmicos que a
intitucionalizam, permitindo sua transmissão"), e das "tênues
linhas que projetam seu porvir", para que se possa refletir
sobre produção de conhecimento e sua transmissão. Apontam
ainda que, para se desfazerem as evidências que deixam essa
transmissão da produção de conhecimento como discursos
sem sujeito, é preciso compreender as condições de produção
de emergência de uma disciplina. E que, no caso da Análise de
Discurso, essa discussão não se poderá fazer sem Eni Orlandi e
Michel Pêcheux, dada sua relevância na fundação e construção
de discursividades sobre o funcionamento da linguagem em sua
relação constitutiva com a história e a ideologia.
No artigo “A emergência do sujeito desejante no discurso do
MST”, Freda Indursky promove uma reflexão assaz importante
para os estudiosos da Análise de Discurso: debruça-se sobre o
sujeito discernindo, em seu fecundo trabalho teórico-analítico,
a questão da incompletude, da heterogeneidade e da divisão
do sujeito. Dando continuidade a uma pesquisa, que tem
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como objeto de investigação o discurso do/sobre o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na mídia, a autora
recupera as designações invasão/ocupação para analisar o jogo
metafórico do deslizamento de uma designação a outra no
discurso de uma liderança do MST, ou ainda, a irrupção do
discurso-outro em uma posição discursiva que interdita tal dizível.
Marie-Anne Paveau, em seu atigo, “Au nom des noms.
Mémoire et démémoire discursives en résistance”, centra sua
reflexão teórica na questão do nome próprio. Recuperando cinco
nomes próprios em diferentes suportes e materiais imagéticos –
grafite na rua, inscrição em lápide de cemitério, nome em lista
de nomes no “Mur des disparus français d’Algérie”, nomeação
na lista de Legião de Honra pelo Ministro de Ensino Superior e
de Pesquisa do governo francês e o nome de uma universidade
francesa – para mostrar em sua análise, que parte da noção de
memória discursiva de Courtine e na qual proprõe a noção de
desmemória discursiva, cinco maneiras de resistir às normas, aos
poderes e aos desaparecimentos.
Em “O vazio como condição: um movimento de sentidos
a partir do horror”, um artigo ao mesmo tempo fecundo e belo,
Lucília Maria Abrahão e Sousa se debruça sobre o conceito de
Das Ding, em Freud e Lacan, instância do real e do inominável,
e, assim, aprofunda questões relativas à psicanálise – é preciso
sublinhar que o quadro teórico da Análise de Discurso é
atravessado pelas leitura de Freud por Lacan – que são caras
à Análise de Discurso. A autora engendra uma reflexão sobre
o vazio, o real e a linguagem convocando Machado de Assis,
Clarice Lispector e fazendo uma densa análise da exposição
“Hace falta mucha fantasía para soportar la realidade” em
memória às vítimas do 11-M, em Atocha; como diz a autora,
“metáfora visual do que presentifica Das Ding”.
Com o artigo de Luciene Jung de Campos, “Desejo de
desejo na mercadoria e o olhar do artista”, estamos diante, tal
como com o de Sousa, de uma articulação profunda entre a
Psicanálise e a Análise de Discurso tendo o campo da Arte como
material de análise, no caso de Jung, o foco incide sobre o ensaio
fotográfico na publicidade/propaganda. Neste artigo, advindo de
sua tese de doutoramento, a autora se propõe a “refletir sobre a
ideologia enquanto o ‘espelho’ que cumpre a tarefa de organizar
a imagem fragmentada do sujeito dividido e desamparado”.
Belmira Magalhães e Helson Flávio da Silva Sobrinho, em
“Materialidades discursivas e o funcionamento da ideologia
e do inconsciente na produção de sentidos”, se propõem a
desnaturalizar discursos que circulam no cotidiano de nossa
contemporaneidade. Este artigo, cujo cerne é o materialismo
histórico e cujo suporte teórico é o de Análise de Discurso, traz
uma reflexão produtiva e necessária acerca da subjetividade
em uma teoria de natureza não-subjetiva, como é o caso da
8
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Análise de Discurso aqui em foco, para, em seguida, analisar
propagandas de telefonia em datas comemorativas do Dia das
Mães e dos Pais.
O artigo “Arquivo, memória e acontecimento em uma
política de Fundos Documentais” de Amanda E. Scherer,
Simone de Mello de Oliveira, Verli Petri e Zélia Maria Paim
inscreve-se no campo da História das Ideias Linguísticas no
Brasil (Orlandi e Guimarães) articulado com os estudos franceses
da História Social da Linguística. Traz-nos a criação do Fundo
Documental Neusa Carson, renomada linguista brasileira com
atuação expressiva no campo da descrição das línguas indígenas,
promovendo uma importante reflexão sobre a prática científica
como prática social. Neste artigo encontra-se ainda uma leitura
de arquivo em dois trajetos temáticos, a saber, Cartografia da
língua e de si e Política de línguas e o lugar do linguista.
No artigo “Para além do efeito de circularidade:
interpretando as noções de pré-construído e articulação a partir
de enunciados ‘idem per idem’”, Aracy Ernst-Pereira, Ercília Ana
Cazarin e Marchiori Quevedo se detêm em um ponto deveras
importante para qualquer Análise de Discurso: o funcionamento
da ideologia na articulação dos enunciados. Para isto, tomam
enunciados tautológicos e focalizam com vagar e acuidade
duas noções teóricas fundamentais que são o pré-construído e
o discurso transverso.
Nádia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo, em seu
artigo “Uma análise discursiva de sujeitos com gagueira”, lança
um novo olhar sobre a gagueira com possibilidades terapêuticas.
Em seu estudo longitudinal de dois sujeitos com queixas e
diagnóstico de gagueira, ambos em terapia fonoaudiológica, a
autora demonstra que o suporte teórico da Análise de Discurso
possibilita um deslocamento do sujeito de uma posição
discursiva dominante, que significa a gagueira como doença,
para uma outra, que o permite sujeito-fluente.
Em “Discurso sobre a criança: a questão do ludicismo”,
Angela Baalbaki, como o título já indica, trata do discurso sobre
a criança e mostra como certos sentidos sobre a criança vão
se constituindo como hegemônicos. Neste artigo, cujo aporte
teórico é a Análise de Discurso, lemos uma criteriosa reflexão
que percorre um extenso corpus do século XVIII ao XIX nos
permitindo compreender como se vai engendrando o que a
autora vai indicar como categoria criança, “produzida nas e
pelas relações postas com o sujeito do capitalismo”. Sua outra
contribuição consiste no conceito de ludicismo para dar conta
desta forma-sujeito histórica.
O artigo de Maria Onice Payer, “Processos, modos e
mecanismos da identificação entre o sujeito e a(s) língua(s)”,
incide sobre uma questão importante na Análise de Discurso
que é a da “identificação do sujeito à língua, como correlata da
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interpelação”. A autora nos expõe resultados de sua pesquisa,
que concerne a processos de identificação na relação sujeito/
língua, e aqui descreve distintos modos pelos quais as relações
entre sujeitos e formas das línguas produzidas na história se
marcam na materialidade linguística. Seu cuidadoso trabalho
visa ainda a contribuir na prática do ensino de língua.
No artigo “Identificação, memória e figuras identitárias:
a tensão entre a cristalização e o deslocamento de lugares
sociais”, de Evandra Grigoletto e Fabiele Stockmans De Nardi,
a questão da identificação também é objeto de reflexão cujo
referencial teórico é a Análise de Discurso. Partindo de conceitos
expandidos em outros trabalhos, como o de lugar discursivo e
mobilizando outros conceitos, as autoras propõem o conceito de
figuras identitárias, no quadro teórico da Análise de Discurso,
e buscam verificar sua pertinência analisando a figura do
Cangaceiro e do compadrito.
Fernanda Surubi Fernandes e Olimpia Maluf Souza, em
“Corpo, trabalho e prazer: as práticas de prostituição em cadastros
policiais”, tocam em uma questão tensa e interdita na sociedade,
a prostituição, e incidem seu foco na relação corpo, trabalho e
prazer. Após uma reflexão discursiva sobre a prostituição, as
autoras tomam como material de análise no campo da Análise de
Discurso cadastros policiais que materializam os sentidos sobre
a mulher e a prostituição, sem, contudo, abrir mão de pensar a
relação entre a profissão de tal público feminino e o Estado na
sociedade contemporânea.
O artigo de Greciely Cristina da Costa, “A milícia e o
processo de individuação: entre a falta e a falha do Estado”,
advindo de sua tese de doutorado em Análise de Discurso, vai
trazer à cena a questão da naturalização da violência policial no
espaço segregado da favela, em que o processo de individuação
do sujeito vai ser marcado pela contraditória ausência-presença
do Estado: falta e falha. A partir de recortes de sua tese, a
autora vai se centrar nas discursividades sobre a milícia (e na
historicidade da sua denominação) tomando como material
entrevistas com moradores do Rio de Janeiro.
Maria do Socorro Pereira Leal, em “Das línguas na história:
‘Upatakon (Nossa Terra)’”, parte de sua tese de doutoramento em
Análise de Discurso, cujo escopo consiste na investigação da
discursividade pela disputa da terra entre índios e brasileiros,
e se centra em manchetes jornalísticas online, aprofundando
a questão da denominação dada a uma intervenção policial –
“Operação Upatakon” – cuja finalidade era auxiliar na retirada
de brasileiros da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Neste artigo, a autora captura o fino jogo estabelecido pela língua
indígena na língua do Estado brasileiro.
Para o artigo “A interface linguagem/mundo como
produção simultânea: quando estudantes enfrentam a
10
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administração central em uma universidade pública”, Bruno
Deusdará e Décio Rocha, tendo como referencial teórico Bakhtin,
Maingueneau e Deleuze, recuperam um evento, a inauguração
de um restaurante universitário em uma universidade pública no
Rio de Janeiro, com o convite oficial assinado pelo governador, a
nota oficial e as notícias divulgadas em página eletrônica, para
uma reflexão em torno do sentido na linguagem como produção
de um lugar que considera o social e o verbal como dimensões
em constante interdelimitação.
No artigo “Análise discursiva do Plano de Desenvolvimento
Institucional do CEFET/RJ: uma proposta de resistência a um
discurso institucional hegemônico”, Fábio Sampaio de Almeida
focaliza o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI). Tratase de um artigo que, à luz da Análise de Discurso Enunciativa,
vai pensar a instituição de ensino, seu papel e as relações de saber
e poder que a constituem, e analisar a construção discursiva da
noção de comunidade que ancora o discurso institucional do
CEFET/RJ.
No artigo “O significado acional no discurso da Constituição
Brasileira: o gênero discursivo normativo constitucional em
questão”, em que se adota como referencial teórico a Análise
de Discurso Crítica, Ruberval Ferreira e Maria Clara Gomes
Mathias têm como foco o estudo da construção discursiva do
gênero discursivo jurídico-normativo-constitucional e, no caso,
focalizam a Constituição Federal de 1988. Os autores, em sua
análise, mostram que as constituições, tais como as conhecemos,
são fruto de reivindicações da classe burguesa no século
XVIII e, entre outros objetivos, questionam o ideal de máxima
representatividade da Carta Magna de 1988.
Regina Baracuhy e Tânia Augusto Pereira, no artigo “A
biopolítica dos corpos na sociedade de controle”, refletem sobre
o corpo inserido na sociedade disciplinar e de controle. As
autoras percorrem diversos textos de Foucault, a fim de expor a
relação entre corpo e poder disciplinar, para, em seguida, pensar,
apoiando-se em Deleuze, Courtine e Gregolin, já na sociedade de
controle, algumas questões importantes relacionadas ao corpo,
como, por exemplo, a sua exposição espetacularizada na mídia
na contemporaneidade e seus paradoxos.
O artigo “A pequena família guineana: abordagem
discursiva do continuísmo histórico num discurso pela
independência” de Beatriz Adriana Komavli de Sánchez
tem como objeto de análise o pronunciamento que marca a
independência da Guiné Equatorial, única nação africana que
tem como língua majoritária oficial o espanhol, em 12 de outubro
de 1968, e ancora-se na Análise de Discurso de linha bakhtiana.
As designações e negativas são algumas das marcas trabalhadas
neste material de análise, fruto de uma pesquisa mais ampla que
visa a noção de hispanidade.
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11
Finalizando esta revista, encontram-se duas resenhas
de dois livros importantes para os estudos do discurso. A
primeira, intitulada “Foi ‘análise de discurso’ que você disse?”,
por Silmara Dela Silva, contempla uma fundamental coletânea
de textos de Michel Pêcheux, organizados por Eni Puccinelli
Orlandi no livro “Análise de discurso: Michel Pêcheux”, em 2011,
pela Pontes Editores. A segunda resenha, “Gumbrecht: latência
na história”, por José Luís Jobim, nos apresenta o recente livro
de Hans Ulrich Gumbrecht, a saber, After 1945: Latency as Origin
of the Present, publicado pela Stanford University Press em
2013. Com ela, fechamos a revista com uma prática comum aos
analistas de discurso: a leitura de autores caros, no que se refere
às questões que traz; de autores que nos permitem avançar em
nossas reflexões.
Vanise Medeiros (UFF)
Bethania Mariani (UFF)
12
Niterói, n. 34, p. 7-12, 1. sem. 2013
Artigos
Disciplinarização dos estudos
em Análise do Discurso
Bethania Mariani (UFF/CNPq/FAPERJ)
Vanise Medeiros (UFF/CNPq/FAPERJ)
Nunca começa onde começa oficialmente. Começa antes.
(Eni Orlandi, 2009)
Palavras iniciais
Qual o estado atual das pesquisas em Análise de Discurso
no Brasil? Essa pergunta, para ser objeto de reflexão, demanda
uma outra: à Análise do Discurso corresponde um campo de
produção de conhecimento nas Ciências Humanas e Sociais já
estabelecido e em transmissão nas instituições universitárias?
Sendo a resposta positiva para esta questão, qual a conjuntura
teórica que constituiu tanto sua institucionalização quanto sua
transmissão?
Uma nota de advertência antes de prosseguirmos: como nos
lembra Pêcheux (1983), é necessário desautomatizar a repetição
das formas de pensar e, também, a pura repetição de termos ou
expressões que, apesar de homônimos, remetem para conceitos
muitas vezes distintos. É o que queremos problematizar inicialmente.
Embora de uso bastante frequente nos estudos da linguagem, o termo ‘discurso’ e as expressões ‘análise do discurso’,
‘análise de discurso’, ‘produção de conhecimento’, ‘ciências humanas e sociais’, ‘institucionalização’ e ‘transmissão’ não possuem
sentidos transparentes nem portam evidências em si mesmos.
Essas expressões, e mesmo a que é nosso objeto de investigação,
a ‘análise de discurso’, significam dentro de “configurações discursivas” (MILNER, 1989) que marcam distintas maneiras de se
conceber ciência, conforme a doutrina epistemológica em jogo.
Assim, é importante esclarecer de que lugar falamos quando nos
propomos a escrever sobre a Análise de Discurso no momento de
publicação dessa Gragoatá 34. E, já de imediato, esclarecemos nossa
posição teórica. Situamo-nos em um lugar da teoria do discurso no
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013
qual se imbrica o pensamento francês e o pensamento brasileiro,
e cujo entrelaçamento porta uma memória a ser mencionada, e
retomada em vários momentos da escrita desse texto: a Análise
do Discurso que se desenvolve na França, com os trabalhos de
Michel Pêcheux, durante sua permanência no CNRS a partir
dos anos sessenta, à frente de uma equipe multidisciplinar; e os
trabalhos de Pêcheux em sua reterritorialização no Brasil, com
outros desdobramentos teóricos e analíticos, a partir das pesquisas
de Eni Orlandi, em torno do final dos anos setenta, no Instituto
de Estudos da Linguagem, na UNICAMP.
Também, de imediato, trazemos para dialogar com o nosso
texto dois artigos de Orlandi – (2012a) Apagamento do político na
ciência: notas à história da Análise de Discurso. Fragmentação, diluição,
indistinção de sentidos e revisionismo; e (2012b) Análise de Discurso
e contemporaneidade científica –, e o de Scherer & Petri (2012) – Le
mouvement et les déplacements des études sur le discours à partir des
années 1980 et leur disciplinarisation: le cas brésilien.
O ato de saber, a disciplinarização e a historicidade
Comecemos retomando Auroux (2008), tendo em vista que,
para esse autor, na compreensão da produção de saber como
conhecimento, há que se distinguir os saberes tácitos, que constituem nossas práticas cotidianas, dos saberes que portam formas
de representação seja das línguas, seja das relações humanas, seja
do mundo etc. No âmbito da produção de saber como conhecimento, Auroux define o ato de saber como sendo limitado e possuindo, por definição, uma temporalidade que não é sem horizonte
de retrospecção e sem horizonte de projeção. Afirma Auroux: “o
saber não destrói seu passado, mas sim, o organiza, o escolhe, o
esquece, o imagina ou o idealiza e também tenta antecipar seu
futuro, sonhando enquanto o constrói.” (AUROUX, 2008, PG). A
história presente de uma disciplina inclui, desse modo, sua historicidade, ou seja, a memória da conjuntura teórica que a constitui;
o processo de sua disciplinarização enquanto produção de saber,
isto é, os mecanismos político-acadêmicos que a institucionalizam, permitindo sua transmissão; e, por fim, a possibilidade de
apreensão das tênues linhas que projetam seu porvir.
Disciplina e disciplinarização são dois termos que também
precisam ser definidos. Puech e Chiss (1999), linguistas que se ocupam da História das Teorias Linguísticas, propõem a utilização do
termo ‘disciplina’ para assinalar que a produção de conhecimento
necessita de ser transmitida, e que as fronteiras dessa produção
não são totalmente definidas ou delimitadas, uma vez que são
configuradas discursivamente, constituídas por processos que
não são estanques. Com a noção de disciplina, os autores colocam
a questão da transmissão como central: uma teoria de linguagem
supõe textos fundadores e seus comentadores.
16
Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013
Com o termo ‘disciplinarização’, pretendemos levar em consideração não apenas o aspecto conceitual, mas também os
aspectos práticos que organizam a transmissão: inscrição nas
instituições científicas, utilização e uso dos saberes às vezes de
forma vulgarizada na escola, nos colégios, nas universidades.
(CHISS; PUECH, 2010, p. 72)
Um aspecto ligado à disciplinarização é o que os autores
chamam de incremento da expansão da escolarização, sobretudo
em sua relação com as condições históricas em que são ordenadas
políticas para as línguas e para a educação de um modo geral. A
compreensão das condições históricas que propiciam a emergência de uma disciplina é crucial para se desfazerem as evidências
que deixam a transmissão da produção de conhecimento como
discursos sem sujeito. Chiss e Puech (1999) enfatizam que os
discursos sobre o objeto e sobre o método são discursos afetados
pelos discursos disciplinares, os quais organizam a forma e as
estratégias de transmissão da teoria. “Em suma, a disciplina é
menos um estado de fato que um processo sempre já começado
e recomeçado”. (CHISS; PUECH, 1999, p. 10).
As condições de transmissão de um saber bem como a
transmissão em si se encontram sempre perpassadas pelos atos
de enunciação daqueles que se ocupam desse processo de disciplinarização, o que não quer dizer, ingenuamente, que haveria um
estado de ciência pura, isenta, ou não afetada pelos processos de
transmissão. Por outro lado, os que se ocupam da disciplinarização e da transmissão nem sempre (com)partilham o lugar teórico
do conhecimento em jogo, o que afeta, igualmente, a transmissão.
Em outras palavras, não há como se desembaraçar da carga imaginária que se produz sobre o que está sendo disciplinarizado e
transmitido: as imagens têm força inegável e constituem a própria
transmissão. E, também, como nos lembram Chiss e Puech:
Formuler l’hypothèse
d’u ne re c on n a is s a nc e
t o u j o u r s p o s s i bl e d u
d iscou r s d iscipli nai re
der r ière le discou rs
s u r l’o b j e t e t s u r l a
méthode, c’est supposer
a u c o nt r a i r e q u e d e s
conditions d’énonciation
s p é c i f iq u e o r d o n n e nt
toujou r s les savoi r s
savants en apparence les
plus désincarnés. C’est
également envisager
des strates du discours
disciplinai re où les
images de la discipline se
combinent, se superposent,
se font écho en foction
de st r at ég ies va r iées,
depois l’invention des
connaissances jusqu’à leur
socialisation la plus large.
(CHISS; PUECH, 1999,
p. 18, tradução nossa)
Formular a hipótese de um reconhecimento sempre possível
do discurso disciplinar por trás do discurso sobre o objeto e
sobre o método é supor, ao contrário, que condições de enunciação específicas sempre organizam os saberes da ciência
aparentemente menos afetados pela realidade. É igualmente
considerar estratos do discurso disciplinar em que as imagens
da disciplina se combinam, se superpõem, fazem eco em função de estratégias várias, desde a invenção dos conhecimentos
até sua socialização mais larga1. (CHISS; PUECH, 1999, p. 18)
1
O conhecimento é produzido, é disciplinarizado e circula
em condições histórico-enunciativas de produção bastante específicas, o que significa sua inserção em políticas científicas e
acadêmicas nacionais e, ainda que indiretamente, internacionais
também. ‘Política científica’ é uma expressão que remete para um
tensionamento entre o controle e a independência da pesquisa e
do pesquisador. O funcionamento das políticas científicas implica
um gerenciamento que perpassa a produção de conhecimento
Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013
17
tanto no âmbito institucional, em termos do incremento de um
campo disciplinar, como individual, do pesquisador (com ou
sem seu grupo) na elaboração de seu projeto, com justificativas
para a escolha do objeto de estudo, explicações sobre a relevância social ou para a formação de jovens pesquisadores ou, ainda,
para o próprio campo teórico-metodológico, além de limitações
geradas por formas de financiamento, o que representa formas
de estabelecimento de vínculos com órgãos de fomento e seus
instrumentos de avaliação (GUIMARÃES, 2003).
Produzir conhecimento, nesse sentido, é se encontrar submetido aos efeitos da historicidade – seja aderindo, seja resistindo, seja propondo criticamente alternativas à política vigente
–, que constituem e delimitam o lugar da produção científica
no estabelecimento de relações com políticas de Estado, com a
sociedade e com a universidade, enquanto lugar privilegiado
da disciplinarização e transmissão. Além disso, nos dias atuais,
ainda no que tange à produção de conhecimento de um modo
geral, a velocidade da internet é um outro aspecto que precisa
ser considerado como parte dos efeitos de historicidade, pois, ao
ser incorporada ao trabalho científico, a internet vem produzindo
uma diluição nas formas do pensar teórico, e a pesquisa, muitas
vezes, fica reduzida a sites de busca de ‘informações’, com textos
obscuros e pouco confiáveis. Tudo isso nos leva a refletir sobre o
lugar dessa produção científica que, situada no escopo dos estudos
da linguagem, recebeu o nome de Análise do Discurso, conforme
o título que Pêcheux deu ao seu livro Analyse Authomatique du
Discours (1969), conhecido como AAD69.
Análise de discurso: memórias e atualidades
No Brasil, os estudos em Análise de Discurso surgem por
volta dos anos 70 do século XX. São estudos que se originam na
Europa, especialmente na França, na década anterior, e têm como
base a obra do filósofo Michel Pêcheux, uma obra profundamente
afetada pelas releituras de três fundadores de discursividades:
Marx, Freud e Saussure. Henry, em artigo que busca explicar a
conjuntura intelectual francesa que está na base das condições de
produção do AAD69, afirma que
Pêcheux queria se apoiar sobre o que lhe parecia já ter estimulado uma reviravolta na problemática dominante das ciências
sociais: o materialismo histórico tal como Louis Althusser o
havia renovado a partir de sua releitura de Marx; a psicanálise,
tal como a reformulou Jacques Lacan, através de seu ‘retorno
a Freud’, bem como certos aspectos do grande movimento
chamado, não sem ambiguidades, de estruturalismo. (HENRY, 1990, p. 14)
Por outro lado, Mazière (2008) e Maingueneau (1990) localizam os inícios da Análise do Discurso enfatizando ângulos dessa
18
Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013
historicidade de modos distintos. Mazière realça a interlocução crítica com o artigo Discourse analysis, de Z. Harris (1952), e discussões
situadas por Jean Dubois e seu grupo (MAZIÈRE, 2008). Maingueneau, para distinguir a escola americana da francesa, afirma que
a Análise do Discurso, na França, inscreve-se na tradição das
pesquisas filológicas e filosóficas com o texto, enquanto que a
tradição americana filia-se à etnometodologia, sendo, nessa perspectiva, mais voltada para a oralidade (MAINGUENEAU, 1990).
Para ambos, o que se convencionou chamar de Escola Francesa
de Análise do Discurso, em torno de Michel Pêcheux e seu grupo, apresenta um diferencial que é o de propor como horizonte
uma análise discursiva de textos distinta de uma hermenêutica
e distinta, sobretudo, da análise de conteúdo. Para compreensão
dos desdobramentos dos estudos discursivos do grupo Pêcheux,
é necessário fazer uma tomada de posição em que a história e a
ideologia são constitutivas da materialidade linguística, e que o
sujeito é dividido pelo inconsciente e interpelado pela ideologia.
Na conjuntura francesa dos anos 60, assinando como Thomas Herbert, Pêcheux chama a atenção para uma rarefação do
pensamento crítico no âmbito das ciências humanas uma vez que
as teorias desse campo do conhecimento, imersas em dicotomias
e oposições, reproduzem efeitos das formas filosóficas do século
XIX, sobretudo as de base kantiana. Essas oposições são estabelecidas a partir “do surgimento do indivíduo como sujeito histórico
novo e a racionalização da sociedade (...)” (HERBERT-PÊCHEUX,
2011 [1969b], p. 187). Tal atravessamento das ciências humanas por
essas formas de pensar produz, no caso específico dos estudos
linguísticos, uma dicotomização teórica que opõe a liberdade
do falante, sua possibilidade de criar, ao sistema da língua, que
restringe essas mesmas possibilidades de criação. E nessa mesma chave, com uma reflexão que acompanha sua obra, Pêcheux
recorta também a oposição entre estudos empiristas e estudos
formalistas. Esse mapeamento das dicotomias desemboca na
depreensão de três tendências dos estudos linguísticos, segundo
Pêcheux: a tendência formalista-logicista, a tendência histórica e
a linguística da fala (PÊCHEUX, 1988 [1975]). À Análise de Discurso não caberia uma quarta tendência, mas sim o trabalho de
construção de um domínio teórico situado na contradição aberta
pelas três outras tendências. Um lugar teórico de onde se pudesse
fazer intervenções críticas com abertura para campos de questões
situadas fora das três tendências mencionadas, ou seja, questões
relacionadas às noções de sujeito, sentido, inconsciente e ideologia.
Para Pêcheux, a resposta à pergunta se haveria “uma via para
a linguística fora do logicismo e do formalismo?” (PÊCHEUX,
1981 [1998]) constitui uma forma de circunscrever os efeitos do
idealismo subjetivista e, ao mesmo tempo, a abertura de um outro
campo de questões para os estudos da linguagem, sobretudo para
estudos da produção de sentidos que incluíssem o real da língua,
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o real da história, e a noção de sujeito dividido pelo inconsciente
e interpelado pela ideologia como categorias teóricas.
Nesse quadro de reflexões, que se desdobra entre os anos
60 e 80, a Análise do Discurso, a partir de Pêcheux, é teorizada
de forma a reinvestigar sempre seus fundamentos de partida.
Situa-se, dessa forma, como uma disciplina de entremeio, disciplina que abre seu campo de questões para uma semântica de
base materialista, a qual não separa discurso e prática política.
Scherer e Petri (2012) referem-se ao acontecimento da entrada dos estudos do discurso no Brasil como um momento inicial
da disciplinarização dessa tomada de posição teórica sobre uma
forma específica de produzir conhecimento sobre a linguagem: o
discursivo. Esse marco é relevante para que se compreendam os
desdobramentos teóricos e os destinos acadêmicos que os estudos
do discurso tomam ao serem disciplinarizados, inicialmente, nos
cursos de Pós-graduação brasileiros e, pelo menos duas décadas
mais tarde, nos cursos de graduação.
Na década de 70 e na de 80 do século XX, os estudos discursivos no Brasil também vão de encontro ao terreno conflagrado
das três tendências delineadas por Pêcheux. A posição teórica
que traz como objeto o discurso entra em descontinuidade com
os estudos linguísticos até então vigentes, ou seja, instala-se como
acontecimento teórico, como ponto de ruptura com a linguística
que até então se fazia: não se trata mais de um quadro teórico-metodológico formalista ou empirista para conceituar e analisar sistemas linguísticos, mas sim de uma mudança radical de terreno,
que implica um objeto próprio – o discurso, definido como efeito
de sentidos entre locutores –, e inclui, em seu enquadre teórico, o
materialismo e a psicanálise articulados aos estudos da linguagem. É uma posição teórica que traz um engajamento político
próprio: falar é tomar posição no sócio-histórico, é inscrever-se
subjetivamente em redes de sentidos com a ilusão de se estar na
origem e no controle do dizer.
Dos anos 90 para o momento atual houve um crescimento expressivo de estudos discursivos, porém, com enquadres
teórico-metodológicos bastante diferenciados das reflexões de
Pêcheux. Garantidas por uma crescente disciplinarização no
âmbito universitário de pós-graduação, a palavra ‘discurso’ e as
expressões ‘análise do/de discurso’ e ‘teorias do discurso’ circulam
cada vez mais fortemente no campo dos estudos da linguagem,
no Brasil, em quase 40 anos, sustentando, a cada vez que são
empregadas, referenciais teóricos e métodos de análise bem distintos. As distinções, no entanto, muitas vezes vão se diluindo,
mesmo tendo-se em vista conceitos de base como sujeito, sentido,
inconsciente, ideologia, além da forma de organização dos corpora
e os objetivos propostos para analisá-los. De que forma se realiza
a disciplinarização das teorizações? Verificar em detalhes a especificidade do modo como se vem realizando a transmissão desses
20
Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013
distintos campos de produção de conhecimento que se reúnem
sob o nome ‘análise do discurso’, cada qual em sua singularidade,
é tarefa ainda a ser desenvolvida por um grupo de pesquisadores
de forma a acompanhar, em parte, seus efeitos em dissertações,
teses, publicações e apresentações em congressos.
A comunidade imaginada ‘somos todos do discurso’ institui, de um lado, uma forte homogeneidade que tem sua relevância quando se trata de política científica, mas, por outro lado,
pode apagar as filiações teóricas em suas bases de sustentação
epistemológicas. Se o termo ‘discurso’ e a expressão ‘análise do
discurso’ ganham em visibilidade e circulação, eventualmente
perdem na espessura teórica que garante as diferenças, ou seja,
no modo como articulam os processos de produção de sentidos
com o histórico-ideológico, de um lado, e com a noção de sujeito,
de outro. A palavra ‘discurso’, enquanto conceito teórico, por
exemplo, está definida em Benveniste, em Pêcheux, em Lacan,
em Foucault, em Maingueneau, em Charaudeau, em Fairclough;
mas, muitas vezes, não se encontra definido conceitualmente em
outros autores, embora seja usada como referência genérica à fala.
Assim, o que se observa é que ‘discurso’ e ‘análise do/de
discurso’ são expressões que garantem o pertencimento à comunidade imaginada de analistas do/de discurso, mas como estão
associadas muitas vezes de maneira generalizante ou misturada
a intelectuais com filiações teóricas e interesses distintos acabam por embaralhar as perspectivas, retirando a densidade das
teorias e das análises específicas. Em outras palavras, com essa
forte circulação, não se garante no transmissível a necessária reflexão crítica sobre as fronteiras epistemológicas que constituem
tão diferentes domínios e análises de linguagem aí propostos.
Mesmo assim, é possível perguntar: mencionar nomes próprios
de autores, de teorias, e citar conceitos, seria uma prerrogativa
suficiente para fundamentar os saberes de um campo de produção
de conhecimento e trabalho em toda sua complexidade interna e
demarcação de fronteiras?
Sem dúvida, como nos adverte Orlandi (2012)
temos a Análise de Discurso, a Pragmática, a Teoria da Enunciação, a Análise Textual e muitas disciplinas que tratam da
relação com a exterioridade, junto a disciplinas mais antigas,
como a Semiótica, a Retórica, a Semiologia, a Filosofia da Linguagem. (ORLANDI, 2012a, p. 26, grifos nossos).
Porém, e esse é um dos aspectos para os quais Orlandi
chama a atenção, esse tratamento da relação entre a linguagem
e a exterioridade não se processa da mesma forma. Conforme a
autora, discutindo a relação entre disciplinas e o apagamento dos
muitos sentidos da palavra ‘discurso’,
Passa-se a indistinguir as divisões disciplinares em suas
diferentes posições teóricas (face a noções como discurso, exteNiterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013
21
rioridade, contexto, sujeito etc.). Reúne-se assim no mesmo lugar
teórico – como se isso fosse possível – a filosofia da diferença (Foucault, Derrida, Deleuze etc.), a semiologia, a semiótica, a filologia
etc. (ORLANDI, 2012, p. 29)
Trazemos um exemplo. Ideologia e inconsciente são conceitos que, quando aplicados ou transferidos sem uma justificativa
teórica de sua entrada em um quadro teórico-metodológico, além
de ficarem esvaziados de seu potencial crítico, podem produzir
contradições internas na análise pretendida. Não basta mencionar
o inconsciente como um atributo do sujeito se não se tem como
memória a obra de Freud bem como a consequente discussão
que fundamenta criticamente a desnaturalização de concepções
formadas durante o século XVIII, constituindo o homem como
objeto de análise e, por conseguinte, o campo das ciências humanas
tal como o conhecemos hoje.
Uma especificidade da disciplinarização
Trazemos para reflexão um acontecimento histórico bastante
significativo dessa virada do início dos anos 90, um acontecimento
que impulsionou e consolidou, a nosso ver, a disciplinarização da
Análise de Discurso. Na primeira reunião da Associação Nacional
de Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL), em 1986, em
Curitiba, ocorreu a criação de vários Grupos de Trabalho, dentre
eles a do Grupo de Trabalho em Análise do Discurso. Fundava-se
O GT, com o aval da política científica da época, e a partir de um
exercício efetivamente realizado de investimento teórico, de tradução de textos, de orientação de alunos, de aulas ministradas,
de financiamentos de pesquisas e de participações em congressos
um forte núcleo de pesquisadores do discurso associados entre si,
e, ao mesmo tempo, sustentando eticamente suas diferenças. Foi
uma vitória política, portanto, o reconhecimento do percurso de
trabalho e pesquisas realizadas, o que promoveu o fortalecimento
da disciplinarização e transmissão dos estudos do discurso. Foi a
pesquisadora Eni Orlandi, professora do Instituto de Estudos da
Linguagem, UNICAMP, quem fundou o GT de AD e coordenou
seu primeiro encontro durante as atividades do II Congresso da
ANPOLL, no Rio de Janeiro, em 1987.
Desde sua fundação, o GT de AD abrigou diversas tendências teóricas, organizando os pesquisadores em uma comunidade.
Tomo o termo ‘comunidade’ na forma como Auroux (2008) o
conceitua, tanto em seu sentido mais genérico – o pertencimento a
grupos se dá antes mesmo do pertencimento ao Estado –, quanto
em seu sentido estrito do comunitarismo científico de grupos que
sustentam alianças ou concorrem entre si conforme as políticas
em jogo e, portanto, sempre inseridos em condições de produção
determinadas. No ato de fundação do GT, como bem nos lembra
Indursky, ex-coordenadora do GT e ex-presidente da ANPOLL:
22
Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013
No que tange ao GT de Análise do Discurso (GETAD),
desde logo ele abrigou em seu interior diferentes perspectivas
teóricas – Escola Francesa de Análise do Discurso, Semiótica
Discursiva, Teoria da Enunciação, Teoria do Texto que se interessam pelo discurso, apresentando, assim, uma pluralidade de
pesquisas, em lugar de priorizar uma única vertente. Esse modo
de funcionamento faculta o desenvolvimento concomitante de
várias pesquisas, sem haver imposição de um trabalho único e
uniforme para todos seus membros. Essa política interna permite
a administração democrática desse espaço institucional, sem que a
usual disputa de poder/prestígio interfira no ritmo dos trabalhos.
(INDURSKY, 1994)
A fundação do GT no âmbito da ANPOLL, em 1986, torna
visível um processo histórico de disciplinarização da Análise do
Discurso que já estava ocorrendo desde o início da década de 80
do século passado: do Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, para outros cursos de Letras no Brasil, em um movimento
que partiu dos programas de pós-graduação para o ensino de
graduação.
Muitas vezes sob o nome Análise do Discurso, disciplina-se
universitariamente uma comunidade imaginária, como dissemos
anteriormente, encobrindo diferenças teóricas que, se trabalhadas,
poderiam se revelar bastante produtivas em suas especificidades,
a começar pelas noções de língua, sujeito, sentido e seguindo
para outras, como texto (verbal ou não-verbal), enunciação e
interlocução.
De qualquer maneira, qualquer que seja a discussão sobre
Análise de Discurso, esta não se dará sem Eni P. Orlandi e Michel
Pêcheux, autores que demonstraram a relevância da construção
de um lugar teórico e de um método próprio para a construção de
dispositivo de análise sobre o funcionamento da linguagem em
sua relação constitutiva com o histórico-ideológico. A Análise de
Discurso é uma disciplina de entremeio que está sempre retornando e reinvestigando seus fundamentos ao mesmo tempo em
que sua reflexão desloca e reterritorializa conceitos vinculados aos
campos teóricos com os quais dialoga: a linguística, mais especificamente a teoria da enunciação tomada de um ponto de vista não
subjetivo; o materialismo histórico, enquanto teoria das formações
sociais e suas transformações; e, também, a psicanálise, base para
se compreender o sujeito dividido, uma vez que o homem não é
senhor de sua morada, como afirma Freud.
O trabalho da análise discursiva dos processos de produção
dos sentidos, e de seus efeitos, quando tomado do ponto de vista de
Pêcheux e Orlandi, incide na suspensão das certezas, na crítica das
evidências, na desconstrução das verdades, na escuta do silêncio
e das políticas de silenciamento. O político, compreendido aqui
como a divisão de sentidos na língua, é dessa forma constitutivo
do trabalho de análise.
Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013
23
E a resistência, tema principal desse número da Gragoatá
34, faz parte do movimento da divisão dos sentidos e do sujeito.
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questão da origem das línguas seguido de A historicidade das ciências.
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Niterói, n. 34, p. 15-25, 1. sem. 2013
25
A emergência do sujeito desejante
no discurso do MST
Freda Indursky (UFRGS)
Resumo
No presente trabalho, retorno às designações ocupação/invasão para examinar um registro muito
peculiar da designação invasão, ocorrido em uma
entrevista com Diolinda Alves de Souza, líder do
MST, em 06/12/1995, para a Revista da Folha. Interessou-me, nesta entrevista, examinar o processo
de subjetivação/identificação de Diolinda: em um
determinado momento da referida entrevista, ao
responder sobre sua primeira ocupação, refere-a
como invasão. Assim procedendo, a entrevistada
não mobiliza o que o sujeito pode/deve dizer a
partir de seu lugar discursivo. Esta designação
não corresponde ao modo de subjetivar-se Formação Discursiva Sem Terra, tão bem desenhado
ao longo da entrevista, até aquele momento. Esse
deslizamento de ocupação para invasão permite
identificar um processo metafórico específico.
Processo metafórico é “um processo não-subjetivo
no qual o sujeito se constitui” (Pêcheux, 1988,
p. 130). E ainda: processo de metáfora consiste
em um “processo sócio-histórico que serve como
fundamento da ´apresentação´ de objetos para os
sujeitos” (idem, p. 132). Entendo que este processo
metafórico específico aqui analisado permite vislumbrar o momento em que o sujeito do discurso
político é lançado em suas memórias de onde
emerge como um sujeito desejante.
Palavras-chave: lugar discursivo; posição-sujeito; formação discursiva; processo metafórico;
produção do desejo; agenciamento sócio-político
pulsional; sujeito desejante.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013
A contradição é inseparável do corpo social,
considerado em seu todo....
(Althusser)
A produção [do desejo] é adjacente
a uma multiplicidade de agenciamentos sociais.
(Guattari & Rolnik)
Era panela, roupas e lona para todo o lado.
Papagaio cantando, galinha piando. Uma festa.
(Diolinda Alves de Souza)
Apresentando a questão
Este trabalho inscreve-se em uma pesquisa que tem como
objeto de investigação o discurso do/sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na mídia. Em várias ocasiões,
trabalhei com as designações ocupação e invasão (INDURSKY, 1999;
2005; 2006, por exemplo). Retomo a elas, nesse artigo, para trabalhar com as possibilidades e limites do sujeito frente aos sentidos
que lhe são permitidos e aqueles que efetivamente produz.
A Teoria da Análise do Discurso (AD) ensina que tudo não
pode ser dito e que os sentidos podem ser muitos, mas não são
nem infinitos, nem qualquer um. Tais restrições sinalizam os
limites do dizível e as interdições com que o sujeito do discurso
se depara em suas práticas discursivas, as quais são indicativas,
entre outras questões, da incompletude da linguagem bem como
da divisão e dispersão do sujeito. E é com estes limites que o sujeito
joga em suas práticas discursivas. Essas são as questões que serão
mobilizadas no presente trabalho.
Para tanto, vou me ocupar do discurso de uma das lideranças do MST no Pontal do Paranapanema, São Paulo. Trata-se de
Diolinda Alves de Souza, mulher de José Rainha, ambos líderes
do MST, no Pontal de Paranapanema, na década de 90 do século
passado. Vou analisar sequências discursivas (SD) extraídas de
duas diferentes entrevistas feitas pela Folha de São Paulo (FSP)
com Diolinda. A primeira, em 01.11.95, por ocasião de sua prisão,
durante uma manifestação de rua, e a segunda, após sua liberação,
em 06.12.1995. Essas SD estão organizadas em dois recortes. O
primeiro (SD 1,2,3,4) indica as coerções a que o discurso de Diolinda está submetido e o segundo (SD5) deixa à mostra a ruptura de
tais coerções. Ambos constituirão objeto de análise nesse trabalho.
A prática discursiva de Diolinda
Como vimos em trabalhos anteriores (INDURSKY, 1999;
2006), as lideranças do MST, ao se referirem às práticas desse
movimento social, o fazem designando-as por ocupação. E, no
discurso de Diolinda, não é diferente. Percebe-se também que o
entrevistador, quando se refere às ações do Movimento, designa28
Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013
as por invasão, mas, ao responder, Diolinda “traduz” invasão por
ocupação.
Para visualizar o jogo discursivo que se estabelece entre
essas diferentes designações no discurso do/sobre o MST, insiro, a
seguir, duas sequências discursivas1 recortadas da entrevista que
Diolinda concedeu à Folha de São Paulo quando se encontrava no
presídio de Carandiru.
O MST não radicaliza ao falar de invasões quando o governo
fala em negociar?
(Pergunta da FSP2 dirigida à Diolinda Alves de Souza, em
Entrevista Coletiva, 1.11.1995, Presídio do Carandiru, SP).
SD1 - A orientação é para que os companheiros continuem
ocupando terras.
A prisão de um ou outro líder não vai inibir o movimento.
(Resposta de Diolinda, 1.11.1995, Presídio do Carandiru, SP).
Como é possível perceber, a interlocução se faz entre
repórter e líder do MST, em que pese o fato de que cada um
desses sujeitos, para poder dizer, precisa se inscrever em seu
lugar social (PÊCHEUX, [1969]3 1990, p. 82). Ao fazê-lo, o repórter
identifica-se com a Formação Discursiva (FD) dos proprietários
rurais, designando as ações do MST por invasão. Por outro lado,
a líder do MST se subjetiva na FD Sem Terra, antagônica à de
seu interlocutor, designando tais ações por ocupação. Desta forma, essas sequências discursivas desenham os diferentes lugares
discursivos (GRIGOLETTO, 2007) que atravessam essa entrevista
– lugar discursivo da imprensa e lugar discursivo de lideranças do MST
– bem como as posições-sujeito a partir das quais os envolvidos
nessa interlocução enunciam. Tais lugares circunscrevem a cena
discursiva (INDURSKY, 1997) em que essa interlocução se trava. A
designação ocupação se faz presente no discurso dessa liderança,
como pode ser observado nas SD que seguem.
A primeira SD refere-se à pergunta formulada pelo entrevistador,
razão pela qual não será
numerada. A segunda
SD consiste na resposta
dada por Diolinda e faz
parte de nosso primeiro
recorte discursivo.
2
O jornal A Folha de
São Paulo será referido
pela sigla FSP.
3
Ao longo do trabalho,
as datas entre colchetes
remeterão à data da primeira edição francesa. E
a data que se lhe justapõe refere-se à data da
publicação brasileira
consultada.
SD2 – As ocupações vão continuar. Isso faz parte dos princípios do
movimento. (Entrevista de Diolinda Alves de Souza a Paulo
Ferraz, FSP – 16.10.95, p. 1-3).
1
SD3 - Vão continuar as ocupações e os plantios no Pontal.
(Entrevista Coletiva de Diolinda no Presídio Feminino do
Carandiru – FSP – 1.11.95, p. 8).
SD4 – É desculpa do Governo dizer que as ocupações atrapalham a negociação. Nunca houve reforma agrária sem mobilização. (Entrevista
de Diolinda no Presídio Feminino do Carandiru – 1.11.95, p. 8).
Como se vê, Diolinda usa a designação ocupação para referir-se às ações do MST, o que é indicativo de que a líder desse
Movimento identifica-se com e subjetiva-se pelo viés da designação
ocupação. Isto é constitutivo de seu discurso. Diolinda subjetiva-se
a partir de seu lugar discursivo de liderança, pelo viés de uma designação já estabilizada e normatizada no discurso do MST, tal como
Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013
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ele ocorre na mídia, pois essa designação remete a redes de memória
onde ocupação aparece como uma “coisa-a-saber” (PÊCHEUX,
[1982] 1990, p. 34) para quem se inscreve no lugar discursivo de
uma liderança do MST. Essa coisa-a-saber caracteriza as SD constitutivas de nosso primeiro recorte. E assim é até o momento da
entrevista que Diolinda concedeu à Revista da Folha [de SP] em
06.12.95, após ter tido sua prisão relaxada.
Nessa entrevista, Diolinda fala de ocupações, de sua luta pela
terra, da acusação de assassinato que pesa sobre seu marido, José
Rainha, e também se refere a seu filho. Enfim, responde tranquilamente sobre todas as questões que lhe são feitas, até que, num
determinado momento da entrevista, ao ser questionada sobre sua
primeira ocupação, refere-se a ela como invasão. Vejamos a sequência discursiva que traz esse registro, o qual vai constituir nosso
segundo recorte discursivo e nosso objeto específico de análise e
reflexão no presente trabalho.
SD5 – Quando tinha 15 anos, os pais entraram em uma disputa de terra que acabou originando o assentamento Vale
da Vitória, perto do Município de São Mateus (ES). O conflito
rendeu um lote para os Alves de Souza. E encantou Diolinda:
“Me lembro bem daquela invasão. Eufóricas, centenas de famílias
levantavam barracos na madrugada. Era panela, roupas e lona para
todo o lado. Papagaio cantando, galinha piando. Uma festa”.
(Entrevista de Diolinda Alves de Souza à Revista da Folha [de
SP], 06/12/95, p. 17) (O destaque é meu).
Meu projeto de pesquisa gira em torno do
discurso do/sobre o MST,
tal como ele é apreendido através da imprensa.
Nesse âmbito, o discurso dos assentados e
dos acampados pouco
aparece e não se constitui em objeto de minha pesquisa. Outros
pesquisadores têm se
ocupado do discursos
dos sem-terra assentados e acampados e,
em suas pesquisas, observaram que, entre os
sem-terra, pode aparecer a designação invasão.
Já meu trabalho busca
apreender e examinar o
discurso das lideranças
do MST tal como este
aparece na imprensa. E,
neste âmbito, o sentido
normatizado e reg ulamentado é ocupação,
como é possível verificar
trabalhos anteriores,
referidos no início deste
trabalho.
4
30
É este fato discursivo que será objeto de interpretação. Interessa-me refletir sobre o que levou a entrevistada a substituir a
designação ocupação, própria à posição-sujeito de liderança que
ocupa, pela designação invasão, proveniente do discurso-outro, do
discurso próprio à posição-sujeito antagonista, a partir da qual
os proprietários rurais4 enunciam. É essa troca inusitada que reteve
minha atenção. E este processo que consiste em tomar uma palavra pela
outra, ou seja, ocupação por invasão, vou chamar, apoiando-me em
Pêcheux ([1975] 1988), de processo metafórico.
Em Semântica e Discurso, lê-se que um processo metafórico é
“um processo não-subjetivo no qual o sujeito se constitui” (PÊCHEUX,
[1975] 1988, p.130). E, um pouco adiante, o autor explicita que ele
consiste em um “processo sócio-histórico que serve como fundamento
da ´apresentação´ de objetos para os sujeitos” (idem, p. 132).
A partir dessas duas formulações sobre a noção de metáfora,
vou examinar o registro muito específico de invasão, identificado
em SD5. A elas, acrescento uma terceira passagem, citada a partir
de outro texto de Pêcheux ([1982] 1990a): um processo metafórico,
segundo Pêcheux, possibilita examinar não só sentidos que deslizam, mas também uma possível falha no ritual, como podemos ler na
citação que segue:
a interpelação ideológica como ritual supõe o reconhecimento
de que não há ritual sem falha, desmaio ou rachadura: “uma palavra
Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013
por outra” é uma definição da metáfora, mas é também o ponto em que
um ritual chega a se quebrar no lapso ou no ato falho (PÊCHEUX,
[1982] 1990a, p. 17) (O destaque é meu).
Interessa-me examinar, nesse trabalho, o processo metafórico ocupação/invasão identificado na prática discursiva de Diolinda,
com o objetivo de indagar sobre seu sentido: seria o processo
metafórico ocupação/invasão indicativo do que Pêcheux designa
na citação precedente de falha no ritual? Seria a palavra invasão
tomada em substituição a ocupação, indicativa de que Diolinda
teria se desidentificado dos saberes da FD a partir da qual tem
se subjetivado ao longo de sua vida de militante e se identificado com a FD em que se inscreve o discurso dos latifundiários?
Como interpretar o deslizamento de ocupação para invasão? Essa
é a minha questão, aqui.
Inicio minha reflexão, apontando a hipótese com que vou
trabalhar: o processo discursivo ocupação/invasão não representa o
sintoma de uma quebra no ritual de interpelação ideológica de
Diolinda. Enunciar invasão por ocupação, no caso em análise, não
significa que ela tenha se desidentificado da FD Sem Terra e tenha
passado a se identificar com a FD dos Latifundiários. Este deslizamento pode, quando muito, ser a pista de um vacilo sofrido pelo
sujeito desse discurso (PÊCHEUX, [1982] 1990b, p. 314-17). Cabe,
a seguir, indagar sobre a natureza desse vacilo.
Frente a essa hipótese inicial, avanço um pouco mais: parece-me que, assim como não ocorreu um processo de desidentificação, tampouco sucedeu um processo de contra-identificação
(PÊCHEUX, [1975] 1988, p. 214-7). Este processo metafórico aponta
para um outro processo semântico que passo a examinar, a seguir.
Acredito que essa alternância ou batimento, como diz Pêcheux
([1982] 1990c, p. 54), seja uma oscilação momentânea entre o sentido que pode/deve ser dito do lugar discursivo de uma liderança
do MST e o sentido que, nesse lugar, está interditado, mas que é
produzido mesmo assim.
O deslizamento que estamos examinando vem fortemente
marcado pelos “efeitos do interdiscurso [que] se desenvolvem
em contradições” diz Pêcheux. ([1984] 2011, p. 157). Para Althusser,
a contradição é inseparável da estrutura do corpo social, considerado em seu todo, onde, aliás, ela se exerce, mostrando-se
inseparável de suas condições formais de existência (...) estando,
conseqüentemente, por elas afetadas em seu cerne. Ou seja, em
um único e mesmo movimento, é determinante, mas também
determinada: determinada pelos diferentes níveis e diversas
instâncias da formação social ... (ALTHUSSER, 1967, p. 99-100)
(Os destaques são meus).
Entendo que esse deslizamento indica uma contradição, sim,
mas não implica a ruptura com o próprio discurso e a deriva para
o discurso-outro, afetado pela FD antagônica. Essa passagem de
ocupação para invasão indica mais bem uma apropriação do discurNiterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013
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so-outro. Como veremos, a seguir, ele aponta para algo diferente
da ruptura: no momento em que o sujeito do discurso se apropria
desta designação, a contradição se instaura em seu discurso. É
ainda Pêcheux que ilumina essa contradição, pois tanto ocupação
quanto invasão são
conjunturalmente determinados enquanto objetos ideológicos;
nem universais históricos, nem puros efeitos ideológicos de classe,
esses objetos teriam a propriedade de ser ao mesmo tempo
idênticos a eles mesmos e diferentes deles mesmos, isto é, de existir
como uma unidade dividida, suscetível de se inscrever em um
ou outro efeito conjuntural, politicamente sobre-determinado.
(PÊCHEUX, [1984] 2011, p. 157) (Os destaques são meus)
Diolinda, ao inscrever a designação invasão em seu discurso,
vacila, não entre uma FD e outra, mas entre uma designação e
outra, entre uma posição de sujeito e outra, entre a posição de um
sem-terra e a posição de um líder, mas tal vacilo ocorre no interior da FD Sem Terra e, assim procedendo, é o sentido de invasão
que desliza. Ou seja: uma palavra pela outra, sim. Invasão por
ocupação, sim. Mas não se trata da ruptura do ritual ideológico de
interpelação de Diolinda, e sim de um deslizamento, de um vacilo
do sujeito entre sentidos. Dito de outro modo, não é Diolinda que
desliza de uma FD a outra, mas é o sentido de invasão que desliza,
ao passar da FD dos latifundiários para a FD Sem Terra. Ouçamos,
mais uma vez, a palavra de Pêcheux:
é porque os elementos da sequência textual, funcionando em
uma formação discursiva dada, podem ser importados (meta-forizados) de uma sequência pertencente a uma outra formação
discursiva que as referências discursivas podem se construir
e se deslocar historicamente. (Ibidem, p.158).
Relembrando aquele momento que viveu, Diolinda se depara
com o real da língua que aponta para o impossível de dizer, dá de
encontro com aquilo que, de seu lugar discursivo, lhe é interditado,
mas que, sob o efeito da emoção, torna-se impossível de dizer de
outro modo (PÊCHEUX, [1981] 2004, p. 52). É a própria contradição
que pode ser flagrada através da bipolarização representada nesse
processo metafórico determinado “pelos diferentes níveis e diversas
instâncias da formação social” para retomar as palavras de Althusser.
Mas, o que move esse discurso e o sujeito que o enuncia?
Entendo que essa dualidade é um sintoma da emergência do sujeito
desejante que se mostra pelo viés da contradição, no momento em
que Diolinda rememora aquele acontecimento fundante de sua
subjetividade sem-terra, momento que a impregna, uma vez mais,
pelo viés da memória afetiva, de alegria incontida e a faz equivocar-se, a faz deslizar pelos sentidos, a faz produzir poesia - Era
panela, roupas e lona para todo o lado. Papagaio cantando, galinha piando. Uma festa. - instaurando, no interior do discurso do MST, um
processo metafórico que re-significa o discurso-outro para poder
32
Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013
incorporá-lo ao seu discurso. Diria que esse momento rememorado, por uma fração de segundo, é (re)vivido como presente. Em
consequência disso, o real se incorpora à representação simbólica
que o sujeito faz daquele momento rememorado e revivido.
O sujeito desejante:
deslizando da Psicanálise para a Análise do Discurso
A noção de pulsão foi
formulada por Freud,
1915, em Instinto e suas
Vicissitudes. Ela é resultante de uma pressão que se situa entre
o mental e o somático e
está na origem dos estímulos que se originam
no corpo e alcançam a
mente. Segundo Freud,
a pulsão não se dá a conhecer por si mesma,
mas é reconhecida pelas
ideias (vostellung) e pelo
afeto (affekt), sendo o
afeto a expressão qualitativa da quantidade
de energia pulsional,
cujas manifestações são
percebidas como sentimentos, e as ideias se
produzem como traços
de memória.
5
Para pensar o funcionamento desse sujeito, mobilizo inicialmente a reflexão de Guattari (1986). Para este autor, a produção
da fala, das imagens, do desejo não tem origem no indivíduo. “Essa
produção é adjacente a uma multiplicidade de agenciamentos sociais,
[...] a mutações de universos de valor e de universos históricos”
(GUATTARI & ROLNIK, 1986, p. 32). E, mais adiante, acrescenta
que tais “agenciamentos coletivos de subjetividade, em algumas
circunstâncias [...], podem se individuar” (Ibidem, p. 33).
Entendo que é exatamente uma dessas formas de individuação que estamos observando pelo viés do processo metafórico em
análise: aqui se individua, mesmo que por um instante, o sujeito
desejante que se deixa perceber através dele.
Tomo essa concepção de sujeito desejante, pois as formulações
de Guattari apresentam pressupostos possíveis de serem aproximados aos da AD. Em primeiro lugar, não se trata de considerar
o sujeito em sua individualidade, mas de tomá-lo em seu agenciamento coletivo e social. Em segundo lugar, porque Guattari trata
das pulsões5 como sintoma em nível do social e do político e não
como sintoma individual. Para esse autor, a produção do desejo é
resultante de pulsões de natureza político-social: “Trata-se, diz Guattari, de movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade
capitalística (sic), através de outras maneiras de ser, outras sensibilidades,
outra percepção, etc.” (Ibidem, nota 5, p. 45).
O autor chama a atenção para a importância política da
produção do desejo e seus possíveis desdobramentos, entre os
quais se situariam os movimentos sociais. E é exatamente o que
estamos constatando no caso em análise. Diolinda, ao tomar invasão por ocupação, é movida, por um lado, pela rememoração de
um momento muito forte que a marcou e que ainda é capaz de
emocioná-la, e, por outro, essa rememoração é resultante de uma
pulsão político-social responsável pela emergência do sujeito desejante,
sujeito este que luta pela justiça no campo, afrontando grandes
proprietários de terra.
Tais formulações de Guattari têm início em seus escritos
em coautoria com Deleuze (1972). Os autores postulam uma
nova concepção de inconsciente, mobilizando a noção de economia em seu sentido pulsional e político. Afastam-se do inconsciente
individual e vão ao encontro de um inconsciente em que jogam
o funcionamento de fatores históricos, políticos, culturais e econômicos,
daí surgindo um sujeito desejante capaz de pôr em questão a ordem
Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013
33
estabelecida. E é isso que está em tela nesse trabalho: observar
um processo metafórico que expõe a ação e palavra de um sujeito
movido pelo agenciamento político do desejo.
Entendo que o processo metafórico ocupação/invasão identificado na SD5 funciona como o sintoma do sujeito desejante no
discurso de Diolinda. Chamo a palavra de Rolnik para explicar
essa emergência: “Se situarmos o inconsciente na maneira de se
orientar e de se organizar no mundo – as cartografias que o desejo
vai traçando [desenham] diferentes micropolíticas, que correspondem a diferentes modos de inserção social” (ROLNIK, 1986, p.12).
O processo metafórico em análise aponta para esses diferentes modos de inserção social trilhados por Diolinda. Em um
primeiro momento, encontramos Diolinda jovem, participando
de sua primeira ação política, ainda na companhia de seus pais.
Dessa participação resultou o assentamento no qual sua família
recebeu um lote de terra. Naquele momento, Diolinda era apenas
uma jovem de 18 anos, filha de sem-terra, e acompanhava a ação
política dos pais. Ainda não exercia função de liderança e podia
mobilizar a designação invasão, comum entre assentados e acampados, para referir a luta pelo direito à terra. Nessa situação, movida
pela pulsão político-social e pelas urgências típicas do cotidiano
de acampados, subjetivou-se como um sujeito que desejava mudar
o mundo, distinguindo-se do mundo capitalista em que vivia. O
segundo momento nos coloca frente a Diolinda exercendo uma
função de liderança entre os sem-terra acampados no Pontal de
Paranapanema. E, nessa nova posição, Diolinda subjetiva-se,
como vimos, pelo viés da designação ocupação. Modos diferentes
de inserção social que conduzem a diferentes formas de designação.
Nesse passo do trabalho, o que importa analisar é a pulsão
que está na base da oscilação/divisão/batimento do sujeito do discurso
entre essas duas designações, ambas ocorridas num determinado
momento da militância política de Diolinda e em uma mesma
entrevista.
Como vimos, Diolinda divide-se, nessa entrevista, entre
duas designações: uma que remete para o que deve e pode ser
dito e que é resultante de sua interpelação ideológica e do lugar
discursivo que ocupa como líder do MST. Desse lugar deve dizer
e diz ocupação. Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, a outra –
invasão - que aponta para o sentido impossível de dizer, a partir de
seu lugar discursivo. Diolinda desliza, então, de um sentido para
o outro. Dito de outra forma: este deslizamento marca o ponto
em que se cruzam determinação ideológica – o que pode e deve ser
dito – com determinação inconsciente, que sinaliza o sujeito desejante,
capaz de mobilizar o discurso-outro. Esse ponto de encontro
vem marcado por esta falha, esta passagem momentânea e única
de ocupação para invasão. É o interdiscurso que se atravessa no
discurso do sujeito. Ouçamos uma vez mais o que diz Pêcheux:
“a metáfora aparece fundamentalmente como uma perturbação
34
Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013
que pode tomar a forma do lapso, do ato falho, do efeito poético,
do Witz ou do enigma” (PÊCHEUX, [1984] 2011, p.160). Em meu
entendimento, o deslizamento aqui em análise ocorre no momento
em que a emoção aflora e faz o sujeito mover-se e dividir-se entre
as duas designações. Trata-se de um efeito poético.
Interrompendo a reflexão
Mais acima, vimos que a pergunta feita à Diolinda pela entrevistadora funcionou como um estopim para a ocorrência dessa
falha, produzindo um efeito devastador, jogando-a para fora dos
limites de seu lugar discursivo de líder e do sentido que, desse
lugar, lhe é imposto. E, assim, sob o efeito da emoção, do afeto,
para retomar o termo empregado por Freud6, que a rememoração
suscitou, o dizer desse sujeito transbordou dos limites que sua
posição-sujeito e seu lugar discursivo lhe impõem, mostrando-se
um sujeito fragmentado e dividido entre duas designações que
identificam posições diversas.
Oscilando entre a posição do bom sujeito que diz o que o
líder pode e deve dizer de seu lugar discursivo, e a posição do sujeito que, capturado pela rememoração, vai ao encontro do “impossível de dizer, impossível de não dizer de uma determinada
maneira” (PÊCHEUX, [1981] 2004, p. 52), o sujeito vai entretecendo
em seu discurso a contradição. A presença de tais designações,
contraditórias entre si, são o sintoma de que certos limites vão se
esgarçando na ordem política da língua e, por entre os desvãos que
vão surgindo, o sujeito desejante emerge, enunciando sob o efeito
da emoção vivida no passado, rememorada no presente, mas também sob efeito do que acabara de viver: ter sido presa para, dessa
forma, ser pressionada a dizer onde se encontrava seu marido
procurado pela polícia. Mas não apenas isso: ao ser encarcerada,
foi separada de seu pequeno filho, que ficou, dessa forma, privado
do amparo do pai e da mãe. São esses sentimentos e memórias que
fizeram aflorar o processo metafórico aqui analisado, que fizeram o
sujeito estampar a marca de seu desejo em seu dizer.
Como vimos, o sujeito, sob o efeito e força da emoção, ao
responder à pergunta que lhe foi dirigida, sucumbe à própria
incompletude e simboliza o interdito. E, ao fazê-lo, o sujeito desejante mostra-se tal como é: incompleto, heterogêneo e dividido em
relação a si mesmo e ao lugar discursivo que ocupa e no qual se
constitui enquanto sujeito Sem Terra. Incompleto porque os dizeres
e sentidos que sua posição-sujeito lhe autoriza são insuficientes
para dizer a emoção sentida, mescla de alegria e de dor, mescla
de rememoração e atualização da luta pela terra, provocando o
transbordamento dos sentidos Heterogêneo porque apropria-se do
dizer do outro, que irrompe transversamente em seu discurso,
instaurando em seu interior a diferença e a contradição. E dividido
porque movimenta-se entre ocupação e invasão, entre o que lhe é
Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013
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possível dizer e o que lhe está interditado, mas que só pode ser
dito daquela forma, naquele momento.
Pode-se, pois, afirmar que a incompletude, a heterogeneidade
e a divisão do sujeito desejante desse discurso decorrem do jogo
tenso entre o memorável, o dizível e o interdito, fazendo com que
os sentidos extravasem seus limites e produzam o cruzamento
entre discursos de posições-sujeito diversas e conflitantes. Ou
talvez seja melhor dizer que o jogo tenso entre dizível e interdito
acaba por borrar momentaneamente tais limites, dando lugar a
esse cruzamento/transbordamento.
Assim, ao dividir-se na dualidade contraditória ocupação/
invasão, esse sujeito desejante se constitui como sujeito de seu discurso. Ao representar-se dividido, carrega a marca do outro, evidenciando que a unicidade do sujeito é imaginária e se desfaz frente
às pulsões políticas que movem seu desejo de um mundo mais justo.
Abstract
In the present text, I resume the terms occupation/
invasion in order to investigate a very peculiar
sense for invasion that appeared in an interview
with Diolinda Alves de Souza, MST leader, in
December 6, 1995, for the Variety leaflet of Folha
de São Paulo. In this interview, I was interested
in examining the process of subjectification/
identification in Deolinda´s phrasing: in a certain
moment, while referring to her first occupation,
she uses the term invasion. In doing so, the interview does not address what the subject can/
must say from its discursive locus. This term does
not correspond to the mode of subjectification in
her Discursive Formation, so well defined in the
interview until that point. This sliding of occupation to invasion, allows us to identify a specific
metaphorical process. A metaphorical process is
“a non-subjective process in which the subject
is constituted” (Pêcheux, 1988:130). And more:
metaphorical process consists of a “socio-historical
process that serves as the foundation for the ‘presentation’ of objects to subjects” (idem, p.132). I
understand that this specific metaphorical process
allows us to discern the moment in which the
political subject is thrown back into its memories
from which he emerges as a desiring subject.
Keywords: discursive locus; subject position;
discursive formation; metaphorical process; production of desire; pulsional socio-political agency;
desiring subject.
36
Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013
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Niterói, n. 34, p. 27-38, 1. sem. 2013
Au nom des noms. Mémoire et
démémoire discursives en résistance
Marie-Anne Paveau
(Université de Paris 13 Sorbonne Paris Cité
Équipe Pléiade)
Résumé
Cet article propose une réflexion sur la notion
de mémoire, pensée, à partir de la théorie du
discours, dans un cadre postdualiste, c’est-à-dire qui considère les environnements matériels
des productions verbales comme complètement
intégrés à ces productions. À partir de la notion
de mémoire discursive proposée par Jean-Jacques
Courtine en 1981, on élabore celle de démémoire
discursive inspirée des travaux de Régine Robin.
Ces deux notions permettent de rendre compte de
la manière dont certains locuteurs inscrivent des
combats et des résistances au cœur du discours.
On s’intéresse particulièrement au nom propre,
dans sa dimension de nom de mémoire, et pour ce
faire on propose cinq vignettes discursives, c’est-à-dire cinq cas d’inscription ou de désinscriptions
de noms propres dans des réalités chargées émotionnellement ou politiquement. Ces cas sont exposés
à partir de photographies de noms en situation.
Mots clés : Démémoire discursive; Désignateur
souple; Désinscription; Mémoire discursive; Nom
propre; Prédiscours; Signifiance.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
Introduction
Les mots font des choses, words do things, c’est un principe
admis depuis l’ouvrage de John Austin en 1962, en fait un peu
plus tôt puisque la conférence dont est issu le livre date de 1955.
Donc, depuis 1955, les philosophes, les linguistes et les chercheurs
qui s’occupent des signes et des choses, du langage et de la réalité,
peuvent penser que les mots ont des effets tout à fait concrets dans
la réalité. Et John Austin nous a également expliqué comment les
mots faisaient : how to do things with words.
Cela ne veut pas dire que ce phénomène ait été intégré dans
les théories et méthodologies linguistique et/ou discursives, loin
de là. Il semble plutôt que la prise en compte de ce lien de continuité entre langage et réalité, qui conteste la conception binaire
mainstream d’une distinction, voire parfois d’une opposition entre
les deux, selon la traditionnelle division mind/body, soit minoritaire
dans les travaux sur les productions langagières. Ce sont la pragmatique, l’interactionnisme et l’analyse du discours d’une certaine
façon, mais surtout des approches non directement langagières
comme la gender theory de Judith Butler par exemple, qui mettent
en avant cette articulation entre le langage et la réalité.
Dans cet article, je voudrais proposer une réponse au
« how » de John Austin, qui passe par une réflexion sur la notion
de mémoire, pensée, à partir de la théorie du discours, dans un
cadre postdualiste, c’est-à-dire qui considère les environnements
matériels de nos productions verbales comme complètement
intégrés à ces productions, et non pas seulement comme des
conditions extérieures.
À partir de la notion de mémoire discursive proposée par
Jean-Jacques Courtine en 1981, je propose celle de démémoire discursive inspirée des travaux de Régine Robin. Ces deux notions
me permettront de rendre compte de la manière dont certains
locuteurs inscrivent des combats et des résistances au cœur du
discours. Je m’intéresserai particulièrement au nom propre, dans
sa dimension de nom de mémoire, et pour ce faire je proposerai
cinq vignettes discursives, c’est-à-dire cinq cas d’inscription ou
de désinscriptions de noms propres dans des réalités chargées
émotionnellement ou politiquement. Ma méthode dans ce travail
est celle d’une grounded theory volontairement empirique (Glaser
1978), qui fait une place à une linguistique profane et expérientielle
donc non théorisée, à partir de laquelle le linguiste peut écouter
ce que les corpus ont à lui dire, avant de formaliser ses analyses.
Ces vignettes sont composées d’une image, nécessaire pour moi
dans une analyse qui prétend rendre compte de morceaux de
réel, et elles sont généralement rédigées à la première personne,
m’impliquant en tant que « locutrice interprétante » ordinaire dans
la forêt des discours qui constituent nos environnements. Grounded theory donc, mais également une forme d’auto-ethnographie
40
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
qui fournit les matériaux d’une analyse désireuse d’objectiver au
mieux, comme le dit Pierre Bourdieu, le sujet de l’objectivation,
sans illusion de mise à l’écart aseptisé d’un sujet illusoirement
objectif.
Cinq vignettes donc, autour de cinq noms : Qitiao La Bomba,
Chiquita Levy, Gaston Donnat, Jacques Bouveresse et Vincennes.
1. Qitiao La Bomba.
Le désignateur souple d’un citoyen du monde
Image 1. Qitiao La Bomba, juillet 2011, Paris, rue des maraîchers,
© Marie-Anne Paveau
1.1 Des noms sur un graffiti
Pendant presque trois ans, le « centre-bus Lagny » de la
RATP (régie des transports parisiens), immense entrepôt entouré
par les rues des Pyrénées, de la Plaine, des Maraîchers et de Lagny,
à Paris, dans le 20e arrondissement, a constitué un des spots de
graffitis les plus fréquentés de la capitale. Jour après jour, semaine
après semaine, les murs se sont peints et repeints, en toute légalité
puisque la RATP avait elle-même financé le projet, en attendant
la destruction de son bâtiment.
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
41
« Ce nom de Gilberte passa près de moi,
évoquant d’autant plus
l’e x i s t e n c e d e c e l l e
qu’il désignait qu’il ne
la nom mait pas seulement comme un absent dont on parle, mais
l’interpellait ; il passa
ainsi près de moi, en
action pour ainsi dire,
ave c u n e pu i s s a n c e
qu’accroissait la courbe
de son jet et l’approche
de son but ; — transportant à son bord, je le sentais, la connaissance, les
notions qu’avait de celle
à qui il était adressé, non
pas moi, mais l’amie qui
l’appelait, tout ce que,
tandis qu’elle le prononçait, elle revoyait ou du
moins, possédait en sa
mémoire, de leur intimité quotidienne, des visites qu’elles se faisaient
l’une chez l’autre, de tout
cet inconnu encore plus
inaccessible et plus douloureux pour moi d’être
au contraire si familier
et si maniable pour cette
fille heureuse qui m’en
frôlait sans que j’y puisse pénétrer et le jetait
en plein air dans un cri
[...] » (Proust, Du côté de
chez Swann, “Noms de
pays : le nom”)
1
42
La légalité, c’est ce dont parle entre autres ce graffiti recueilli
en juillet 2011. Son emplacement est particulier puisqu’il occupe
un angle cassé au coin des rues des Maraîchers et de Lagny, juste
devant le lycée Hélène Boucher. Le dessin occupe exactement
la largeur de cet angle, et le graffeur a préparé un fond dont la
taille est adaptée à son dessin : pas de débordement, pas d’espace
perdu, du travail de professionnel, un vrai faussaire n’aurait pas
fait mieux.
Ce motif est le seul que j’aie vu de ce type en deux ans, il
est donc tout à fait singulier. Cette « carte trafiquée d’identité »
tient tout un discours, qui parle d’identité bien sûr, mais aussi de
frontières nationales, de papiers officiels, et même, sur le mode
humoristique, de puissance sexuelle. Que nous dit ce graffeur
facétieux, qui est aussi, d’une certaine manière, philosophe du
discours d’identité ?
Il a, d’abord, dessiné une identité « trafiquée » sur un mur
légal où, pour une fois, aucun employé de la mairie ne viendra
nettoyer ses traces indésirables. C’est bien trafiqué d’ailleurs : on
reconnaît le dégradé de couleurs de la « vraie » carte d’identité
française, les filigranes, les trois zones, les chevrons.
Ensuite c’est précisément le national qu’il a trafiqué, comme
le dit bien la place du mot dans notre figement français souvent
siglé : CNI, carte nationale d’identité. National est donc remplacé
par trafiqué. Les mots sont-ils substituables ? C’est une question
morpholexicologique : avec quoi se combine ce trafiquée, avec le
nom d’avant ou le complément d’après ? Le nouveau figement, carte
trafiquée d’identité, CTI, devient ambigu, car il peut se décomposer de deux manières et du coup il prend deux sens : est-ce une
carte-trafiquée, d’identité, donc une « fausse carte » ? ou est-ce
une carte, trafiquée-d’identité, une carte qui serait trafiquée avec
de l’identité ? Syntaxiquement, c’est indéfinissable. Le choix ne peut
être que sémantique. Voilà qui ouvre des possibles : si certains
trafiquent des papiers avec du matériel d’imprimerie, Qitiao, le
fait avec de l’identité.
Enfin, et surtout, ce graffiti tient le discours du sens des noms
propres, des « -onymes ». Car c’est bien ça, une carte d’identité,
même trafiquée : des noms propres, des dates et des filigranes. Pas
de phrase, pas de discours, pas de dialogue, mais des catégories.
Et pour les graffeurs, s’y ajoutent des choix typographiques. Le
nom Qitiao La Bomba m’est apparu (et j’insiste sur la subjectivité de
cette interprétation, qui est centrale dans la conception sémantique
du nom propre) comme le prénom d’un enfant chinois (Qi-tiao ?)
qui aurait eu un père latino-américain, étrangement écrit dans
une typographie du côté des idéogrammes chinois. Les yeux en
amande semblent donc faire des plis asiatiques ouverts à Valparaiso en 1986, une « bomba » de couleur à la main. Le toponyme,
sous son aspect de nom de nation, parle aussi sur ce graffiti : une
nouvelle entité nationale apparaît, « française-chile », dans cet
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
imaginaire sémantico-politique. Trafic de nationalité, trafic de
frontières, trafic de couleurs.
Pour finir, le graffeur appose sur sa carte trafiquée un « tag »
assez grand : sa signature ample et composée, que l’on imaginerait
bien authentique, d’ailleurs. On a donc un tag sur un graf qui
trafique avec de l’identité sur un mur.
Cette image est un discours des noms, qui parle au nom
des noms, réels ou imaginaires, auxquels manque juste celui de
l’autorité. Une chose m’a en effet manqué : j’aurais aimé pouvoir
retourner la carte, et lire la « Signature de l’autorité ». Sur la
mienne, « l’autorité », c’est « Le directeur de la Police générale,
Louis Ducamp », avec sa signature. J’aurais donc bien aimé savoir
comment le graffeur, qui se représente peut-être en Qitiao La
Bomba, s’y serait pris pour trafiquer la Police générale.
1.2 Des sens dans les noms propres
Pour une synthèse
voir Leroy 2004, et plus
récemment Shokhenmayer 2010.
3
Le discours médiatique est particulièrem e nt f r i a n d de c e s
tour nures, du t ype :
« Peillon, le Morano de
Hollande », « la Mo rano du nouveau gouvernement » (Nadine
Morano s’est illustrée
com me m i n i st r e du
g o u ve r n e m e n t S a r kozy par ses prises de
paroles intempestives
et ses tweets brutaux,
voire grossiers) ou « la
Madoff du Chinonais »,
désignant une ancienne
employée de banque de
la région de Tours ayant
escroqué des dizaines
de personnes pour des
sommes avoisinant les 3
millions d’euros (exemples de 2012 recueillis au
vol dans la presse et sur
Twitter).
2
En 1987, Paul Siblot propose une nouvelle approche du nom
propre centrée sur la notion de « signifiance ». Claude Lévi-Strauss
avait parlé dans La pensée sauvage des « quanta de signification » du
nom propre (1962 : 258) et, plus tard, Jean Molino, avait développé
ce point : « Dans le réseau cognitif de chacun, les noms propres
constituent les points fixes de l’organisation symbolique, c’est-àdire en même temps de l’organisation mentale et de la structure
du monde » (1982 : 19).
Dans la linguistique profane des locuteurs ordinaire, cette
idée du sens des noms propres est une évidence, comme le montre
l’exemple de Qitiao La Bomba, citoyen d’une France chilienne, que
mes cadres cognitifs, culturels et sémantiques ont immédiatement
interprétés, voir surinterprétés, et même mal interprétés. Il existe
toute une littérature et une onomastique de sens commun sur la
capacité évocative des noms propres, des pages célèbres de Proust
sur les « noms de pays » ou le nom de Gilberte1, à la caractérologie
spontanée des prénoms dans la multitude de guides des prénoms
sur le marché (les Francine sont « fières et racées », les Anne sont
« ordonnées et soigneuses », les Pierre sont « bons et généreux »,
etc.) en passant par les discours touristiques sur l’exotisme des
noms, garants de celui des choses et des territoires (Tahiti, Le
Sahara, Rio de Janeiro…).
Mais en sciences du langage, deux paradigmes s’opposent
pour rendre compte du fonctionnement du nom propre : celui
du désignateur rigide (le nom propre vide de sens) et celui de
ce que j’appelle le « désignateur souple » (le nom propre riche
de sens)2. Cette dimension sémantique du nom propre est envisagée au sein de la théorie du nom propre modifié (Leroy 2005
dir.), c’est-à-dire actualisé par un déterminant qui le dote d’une
« polyréférentialité » impliquant sa polysémie3. La question du
sens du nom propre est cependant, dans cette approche, posée
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
43
de manière plus syntaxique que sémantique et plus sémantique
que discursive, l’intérêt se concentrant sur les formes langagières
de l’intradiscours plus que sur la situation des énoncés dans leurs
contextes empiriques propre à la théorie du discours.
Or, l’étude du graffiti de Qitiao La Bomba implique de
montrer comment une constellation de significations organise
une lecture sémantico-discursive dans le contexte culturel, social, historique et matériel de l’énoncé. Les noms qui y figurent
ne peuvent évidemment pas recevoir d’interprétation seulement
référentielle (la « République française chile » n’existerait alors
pas, or, dans ma perspective, elle existe bel et bien, sur le mur
désormais détruit, sur la photographie, dans ma mémoire et celle
d’autres passants sans aucun doute, et en discours ici) et il faut par
conséquent proposer un modèle théorique et une méthodologie
qui rende compte de la « souplesse » et richesse sémantique des
noms propres en situation.
Avant cela, je rappelle les travaux qui ont déjà été faits dans
cette perspective afin de mieux situer ma proposition et surtout
d’éviter de présenter une réflexion qui ne serait pas cumulative.
Je propose de le faire en traitant un second exemple.
2. Chiquita Levy. Un univers sur une pierre tombale
Frédér ic Fra nçoi s,
1997, « Chiquita », album
Je ne t’oublie pas, Sony /
BMG.
5
Je a n -Pat r ic k C ap dev iel le, 1980, « Oh
Chiquita », CBS.
6
Joséphine Baker, 1949,
« Chiquita madame (de
la Martinique) », paroles
de P. Misraki - J. Do Barro, Milan Music (2007).
4
44
Image 2. Chiquita Levy, novembre 2012,
cimetière São João Batista de Rio de Janeiro,© Marie-Anne Paveau
2.1 Une poétique de la mémoire sémantique
À Rio, dans l’immense cimetière São João Batista, repose
Chiquita Levy Lustosa, née en 1929, morte en 2009. Je ne sais
pas du tout qui a été Chiquita Levy et je n’aurai jamais accès à la
réalité de son histoire. En revanche le halo évocateur de son nom
m’a parlé là-bas, au Brésil, en novembre 2012 et continue ici, en
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
France : « Nos prénoms nous hèlent jusqu’à notre mort », déclare
Pascal Quignard dans Le nom sur le bout de la langue. Dans le cas
de Chiquita Levy, c’est le prénom et le nom d’une autre, morte,
ailleurs, qui me hèle, moi, vivante, ici. Évidemment, je suis une
proie idéale pour les obsessions sémantiques anthroponymiques,
puisque je m’intéresse de près aux prénoms (Paveau 2011) et que
le mien fait l’objet des déformations régulières qui maintiennent
sans doute mon intérêt pour cet objet linguistique. Avant de partir
à Rio, un Lévy m’avait appelée Anne-Marie, et la chose n’est sans
doute pas pour rien dans le temps d’arrêt mi-surpris mi-amusé
que j’ai marqué devant cette tombe.
Pourquoi ce temps d’arrêt ? Pourquoi cette association,
Chiquita Levy, m’a-t-elle frappée et amusée, et a déclenché des
évocations et des plaisanteries échangées dans ce cimetière, au
pied des montagnes et des favelas ? “On dirait un titre de bande
dessinée”, s’est exclamée la personne qui m’accompagnait, et qui
ne croyait pas si bien dire, on va le voir. Moi, j’ai vu (entendu ?)
du mélange, du contraste, plaisant, drôle, facétieux même, et en
même temps une parfaite association, due au rythme peut-être :
[1/2/3,1/2]. Ça se prononce bien, [Chi/qui/ta, Le/vy], ça se pose
bien dans la parole. Chiquita Levy, pour moi, c’est l’Amérique
latine mariée à la vieille Europe, c’est la plage, la bodega et Che
Guevara de la scie de Frédéric François4 que j’avais vaguement
dans la tête, qui aurait atterri rue des rosiers, ou dans le Sentier,
à Tel-Aviv mais aussi à Auschwitz ou Birkenau. “Chiquita”, c’est
aussi une chanson de Capdevielle5, et plus loin dans le temps un
tube de Joséphine Baker, « Chiquita madame (de la Martinique) »6,
et puis il y a la « Chiquita banana », le prénom Chiquita ayant remplacé comme nom de marque la compagnie United fruit dans les
années 1940. Chiquita, la “petite”, en espagnol, qui aurait rencontré
le troisième fils de Jacob dans un film d’Alexandre Arcady. Tout ce
monde-là se trouvait soudain convoqué sur cette pierre tombale,
et le cimetière devenait bien peuplé soudainement.
Chiquita Levy : les tropiques et le Lévitique, la banane et la
kippa, la bodega et la Torah. Chiquita Lévy, deux univers dans un
nom gravé sur une tombe, qui auraient pu rester latents et inaperçus, sans le chemin de la mémoire sémantique, qui commence
avec notre regard et se fraie ensuite des sentiers dans les sédiments
des souvenirs qui nous fabriquent et nous relient à nos morts.
Voilà pour le « story telling » de mon expérience profane,
en quelque sorte, de ce nom capté par hasard dans le cimetière de
Rio. Que peut en dire la théorie du discours quand elle s’intéresse
à la richesse sémantique du nom propre ?
2.2 Mémoire, cognition, émotion
Il faut rappeler les origines et reprendre le concept d’« hypersémanticité » proposé par Ulrich Weinreich en 1963, qu’il
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
45
Les pieds-noirs sont
les colons français installés en Algérie à partir
de la conquête en 1830.
7
46
conçoit comme une plasticité sémantique du nom propre doté
d’une puissance évocative importante. Roland Barthes reprend
cette idée en avançant la notion d’« épaisseur sémantique » du
nom propre, ou de son « feuilleté » (Barthes 1972 [1967]). Les
« connotations associatives » de Catherine Kerbrat-Orecchioni en
1977 vont dans ce sens, comme les « halos positifs et négatifs »
de Marc Wilmet (2003 [1997]). Paul Siblot, on l’a vu, faisait des
propositions théoriques et terminologiques en 1987, comme les
« potentialités signifiantes » (1987). Plus récemment, certaines
chercheuses ont repris cette problématique et fait d’intéressantes
propositions : Georgeta Cislaru propose l’hétéroréférentialité,
l’hybridation, l’omnisignifiance (2005) ou la polyréférentialité, à
propos du nom de pays, Michèle Lecolle parle de plurivocité et
de « polyvalence intrinsèque », qui est la capacité du toponyme à
désigner, concomitamment ou en alternance, plusieurs référents,
en plus du référent géographique, par exemple l’état, la nation, le
gouvernement, telle équipe de football ou telle entreprise. Alice
Krieg-Planque, dans une perspective plus sociologique sur les
noms propres d’évènement, emprunte à Louis Quéré sa « mise
sous description » de l’évènement via le toponyme qui rendrait
l’évènement insaisissable (2006 : 98).
J’accepte l’ensemble de ces propositions et leurs implications
théoriques, mais je souhaite envisager l’omnisignifiance du nom
propre à travers sa nature prédiscursive, c’est-à-dire d’agent de
transmission de cadres prédiscursifs collectifs délivrant des
instructions sémantiques pour la mise en discours, ce qui me
conduira à parler de « noms de mémoire » (Paveau 2006). Dans
ma conception cognitivo-discursive, le nom propre possède une
signification située (au sens cognitif du terme) dans le temps,
l’espace et la culture de la communication : la position historique
et énonciative du sujet est un critère aussi important que la sédimentation mémorielle du nom lui-même, puisque les effets discursifs sont également des effets cognitifs. En effet, les positions
énonciatives font varier les sédimentations sémantiques car les
connaissances historiques, mémorielles et culturelles ainsi que
les modes de catégorisation opérés par les noms propres, sont
différents selon les sujets, fortement situés eux aussi, bien sûr :
l’exemple de Chiquita Levy le montre bien, mon réseau associatif et
évocatif étant fortement déterminé par mes cadres prédiscursifs.
Pour quelqu’un à qui j’ai montré cette photo, et qui revenait du
Chili, le nom de Chiquita Levy s’est inscrit dans un autre cheminement sociocognitif : de Chiquita Levy à São João Batista, de São
João Batista à Batista le patronyme, de Batista à La Havane, et à son
cimetière, Colon ; puis d’autres noms de cimetières, Prague, Le Père
Lachaise, et de fil sémantique en aiguille cognitive, Birkenau, et
d’autres lieux de mort encore. Mais dans cette réaction associative
en chaîne, un autre facteur joue, qui est celui de l’émotion. On n’a
pas encore pris suffisamment en compte, en sciences du langage,
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
le rôle de l’émotion dans l’élaboration des discours et de leur sens.
Il existe désormais des travaux assez nombreux sur l’expression
des émotions, mais très peu sur l’émotion comme catégorie de
production des discours. On sait pourtant que l’émotion joue un
rôle important dans la mémoire, et il est donc tout à fait pertinent
de la convoquer dans le fonctionnement de ces noms de mémoire
que sont les noms propres.
L’aptitude à l’hétéroréférentialité autorise donc le nom
propre, ici le patronyme Chiquita Levy, à une polysémie souple,
fluide même, polysémie plus évocatrice que signifiante. Tous les
noms de mémoire sont étroitement liés aux conditions cognitives
de leur usage : même des noms pour lesquels on peut supposer un
partage universel des savoirs pour des raisons historiques (grands
hommes et grandes femmes des livres d’histoire, par exemple) ne
« disent quelque chose » aux sujets que dans le cadre situé d’un
partage de connaissances communes. Et, hors des connaissances
communes, dans les lectures individuelles, des réseaux de significations idiosyncrasiques se mettent en place, partagés dans une
émotion sémantique commune.
3. Gaston Donnat.
Un cas d’effacement volontaire de mémoire
8
OAS : « Organisation
armée secrète », groupe clandestin créé en
1961, qui organise des
opérations terroristes
contre les partisans de
l’indépendance.
9
Paris, L’Harmattan,
2008.
10
Le mot Harki désigne
à l’origine un individu servant Algérie à
l’époque coloniale dans
une formation paramilitaire, une harka (haraka en arabe veut dire
« mouvement »). Le mot
désigne par extension
les supplétifs algériens
engagés dans les armées
françaises entre 1957
et 1962, et qui se sont
donc battus contre les
indépendantistes.
11
LDH Toulon, 29 février 208, « Perpignan :
i n st r u ment a l iser les
mémoires sans trop se
soucier du respect de la
vérité », site de la Ligue
des droits de l’homme
Toulon, http://www.
ld h-tou lon.ne t/spip.
php?article2553, consulté le 13 janvier 2013.
Image 3. Les noms de la famille Donnat effacés de la quatrième plaque (photo
© TC - 28 février 2008), Perpignan, Mur des disparus d’Algérie (sur le site
de la Ligue des droits de l’homme de Toulon : http://www.ldh-toulon.net/spip.
php?article2553)
3.1 La liste comme discours (1). Éthique de la désinscription
Yvan Donnat, appartenant à une famille pied-noire d’Algérie7, découvre en février 2008 les noms de plusieurs membres
de sa famille, tous vivants, sauf son père, gravés sur le « Mur des
disparus français d’Algérie », longue plaque commémorative installée à Perpignan, ville du sud de la France. Il en demande aussitôt
l’effacement : la liste est en effet plutôt orientée vers les positions
de l’Algérie française, c’est-à-dire celle de la communauté piednoire qui était favorable au maintien de la colonisation française,
et pour lesquels les accords d’Évian signés en 1962 ont représenté
une perte importante qui alimente une nostalgie entretenue par
la communauté.
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
47
Yvan Donnat explique ainsi son indignation et sa demande :
« Ils ont repris de fausses informations en utilisant, sans la vérifier,
la liste du Ministère des affaires étrangères. Mon père a toujours
été un humaniste et un militant anticolonialiste. Or, sur le mur, son
nom, comme celui des autres membres de ma famille, est accolé
à celui d’assassins de l’OAS ? Tout ça est révoltant ! » (Libération
15.02.08)8. Gaston Donnat est en effet un militant anticolonialiste
connu pour ses actions, non seulement en Algérie, mais également
au Cameroun. Un ouvrage rassemble des extraits biographiques,
publié en 2008 avec une préface de Gilles Perrault : Afin que nul
n’oublie. L’itinéraire d’un anticolonialiste9. Son fils Yvan engage des
poursuites pour « préjudice moral ». Il est remarquable que la
raison de son indignation ne soit pas que les « disparus » soient,
excepté Gaston Donnat le père, bien vivants, et parfaitement
identifiés, mais qu’ils côtoient des sympathisants de l’OAS. L’initiative de ce mur vient du « Cercle algérianiste », qui explique que
les 2.619 disparus français et harkis10, dont le nom figure sur les
plaques de bronze du mémorial, « sont ceux de la liste officielle »
émanant du ministère des Affaires Etrangères. Le directeur des
archives dudit ministère écrit alors à Yvan Donnat le 25 février
2008, précisant que la liste n’est pas officielle mais reflète « l’état
des informations reçues par la Direction des Archives lors du
versement des archives de l’ancien Secrétariat d’Etat aux affaires
algériennes ». Il termine par la promesse de l’effacement : « Je
vais donc veiller à ce que les noms des personnes de votre famille
soient ôtés du site du Ministère, et vous exprime mes profonds
regrets pour le trouble qui a pu être occasionné »11.
3.2 De la désinscription comme acte de langage
Gonac’h 2007.
12
48
J’ai proposé le concept de « démémoire discursive » dans
Les prédiscours en 2006, en retravaillant celui de « démémoire »
que Régine Robin, qui a consacré une grande partie de ses écrits
à explorer les « passés fragiles », avait avancé dans les années
2000 pour formuler les transformations sémiotiques du Berlin de
l’après-chute du mur (Robin 2001) : elle considérait en particulier
que le processus de débaptême et rebaptême des rues, les noms
de figures des brigades internationales ayant été remplacés par
ceux de chevaliers teutoniques (Robin 2004), avait accompli une
« démémoire ». Le phénomène intéressant du débaptême s’observe
d’ailleurs dans plusieurs lieux marqués par des changements
politiques forts, comme en Afrique du sud depuis la fin de l’apartheid : la ville de Krugersdorp, d’après le nom du père fondateur du
nationalisme afrikaner, Paul Kruger, va devenir Mogale city, d’après
celui d’un ancien chef africain, Mogale Mogale (« le brave ») ; Pretoria sera rebaptisée Tshwane, du nom d’un ancien chef tswana ;
et Port Elizabeth deviendra la Métropole Nelson Mandela (Libération
12.06.2010). Jeanne Gonac’h, qui a étudié ce phénomène à Vitrolles
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
L’expression « divine
surprise fonctionne en
effet comme un attribut fixé sur la catégorie “événement i nattendu agréable”, et de
ce fait peut s’appliquer
à u n g ra nd nomb r e
d’événements de la vie
privée ou publique. La
déshistoricisation passe
par une désémantisation intense : divin est
vidé de toutes ses allusions monarchistes (c’est
en sourdine l’expression
de droit divin qui semble présente da ns la
profération initiale de
1940), et l’expression est
coupée à la fois de sa
référence, l’arrivée de P.
Pétain au pouvoir, et de
son énonciateur […] C.
Maurras » (Paveau 2006,
p. 92).
13
entre 1997 et 2002, ville provençale sous mandat du Front national,
parle même « d’épuration symbolique », expliquant qu’il s’agit avec
le débaptême de retirer l’histoire d’une femme ou d’un homme
de la mémoire collective (pour Vitrolles, Dulcie September ou
Jean-Marie Tjibaou par exemple)12.
En théorie du discours, le concept de mémoire discursive,
proposé par Courtine en 1981 à partir de la notion de « domaine
de mémoire » de Foucault et dans le cadre marxo-freudien de
l’analyse du discours dite « française » (Paveau 2010), puis retravaillé en mémoire interdiscursive par Lecomte (1981) et Moirand
(2003, 2004), est un des outils les plus opératoires pour lire les
discours dans leurs contextes. La mémoire discursive se manifeste quand les discours s’insèrent, par des marques repérables,
dans des domaines de mémoire associés, c’est-à-dire développent
des liens mémoriels de reformulation, répétition, ou au contraire
d’oubli et de déni, par rapport à des « formulations-origines »
repérables mais non présentes explicitement dans les productions
verbales (Courtine 1981). Ces insertions échappent largement
au sujet, qui est en quelque sorte parlé par des mémoires qui lui
sont externes. La mémoire interdiscursive que propose ensuite
Sophie Moirand articule l’épistémologie de l’analyse du discours
française au dialogisme bakhtinien (Moirand 2007a et b). Il y
a mémoire interdiscursive quand les discours parlent dans les
mots d’autres discours (parler du « soja fou », c’est parler de la
question des plantes transgéniques dans les termes de l’affaire de
la vache folle, par exemple) ou font surgir d’autres événements,
qui deviennent en quelque sorte des cadres d’expression (« marée
noire : le Tchernobyl de l’industrie pétrolière », titre par exemple
le magazine en ligne Rue89 à propos de l’affaire du pétrole de BP
en Louisiane en 2011).
La demande, entendue et réalisée d’Yvan Donnat, est une demande de démémoire discursive : la lignée discursive dans laquelle
les auteurs de la plaque ont inscrit le nom de son père, et, par là,
son nom propre, qui est aussi son propre nom, est inajustée à celle
qu’il possède et qu’il revendique. Yvan Donnat n’accepte pas que
le mur « parle » sa famille dans le discours de l’Algérie française
et de la nostalgie coloniale. Cette inscription discursive est effacée.
La notion de démémoire discursive désigne donc un ensemble de phénomènes de déliaison des rappels et insertions dans
le fil mémoriel du discours qu’illustre bien l’exemple de l’histoire
du nom Gaston Donnat sur ce mur commémoratif. Mais il existe
d’autres processus à l’œuvre dans la démémoire, qui concernent
en particulier des éléments liés au sens et au référent des mots :
le désancrage de certaines expressions figées de leur contexte
référentiel d’origine (voir par exemple l’étude que j’ai consacrée à
l’expression à Divine surprise dans Les prédiscours, le terme pouvant
être désormais appliqué tant à une victoire olympique qu’à l’obtention d’un marché)13 ; l’ancrage, au contraire, de certains discours
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
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dans les formes d’un autre, réalisant une sorte de transfert de mémoire sur une autre : sur le site du Comité Véritas, organisation qui
défend l’Algérie française, on trouve un texte intitulé « J’accuse »,
qui demande la condamnation du Général de Gaulle, reprenant
la forme choisie par Zola pour défendre Dreyfus : ce choix stylistique engage une démémorisation suivie d’une remémorisation de
l’événement ; la déliaison entre un signifiant et ses sens et référent,
particulièrement dans le cas du nom propre : pour beaucoup, par
exemple Tataouine, nom de l’un des bagnes disciplinaires les plus
durs des armées françaises à l’époque coloniale, est l’un des clubs
Méditerranée les plus agréables de Tunisie, la mémoire du bagne
s’étant effacée, et le feuilletage mémoriel s’étant bloqué sur des
sens restreints ; enfin, la subjectivation mémorielle : à partir de
l’exemple du polémonyme ou nom de bataille, comme Diên Biên
Phu ou Gravelotte, j’ai montré que la construction des sens du nom
propre étaient largement située dans une communauté culturelle,
sociale, nationale (Paveau 2008, 2009).
4. Jacques Bouveresse.
Refuser un certain honneur pour son nom
Image 4. Extrait du « Décret du 13 juillet 2010 portant promotion
et nomination » à l’ordre de la Légion d’honneur (Journal officiel
de la République française)
50
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
4.1 La liste comme discours (2). Éthique du non/m
En juillet 2010, Jacques Bouveresse est nominé pour le
grade de chevalier de la Légion d’honneur par la ministre de
l’enseignement supérieur et de la recherche du gouvernement
français, Valérie Pécresse. Il refuse cette nomination dans une
lettre publique, publiée sur le site de l’un de ses éditeurs, les éditions Agone, et relayée un peu partout sur les sites d’information
et par des particuliers :
Lettre de Jacques Bouveresse à Mme Valérie Pécresse, ministre de
l’Enseignement supérieur
En réaction à l’attribution d’une Légion-d’honneur qu’il n’a jamais
demandée, Jacques Bouveresse nous a transmis la lettre (en date du
17 juillet 2010) par laquelle il a refusé cet « honneur ».
Madame la ministre,
Je viens d’apprendre avec étonnement par la rumeur publique et par
la presse une nouvelle que m’a confirmée la lecture du Journal officiel
du 14 juillet, à savoir que je figurais dans la liste des promus de la
Légion d’honneur, sous la rubrique de votre ministère, avec le grade de
chevalier.
Or non seulement je n’ai jamais sollicité de quelque façon que ce soit une
distinction de cette sorte, mais j’ai au contraire fait savoir clairement,
la première fois que la question s’est posée, il y a bien des années [1],
et à nouveau peu de temps après avoir été élu au Collège de France,
en 1995, que je ne souhaitais en aucun cas recevoir de distinctions de
ce genre. Si j’avais été informé de vos intentions, j’aurais pu aisément
vous préciser que je n’ai pas changé d’attitude sur ce point et que je
souhaite plus que jamais que ma volonté soit respectée.
Il ne peut, dans ces conditions, être question en aucun cas pour moi
d’accepter la distinction qui m’est proposée et – vous me pardonnerez,
je l’espère, de vous le dire avec franchise – certainement encore moins
d’un gouvernement comme celui auquel vous appartenez, dont tout
me sépare radicalement et dont la politique adoptée à l’égard de
l’Éducation nationale et de la question des services publics en général
me semble particulièrement inacceptable.
J’ose espérer, par conséquent, que vous voudrez bien considérer cette
lettre comme l’expression de mon refus ferme et définitif d’accepter
l’honneur supposé qui m’est fait en l’occurrence et prendre les mesures
nécessaires pour qu’il en soit tenu compte.
14
Le Quid, disparu en
2007, était une encyclopédie qui rassemblait
surtout des informations chiffrées sur les
domaines les plus divers
de la vie humaine.
En vous remerciant d’avance, je vous prie, Madame la ministre,
d’agréer l’expression de mes sentiments les plus respectueux.
Jacques Bouveresse
Jacques Bouveresse ne mentionne pas son nom dans cette
lettre, mais le fait parler indirectement : c’est en effet par son seul
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
51
nom qu’il est honoré à son insu et sans y consentir sur la liste
du décret officiel, l’honneur ayant essentiellement pour objet, en
tant que valeur sociale, le nom des individus qu’elle distingue.
Dans les versions ultérieures du décret (consultables sur le site du
Journal officiel français), le nom de Jacques Bouveresse n’apparaît
plus, ce qui constitue un effacement analogue à celui du nom de
Gaston Donnat.
Il faut préciser cependant que le refus de la décoration est
quasiment un stéréotype comportemental en France, comme dans
d’autres pays d’ailleurs, et que Jacques Bouveresse a de nombreux
et célèbres prédécesseurs. Ce refus de l’honneur donne d’ailleurs
lieu à une publicité presque aussi importante, si ce n’est plus,
que son octroi ; par exemple une encyclopédie comme le Quid14
donnait la liste des « refusants » célèbres de la légion d’honneur,
dans un encadré qui rassemblait quatre particularités sous les
rubriques suivantes : « Parmi les premiers décorés », « Parmi
ceux qui ont refusé d’être décorés », « Femmes » et « Décorations
à titre collectif ». La Fayette est dit l’avoir refusée « pour éviter le
ridicule » et Georges Sand pour éviter d’« avoir l’air d’une vieille
cantinière » (Quid 2004 : 599). L’encyclopédie Wikipédia donne
également la liste, assez longue, des refusants, où l’on peut voir
Daumier, Maupassant, G. Sand, Sartre, Beauvoir, Camus, Prévert, Brassens, désormais Bouveresse et, depuis janvier 2013, le
dessinateur Tardi. Toutes les décorations se refusent, et même
les citations à l’ordre, dans un contexte purement militaire. Une
autre pratique est de rendre sa décoration, comme le Turc Erdogan Teziç, qui choisit d’accomplir ce geste en 2006 pour protester
contre la pénalisation de la négation du génocide arménien par
le gouvernement français.
4.2 Discours et valeurs. Le patronyme comme lieu discursif éthique
Nous avons là des discours intéressants de démémoire
volontaire, auxquels s’ajoutent des dimensions éthiques, dans la
mesure où se trouve engagée l’une des valeurs les plus anciennes
et les plus structurantes de nos sociétés : l’honneur.
Il existe en effet un lien entre éthique et mémoire. Au début
de son ouvrage L’éthique du souvenir (2006), le philosophe israélien
Avishai Margalit explique que sa réflexion a pour origine une
anecdote lue dans la presse, à propos d’un colonel d’infanterie :
« On interrogeait le colonel au sujet d’un épisode bien connu de
son passé, alors qu’il commandait une petite unité. L’un des soldats
qui étaient sous ses ordres fut tué d’une balle tirée de son propre
camp. Il s’avéra que le colonel ne se souvenait pas du nom du
soldat. Un torrent d’insultes se déversa sur l’officier qui n’arrivait
pas à se souvenir. Comment se faisait-il que le nom du soldat ne
soit pas marqué “au fer rouge” dans le cœur du commandant ? »
(p. 29). Avishai Margalit en conclut que se souvenir du nom, c’est
52
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se souvenir de la personne, et que c’est cet oubli de la personne à
travers le nom qui est reproché au colonel en question. Il précise
« qu’il y a par rapport au souvenir des noms propres une image
puissante qui transforme notre conception de la mémoire en
question éthique » (p. 29). Les événements discursifs autour des
noms propres que je viens de décrire, en particulier autour du
nom de Gaston Donnat, confirment amplement cette analyse :
inscriptions de noms refusées ou désirées, récompenses nominales acceptées ou rejetées.
Si le nom propre est aussi « puissant » sur le plan mémoriel
et éthique, les deux dimensions s’entrecroisant, c’est que, et cela
ne concerne pas seulement le patronyme, il constitue le lieu de
cette valeur située très exactement à l’articulation du social et
de l’individuel, l’honneur. Il existe peu de travaux en sciences
humaines et sociales sur l’honneur, et le livre de Julian PittRivers, Anthropologie de l’honneur, qui date de 1977 (traduit en
1997 seulement chez Pluriel), constitue une référence encore
parfaitement actuelle. Il définit l’honneur comme une valeur
sociale attaché spécifiquement au nom :
L’honneur est la valeur qu’une personne possède à ses propres
yeux mais c’est aussi ce qu’elle vaut au regard de ceux qui
constituent sa société. C’est le prix auquel elle s’estime, l’orgueil
auquel elle prétend, en même temps que la confirmation
de cette revendication par la reconnaissance sociale de son
excellence et de son droit à la fierté. […]
L’honneur aménage
une connexion entre les idéaux en vigueur dans une société et
la reproduction que fait de ceux-ci l’individu qui aspire à les
incarner. À ce titre l’honneur implique non seulement qu’on se
conduise d’une certaine façon, mais qu’en retour on bénéficie
d’un traitement particulier (Pitt-Rivers 1997 [1977], p. 18).
C’est la raison pour laquelle certains individus éprouvent le
besoin de défendre leur nom ou de le préserver d’environnements
qui ne correspondent pas à leurs ajustements éthiques. Sans qu’un
lexique éthique ait été explicitement mis en avant par Jacques
Bouveresse, on peut cependant lire dans son refus de la Légion
d’honneur, qui est d’ailleurs le troisième, quelque chose de cette
éthique du nom. Une des raisons que donne le philosophe, outre
celles qu’il formule dans sa lettre à la ministre Valérie Pécresse (le
fait qu’il ne l’a pas demandée et qu’il n’accepte pas cet « honneur
supposé » d’un gouvernement dont la politique lui semble
« inacceptable »), est de ne pas « se retrouver en bien mauvaise
compagnie », comme il l’explique dans un entretien publié par le
quotidien en ligne Mediapart sur la question : « […] en acceptant les
honneurs, on risque fortement de se retrouver dans une compagnie
assez peu honorable et même parfois peu fréquentable » (31.07.2010).
Les commentaires qu’il fait sur son refus font appel à la dimension
éthique puisqu’il mentionne le « mépris avec lequel [les membres
du gouvernement] sont capables de traiter des gens pour lesquels
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
53
ils n’ont en réalité aucune estime réelle » (je souligne), et c’est sur
le terrain des valeurs qu’il place sa décision :
Etant donné les valeurs que servent réellement ceux qui
nous gouvernent (je ne parle pas de celles qu’ils professent
officiellement et dont ils se réclament quand ils parlent de
choses comme la « moralisation » de l’économie ou de la
finance), je ne suis pas du tout surpris qu’ils aient décidé
d’honorer un homme comme M. de Maistre. Mais, dans ce caslà, il vaudrait certainement mieux ne pas chercher à honorer en
même temps les gens de mon espèce (J. Bouveresse, Mediapart,
31.07.2010).
Jacques Bouveresse ne parle pas de son nom, mais la Légion
d’honneur, comme toutes les décorations, ne distinguant pas
le nom de la personne dans le processus honorifique, c’est une
éthique implicite du nom qu’il défend, surtout dans sa double
allusion à la « compagnie » : être promu dans l’ordre de la Légion
d’honneur, c’est en effet, principalement, figurer sur une liste,
forme langagière de la compagnie, qui constitue un environnement
discursif à la fois graphique, social, politique et moral.
5. Vincennes. Un signifiant mémoriel atopique
Ouvert en 1969, le
Cent re Un iversitaire
Expérimental de Vincennes (C.U.E.V.), fondé
dans l’effervescence de
le révolution de 1968 sur
l’idée de démocratisation de l’accès au savoir,
devient une université
à part entière, Paris 8,
apte à délivrer des diplômes, en 1971. Pourtant
construite en bâtiments
durs qui auraient pu
être conservés, elle est
entièrement dét ruite
en 1980 et réimplantée
à Saint-Denis, dans la
banlieue nord de Paris.
15
54
Image 5. Profil et couverture de la page Facebook de l’« Université
paris 8 Vincennes-Saint-Denis »
5.1 Mais où est donc située l’université de Paris 8 ?
À Vincennes et à Saint-Denis, tout en même temps, ce qui
constitue une énigme à la fois géographique, onomastique et
historique.
Les noms des lieux ne sont pas forcément à leur place dans
la géographie de la réalité. Le nom de l’université de Paris 8, qui
est encore officiellement Université Paris 8 Vincennes – Saint-Denis,
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
réveille cette réflexion à chaque fois que je le vois passer dans une
information ou une annonce de publication ; car une revue a gardé
ce nom, Recherches Linguistiques de Vincennes, comme les presses
qui l’éditent, les « Presses Universitaires de Vincennes ». Je sais
bien sûr d’où vient ce déplacement toponymique, et je connais
assez bien, par mes travaux et mes collègues, cette histoire-là15.
Mais je reste frappée par ce maintien, plus de trente ans après la
destruction du lieu en question, Vincennes, et son déplacement
à Saint-Denis. Je me suis souvent demandé, durant mes courses
au bois de Vincennes, où était cette université « de Vincennes ».
On m’en a un jour vaguement indiqué l’emplacement, et mes yeux
traînent parfois sur le sol à la recherche de vestiges illusoires ;
illusoires, car la destruction en a été radicale : il n’en est absolument
rien resté et la perfection de cette éradication constitue aussi un
processus de démémoire. Seulement, cette démémoire, radicale
dans la réalité, n’a pas été discursive, puisque le nom de Vincennes
est soigneusement conservé dans le logo de l’université et sur tous
les documents, dans toutes les communications officielles.
5.2 Vincennes, nom de mémoire
Ce lieu détruit a gardé son nom, et ce nom, qui n’est plus
vraiment un toponyme, est désormais un nom de mémoire. Ce
nom de mémoire est le lieu sémantique où s’accumulent au fur et
à mesure des usages les strates mémorielles de l’histoire de cette
université expérimentale. Si le nom de Vincennes n’active que le
sens de “ville” ou de “bois” dans certains contextes, dans d’autres,
c’est la forme sémantique d’une université expérimentale disparue
qui émerge. Vincennes est un curieux cas de mémoire lexicale et
sémantique, mais également de résistance à la démémoire. Dans
le cas de Vincennes, cette inscription, presque une incrustation
du nom dans les noms officiels qui nomment Paris 8 et ses publications, semble maintenir dans les sédiments mémoriels, non
seulement un segment d’histoire, mais également son lieu, même
oublié, même recouvert par les arbres, même reconstruit d’autres
bâtiments. Les énoncés qui contiennent « Vincennes – Saint-Denis » ou parfois « Université de Vincennes à Saint-Denis » font
donc travailler, grâce à ce puissant levier sémantique, Vincennes,
une mémoire discursive contre une démémoire discursive qui
déplacerait et débaptiserait sans inscrire dans le passé vivant.
Vincennes, nom de mémoire dans un discours de place.
Dans Berlin Chantiers, il y a ce passage où Régine Robin raconte comment, après la réunification, les Berlinois conservèrent
pendant quelque temps leurs trajets d’avant la chute du mur.
Autre phénomène de résistance à la démémoire, brutalement
accomplie à Berlin, à coups de débaptêmes-rebaptêmes de rues et
de reconstructions radicales, nous dit l’auteure. Les trajets anciens
conservés dans la nouvelle Berlin sont de muets discours qui
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disent l’importance des lieux sous nos pieds, le bouleversement
des déplacements et les enjeux des (r)emplacements :
Peut-être faudrait-il étudier les trajectoires quotidiennes des
habitants de Berlin-Est et de ceux de Berlin-Ouest. Même s’il
n’y a plus de Mur, les Berlinois continuent à suivre des réseaux qui leur sont familiers. Une étude a récemment comparé
les parcours quotidiens des habitants de quatre quartiers qui
avaient été en bordure du Mur, Wedding et Pankow au nord,
Neukölln et Treptow au sud. Tous ont vraiment conscience
d’habiter un quartier, un kiez, mais ne connaissent que très
peu le quartier voisin dont ils étaient, il n’y a pas si longtemps,
séparés par le Mur (Robin 2001, p. 140).
L’exemple de Berlin et celui de Vincennes se ressemblent,
bien que le premier soit non discursif. Dans les deux cas, une réalité matérielle a disparu, le mur et l’université ; et dans les deux
cas ces entités sont maintenues, l’un par une sorte de sémiotique
urbaine et corporelle, et l’autre par l’inscription d’un nom propre
dans un autre nom propre : la conservation du nom de Vincennes
dans le nom de l’université de Paris 8, située désormais à Saint-Denis, maintient en effet un circuit, discursif et cognitif, qui vise à
résister robustement à un effacement du réel.
Conclusion
Cinq noms, cinq manières de résister aux normes, aux
pouvoirs, et aux disparitions. Cinq manières, aurait dit Louis Althusser, de ne pas répondre à l’interpellation qui fait de nous des
sujets assujettis sans même que nous nous en rendions compte.
« Hé, vous, là-bas ! », dit l’interpellation « qui ne rate jamais son
homme » (Althusser 1970, p. 31). Mais dans ces cinq vignettes,
l’individu ne se retourne pas.
Avec Qitiao La Bomba, on a un dispositif plurisémiotique
constituant un discours de résistance aux lois et aux idéologies
des frontières. Au cœur de ce dispositif, qui est une mise en scène
de la carte d’identité, preuve juridique à fort coefficient social de
l’existence des sujets, les noms, nom de personne, nom de pays.
Des noms choisis et décidés, inscrits et signés sans foi ni loi, pour
ainsi dire, sans foi dans les institutions de police ni lois de la
république. Chiquita Levy, c’est le nom de mémoire, le lieu d’une
rêverie associative qui résiste tant à la signification prescrite des
unités lexicales qu’à l’extinction de la vie par la tombe. Évidemment, pour qu’un nom parle autant, il faut que des subjectivités y
entrelacent des imaginations et des émotions. Mais le nom propre
possède, plus que les autres catégories de la langue, une aptitude
spécifique pour constituer le lieu de cet entrelacement.
Les noms Gaston Donnat et Jacques Bouveresse sont des noms
désinscrits par la volonté de leur porteur. Si la théorie du discours
s’occupe beaucoup des énoncés produits, elle a moins l’habitude
de s’occuper de ceux qui ont été effacés. Or, l’effacement d’un
56
Niterói, n. 34, p. 39-60, 1. sem. 2013
énoncé est une forme de production verbale, il y a du langage qui
se démet de ses formes, et qui résiste à des inscriptions forcées
comme il y a des travaux forcés. Enfin Vincennes, détaché de son
référent géographique pour adopter celui de la mémoire, constitue
un cas tout à fait singulier de résistance à la démémoire accomplie
par la réalité elle-même. Comme le Mur de Berlin qui, disparu,
semble toujours encore là dans les années 1990 pour les Berlinois,
l’université de Vincennes, qui n’est plus à Vincennes, y reste par
l’inscription du nom dans le nom d’un ailleurs géographique qui
s’en trouve lui-même déplacé : car ce Saint-Denis, où se trouve
désormais située l’université de Paris 8, est réciproquement « déplacé » à Vincennes, par le seul fait du signifiant.
Ces cinq vignettes montrent que le nom de mémoire, patronyme ou toponyme, loin de n’être que ce désignateur rigide que
présente la logique, est un réservoir sémantique qui a le pouvoir
de modifier la réalité, surtout quand elle est régie par des ministères, des policiers et des cimetières.
Resumo
Este artigo propõe uma reflexão sobre a noção de
memória, pensada a partir da teoria do discurso,
em um quadro p[os-dualista, ou seja, que considera os ambientes materiais das produções verbais
como plenamente integrados a estas produções. À
partir da noção de memória discursiva proposta
por Jean-Jacques Courtine, em 1981, elaboramos a
de desmemória discursiva, inspirada nos trabalhos
de Régine Robin. Estas duas noções permitem dar
conta da maneira como certos locutores inscrevem
combates e resistências no cerne do discurso. Interessamo-nos particularmente pelo nome próprio,
em sua dimensão de nome de memória, e, para
fazer isso, propomos cinco vinhetas discursivas,
isto é, cinco casos de inscrição ou desinscrição de
nomes próprios em realidades carregadas emocional e politicamente. Estes casos estão apresentados
a partir de fotografias de nomes em contexto.
Palavras-chave: desmemória discursiva; memória discursiva; nome próprio; significância.
Abstract
This article aims to reflect about the notion of
memory, based on the theory of the discourse,
inscribed in a post-dualist frame, i.e., the one
considering the material circumstances of the
verbal productions as totally integrated with
these productions. From the notion of discursive
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memory as proposed by Jean-Jacques Courtine, in 1981, we elaborate the
notion of discursive dismemory, inspired by the works of Régine Robin. These
two notions allow us to consider the way some opeakers show struggles and
resistances in their discourse. We are particularly interested in the proper
name, in its dimension of name of memory, and, to do that, we propose
five discursive images, i.e., five cases of inscription and disinscription of
proper names in realities emotionally or politically marked. These cases are
presented from photographies of names contextualized.
Keywords: discursive dismemory; discusive memory; proper name; significance.
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O vazio como condição:
um movimento de sentidos
a partir do horror 1
Lucília Maria Abrahão e Sousa (USP-RP)
Resumo
Falar dos discursos na contemporaneidade é tocar,
de forma mais próxima ou longínqua, questões ligadas ao furo da linguagem, ao vazio e à violência.
Esse texto intenta, a partir de conceitos de Freud
e Lacan, compreender a relação entre das Ding e
a linguagem para analisar a exposição “Hace falta
mucha fantasía para soportar la realidade”. Tal
evento foi idealizado e exposto na Estação Atocha,
em Madri, três anos após os atentados terroristas
de 2004, que inscreveram cenas de horror em um
local de passagem e larga circulação em horário
comercial e que fizeram dançar, em um céu de
palavras, o furo da morte.
Palavras-Chave: discurso; furo; contemporaneidade; psicanálise.
1
Agradeço imensamente a Glaucia Nagem e ao Prof. Dr. Lauro
José Siqueira Baldini, pela leitura crítica desse texto e pelos comentários preciosos que foram
incorporados a esta versão.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013
Um diário, a falta de/em si e a Coisa
Só existem eu e esse vazio opaco
(Samuel Beckett)
Sobre o nada, eu tenho profundidades.
(Manoel de Barros)
“Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se
mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e
esta lacuna é tudo.” A página de um diário, escrito aos cincoenta
anos quando suas principais referências afetivas (mãe, esposa,
filho) já estavam mortas, instala algo de falta incessante. “Falto
eu mesmo” encerra uma condição que percorre toda a trama
de Dom Casmurro na revisitação imaginária do que o narrador
foi (ou teria sido, já que o relato dele é desenhado pelas mãos
vigorosas da rememoração, sempre cúmplice da imaginação)
em diferentes momentos de sua vida. A falta de si mesmo esteve
sempre presente e foi preciso uma vida toda para nomeá-la e
chegar ao seu núcleo duro, a impossibilidade da completude, as
garantias sempre furadas e a provisoriedade de toda certeza. Ou
seja, o dizer de Bentinho dá a ver e a sentir Isso, a Coisa, a falta
que é puro inominável.
E diante Dela, é possível indagar: como tocar o inominável
com palavras que tentam dar nome? De que modo dizer do
que escapa a cada nova tentativa de contorno, deixando-se impreenchível? A partir de que dizer é possível uma aproximação
(sempre capenga e, a despeito disso, tão necessária) com o vazio,
com o que (a)parece como fronteira de e para o furo em tantas
obras da literatura e das artes? Tocar o “falto eu mesmo” é sempre
tentativa em vão e, como sinaliza Clarice Lispector, é da ordem
do imperativo de dizer e “conformar-se com a pobreza do dito”;
é também da ordem de lidar com a angústia da folha em branco,
cujo vazio faz latejar palavras que ali criam ausência e convocam
o sujeito a dar um início, isso conforme Scherer (2011) apresentou
oralmente em um evento. Ausência e vazio de dar uma continuação, acrescento.
Isto é, tocar em vão as esburacadas esta(s) palavra(s) que tentam tatear e driblar a Coisa, fazedora de atordoamentos em tantos
artistas, escritores e teóricos da linguagem, e que foi estudada e
formalizada por Freud e Lacan, ambos lançados à radicalidade do
vazio, cada qual à sua moda e a seu tempo. Ao longo deste texto,
entrego-me à tarefa de dizer sobre Ela (e também do quanto me
falto a mim mesma), tecendo apontamentos sobre a tessitura dos
conceitos de Das Ding na obra dos dois psicanalistas citados. Essa
aventura não é sem consequências, sei disso. Ainda assim, tento
dar borda ao que persiste e que o narrador de Machado coloca na
voz de seu narrador: “essa lacuna é tudo”.
62
Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013
Quando Freud ([1895], 1977) introduziu o conceito de Das
Ding, ainda no início de seus trabalhos no Projeto para uma Psicologia Científica, pensava-a como “a lógica da origem” e também
como “pólo excluído do aparelho psíquico”, algo que ficava fora
dele. O então neurofisiologista (op. cit., p. 434) faz a aposta de
que no aparelho psíquico haveria a existência de duas partes, “a
primeira, que geralmente se mantém constante, é o neurônio a, e
a segunda, habitualmente variável, é o neurônio b.” E explica que
à primeira corresponde “o núcleo do ego e a parte constante do
complexo perceptivo”, também definido como “neurônio a como
a coisa”. Assim, esse neurônio apresenta-se constante, sempre
em atividade, constitutivo do eu, ou seja, como algo interno e
estrutural no aparelho. Essa zona se mantém sempre constante,
presentificando o dizer do personagem machadiano.
Segundo Kaufmann (1996, p. 84), nesse momento Freud
“constatou que a mediação do outro era indispensável para a percepção ou para renovar a experiência de satisfação”. Isso situa, no
centro do funcionamento psíquico, uma presença permanente a
dar resposta sempre sem garantias, já que há uma incompletude
inicial, qual seja, o descompasso entre o grito do bebê e o que lhe
é dado como resposta pelo Outro. Vejamos.
Outras percepções do objeto também – se, por exemplo, ele der
um grito – evocarão a lembrança do próprio grito (do sujeito)
e, com isso, de suas próprias experiências de dor. Desse modo,
o complexo do ser humano semelhante se divide em duas
partes, das quais uma dá impressão de ser uma estrutura que
persiste coerente como uma coisa, enquanto que a outra pode
ser compreendida por meio da atividade da memória – isto é,
pode ser reduzida a uma informação sobre o próprio corpo
(do sujeito). (FREUD, Projeto, [1895], 1977, p. 438)
Sobre isso, é possível explicar que o grito do sujeito recebe
muitas respostas e elas terão (rearranjos de) retorno pela atividade
da memória; ao lado disso, há algo coerente e que persiste “como
a coisa”.
(...) o filhote do homem é privado de seu grito pelo Outro materno porque atribui ao grito proferido um efeito estruturante,
convertendo-o em demanda. Do lado do sujeito, o grito recobre
a sensação da qual jamais se saberá o que ela quis dizer (...)
Como se vê, há aí algo de inominável; de fato, ninguém poderá dizer se a percepção é em cada uma de suas reiterações
a mesma que a primeira, e o mesmo se aplica à experiência
de satisfação (...) Das Ding é o que – no início da organização
do mundo no psiquismo (...) - se apresenta e se isola como o
termo estranho. Essa estranheza da Coisa engendra a tendência a reencontrar, mas, dirá Lacan esse objeto ‘perdido’
nunca esteve perdido mesmo que se trate de reencontrá-lo.
Essa posição remete ao impensável da origem, daquela do
significante e portanto da impossibilidade do gozo para se
dizer. (KAUFMANN, op. cit., p. 84 – 85)
Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013
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O que ficou apenas insinuado por Freud será mote e investimento para Lacan. Ao longo do Seminário, Livro 7, ele se debruça
sobre o conceito freudiano de Das Ding, explorando-o em muitas
formulações e definindo-o como instância que fica no centro, “no
centro, no sentido de estar excluído” (LACAN, [1959-1960] 2008, p.
89). Trata-se do Oco “ao que existe de aberto, de faltoso, de hiante,
no centro do nosso desejo” (LACAN, op. cit., p. 104), e que não
se completa, tampouco se fecha, mas configura-se em retornos e
desencontros:
(...) o que se trata de encontrar não pode ser reencontrado. É
por sua natureza que o objeto é perdido como tal. Jamais ele
será reencontrado. Alguma coisa está aí esperando algo melhor, ou esperando algo pior, mas esperando. (...) é esse objeto,
Das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata
de reencontrar. Reencontramo-lo no máximo como saudade.
(LACAN, op. cit., p. 68).
Isso dá a dimensão de uma perda primeva, ou seja, algo
que o sujeito perdeu sem nunca ter tido, pois “o objeto é, por sua
natureza, um objeto reencontrado. Que ele tenha sido perdido é
a conseqüência disso – mas só-depois. E, portanto, ele é reencontrado, sendo que a única maneira de saber que foi perdido é por
meio desses reencontros, desses reachados.” (LACAN, op. cit.,
p.145). Tal Oco não pode ser suturado nunca, por isso Ele produz
lançamentos em direção a tentar “encontrar o que se repete, o que
retorna e nos garante retornar sempre ao mesmo lugar” (LACAN,
op. cit., p. 94), lançamentos a que o sujeito se entrega, e cujo resultado é sempre furado e submerso em espirais incompletas. Lacan
atribui a Freud o início das formulações sobre Isso, colocando-o
como o fundador de uma investigação que tateia o abismo.
(...) Freud, precisamente, coerente consigo mesmo, indica aí, no
horizonte de sua experiência, um campo onde o sujeito, se ele
subsiste, é incontestavelmente um sujeito que não sabe, num
ponto de ignorância limite, se não absoluta. É esse o nervo da
investigação freudiana (...) um ponto de abismo (...) esse ponto
que lhes designo alternativamente como sendo o do intransponível ou o da Coisa. (LACAN, [1959-1960] 2008, p. 255)
Irrealizado, intransponível, perdido, trata-se justamente de
fenda, hiância, fissura e rasgo inscritos pela perda do corpo da
mãe e pela interdição do incesto. Perda que nunca mais pode ser
suturada, visto que é anterior a todo recalque (LACAN, op.cit., p.
70). Daí a Coisa engendrar uma falta (falta a si e em si-mesmo em
Machado, falta-a-ser em Lacan no Seminário, Livro 11), um Oco que
não cessa de se fazer presente e que se rende frente à pobreza de
toda a palavra, pois “a Coisa, esse vazio, tal como se apresenta
na representação, apresenta-se efetivamente, como um nihil,
como nada.” (LACAN, [1959-1960] 2008, p. 148). Talvez por isso,
Bentinho tenha marcado, em vários momentos do seu diário, a
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Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013
impossibilidade de a língua definir uma saída para o vazio e de
condensar ou alcançar seu sentimento, seu pensar e seu interior.
“Quis insistir que nada, mas não achei língua.” (ASSIS, s.d.,
p. 33)
“Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me
língua.” (ASSIS, op. cit., p. 75)
“Mas a vontade aqui foi antes uma idéia, uma idéia sem língua,
que me deixou ficar quieta e muda.” (ASSIS, op. cit., p. 80)
“Outra vez me fugiram as palavras que trazia.” (ASSIS, op.
cit., p. 81)
“Hoje, que me recolhi à minha casmurrice, não sei se ainda há
tal linguagem.” (ASSIS, op. cit., p. 210)
Todos estes recortes materializam algo impossível de ser dito
em sua essência de furo, seja pelos momentos de solidão, desespero, desamparo, seja até mesmo pelos encontros com alegria e/
ou morte. A língua não dá conta de abrigar e conter essa Coisa,
apenas contorná-la; as palavras faltam diante do que é absoluto
vazio e o simbólico aparece vergado em seu des-poder, enfermo
de potência e rendido a uma condição de não-todo. Temos, então,
o inominável que “essa Coisa, o que do real – entendam aqui um
real que não temos ainda que limitar, o real em sua totalidade,
tanto o real que é o do sujeito quanto o real com o qual ele lida
como lhe sendo exterior – o que, do real primordial, padece de significante.” (LACAN, [1959-1960] 2008, p. 144). E esse padecimento
de significante instala o efeito de incurável e irremediável, que
coloca a linguagem também em um lugar furado e impotente,
pois a Coisa “(...) é de alguma maneira desvelada com uma potência insistente e cruel.” (LACAN, op. cit., p.196) e Ela pode “ser
definida por isto – ela define o humano, embora, justamente, o
humano nos escape. Neste ponto, o que chamamos de humano
não poderia ser definido de outra maneira senão por aquela com
a qual defini, há pouco, a Coisa, ou seja, o que do real padece de
significante.” (LACAN, op. cit., p. 152).
Ao longo do Seminário - Livro 11, Lacan retoma o trabalho em
torno de “Algo que é da ordem do não-realizado” (LACAN [1964]
1973, p. 28), cuja materialidade se dá a ver em “tropeço, desfalecimento, rachadura (...) dimensão de perda” (LACAN, op. cit., p.30).
Perda sinalizadora de Das Ding, pois “A ruptura, a fenda, o traço
da abertura faz surgir ausência – como o grito não se perfila sobre
fundo de silêncio, mas, ao contrário, o faz surgir como silêncio.”
(LACAN, op. cit., p.31). É interessante marcar que esse silêncio
(em que a palavra não entra, não cabe, não comparece, e esse
núcleo duro que ela não consegue tocar) surge exatamente com
a presença da palavra, é a língua que instala o vazio, ou melhor,
é dizendo e repetindo que algo se inscreve para além de manco,
Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013
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roto e capenga, instala-se como impossível. Assim, apenas o dizer
coloca o sujeito em contato com o que não pode ser dito, enfim com
o real; e o psicanalista francês assegura que tal experiência com
o real é radicalmente encontrável na análise: “Nenhuma práxis,
mais do que a análise, é orientada para aquilo que, no coração da
experiência, é o núcleo do real” (op. cit., p. 58).
Lacan (op. cit., p. 159), ao longo deste Seminário, avança na
direção de definir o real nos seguintes termos “o oposto do possível é seguramente o real (...) o real como impossível”, com cujo
encontro abre-se um para-além.
O real está para além do autômaton, do retorno, da volta, da
insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo
princípio do prazer. O real é o que vige sempre por trás do
autômaton, e do qual é evidente, em toda a pesquisa de Freud,
que é do que ele cuida. (LACAN, op.cit., p. 56)2
O que insiste em repetir-se, em mais uma volta de dizer, funciona como abridor de nova hiância, como porto de passagem para
outra maneira de encontrar a Coisa; e aqui está o traçado do que
Lacan (op.cit., p. 63) define como a repetição no jogo do Fort-Da,
cujo fio do carretel sustenta a aventura até o lugar sempre vazio,
aquele onde só existe a sombra de uma presença, a passagem de
alguém ausente.
A hiância introduzida pela ausência desenhada, e sempre
aberta, permanece causa de um traçado centrífugo no qual o
que falha não é o outro enquanto figura em que o sujeito se
projeta, mas aquele carretel ligado a ele próprio por um fio
que ele segura (...) (LACAN, op.cit., p. 63)
Não discutirei aqui as
noções de tique e autômaton, nem de princípio
do prazer e da realidade,
pois não são o foco deste
trabalho.
2
66
Falar em hiância, falta, vazio, repetição, fenda e fissura
toca o conceito de inconsciente “tal como Freud inventou e como
Lacan releu mobilizando articulações com a Linguística, Lógica,
Topologia” (NAGEM, 2012, s. p.). Entretanto, faz-se necessária
uma distinção entre Das Ding, instância do inominável e do
real, e inconsciente, ordem da hiância tal como proposta acima,
apontadora da fenda e indicativa do não-realizado em movimentos denunciadores de um sempre-retorno ao que não se
fecha nem se conclui. Definido como repetição (já que o objeto
perdido jamais pode ser reencontrado), o inconsciente não pode
ser acessado diretamente, isto significa que sonhos, atos falhos,
tropeços apenas apontam-no. Por exemplo, a partir de um sonho
e da cadeia significante que lhe dá roupagem em relato no só-depois, é possível fazer retornar e retroagir o inconsciente. Por conta
desse traço perdido e fugidio, Lacan (op. cit., p. 29 - 30) afirma que
o que chama atenção ao analista é “o modo de tropeço pelo qual
eles aparecem. Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase
pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado
por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente”.
Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013
Está aqui definida a ordem do inconsciente freudiano – e
o nosso –, como a condição do não-realizado, do não-nascido, do
não-apreensível,
O que, com efeito, se mostrou de começo a Freud, aos descobridores, aos que deram os primeiros passos, o que se mostra
ainda a quem quer que na análise acomode por um momento
seu olhar ao que é propriamente da ordem do inconsciente, - e
que ele não é nem ser nem não-ser, mas algo de não-realizado.
(LACAN, op. cit, p. 35)
Isso Baldini (2012, s. p.) irá definir poeticamente como “um
parto que não se realiza nunca.” Ou seja, o inconsciente está no
domínio da hiância, produzi(n)do pelo que não se conclui, não
se realiza completamente a não ser pela via de uma abertura e
um fechamento rápidos, sinais de evanescência de algo sempre
prestes a escapar de novo. Sobre isso, Lacan ([1964] 1973, p. 30)
desenha a noção de reachado: “Ora, esse achado, uma vez que ele
se apresenta, é um reachado, e mais ainda, sempre está prestes a
escapar de novo, instaurando a dimensão da perda”, ou melhor,
“a função estruturante de uma falta” (op. cit., p. 33).
No “não-nascido”, no “evasivo”, “no um da fenda” (todas
maneiras de Lacan referir-se ao inconsciente), enlaça-se a instância
da rachadura, orbita a inscrição da fenda e faz falar a causa do
desejo humano (e do dizer). Por ser assim, o inconsciente é pura
evanescência no rosto do instante, o que o faz diferente de Das
Ding, esfera do inominável e do real como coloquei anteriormente.
Nessas articulações teóricas, vejo escancarado o “falto eu
mesmo” do narrador machadiano, uma condição que traceja o
caminho do sujeito sempre sustentado pelo real, isto é, por algo
que se ausenta em si, ou melhor, ao modo da citação lacaniana
(LACAN, [1964] 1973, p. 158): “(...) o caminho do sujeito passa entre
duas muralhas do impossível”. E nessa trilha (árdua, por sinal)
de trombar com o real e com as muralhas dele, resta ao sujeito
fazer contornos, pespontando borda no desejo, pois “um desejo,
o cercamos” (LACAN, op. cit., p. 240), e apenas isso, o cercamos
para que o centro fique oco, vazio, intactamente ausente.
Nos dois Seminários, Livros 7 e 11, estudados até aqui, Das
Ding e real são definidos como constantes na constituição do sujeito, permanecendo intactos como furo cujo tamponamento, por
meio de dizeres, explicações e teorias, nunca se dá; isto é, a lacuna
amplifica-se constante e estampada em tudo o que o humano toca.
Saída e chegada no/pelo furo, e o sujeito fica situado justamente
no intervalo entre estas duas pontas, espaço de seu dizer sempre
incerto e vazado pelo que não alcança o alvo, e nunca alcançará.
Um intervalo oco, inominável e impreenchível que promove o
impulso à voz e à arte, que abre campo para o sujeito poder desejar sem, contudo, realizá-lo inteiramente; um vazio no centro em
torno do qual o sujeito dá seus rodopios e bailados, faz seus passes
Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013
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de jogador com suas palavras, dribla a secura de sua condição,
fazendo bordados em idas e vindas, em espirais de repetição e
ruptura e em giros de dizeres sobre a Coisa. E é isso que percebo
intensamente na exposição que será analisada a seguir.
“Hace falta mucha fantasía para soportar la realidade”,
turbilhão e furo em exposição
Tudo é dar- lhe uma idéia e encher o centro que falta .
(Machado de Assis)
Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome.
(Hilda Hilst)
http://www.youtube.
com/watch?v= lfGWaXHLtOk
3
68
Em 11 de março de 2004, uma série de atentados terroristas
explodiu quatro comboios da rede ferroviária Atocha, em Madri,
capital da Espanha. O acontecimento, denominado 11-M, assolou
o horário de pico da manhã de vários citadinos, que normalmente
estão em trânsito para o trabalho ou estudo, e foi considerado o
maior atentado da história do país, totalizando 191 mortos, além
de 1700 pessoas feridas. Dez explosões simultâneas com bombas
sacudiram a normalidade do serviço de transporte e abriram
uma ferida no país, recolhido primeiro ao salvamento de vítimas,
depois à dor e ao luto de mortos, e, em seguida, a diversas passeatas em memória das vítimas com pedidos pela paz. Na época,
o governo espanhol atribuiu a autoria ao grupo ETA, visto que o
tipo de explosivo era normalmente utilizado por ele; no entanto, o
grupo islâmico Brigadas de Abu Hafs Masri reivindicou a autoria
do atentado à Al Qaeda.
Não é do meu interesse aqui tecer uma análise geopolítica
do fato e de seus desdobramentos, até porque o terror é da ordem
do real e, diante de ambos, as palavras se curvam pequenas e silentes. A morte é um dos rostos mais nítidos da Coisa, significante
perdido. Mas, como Lacan nos mostra, a resistência e o gesto de
fazer borda ao vazio são possíveis ao sujeito, e é isso que me parece
denso, poético e sublime na exposição “Hace falta mucha fantasía
para soportar la realidade”3, levada a termo por cinco arquitetos que,
durante dois anos e meio, construíram o monumento em memória
às vítimas do 11-M. “Esaú Acosta, Raquel Buj, Miguel Jaenike,
Manu Gil-Fournier y Pedro Colón de Carvajalel, del estudio FAM
(Formidable Aroma a Manzana) han sido los encargados de realizar el monumento del 11-M en Atocha inaugurado con motivo
del 3º aniversario de los atentados”. O monumento é composto
por “un cilindro de vidrio de once metros de altura en el que se
leen mensajes anónimos relacionados con el atentado, pero está
diseñado para verse desde dos metros de profundidad, desde una
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habitación azul cobalto a la que se accede a través de una mampara y en cuyo centro hay un foco de luz blanca. Para entender el
monumento, hay que ponerse en ese foco y mirar hacia arriba.”4
Do lado de fora, o monumento fura o espaço como a produzir o efeito de uma lança invasora do vazio do céu e do próprio
prédio da estação Atocha. Ergue-se inteiro e fechado em uma
construção que salta, aponta, estira um bloco ereto e se endereça
ao alto. Esse cilindro de vidro, que fura o nada do espaço, faz o
vazio aparecer também dentro dele, ao modo que já foi dito aqui
sobre a linguagem. Olhando-o de fora, não se tem o imenso do
efeito de furo que ele guarda dentro de si, mas vê-se que, no desenho arquitetônico do plano da estação Atocha, tão assentado
em linhas retas, uma torre salta para/por fora e enfia-se para
dentro da estação. Duas pontas ficam amarradas e alinhavadas,
já que fora e dentro constituem um bloco só, ou seja, um elo de
continuação desse monumento.
ht t p://a rqu ite ct ur a i n t e l ig e n t e.wo r dpress.com/2007/03/14/
formidable-aroma-a-manzana/
4
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Fig. 1: O monumento
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Fig. 2: O monumento visto de fora da estação
Quando visto do lado de dentro, uma (a)tocha de luz fura
o teto da estação, produzindo efeitos de facho, passagem e fenda,
convidando o visitante ao deslocamento de colocar os olhos para
o alto, o corpo em posição de menoridade, assim, o buraco ganha
estatuto maior, atravessa o dentro/fora, que persiste em ficar oco,
sinalizando palavras e o oco céu.
Fig. 3: O monumento visto de dentro da estação
70
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Fig. 4: Visitantes do monumento
Vendo no olho do furo, o aberto permanece constante como
fundo sem fundo, inapreensível e impossível de tocar. No miolo
de todas as palavras, frases e mensagens anônimas escritas após
o atentado e dis-postas em espiral no monumento, há um ponto
de falta incondicional, superfície constante, estrutural e insistente
ao modo de uma metáfora visual do que presentifica Das Ding.
É em torno desse buraco (e do pedacinho vazado de céu que ele
materializa) – oco que não cede – que os dizeres dançam em
diversas línguas, espanhol, francês, inglês, árabe, italiano dentre
outras, preservando no centro algo que não pode ser dito nem
alcançado. Algo que faz acontecer o vazio.
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71
Fig. 5: A vista do monumento por dentro
Fig. 6: Outra tomada de dentro do monumento
Por que há esse centro, o turbilhão se monta e mantém-se em
espiral nas tentativas de simbolizar o próprio vazio. O contorno
de dizer(es) apenas faz borda, ampara e dá margem a esse oco
que é o céu; e aqui relembro um jogo de infância que constava de
encontrar figuras humanas, mitológicas e bichos nas nuvens, ou
seja, no formato de borda que elas davam a ver. O azul-vazio do
72
Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013
céu era preenchido pelas nuvens que inscreviam espaços de beirada para o oco - uma orla para conter o imenso – pois o todo-azul
mantinha-se chapado, constante e inteiro. As nuvens aí faziam
extremidade de superfície, esburacavam o todo com seus desenhos
em branco e cinza e, por alguns momentos, diziam da presença
evanescente de um tigre, um gigante ou rei. Presença efêmera
posto que sempre em movimento. Assim, o nariz de um animal
transformava-se em parte da torre de um castelo para, minutos
depois, dar a ver a trança da menina. A nuvem, borda ao/do vazio
do céu, dava forma gráfica no tecido do ausente, apresentava o
fur(ad)o e desfazia-se de inteireza tão logo pudéssemos ver algo.
Isso tem relação com a função do inconsciente nos termos do que
Lacan ([1964] 1973, p. 35) coloca a seguir: “(...) é a fenda por onde
esse algo, cuja aventura em nosso campo parece tão curta, é por
um instante trazida à luz – por um instante, pois o segundo tempo,
que é o fechamento, dá a essa apreensão o caráter evanescente.”
O mesmo parece fazer funcionar o monumento: as palavras
fazem moldura ao vazio deixado pela morte de tantos madrileños
e dançam criando campo para que o furo permaneça no centro
e possa permitir dizeres em espiral. E à medida que se lê uma
formulação, as outras se dissolvem no giro da espiral. Esse furo,
que estabilizado se mantém presente e inalterado a despeito dos
dizeres em movimento, indicia e realiza Das Ding, embora não o
seja já que a Coisa é irrepresentável pela linguagem.
Fig. 7: Outro ângulo de visão do monumento
Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013
73
Fig. 8: O céu no fundo do monumento
O que fica fixado sempre, constante e coerente como afirmou
Freud é o furo que, em não sendo tocado, faz tudo mover; este
monumento realiza tal representação de Das Ding. Assim, os
dizeres formam uma rede, um redemoinho que ampara o sujeito
no sentido de dar forma aos seus arranjos significantes sempre
atravessados e estruturados a partir de uma falta. A morte de vítimas em um atentado terrorista – e o horror do rosto violento do
trágico inominável – emblematizam o cerne do vazio, o lugar de
buraco que, pelo vidro, permite ver o céu. E céu aqui, para além
de todas as colorações religiosas possíveis, me faz aqui relacioná-lo
à metáfora de vaso, proposta por Lacan ([1959-1960] 2008, p.148)
do seguinte modo:
O exemplo do pote de mostarda e do vaso permite-nos introduzir aquilo em torno de que girou o problema central
da Coisa (...) o vaso é feito a partir de uma matéria. Nada é
feito a partir de nada. (...) Ora, se vocês considerarem o vaso,
na perspectiva que inicialmente promovi, como um objeto
para representar a existência de um vazio no centro do real
que se chama a Coisa, esse vazio, tal como ele se apresenta
na representação, apresenta-se efetivamente, como um nihil,
como nada. E é por isso que o oleiro, assim como vocês para
quem eu falo, cria o vaso em torno desse vazio com sua mão,
o cria assim como o criador mítico, ex nihilo, a partir do furo.
(LACAN, [1959-1960] 2008, p.148)
Considero que o monumento M-11 funciona a partir do que
Lacan coloca acima como nada, de tal modo que, a cada espiral de
dizer, um volteio é dado e, exatamente por isso, o furo continua
sustentado(r) no centro. Quanto mais o oleiro trabalha para a
criação de um vaso novo, mais o vazio permanece intacto e estruturante para que o sujeito possa inventar-se, arriscar uma nova
forma, dizer de outro modo e brincar mais um pouco com seus
ocos. O visitante da exposição entra nesse monumento com seu
corpo todo, expõe-se ao cilindro cheio e vazio em tons de branco e
74
Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013
azul, gira pelas beiras das lâminas de vidro e encaminha-se para
dentro do turbilhão com dizeres imensos, que vão diminuindo à
medida que se aproximam do fundo (fundo sem fundo); dizeres
que vão dançando em círculos até chegarem ao centro onde não
cabe palavra alguma, onde a língua se rende afogada no impossível. E, mesmo assim, muito foi dito sobre a morte dos madrileños,
o absurdo da violência do atentado, a necessidade de convivência
entre diferentes, os pedidos de paz; e porque muito foi dito, o Oco
esteve/ está presentificado lá.
De falta e de ausência, curativos de vazio
Toda obra de arte é um curativo do vazio.
(René Passeron)
Por muito tempo achei que a ausência é falta. / E lastimava, ignorante,
a falta. / Hoje não a lastimo. (...) / A ausência é um estar em mim
(Carlos Drummond de Andrade)
A falta de Bentinho, em Machado, sinaliza uma constatação
dolorida, a perda do outro é passível de elaboração, mas a de si
mesmo inaugura o reconhecimento da lacuna irremediável falada como insuportável em mais de um ponto da narrativa. Já no
poema de Drummond, é possível ler deslocamentos dessa falta
lacunar, dita problemática. Da ausência-falta para a ausência-estarem-si, é de dizer em torno do furo que orbita toda a possibilidade
de invenção na vida, na arte, na literatura.
Se o ausente (o Oco, a Coisa) sempre se realiza, resta ao
sujeito a chance de inventar algo com Ele/ Ela, apontando que
é possível cria (criar) um espaço íntimo de estar-em-si com Isso.
Amassar o barro para fazer um pote, ajuntar as notas para compor
uma sinfonia, reunir versos e alinhavar um poema, inventar um
desenho de exposição para colocar o horror dançando em um céu
de palavras: em tudo isso, o buraco continua latejando e não cessa
de produzir efeitos. Isso realiza Das Ding. E, não sem o mote das
mãos vazias, eu encerro esse escrito, esforço de elaboração, pois
depois de tantas palavras, o fecho é de ausências e de presença
do Oco. De modo espirituoso, Lacan ([1964] 1973, p. 176) finaliza a
lição XIV do Seminário, Livro 11. Tomo dele emprestadas pergunta e
resposta: “Será que lhes trouxe algumas luzes com esta exposição?
Algumas luzes e algumas sombras”.
Abstract
Speaking of discourses in contemporary touch
is so closer or distant, issues of language to the
hole, emptiness and violence. This text aims,
from concepts of Freud and Lacan, understand
the relationship between language and the Ding
to analyze exposure “Hace lack mucha soportar
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her fantasy to reality.” This event was conceived
and presented at the Atocha station in Madrid,
three years after the terrorist attacks of 2004 that
signed up scenes of horror in a crossing and wide
circulation during business hours and they did
dance in a sky of words, the hole death.
Keywords: discourse; hole; contemporary;
psychoanalysis.
REFERÊNCIAS
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BALDINI, L. Apresentação oral em cartel. 2012.
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Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução Antônio
Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
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SCHERER, A. Conferência durante a II Jornada do E-l@dis – Conceitos
em rede. Ribeirão Preto: FFCLRP/ USP, 2011.
76
Niterói, n. 34, p. 61-76, 1. sem. 2013
Desejo de desejo na mercadoria
e o olhar do artista1
Luciene Jung de Campos (PPGTUR/UCS)
Resumo
O presente artigo é uma tentativa de fazer uma
leitura provisória da sociedade contemporânea
e da condição de resistência do sujeito. Trata do
sujeito e da mercadoria capturados pela publicidade/propaganda, onde o artista faz a denúncia.
Busca uma aproximação entre os campos da arte,
da psicanálise e da análise do discurso. Propõe
uma discussão através do esquema L de Lacan
para pensar a relação imaginária do sujeito com
a publicidade.
Palavras-chave: Imagem; Resistência; Sujeito.
Este artigo é um recorte da
minha tese de doutoramento
Imagens à Deriva: Interlocuções entre a arte, psicanálise e a análise do
discurso, sob orientação da Profa.
Dra. Maria Cristina Leandro
Ferreira.
1
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013
“O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou
totalmente a vida social”, refere Guy Debord (1997, p. 30) em
seu livro A sociedade do espetáculo. Com a revolução industrial, a
divisão do trabalho e a produção em massa para o mercado mundial, a mercadoria aparece como uma das principais forças que
orienta a vida social. O espaço social é invadido pelo excedente
de mercadorias e o consumir passa a ser tão obrigatório quanto o
produzir, diz o autor “o consumo alienado torna-se para as massas
um dever suplementar à produção alienada” (DEBORD, 1997, p.
31). Assim, o proletário deixa de ser visto apenas como o operário
que deve receber o mínimo para a garantia de sua sobrevivência,
obrigando-se a vender contínua e incessantemente a sua força de
trabalho. E passa a existir fazendo parte da massa de consumidores,
cuja obrigação é regular o estoque de mercadorias em abundância.
Em páginas anteriores, deste mesmo livro, ele conceitua espetáculo: “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação
social entre pessoas, mediada por imagens” (DEBORD, 1997, p. 14).
Para abordar discursivamente a espetacularização da imagem
mediadora das relações na sociedade de consumo, apresento algumas obras do ensaio fotográfico Outdoor´s São Paulo, Um Retrato
Urbano, de Carlos Goldgrub, realizado entre 2002 e 2004. O artista
utiliza uma câmera Nikon F4, filme Tri-X, e apenas uma lente
zoom 80-200mm: “Esse equipamento me permitiu mais aproximação e também a possibilidade de cortes no momento do enquadramento, obtendo assim uma imagem final mais limpa”, refere Goldgrub (2012, p. 5). Os anúncios interpelam os passantes nas ruas no
formato de gigantescos painéis, conforme flagrou o fotógrafo:
Fig. 1 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004
78
Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013
Na imagem acima (Fig.1), o personagem é bem conhecido,
trata-se de um famoso jogador de futebol. O jogo metafórico da
publicidade/propaganda é registrado pelo artista, onde um elemento é substituído por outro: a bola é substituída por um telefone
celular e o jogador talentoso é substituído pelo garoto-propaganda.
É a imagem pessoal que parece se converter em mercadoria. A
exploração estética da cabeça raspada remete ao formato da bola,
a uma cabeça-globo que equilibra um celular. A sua habilidade
desportiva passa para segundo plano e o que fica em evidência são
os contratos milionários que tornam ilimitada a sua capacidade de
consumo. A escalada social parece ser explorada pelo artista no
ângulo em que ele ajusta a fotografia, aproveitando os patamares
ascendentes da arquitetura. Contra o fundo branco a imagem
expõe o perfil em degraus que finalizam em uma escada sem fim.
O garoto-propaganda propõe o consumo fácil com um
sorriso no rosto, relembra a felicidade prometida na cultura do
efêmero pela aquisição de mercadorias, apelo recorrente na publicidade/propaganda. Trata-se do sujeito “livre e competente”
da formação discursiva esportiva que migra das camadas sociais
mais desfavorecidas para o topo da pirâmide em função de seu
talento. A imagem de Goldgrub reapresenta o sintoma: disfarça a
exploração do atleta enquanto trabalhador e evidencia um gozo.
Em plena cultura da performance e da liberdade individual
“vive-se uma espécie de mais-alienação”, como refere Kehl “de
rendição ao brilho da imagem de algumas personagens públicas
identificadas ao gozo que os objetos deveriam proporcionar”
(BUCCI; KEHL, 2004, p. 65). Maria Rita Kehl propõe um diálogo
com a obra de Debord em seu texto O espetáculo como meio de
subjetivação, onde defende que a imagem industrial, nesse caso,
tem a qualidade do fetiche, e sintetiza o modo contemporâneo de
alienação que chama de “mais-alienação” para conceituar a expropriação simbólica análoga ao resultado da mais-valia (BUCCI;
KEHL, 2004, p. 49).
Lacan (1998), no texto O estádio do espelho, trata da eficácia da
imagem para produzir a identificação primordial com o Outro
antes que a linguagem lhe institua sua função de sujeito. Dependência inicial e total do olhar do Outro, onde se organiza uma
matriz simbólica que daria suporte às identificações secundárias.
Pêcheux inspira-se nesta abordagem para elaborar o conceito de
formações imaginárias na teoria do discurso.
Prosseguindo o diálogo entre a Psicanálise e a Análise
do Discurso, atribuo à matriz simbólica o locus para inscrição da
ideologia. Nesta linha, busco refletir sobre a ideologia enquanto
o “espelho” que cumpre a tarefa de organizar a imagem fragmentada do sujeito dividido e desamparado. Organização essa,
imaginária, com a qual o sujeito se identifica pelo mecanismo de
projeção. Penso que o esquema L proposto por Lacan pode ajudar
a elucidar a constituição do sujeito via o espelhamento no olhar do
Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013
79
Outro. No caso, o Outro é a publicidade/propaganda, enquanto
imagem da mercadoria, na qual o sujeito se projeta e se identifica.
O “esquema L” é considerado o esquema da dialética intersubjetiva que evidencia a relação dual do eu com sua projeção
(a’), esta projeção confunde-se com a imagem de si mesmo e a do
outro. A estrutura busca encenar a relação imaginária de simetria e reciprocidade que implica a reduplicação de seus termos: o
pequeno outro (a) é exponenciado como grande Outro (A), onde
a posição do terceiro implica a do quarto (S):
S
a
a’
A
Fig. 2 – Esquema L de Lacan
O estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se
desenrola no Outro A. O que nele se desenrola articula-se como
um discurso (o inconsciente é o discurso do Outro), do qual Freud
procurou definir a sintaxe relativa aos fragmentos que nos chegam
em momentos privilegiados como os sonhos, os lapsos e os chistes.
Nesse discurso, o sujeito (S) é repuxado para os quatro cantos do
esquema, como diz Lacan: em sua inefável e estúpida existência, para
a, seus objetos, a’, seu eu, que é o que se reflete de sua forma na
relação imaginária com seus objetos, e A, lugar de onde lhe pode
ser formulada a questão de sua existência (Lacan, 1998, p. 555).
Abaixo, um esquema para apresentar a relação imaginária do consumidor (S) com a publicidade/propaganda (PP):
Quem sou eu?
S
a’
a
A
Mercadoria
PP (Imagem do “bom sujeito” famoso, rico, bem-sucedido)
Objeto da PP
Mercadoria falada, nomeação da mercadoria
Fig. 3 – A relação imaginária do consumidor com a Publicidade/Propaganda
(PP) (Adaptado do esquema L de Lacan)
Fonte: Campos, 2010
No esquema acima (Fig.3), a Publicidade/Propaganda está
no lugar do grande Outro (A), enquanto imagem e discurso sobre
a mercadoria. A mercadoria é o objeto da publicidade/propaganda (PP). A publicidade dirige-se ao grande público nomeando os
80
Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013
atributos, funções e resultados da mercadoria, que é o seu objeto
(a’). Ao mesmo tempo em que a publicidade/propaganda nomeia
a mercadoria, ela também nomeia o sujeito. O sujeito deseja a
mercadoria na esperança de que ela diga quem ele é, assim como,
a publicidade/ propaganda (PP) diz o que é a mercadoria. Nesse
caso, poder-se-ia dizer que é a imagem que assume o lugar de
fetiche e não mais a mercadoria, onde a publicidade/propaganda sustenta as relações de dominação e exploração negadas na
sociedade de consumo.
Bucci e Kehl (2004) defendem a ideia de que as sociedades
contemporâneas, as sociedades do espetáculo tiveram que fazer
um retorno para os corpos humanos e que a lógica do fetichismo
da mercadoria deslocou-se para o território de circulação das
imagens, associando alguns seres humanos “especiais”, “escolhidos” a mercadorias:
Diferentemente do caso das mercadorias, que só servem de
suporte para a mistificação dos homens que as trocam, os
vendedores, os vendedores de imagens são presas da própria
ilusão que produzem. São, ao mesmo tempo, o fetiche e o fetichista, o ilusionista e o iludido (BUCCI; KEHL, 2004, p. 82).
Para trabalhar essas questões é preciso rever os conceitos de
fetiche e de sintoma. Por sinal, são dois conceitos em confluência
na psicanálise e no materialismo histórico.
O sintoma: uma metáfora da história
Se Freud assumiu a responsabilidade – ao contrário de Hesíodo, para quem as doenças enviadas por Zeus avançavam para
os homens em silêncio – de nos mostrar que existem doenças
que falam, e de nos fazer ouvir a verdade do que elas dizem,
parece que essa verdade, à medida que sua relação com um
momento da história e com uma crise das instituições nos
aparece mais claramente [...] (LACAN, 1998b, p. 216).
Lacan faz lembrar, na citação acima, como Freud iniciou sua
investigação pelo sintoma, tratando as histéricas, cujo sintoma denunciava o estado daquelas mulheres que não podiam se expressar na sociedade conservadora e autoritária da época. Tratava-se
do sujeito inibido histórica e culturalmente determinado. Cujos
sintomas estavam vinculados à impossibilidade de renunciar ao
objeto primário e encontrar outra forma de existência. Por conta
disso, a “doença” parece estar ligada a essa impossibilidade de
renúncia a esse desejo originário. Esta demanda provoca inibição
e angústia no ser humano enquanto um animal alijado da natureza, que perdeu o instinto e com isso foi jogado na incerteza e
no conflito, enquanto falasseres que somos.
Lacan constrói o esquema L do caso Dora, um dos casos
clássicos de histeria, trabalhado por Freud e relido por Lacan no
Seminário IV: Relação de objeto:
Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013
81
O que é uma mulher?
S
a
a’
A
pai da Dora
Sra. K
Fig. 4 – O esquema L do caso Dora, segundo Lacan
O esquema L é uma topologia onde o sujeito (S) se estende
entre a e a’, num “véu de miragem narcísica” que serve para sustentar tudo o que nela venha se refletir por seus efeitos de sedução
e captura (LACAN, 1998, p. 557). O desejo da histérica é o desejo
de desejo, cujo desejo é o desejo do Outro. A histérica trata de se
colocar na posição de substituir o Outro (o pai) nesta função do
desejo: ela esvazia sua relação com o objeto (Sra. K), fomentando
o desejo do Outro por este objeto. Ela se empenha em sustentar
o amor deste outro (Sra. K) que é seu verdadeiro objeto – situação
bastante ambígua, Dora sustenta o desejo de seu pai pela Sra. K
e mascara seu objeto que é a Sra. K., portadora de sua questão: O
que é uma mulher?
Na clínica médica, o sintoma está ligado à doença e é sempre
patológico; para a psicanálise, ele é o início da cura e indica a
presença do sujeito do inconsciente. O sintoma para a psicanálise
não diz respeito a uma doença orgânica, mas a uma formação
do inconsciente. A psicanálise por sua vez, tem sua origem na
clínica médica, porém no momento em que se diferencia como
outro campo de saber, ela rompe com essa clínica. E o sintoma é
sintoma desta divergência.
Foucault (2006), em O nascimento da clínica, descreve o sintoma como a primeira transcrição da doença, na sua condição de
inacessibilidade. Para Foucault, o sintoma é uma linguagem que
torna visível o invisível da doença. O sintoma para o médico é
signo, que representa o significado de uma doença. Para o psicanalista e para o analista do discurso o sintoma é significante.
Freud, em Inibição, sintoma e angústia (1925) explica o processo
de produção do sintoma:
Um sintoma surge de um impulso que foi afetado pelo recalque. Se o ego, fazendo uso do sinal de desprazer, atingiu seu
objetivo de suprimir inteiramente o impulso, nada saberemos
como isso aconteceu. Podemos apenas descobrir algo a esse
respeito pelos casos nos quais o recalque em maior ou menor
grau, tenha falhado. Nesse caso, a posição é que o impulso
encontrou um substituto apesar do recalcamento, mas um
substituto muito mais reduzido, deslocado e inibido, e que não
é mais reconhecido como uma satisfação. E quando o impulso
substitutivo é levado a efeito, não há qualquer sensação de
82
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prazer; sua realização apresenta, ao contrário, a qualidade de
uma compulsão (FREUD, 1976, p. 116).
Nesta citação, aparece a ideia do sintoma enquanto um
compromisso. Compromisso entre o desejo e a defesa contra
esse desejo. No entanto, é um contrato que não é bem cumprido,
ele tem uma falha. Trata-se do retorno do recalcado que insiste:
o impulso encontrou um modo de se fazer presente de forma
deslocada e minimizada. A defesa falhou, mas é vigorosa, pois
consegue reduzir um processo de satisfação a uma compulsão que
se consome no próprio sujeito, garantindo a inibição do desejo.
Penso ser pertinente discutir uma das imagens da série
Outdoor’s, onde aparece uma cadeia de significantes que nos ajudaria a pensar esta questão. O artista posiciona a sua câmera de
modo que seja possível visualizar o outdoor que veicula a imagem
de um casal em cena íntima, superpondo-se ao pé da imagem,
um cartaz de preços de combustíveis (gasolina comum R$ 1,59
e álcool R$ 0,68). Ele promove um deslizamento de significantes:
Fig. 5 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004
GAS comum ÁLCO[ol] →Combustível ↔ energia ↔ desejo
→ preço = mercadoria
A expressão “GAS comum” e a imagem do casal condensa a ideia de combustível/ desejo. A atração sexual e amor são
afetos, relações de intensidades e trocas. A energia está sendo
comercializada no anúncio, o que vale para o combustível e para
os corpos aos quais os preços estão afixados. O desejo é mercadoria. A imagem é perturbadora, ela lida com o vácuo, ocupando
metade do espaço, com o indicativo monetário sobreposto ao
casal, sugerindo precificação humana. A imagem estaria apontando para um jogo e para a mercantilização das relações? Para
a impossibilidade de desejar, quando o desejo adquire o status de
Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013
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mercadoria? Para o abandono de Eros? Não temos as respostas,
apenas a obra perturbadora.
Lacan (1998), em Escritos, no seu texto Do sujeito enfim em
questão, aborda uma dimensão do sintoma que é a do retorno de
uma verdade que vem perturbar a “boa ordem”. Nesse sentido,
ele reconhece na crítica de Marx ao capitalismo, os artifícios
ridiculamente travestidos da razão no retorno materialista da
verdade que assume forma e corpo na mais-valia. Não se trata
do status de signo, de representação, mas da apresentação de algo
que retorna, como registrou Freud. Lacan conclui que o sintoma
só pode ser lido na ordem do significante, não do significado. O
significante só tem sentido na sua relação com outro significante
e é nessa articulação que reside a verdade do sintoma:
O sintoma tinha um ar impreciso de representar alguma
irrupção da verdade. A rigor, ele é verdade, por ser talhado
na mesma madeira que ela é feita, se afirmarmos materialisticamente que a verdade é aquilo que se instaura a partir da
cadeia de significante (LACAN, 1998, p. 235).
Sob este aspecto, a indagação de Zizek é pertinente: “Como
foi possível que Marx, em sua análise do mundo das mercadorias, produzisse uma noção que também se aplica à análise dos
sonhos, aos fenômenos histéricos e assim por diante?” (ZIZEK,
1999, p. 297).
Ele mesmo conclui que ambos, Marx e Freud, evitaram o
fascínio pelo “conteúdo” e se preocuparam com a forma: como os
pensamentos adquiriram essa forma no sonho? Por que o trabalho
humano só consegue se afirmar na forma-mercadoria? O que passou interessar para Freud eram os mecanismos de deslocamento
e condensação que trabalham a forma do sonho (na elaboração
do conteúdo manifesto que é apresentado). O importante não é só
“descobrir” o conteúdo latente, mas reconhecer o que se produziu
neste intervalo entre o latente e o manifesto.
Freud busca explicar esse fenômeno. Preocupa-se em superar a ideia de que o sonho é uma confusão sem sentido, simples
interferência de processos fisiológicos. Inicialmente, é preciso dar
um passo em direção à abordagem hermenêutica e admitir que o
sonho veicula uma mensagem encoberta que necessita ser revelada
através de um método interpretativo. Depois, é preciso abandonar
esse centro de significação de sentido oculto e profundo do sonho
e buscar o processo ao qual esses pensamentos oníricos latentes
foram submetidos e indagar-se sobre o seu funcionamento.
O segredo da forma-mercadoria
Zizek (1999) compara os esforços de Freud com os de Marx,
na análise do “segredo da forma-mercadoria”, onde ele faz uma
articulação semelhante, em dois tempos. Primeiro devemos descartar a aparência de que o valor estipulado para uma mercadoria
é um mero acaso, simples consequência da lei de oferta e procura.
84
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Em seguida, é preciso admitir o “sentido oculto” por trás da forma-mercadoria, o que expressa essa forma; devemos penetrar no
“enigma” do valor das mercadorias. No entanto, a determinação
da grandeza do valor da mercadoria pelo tempo de trabalho é um
segredo que se esconde nas flutuações de valores dessas mercadorias e mesmo que descoberto, isso não alteraria o modo como se
dá essa determinação. O desmascaramento do segredo, portanto,
não basta: é a exploração do trabalho a verdadeira fonte de riqueza.
Não se trata do segredo por trás da forma, mas da própria forma
como essa economia política clássica funciona. Então o segredo da
magnitude do valor da mercadoria continua sendo um mistério
indecifrável, da mesma forma que o conteúdo latente do sonho.
Mas, o que interessa nos dois casos é como o sentido latente
se disfarçou desta maneira. “Por que o produto do trabalho tem
seu valor alterado assim que assume a forma de mercadoria? É
a questão que a economia política não pode se colocar e que está
vinculada à sua própria presença” (ZIZEK,1999, p. 300).
Trata-se, então, de uma Outra Cena que está em jogo, como
alertou Freud, externa ao pensamento face à qual a forma do
pensamento já está articulada de antemão. A ordem simbólica
é uma ordem formal que completa ou que rompe a relação dual
da relação factual “externa” (a troca de mercadorias) com a experiência subjetiva “interna” (a ilusão fetichista no ato da troca
da mercadoria). Assim, chegamos à dimensão do sintoma na sua
semelhança com o ideológico: uma formação cuja força implica
um certo não-conhecimento por parte do sujeito. O sujeito só pode
sustentar o seu sintoma na medida em que sua lógica lhe escapa.
Por exemplo, no capitalismo, o uso do ideário setecentista de
liberdade e igualdade é falso. A liberdade específica de o trabalhador
vender “livremente” sua força de trabalho no mercado subverte
essa noção universal de liberdade. O mesmo também se pode
demonstrar quanto à justa troca de equivalentes, esse ideal de
mercado. A força de trabalho passa a ser uma mercadoria para
os trabalhadores que não são donos dos meios de produção e que,
por conseguinte, são obrigados a vender no mercado seu próprio
trabalho, ao invés de produtos.
Com essa nova mercadoria – a força de trabalho – a troca de
equivalentes anula-se na apropriação da mais-valia que materializa
a nova forma de exploração do capital. O ponto decisivo aqui é essa
negação que é própria à troca de equivalentes e não sua simples
violação: a força de trabalho não é “explorada” no sentido de seu
pleno valor não ser remunerado; em princípio, pelo menos, a troca
entre o trabalho e o capital é plenamente equivalente e equitativa,
comenta Zizek, fazendo a leitura de Marx, ao que acrescenta:
O problema é que a força de trabalho é uma mercadoria peculiar, cujo uso – o trabalho em si – produz uma certa mais-valia,
e esse excedente que ultrapassa o valor da própria força de
trabalho é apropriado pelo capitalista (ZIZEK, 1999, p. 307).
Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013
85
O que está sendo questionado é que os equivalentes não são
equivalentes como dissera Saussure (2004): uma palavra é o que a
outra não é, não existem equivalentes na língua. Trata-se de uma
estrutura de ficção que busca impor-se como “natural” e lógica. É
o grande Outro da cultura produzindo o imaginário do sujeito. O
“equivalente” é imaginário no sentido de cristalizar uma imagem
do processo. O equivalente nunca é equivalente.
Nessa linha, instala-se um certo universal ideológico (o da
troca equivalente e equitativa) e uma troca paradoxal particular (a
da força de trabalho por seus salários) que, como um equivalente,
funciona como a própria forma de exploração. A universalização
da produção de mercadorias acarreta um sintoma, que funciona
como sua negação interna. Marx (1983) afirma em O Capital, que
esse elemento irracional é o proletariado, desrazão da própria razão,
engendramento arbitrário do próprio capitalismo.
Pêcheux (1975) contribui com esta questão, referente ao
estudo das práticas repressivas ideológicas, onde se esforça por
compreender o processo de resistência-revolta-revolução:
Se, na história da humanidade, a revolta é contemporânea à
extorsão do sobre-trabalho é porque a luta de classes é o motor
dessa história. E se em outro plano, a revolta é contemporânea
à linguagem, é porque sua própria possibilidade se sustenta
na existência de uma divisão do sujeito, inscrita no simbólico
(PÊCHEUX, 1997b, p. 302, o grifo é meu).
Se a revolta é contemporânea da linguagem como diz Pêcheux,
(as obras que estou analisando também confirmam isso) e se o
inconsciente é mesmo efeito de linguagem e se o tratamento só é possível
por meio da palavra, não seria a língua que determina o destino do
sintoma? Esta é uma questão que Lacan se coloca em seu Seminário
XXIII: O sinthoma (1975-1976). Trata-se de uma questão interessante
para nós, analistas do discurso. Penso que enriqueceria a reflexão,
o diálogo entre o sintoma e a sintaxe.
Leandro Ferreira (2000), ao abordar a sintaxe como o lugar
de observação do discurso, trabalha a interface sintaxe/discurso.
Conclui que é através da sintaxe como espaço de mediação entre
a forma e o sentido que se dá o acesso à ordem da língua e à
materialidade linguístico-histórica. É nesta zona que se situam
os fatos linguísticos que forçam seus limites e desafiam as suas
próprias regras.
Então, o que é possível dizer sobre o desejo que o sintoma
concorda em inibir e transformar? Para isso, a língua precisa encontrar o equívoco, o melhor equívoco. Para tanto, a língua não
pode ser um sistema dedutivo fechado, livre de lacunas, livre de
excessos, mas capaz de rupturas. Isso acontece porque a língua é um
sistema sintático intrinsecamente passível de jogo, afirma a autora:
86
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E dentro desse espaço de jogo, as marcas significantes da
língua são capazes de deslocamentos, de transgressões, de
rearranjos. É isso que faz com que um determinado segmento
possa ser ele mesmo ou outro através da metáfora, da homofonia, da homonímia, dos lapsos de língua, dos deslizamentos
sêmicos, enfim, dos jogos de palavras e da dupla interpretação
de efeitos discursivos (LEANDRO FERREIRA, 2000, p. 108).
Sobre esses recursos da língua e do inconsciente, Lacan
pontua:
Está claro que todo ato falho é um discurso bem-sucedido,
ou até formulado com graça e que no lapso é a mordaça que
gira em torno da fala, e justamente pelo quadrante necessário
para que um bom entendedor encontre ali sua meia-palavra
(LACAN, 1998, p. 269, o grifo é meu).
Na obra apropriada da Publicidade/Propaganda e recriada
pelo artista, é a viseira que gira sobre a imagem e mostra Outra-coisa e permite que o leitor encontre ali a sua meia-imagem,
a imagem não-toda, capaz de ressignificá-lo momentaneamente.
Neste desenfreamento do significante, encontramos o sujeito em
formação discursiva heterogênea. As obras de arte que estão em
análise me fazem pensar em produções novas que resultam dos
efeitos subversivos da “condensação” e do “deslocamento” podem
ser entendidas como emergências significantes do inconsciente
que se estruturam em outra linguagem.
A sintaxe pode constituir uma forma de acesso importante
para o analista do discurso e para o psicanalista, pois não há
língua sem sintaxe e a organização das palavras não é jamais
aleatória. O próprio Pêcheux “brinca” com seu estilo e reafirma
seu esforço intelectual e afetivo para expressar um pensamento
que perturba “a boa” ordem:
Parece-me, hoje, que Les Verités de La Palice roçaram essa
questão dos estudos [das práticas repressivas ideológicas] de
uma maneira estranhamente abortada, pelo viés de um sintoma
recorrente que soava de maneira oca: estou querendo designar o
prazer sistemático, compulsivo (e incompreensível para mim) que
eu tinha em introduzir a maior quantidade possível de chistes – o
que, pelo que sei, acabou por irritar mais de um leitor (PÊCHEUX,
1997b, p. 303).
Pêcheux assinala a dificuldade no campo teórico, político e
social no tocante ao que pode ser dito e como deve ser dito. Algumas inibições resultam no abandono de uma função porque o
exercício desta função produziria angústia. O eu renuncia a essas
funções que estão ao seu alcance para evitar lançar mão de outras
medidas de repressão e se poupa de um conflito com o id ou com
o supereu. Freud em Inibição, sintoma e angústia (1925), salienta que
este raciocínio permite compreender a inibição generalizada que
caracteriza os estados de depressão e melancolia quando o sujeito
se vê impedido no campo das ideias e/ou no campo dos afetos:
Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013
87
No tocante às inibições, podemos então dizer, em conclusão,
que são restrições das funções do ego que foram ou impostas
como medida de precaução ou acarretadas como resultado
de um empobrecimento de energia; e podemos ver sem dificuldade em que sentido uma inibição difere de um sintoma,
porquanto um sintoma não pode mais ser descrito como
um processo que ocorre dentro do ego ou que atua sobre ele
(FREUD, 1976, p. 111).
Nesta citação Freud salienta a complexidade do sintoma em
comparação com a inibição e a angústia. O sintoma se dá entre
as instâncias psíquicas entre o eu e o id e entre o eu e o supereu,
entre o eu e a realidade. Não se trata de um mero processo de
recalcamento, mas implica outros processos, outros mecanismos,
tais como, deslocamento e condensação.
Pêcheux refere que o seu sintoma era introduzir chistes para
dizer o que precisava dizer, mesmo com grande resistência do
meio acadêmico. Este é um ponto de afinidade entre Pêcheux e
Freud. Freud iniciou a demonstração do inconsciente pelos sonhos
que era uma experiência comum a todos. Os chistes de Pêcheux
recebem função semelhante:
Era – percebo agora – o único meio de que eu dispunha para
expressar, pela guinada do non-sens no chiste, o que o momento de uma descoberta tem fundamentalmente a ver com
o desequilíbrio de uma certeza: o chiste é um indicador determinante pois, sendo estruturalmente análogo ao caráter de
falta do lapso, acaba por representar, ao mesmo tempo, a forma
de negociação máxima com a “linha de maior inclinação”, o
instante de uma vitória do pensamento no estado nascente,
a figura mais apurada de seu surgimento. Isso reforça que o
pensamento é fundamentalmente inconsciente (“isso [ça] pensa!”), a começar pelo pensamento teórico (e o “materialismo
teórico de nosso tempo” não pode, sob risco grave, permanecer
cego a esse respeito). Em outras palavras, o Witz representa
um dos pontos visíveis em que o pensamento teórico encontra
o inconsciente: o Witz apreende algo desse encontro, dando
aparência de domesticar seus efeitos (PÊCHEUX, 1997b, p.303).
A citação acima pode ser um pouco longa, mas nada dela eu
consegui retirar. Talvez por dizer tão bem da certeza da existência
do inconsciente: Pêcheux narra o seu trajeto na Outra cena. Nesse
diálogo, registro as palavras de Lacan:
A Outra cena, essa Outra-coisa, esse outro lugar, dimensão do
Alhures presente para todos e vetado para cada um, “que sem
que se pense nisso, e portanto, sem que qualquer um possa
pensar estar pensando melhor que outro, isso pensa. Isso
pensa um bocado mal, mas pensa com firmeza, pois foi nesses
termos que ele (Freud) nos anunciou o inconsciente: pensamentos que, se suas leis não são de modo algum as mesmas
de nossos pensamentos de todos os dias, nobres ou vulgares,
são perfeitamente articulados” (LACAN, 1998, p. 554).
88
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É por circularem em uma Outra cena que Pêcheux, Freud e
Marx pensam ser possível a mudança: a revolta e a revolução.
Esta Outra cena que consiste na existência do inconsciente,
tanto pode viabilizar o assujeitamento, quanto disponibilizar
e construir artefatos de resistência.
Lacan em Escritos comenta que o sonho funciona como
uma charada, no sentido de enigma. Afirma que o sonho tem a
estrutura de uma frase: “Porém, é na versão do texto que o importante começa, o importante de que Freud nos diz está dado
na elaboração do sonho, isto é, em sua retórica” (LACAN,1998,
p. 267-268). É no discurso onírico que o sujeito modula com suas
intenções ostentatórias ou as demonstrações dissimuladoras ou
persuasivas, retaliadoras ou sedutoras através dos deslocamentos
sintáticos e das condensações semânticas.
Para pensar a questão do assujeitamento, discuto o fetichismo
da imagem – conceito trabalhado por Kehl (2004) – na tentativa de
atualizar o que Marx chamou de o fetichismo da mercadoria, e que
as obras de arte em análise apresentam e problematizam.
O fetichismo da imagem-mercadoria
Segundo Marx, o fetichismo da mercadoria é uma “relação
social definida entre os homens que assume aos olhos deles a
forma fantasiosa de uma relação entre coisas” (MARX, 1983,
p.77). Zizek (1996) discute essa questão do valor que uma certa
mercadoria assume enquanto uma propriedade quase “natural”
de outra coisa-mercadoria, que é o dinheiro. Dizemos que o valor
de uma certa mercadoria é tal ou qual volume de dinheiro que
ela solicita. Logo, o aspecto essencial do fetichismo da mercadoria
não consiste na famosa substituição dos homens por coisas, mas
num certo desconhecimento sobre a relação entre a estrutura e
os elementos desta estrutura. Aquilo que é um efeito estrutural,
um efeito da rede de relações entre os elementos, aparece como
uma propriedade circunscrita de um dos elementos, como se essa
propriedade também lhe pertencesse fora de sua relação com
outros elementos, independentemente.
Esse efeito da rede de relações de sentido pode ocorrer entre
coisas e entre as pessoas. A atribuição de valor de uma determinada mercadoria acontece quando esta é comparada a uma outra
mercadoria. Da mesma forma, os homens necessitam do olhar uns
dos outros para se reconhecerem. É a devolução do olhar de um
outro ser humano que oferece a ideia de unidade para o sujeito,
conforme a teoria do estádio do espelho de Lacan. É através do
espelho do outro que o sujeito pode encontrar a sua identidade.
De onde se pode conjeturar que o preço pago pela identidade é
a alienação.
Marx dá seguimento a essa homologia: a outra mercadoria,
B, só é um equivalente na medida em que a mercadoria A se relaciona com ela como sendo a forma-da-aparência de seu próprio
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valor, somente dentro dessa relação. Mas a aparência – e nisso
reside o efeito de inversão que é característico do fetichismo –,
a aparência é exatamente oposta: A parece relacionar-se com B
como se, para B, ser um equivalente de A não correspondesse a
ser uma “determinação reflexa” de A – ou seja, como se B já fosse,
em si mesmo, equivalente a A; a propriedade de “ser equivalente”
parece pertencer-lhe até mesmo fora de sua relação com A, no
mesmo nível de suas outras propriedades efetivas “naturais” que
constituem seu valor de uso. A essas reflexões, mais uma vez,
Marx acrescentou uma nota muito interessante:
Tais expressões das relações em geral, chamadas por Hegel de
categorias reflexas, compõem uma classe muito curiosa. Por
exemplo, um homem só é rei porque outros homens colocam-se
numa relação de súditos com ele. E eles, ao contrário, imaginam
ser súditos por ele ser rei (MARX, 1983, p. 63).
Esse raciocínio me parece muito próximo do conceito de
formações imaginárias de Pêcheux (1997a) onde os sujeitos A e B designam lugares determinados na estrutura de uma formação social
e esses lugares estão representados nos processos discursivos que
se estabelecem. Pêcheux diz que a posição dos protagonistas do
discurso intervém nas condições de produção do discurso. Nesse
estudo, faço uma tentativa de transcrição das formações imaginárias
para o esquema L de Lacan, seguindo a mesma topologia usada
para ler a histeria e para ler a PP. Para tanto, proponho a seguinte
superfície:
A
Quem sou eu para lhe falar assim?
a’
Quem sou eu para que ele me fale
a
Quem é ele para que eu lhe fale
assim?
B
Quem é ele para que me fale assim?
Fig. 6 – O Esquema L das Formações Imaginárias
Fonte: Campos, 2010
A questão que o analista do discurso coloca sobre a existência do sujeito é uma pergunta articulada sobre o lugar de onde
fala o sujeito: “Quem sou eu nisso?” Que a questão de sua existência
inunde o sujeito, suporte-o, invada-o ou até o dilacere por completo, é o
que testemunham o psicanalista, o artista e o analista do discurso.
As tensões, as suspensões e as fantasias com que eles se deparam
é que lhes fazem empreender a análise e a arte. É sob a forma de
elementos do discurso na história que essa questão do Outro, no
Outro e para o Outro se articula. Pois é por esses fenômenos se
ordenarem nas figuras desse discurso que eles têm fixidez de
sintomas que são legíveis e que podem ser interpretados.
Portanto, “ser rei” é um efeito da rede de relações sociais
entre um “rei” e seus “súditos”. Os súditos imaginam que ser rei
90
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é uma propriedade natural da pessoa de um rei. E esse é o desconhecimento fetichista para os envolvidos nesse vínculo social.
O rei só é rei porque os súditos são súditos e dispensam ao rei o
tratamento de rei.
Zizek (1996) analisa duas modalidades de fetichismo: nas
sociedades capitalistas e nas sociedades feudais. Nas sociedades
capitalistas onde predomina a produção e a competição, as relações entre os homens não são fetichizadas. O que pode ser constatado é o fetichismo da mercadoria. As relações entre as pessoas
“livres” para ser o que quiserem e para fazer o que quiserem, são
relações egoístas onde cada um segue os seus interesses. O modelo
dessas relações não segue o padrão de dominação-servidão, já que
são pessoas que gozam de “liberdade” e “igualdade”. Seu modelo
é a troca mercantil, livre do fardo da veneração ao Senhor e da
proteção do Senhor para com o escravo. As relações interpessoais
são relações utilitárias, de interesses.
As duas formas de fetichismo, portanto, são incompatíveis:
o fetichismo da mercadoria e o fetichismo do Senhor. O recuo do
Senhor no capitalismo mostra-se apenas como um deslocamento,
como se a desfetichização das relações “entre os homens” fosse
paga com o fetichismo da mercadoria. O lugar do fetichismo apenas se desloca das relações intersubjetivas para as relações “entre
coisas”. As relações sociais decisivas, as de produção, deixam de
ser imediatamente transparentes, como o eram as relações do
Senhor com seus servos. Elas passam a se disfarçar sob a forma
de relações sociais entre coisas, entre os produtos do trabalho.
Nesse raciocínio, considerando o mecanismo de deslocamento
na produção das novas relações sociais, descobre-se o sintoma à
maneira de Marx na passagem do feudalismo para o capitalismo:
as relações de dominação e servidão continuam existindo, mas
são recalcadas. Existe um mediador nas relações sociais capitalistas que disfarça as relações de dominação e servidão – que é a
mercadoria.
A imensa e variada oferta de mercadorias e a onipresença
dos apelos da publicidade, emitidas a partir desta encarnação do
grande Outro, chamado ideologia capitalista, e que tem na mídia
de massa seu porta-voz – produzem uma ilusão. A ilusão de que
nada foi perdido e que temos ao alcance da mão uma quantidade
de objetos inusitados para simular o objeto perdido do nosso
mais-gozar, o objeto a (BUCCI; KEHL, 2004, p. 75).
Com efeito, o que a presença do objeto mercadoria procura
subtrair é a função da palavra e da linguagem. A mercadoria liga-se ao modelo do que Lacan denominou de lathouse – expressão
intrigante, que beira o non-sens, introduzida em O avesso da psicanálise (1969-1970). Ele nos diz que “o mundo está cada vez mais
povoado de lathouses”, que não é o Outro, não é o ente, não é bem
o ser, está entre os dois:
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91
E quanto aos pequenos objetos a que vão encontrar ao sair,
no pavimento de todas as esquinas atrás de todas as vitrines, na
proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês,
na medida em que agora é a ciência que governa, pensem neles
como latusas (LACAN, 1992, p.172).
A palavra lathouse é o aoristo do verbo grego Lanthanô que
quer dizer estar escondido sem saber. Aquilo que já esteve presente
e agora está ausente. A lathouse remete para a questão da perda
na qual se origina qualquer objeto com dimensões humanizadas.
Um objeto no qual a falta permanece escondida. A lathouse, que
para Lacan lembra e rima com venthouse, ventosa: aquilo que não
inspira, mas aspira o desejo. Neste “turbilhão infernal do laço
social dominante”, como ele chama o discurso capitalista, talvez
seja possível estabelecer uma aproximação com o sintoma histérico
que trata de substituir o Outro nesta função do desejo. O desejo
na histeria e o desejo no capitalismo é o desejo de desejar.
Para Rancière (2006, p.14), a singularidade da arte se aproxima à potência do Unheimlich freudiano. A virtude da arte consiste
em ser testemunha do “desastre totalitário, consequência última
do sonho de uma humanidade dona de seu próprio destino”. A
arte é o observatório da dependência em relação à potência do
Outro, da miséria e do horror que desconstrói o projeto de autonomia e de unidade do sujeito. A arte opera a revelação traumática
do mal-estar na cultura.
As obras em análise neste artigo são imagens mediadoras
entre o sujeito e a mercadoria, onde o artista busca desestabilizar
a relação imaginária que a publicidade/propaganda esforça-se
por reproduzir de estímulo ao consumo. A forma de apresentação
do inconsciente, da arte e da ideologia é a estética. Enquanto o
inconsciente e a ideologia funcionam por representações, a arte
trata da re-apresentação. De mostrar de novo, de mostrar mais
uma vez o que não pode ser visto na diferença.
Abstract
This paper is an attempt to make a provisional
reading of the contemporary society, and the
condition of the subject’s resistance. This is the
subject and merchandise captured by advertising,
where the artist makes a complaint. Search an
approximation between the fields of art, psychoanalysis and discourse analysis. This proposes
a discussion through the scheme L of Lacan to
think the imaginary relationship of the subject
with advertising.
Keywords: Image; Resistance; Subject.
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Niterói, n. 34, p. 77-93, 1. sem. 2013
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Materialidades discursivas e o
funcionamento da ideologia e do
inconsciente na produção de sentidos
Belmira Magalhães (UFAL)
Helson Flávio da Silva Sobrinho (UFAL)
Resumo
Filiados à perspectiva da Análise do Discurso
(AD), compreendemos o sujeito do discurso enquanto ser radicalmente histórico − constituído
pela linguagem, pela ideologia e afetado pelo inconsciente. Essa tomada de posição impõe levar
em consideração as condições de produção na sociedade capitalista, como a exploração do trabalho
e a produção-consumo de mercadorias. Sendo o
discurso materialidade da ideologia, ele é sempre
uma prática histórica, e seu funcionamento revela
os gestos de interpretação dos sujeitos que atuam
nas práticas sociais postas como necessárias à
reprodução/transformação das relações de produção. Assim, pressupondo o funcionamento da
ideologia e do inconsciente na produção dos efeitos de sentidos, este artigo analisa propagandas
de empresas de telefonia móvel/celular. Trata-se
de vídeos apresentados nas datas comemorativas
do Dia das Mães e do Dia dos Pais. Nesta análise, compreende-se que essas propagandas põem
em funcionamento a ideologia dominante, que
“naturaliza”, mediante os efeitos de evidência,
os lugares das mulheres e dos homens. Esse funcionamento é essencialmente atravessado pelas
formações inconscientes capazes de corroborar
a eficácia dos efeitos de sentido. Portanto, tais
materialidades discursivas mobilizam uma rede
de sentidos que revela um processo discursivo, o
qual retoma e ressignifica os sentidos inscritos no
discurso do Outro, confluindo na realização dos
interesses de um “sujeito consumidor” que “faz
suas escolhas” com “aparente” conhecimento de
causa.
Palavras-chave: Discurso; ideologia; inconsciente; sentido; história.
Gragoatá
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Introdução
A proposta deste artigo é refletir sobre os discursos na
contemporaneidade que circulam no cotidiano e evidenciam sentidos que aparentam “ratificar” os lugares e posições sociais dos
sujeitos, considerando-os, em sua imediaticidade, como “naturais”.
Entretanto, estes, na essência de seu funcionamento, trazem o caráter material e histórico que manifesta a contraditoriedade − tanto
do sujeito contemporâneo quanto do “seu” discurso. Para nós, o
efeito desse entrecruzamento contraditório de sujeitos e sentidos
nas materialidades históricas discursivas atua no movimento
dialético do real, em sua totalidade complexa, na dinâmica de
reprodução/transformação das relações sociais.
Apresentar essa discussão, dependendo da direção político-analítica, tem implicações teóricas decisivas na Análise do Discurso de linha pecheutiana e chega mesmo a ser algo desafiador.
Afirmar que o sujeito faz história atuando nas práticas sociais
e sofre o peso das determinações sócio-históricas, é certamente
algo polêmico na AD, mas não impossível de ser abordado. Trata-se de uma questão crucial, visto que é imprescindível sair da
imediaticidade da análise e buscar a totalidade das questões, a
fim de dar continuidade ao caráter teórico e político da Análise
do Discurso, sobretudo visando à crítica radical da sociedade
capitalista e à superação das relações de exploração.
Desse modo, abordaremos, na primeira parte do presente
texto a questão da relação objetividade e subjetividade, adotando
um posicionamento radical na teoria materialista do discurso.
Em seguida, encaminharemos às análises das materialidades
discursivas, procurando desvelar, no funcionamento do discurso,
o caráter material do sentido e dos sujeitos em sua concretude
radicalmente histórica.
A relação entre objetividade e subjetividade
na teoria materialista do discurso
A Análise do Discurso (AD) da linha de Michel Pêcheux tem
caráter teórico e político, pois sua história, assim como a de qualquer ciência, está atrelada às relações de produção/reprodução/
transformação, ou seja, relações de base econômica e de cunho
político, inscritas no movimento dialético do real sócio-histórico.
É tomando essa especificidade que Pêcheux critica o idealismo em Linguística – que, à sua época, tratava de um sujeito
intencional tido como “dono do sentido” e “senhor de sua morada”
–, bem como ao estruturalismo, ao gerativismo, ao funcionalismo
e ao marxismo mecanicista. Questões de caráter político-científico
não faltaram em seus trabalhos, e isso foi um passo decisivo para
pensar a problemática da relação entre objetividade e subjetividade na articulação do quadro teórico da Análise do Discurso.
Pêcheux e Fuchs, no texto intitulado “A propósito da Análise
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Automática do Discurso: atualização e perspectivas”, apresentam o quadro teórico da AD, com a articulação de três regiões
do conhecimento:
1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria
das ideologias;
2. a linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e
dos processos de enunciação ao mesmo tempo;
3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos. (1997, p. 163 e 164)
Não poderia ficar de fora dessa citação a passagem em que
Pêcheux e Fuchs fazem uma importante ressalva: “convém explicitar ainda que estas três regiões são, de certo modo, atravessadas
e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica)” (PÊCHEUX & FUCHS, 1997, p. 164). Portanto, Pêcheux
propunha trabalhar as contradições dessas áreas de conhecimento,
vinculando com propriedade o caráter teórico e político desse
gesto. Diante desse quadro teórico faremos nossas considerações
com base no entremeio das contradições, pois deve haver uma
hierarquia nesse construto teórico.
Primeiramente, o Materialismo Histórico – a necessária
compreensão das formações sociais, seu movimento dialético de
transformação, e a ideologia em seu funcionamento. Esse lugar no
materialismo histórico na AD não dispensa a efetiva consideração
das condições de produção. Estas são as relações de produção/
reprodução/transformação das relações sociais que, numa sociedade regida pelo Capital, toma caráter de relações de exploração
do trabalho na produção-consumo de mercadorias, manifestadas
em interesses e conflitos de classes.
A ideologia cumpre uma determinada função social, pois
enquanto produção social age sobre os sujeitos, orientando suas
ações para a manutenção e/ou transformação das relações de produção. Esse funcionamento é produzido pelas práticas históricas
dos sujeitos, que constituem individualidades como fonte das relações sociais, traduzidas, muitas vezes, em dizeres que afirmam
que “você pode”, “eu posso”, “você consegue” (MAGALHÃES,
2013). Para tanto, silenciam-se as contradições sociais que inviabilizam que todos efetivamente “possam”, ou apagando determinações sociais de raiz e base material que não apenas diferenciam,
mas dividem em relações desiguais e contraditórias os sujeitos,
os objetos e os sentidos.
Para que essas questões apareçam, elas também se materializam na língua em sua relativa autonomia, pois a linguagem não
é transparente, o sentido nunca é estabilizado e não tem caráter
“literal”. A ordem da língua e a ordem histórica se imbricam nas
relações entre os sujeitos (ORLANDI, 1999). Uma língua capaz de
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falha, de equívoco, que permite aos sujeitos jogar com e sobre as
regras, mas, sobretudo, dizer, repetir, parafrasear, metaforizar,
no jogo incessante de significar o mundo, produzindo gestos de
interpretação que partem do real e nele atuam.
Nessa intricada relação, a semântica, tida como ponto nodal
das contradições em Linguística − que segundo Pêcheux (1997)
tem a ver com as formações sociais −, convoca uma teoria que exige
pensar as determinações históricas dos processos de significação.
Para compreender isso, tomemos como exemplo, nas sociedades
contemporâneas, o movimento de transferência/deriva da noção
de direitos sociais para direitos de consumidor (código do consumidor/definição de cidadão nas sociedades capitalistas contemporâneas). Discursos que fazem significar o consumo como forma
de “suprir” as frustrações, “realizar” os “desejos” dos sujeitos, e
têm atuado como mediadores da afetividade e dos laços sociais.
Chegamos assim à Psicanálise, na busca de pensar a questão
da teoria da subjetividade de natureza não subjetivista. Tratar do
atravessamento do inconsciente também exige pensá-lo como
histórico, já que o Ser Social dotado de consciência e inconsciente
é um sujeito radicalmente histórico, que busca dizer, mas não tem
“controle total” do que diz. Algo sempre irrompe e desestabiliza
o dito, mostrando o que foi inculcado na formação inconsciente
e que faz parte da memória histórica.
Numa célebre síntese de Pêcheux, podemos visualizar o
teor dessa complexa articulação:
o recalque inconsciente e o assujeitamento ideológico estão materialmente ligados, sem estar confundidos, no interior do que se
poderia designar como o processo do Significante na interpelação
e na identificação, processo pelo qual se realiza o que chamamos as
condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de
produção. (PÊCHEUX, 1997, p. 133, grifos do autor)
Nesse ponto salientamos que o Sujeito do Discurso toma
sempre uma forma-sujeito. No caso em estudo, toma a forma-sujeito do capitalismo, manifestando e vivenciando as contraditoriedades que surgem através dos deslizes, equívocos que a
própria língua permite realizar, mas que apenas as determinações
históricas possibilitam significar em direção “certa” ou “errada”.
Há, portanto, a necessidade de considerar a relação entre
objetividade e subjetividade, pois todo discurso carrega em si
as contradições das relações sociais. É desse ponto de vista que
trabalharemos a AD, ou seja, no entremeio da práxis social e discursiva vinculada à atividade humano-material.
As “escolhas” fazem o sujeito “do” discurso –
um efeito de determinação
A questão de se “as escolhas fazem” o sujeito “do” discurso
diz respeito à relação objetividade e subjetividade. O critério aqui
não é uma subjetividade independente que “tudo pode”, nem uma
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objetividade desvinculada da atividade do sujeito. Trata-se de uma
relação dialética em que a subjetividade pode atuar no real, mas
o critério de verdade é o objeto. A relação do sujeito com o real
sócio-histórico é determinante tanto de sua subjetividade como
da própria objetividade. E o trabalho, em seu caráter ontológico,
funda essa relação e constitui as subjetividades na imbricação
(consciência e inconsciente, língua, ideologia e história). Em
síntese, consiste numa práxis social desenvolvida pelos sujeitos
e para os sujeitos, algo que não existe na natureza.
Como diz Lukács (1997), a ideologia tem como função efetivar, na práxis, as ideias necessárias ao desenvolvimento social
(determinadas pelas relações de produção). Para isso precisa,
desde o início do desenvolvimento do sujeito, lançar mão da
instituição familiar como a primeira instância determinante na
constituição do sujeito e, nesse sentido, aquela que marcará o
restante da vida de cada indivíduo. Essas marcas definem a base
da individualidade de cada um, pois estarão recalcadas na estrutura da subjetividade. A forma como cada sujeito lidará com esse
processo de ser dito pelo Outro e a forma como se estruturará sua
imagem a partir desses dizeres (Lacan) serão fundantes para a
estrutura psíquica de cada indivíduo (FREUD, 1972).
Contudo, é preciso destacar que a família também é uma instituição histórica, já que, antes do nascimento, os seres sociais são
submetidos à ação ideológica. Costumeiramente, nas sociedades
modernas capitalistas, essa primeira abordagem é feita através dos
membros da família nuclear. Inculcações sobre o lugar e o papel
de homens e mulheres na sociedade são ditadas ao indivíduo
pelas “escolhas” que a família realiza de roupas, quartos, nomes
etc., assim como as expectativas, esperanças, objetivos, sonhos e
projetos que os adultos têm em relação ao novo ser.
Sob essas mediações que fazem as inculcações de determinados valores e formas de consciência na constituição dos sujeitos,
funcionam os efeitos da divisão social do trabalho (material e
espiritual). Como diz Pêcheux “todo processo discursivo se inscreve numa relação ideológica de classes” (1997, p. 92). Tudo isso
participará da formação do inconsciente, e algumas dessas marcas
podem ser até ressignificadas, mas nunca abolidas da estruturação
inconsciente do sujeito. No entanto, é importante frisar que esse
processo, embora oriundo de relações sociais que afetam a todos, é
recebido de forma particular nas formações inconscientes. Isso faz
com que cada sujeito reelabore de forma relativamente diferente
as “mesmas” práxis ideológicas.
Nesse sentido, precisamos fazer um resgate do ser
consciente, porquanto não há atividade humana sem consciência.
Desse modo, o materialismo dialético afirma que o “homem não
é meramente um ser racional ou um ser dotado de alma ou um
ser a quem se atribui algum princípio, mas o homem é atividade”
Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013
99
(CHASIN, 1999, p. 110). Atividade e, portanto, práxis, ou seja: o pensar exige objetivo visando atuar nos processos de sociabilidade.
Embora se dê ênfase à subjetividade como transformadora,
para o materialismo histórico-dialético os critérios de verdade
são sempre objetivos, pois a subjetividade tem o poder de captar
e mudar a realidade, mas ela depende da lógica dessa mesma
realidade para conseguir realizar essas duas atividades especificamente humanas.
A subjetividade é determinada pelas relações sociais de seu
tempo histórico. Nas palavras de Marx: “não é a consciência dos
homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser
social que determina sua consciência” (MARX, 1996, p. 52). No
entanto, nenhuma realidade oferece apenas uma única opção,
e nesse espaço de “escolhas” possíveis a subjetividade exerce a
capacidade de produzir o novo em todas as práticas humanas,
inclusive as práticas discursivas.
Assim, levando em consideração a experiência histórica nas
sociedades modernas, submetidas à lógica do capital, nenhuma
subjetividade escapará da determinação do mercado, da lógica
da mercadoria. Como diz Lukács:
No século passado e no começo deste, o capitalismo controlava a produção e explorava o trabalhador, arrancando-lhe a
mais-valia, no âmbito da produção. Atualmente, o capitalismo
estendeu seu controle ao consumo. Através da publicidade,
cuja força manipulatória cresce dia a dia, o capitalismo fomenta necessidades artificiais e, pelo controle delas, controla o
mecanismo das compras e vendas, contorna as crises geradas
pelo desequilíbrio do mercado. Com isso, o trabalhador não
é explorado apenas como trabalhador; é explorado também
como consumidor. (LUKÁCS, 1978b, p. 23)
Para que essa lógica de exploração sobre o sujeito consumidor seja eficiente, os mecanismos ideológicos se utilizam necessariamente de todas as formas de convencimento, principalmente
aquelas que se dirigem a aspectos emocionais dos sujeitos, como
os voltados às relações familiares, a exemplo do que veremos na
propaganda analisada mais à frente. Mas para que haja sucesso,
para que o efeito pretendido pelo sujeito do discurso atinja seu
alvo, os sujeitos “consumidores”, esses precisam já ter sido afetados pelos efeitos do pré-construído e da memória discursiva.
Ou seja, devem ser constituídos como sujeitos estranhados, o que
os configurará como seres divididos e alienados, visto que
é a alienação (e o estranhamento) interna ao próprio sujeito,
portanto, a cisão do sujeito mesmo que está implicada em sua
relação alienada e estranhada com outros sujeitos. E mais ainda: que o critério interno ao sujeito, portanto a dimensão da
subjetividade envolvida em sua relação alienada e estranhada
com os outros, é aquela em que o próprio sujeito se encontra
como trabalhador, quer dizer, como força de trabalho, como
mercadoria. (SILVEIRA, 1989, p. 52, grifos do autor)
100
Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013
Esse sujeito se percebe na imediaticidade como consumidor,
mas esquece que tem trabalhado, estranhamente, tão só para
exercer suas tarefas e para poder “consumir”. A família contemporânea, como em qualquer outro sistema, precisa reproduzir
esse sujeito, e a propaganda que será analisada mostrará como
a ideologia de mercado necessita estar sempre a reforçar essas
funções sociais. Os indivíduos no modo de produção capitalista
serão classificados de acordo com a quantidade e a qualidade do
que possuem e podem ter (comprar). Ou seja: precisam ser como
as propagandas dizem que devem ser (ou ter). Segundo Silveira,
nas próprias subjetividades está plasmada, soldada, marcada,
de uma maneira profunda, a diferença que, por excelência,
torna os indivíduos, sob o capitalismo, indiferentes: a diferença
quantitativa, a comparabilidade quantitativa de si mesmo,
dos outros e do conjunto das relações: a universalidade da
alienação. (SILVEIRA, 1989, p. 63, grifos do autor)
Levando em consideração o funcionamento da ideologia,
é preciso destacar que sua potência só se realiza na instância do
inconsciente. É que só haverá eficácia se o discurso conseguir,
mediante algum significante, na representação do sujeito para
outro significante, mobilizar em cada indivíduo e em todos que
se pretende atingir, o desejo de ocupar aquele lugar das “personagens” apresentadas nas propagandas. Hoje em dia, com
as novas tecnologias médicas, antes mesmo do nascimento os
indivíduos já são referidos como homem e como mulher, como
futuros pais e futuras mães. O que a propaganda faz é atualizar
esses papéis e convocar pais e mães modernos, mais que isso,
“bons consumidores”, para funcionar como exemplos às futuras
gerações, quase um “protótipo” de sujeitos consumidores.
Na análise que apresentaremos a partir de agora, vamos
tomar a materialidade discursiva como materialidade da ideologia. Serão analisados dois vídeos de propagandas de telefonia
móvel/celular (mais especificamente, da empresa de telefonia
Claro) apresentadas nas datas comemorativas do Dia das Mães
(2009) e do Dia dos Pais (2007).
Direcionando o olhar para o vídeo do Dia das Mães
(maio/2009), observamos que ele apresenta uma mulher/mãe cuidando dos filhos em casa, no parque, levando-os ou trazendo-os
da escola. Segue abaixo a transcrição dos dizeres:
Você conhece alguma pessoa que acorda de madrugada,
feliz?
Que dá duro para juntar dinheiro e não gasta com ela?
Que pode estar cheia de problemas, mas para tudo para escutar os seus?
Que trabalha o dia inteiro e quando chega em casa trabalha
mais, sorrindo?
Bom, se você conhece alguma pessoa assim, dê um Claro,
porque ela merece.
Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013
101
Ela fala 10 x mais os minutos do plano.
Suas escolhas fazem você mãe.
(Claro, Dia das Mães/2009).
As cenas mostram o estabilizado em relação à posição da
mulher na sociedade, mais do que o discurso verbal. O que reforça o efeito do sentido pretendido são as imagens da mulher,
em diferentes situações de trabalho: “que trabalha o dia inteiro e
quando chega em casa trabalha mais”, sempre feliz e sorridente.
A maternidade, atividade trabalhosa, é apresentada como a única
forma de “tornar”/“fazer” as mulheres felizes em detrimento das
outras atividades exercidas pela mulher moderna. Vale ressaltar
também que a mulher na propaganda é jovem, com o padrão
de beleza dominante, magra, aparentemente bem-sucedida, etc.
Por isso deve receber como forma de afeto não um beijo ou um
abraço, mas um aparelho celular, que servirá de instrumento para
continuar sua labuta e facilitar todas as atividades que ela realiza
falando “10 x mais”, porque “ela merece”.
102
Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013
(Propaganda Claro, Dia das Mães)
Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013
103
(Propaganda Claro, Dia das Mães)
Esse discurso publicitário enlaça as mulheres nas contradições das relações sociais, inculcando/ internalizando lugares
e papéis preestabelecidos. Esse discurso que afirma que “suas escolhas fazem você mãe” produz o efeito de repetição da memória
discursiva dos papéis que cada gênero na sociedade deve assumir
para cumprir sua função social.
No segundo filme, veiculado no mês do Dia dos Pais (agosto
de 2007), podemos observar que ele aparentemente desloca o lugar
do sujeito discursivo ao mostrar que no “afeto” homens e mulheres
são iguais. Na propaganda, aparece uma menina “controlando” o
seu texto, reescrevendo o seu dizer e redirecionando a “mesma”
carta que foi escrita anteriormente para a mãe. Agora ela é destinada ao pai, ou seja, a mesma carta parece servir igualmente
para dizer sobre o amor que a criança nutre pela mãe e pelo pai.
As imagens mostram uma criança feliz e moderna, que usa com
desenvoltura o aparelho celular, domina o seu texto e reformula
o seu dizer.
Segue a transcrição do vídeo:
Pai, você é a pessoa mais importante que existe pra mim. (...)
Te amo!
Essa carta eu escrevi para mamãe, mas agora tô escrevendo
pra você.
É pra mostrar que eu amo você que nem eu amo a mamãe.
Mas ó, não vai chorar, que isso é coisa de MÃE!
Dias dos Pais Claro. Seu pai fala o dobro de minutos e ainda
ganha um Motorola A 1200.
Claro. A vida na sua mão.
104
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(Propaganda Claro, Dia dos Pais)
Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013
105
Mais sutil que o primeiro vídeo, a presença do pai na propaganda recapitula as diferenças (espaço privado e espaço público/
a casa e a rua/ o trabalho assalariado e o trabalho doméstico não
pago/ a mulher em sua dupla ou tripla jornada). O sujeito da
enunciação insere-se na materialidade discursiva para reforçar
o que já estava dado pelo lugar onde o pai estava, ou seja, fora
de casa. O pai aparece fora do espaço doméstico, a receber uma
mensagem de carinho via celular. O amor é o mesmo, o presente
é o mesmo, mas homens e mulheres (pais e mães) não reagem da
mesma maneira. O pai se emociona, mas ri. O lugar do choro é
reservado às mulheres, como diz a propaganda: “Mas ó, não vai
chorar, que isso é coisa de mãe”.
(Propaganda Claro, Dia dos Pais)
106
Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013
O que vemos a partir dessas materialidades discursivas
confirma o que diz Pêcheux:
a marca do inconsciente como “discurso do Outro” designa
no sujeito a presença eficaz do “Sujeito”, que faz com que todo
sujeito “funcione”, isto é, tome posição, “em total consciência e
em total liberdade”, tome iniciativas pelas quais se torna “responsável” como autor de seus atos, etc. (PÊCHEUX, 1997, p. 171)
As duas materialidades discursivas estabelecem as relações
afetivas mediadas pelo produto de consumo (aparelho celular).
Nas duas propagandas, a lógica capitalista que precisa baratear
a socialização e manter a reprodução do trabalhador sem custos
adicionais, ao manter a mulher e o homem em seus espaços
“naturais”. Desse modo, faz funcionar a ideologia patriarcal, diferenciando homens e mulheres e, ao mesmo tempo, suturando
essa diferença por meio de uma injunção ideológica.
Essa forma de relação do sujeito com a lei (cultura), que
parece “fixar” os sujeitos na ordem do social, é utilizada desde
o nascimento do ser social. Assim, inculcará essas posições diferentes, de homens e mulheres, para o resto de suas vidas:
É nesse reconhecimento que o sujeito se “esquece” das determinações que o colocaram no lugar que ele ocupa – entendamos
que, sendo “sempre-já” sujeito, ele “sempre-já” se esqueceu
das determinações que o constituem como tal. (PÊCHEUX,
1997, p. 170)
As mulheres esforçam-se para ser boas filhas, boas mães,
boas esposas e boas profissionais, ao custo de uma culpabilização
que as coloca quase sempre em estado de ansiedade. Os homens
têm de ser os provedores, mesmo que isso implique não participar
do cotidiano de sua família e perder momentos importantes do
desenvolvimento dos filhos. Sua ausência é sempre justificada
porquanto ocorre para que ele possa dar mais conforto aos seus,
e isto se traduz em possibilidades de oferecer mais consumo nas
relações com as mercadorias.
Vale ressaltar que para Pêcheux (1997) a identificação discursiva se dá pelas filiações sócio-históricas (formação ideológica
e formação discursiva), admitindo-se uma agitação no interior
destas. A práxis torna possível sempre, de forma consciente e
inconsciente, o deslocamento do sujeito. Haverá sempre a possibilidade do desvio, do equívoco (língua/história/ideologia/
inconsciente). O discurso não é uma construção independente
das relações sociais e do condicionamento inconsciente. Assim,
o fazer discursivo é uma práxis humana que só pode ser compreendida a partir do entendimento das contradições sociais que
possibilitaram sua objetivação e de como cada indivíduo processa,
no aparelho psíquico, essas determinações.
Marx, na introdução do texto “Para crítica da economia política”, afirma que “na produção social da própria vida, os homens
Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013
107
contraem relações determinadas, necessárias e independentes de
sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma
etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas
materiais” (MARX, 1996, p. 52). Ao avançarmos na questão colocada no início desta análise, podemos considerar também que os
sujeitos “fazem suas escolhas”, mas as fazem determinados pelas
relações sócio-históricas nas quais estão inseridos e em que são
sujeitos atuantes. Escolhas que determinam (mas nunca de modo
mecânico) o sujeito em face das alternativas históricas possíveis
de reprodução/transformação/revolução das relações sociais.
Segundo Lukács:
Toda práxis social, se considerarmos o trabalho como seu
modelo, contém em si esse caráter contraditório. Por um
lado, a práxis é uma decisão entre alternativas, já que todo
indivíduo singular, sempre que faz algo, deve decidir se o
faz ou não. Todo ato social, portanto, surge de uma decisão
entre alternativas acerca de posições teleológicas futuras. A
necessidade social só se pode afirmar por meio da pressão
que exerce sobre os indivíduos (frequentemente, de maneira
anônima), a fim de que as decisões deles tenham uma determinada orientação. Marx delineia corretamente essa condição,
dizendo que os homens são impelidos pelas circunstâncias a
agir de determinado modo, “sob pena de se arruinarem”. Eles
devem, em última análise, realizar por si as próprias ações,
ainda que frequentemente atuem contra sua própria convicção.
(LUKÁCS, 1978a, p. 6)
Como dissemos anteriormente, as sociedades capitalistas são
sociedades de classes − conflituosas e de interesses antagônicos.
A ideologia da classe dominante busca conseguir seus objetivos;
no entanto, durante todo esse processo ocorre um conflito que
também repercute diretamente no sujeito que é convocado a ser
consumidor, pois nem todos podem alcançar esses objetivos no
mercado. Por mais que se esforcem trabalhando, trabalhando mais
e se endividando, os produtos são consumidos diferentemente e
por pessoas de classes distintas, que desigualmente têm “acesso”
a eles, ou melhor, poder de compra sobre as mercadorias. Esses
conflitos fazem a ebulição e a criação do novo, sob as mais diferentes formas, que podem até mesmo ser traduzidas em formas
de resistência à ideologia dominante, implicando mudanças e
transformações revolucionárias.
Considerações finais
Em nossa análise, compreendemos que essas propagandas
põem em funcionamento a ideologia dominante, que diz sobre
o lugar “natural” da mulher e do homem na sociedade. Esse
funcionamento é essencialmente atravessado pelas formações inconscientes capazes de corroborar a eficácia dos efeitos de sentido.
Os vídeos analisados mobilizam uma rede de sentidos que
no seu entrecruzamento (materialidade simbólica, ideologia, in108
Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013
consciente) alcançam e fazem funcionar nos sujeitos os interesses
da lógica do capital. Ao assim agirem, revelam um processo discursivo que retoma e ressignifica os sentidos inscritos no discurso
do Outro, confluindo na realização dos interesses de um sujeito
constituído como consumidor “nato”.
Desde o resumo do presente artigo salientamos o papel
político da AD. De nossa parte, queremos enfatizar, baseados nas
teorias que subsidiaram a importância do gesto analítico de desvelamento do discurso dominante que esse tipo de propaganda
quer perpetuar, que os sujeitos nunca são atingidos igualmente,
embora a ideologia busque sempre a generalização. Portanto, a
continuação dos estudos sobre a linguagem na perspectiva pecheutiana não é apenas a busca de difusão de uma nova forma
de entender a língua e a linguagem em geral. Trata-se, sobretudo,
de uma forma de efetivar um ato político de confronto com as
posições discursivas que propugnam a “neutralidade” da ciência,
criando obstáculos para os próprios sujeitos se inscreverem em
outras redes de significações, a fim de efetivamente intervirem
nas relações sociais.
Abstract
Affiliated to the perspective Speech´s Analysis
(SA), we understand speech´s subject as being
radically historical- constituted by the language,
ideology and affected by the unconscious. This
statement of position imposes take into consideration production´s conditions in capitalist
society, such as the exploration of labor and the
production-consumption of commodities. Being
the speech ideology´s materiality, it is always
a historical practice and its operation reveals
interpretation´s gestures of the subjects acting in
social practices put as necessary to reproduction
/ transformation of production relations. Thus,
presupposing the working of ideology and of
unconscious in the production of sense effects,
this article analyzes advertisements for mobile
phone companies / mobile. They are presented
videos in celebrations dates about Mothers´ Day
and Fathers´ Day. In our analysis, we understand that these advertisements put operating the
dominant ideology that “naturalizes”, through
the evidence´s effects, the places of women and
of men. This operation is essentially crossed by
unconscious formations able to confirm with the
effectiveness of sense effects. Therefore, these discursive materialities mobilize a network of sense
that, in their intersection (symbolic materiality,
Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013
109
ideology, unconscious), achieve and make working
for and by subject the interests of the logic of capital, revealing a discursive process that returns and
resignify the sense enrolled in the Other´s speech
to converge in the realization of the interests of
a “subject consumer” that “makes your choices”
with “apparent” knowledge of cause.
Keywords: Speech; ideology; unconscious; sense;
history.
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110
Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013
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Unicamp, 1997.
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Niterói, n. 34, p. 95-111, 1. sem. 2013
111
Arquivo, memória e acontecimento em
uma política de Fundos Documentais
Amanda E. Scherer (Corpus/DLCL/PPGL/UFMS)
Simone de Mello de Oliveira (Corpus/PPGL/PNPD-CAPES/UFSM)
Verli Petri (Corpus/DLV/PPGL/UFSM)
Zélia Maria Viana Paim (Corpus/PPGL/PNPD-CAPES/UFSM)
Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar resultado de
pesquisa realizada pelos integrantes do Laboratório de Fontes de Estudo da Linguagem – Corpus/
PPGL/UFSM, a qual tem como objeto a política de
arquivo para Fundos Documentais. A experiência
aqui relatada é a criação do Fundo Documental
Neusa Carson, uma importante linguista para a
constituição disciplinar dos estudos da linguagem
no contexto brasileiro. Os conceitos nodais mobilizados são arquivo, memória e acontecimento na
relação da Análise de Discurso com História das
Ideias Linguísticas.
Palavras-chave: arquivo; memória; acontecimento; política; Fundos Documentais.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
Nossa história nos Estudos da Linguagem
O retorno do arquivo abre então à análise de discurso possibilidades
múltiplas.
GUILHAUMOU & MALDIDIER
Nos referimos ao projeto “Linguística no Sul:
estudo das ideias e organização da memória”
- Primeira etapa, CNPq,
bolsa de Produtividade,
2000.
2
Recebemos, também,
o arquivo pessoal e o
acervo bibliográfico da
Profa. Aldema Menine
Mckinney (UFSM) das
mãos da própria pesquisadora. A referida
professora trabalhou,
por mais de 10 anos,
em Políticas Públicas
de Alfabetização em
comunidades indígenas
em zona de fronteira. Já
o de Maria Luiza R. Remédios, professora de
Literatura Portuguesa
da UFSM e da PUC/
RS, recebemos a doação
pelas mãos do seu filho,
em solenidade pública,
no 08 de agosto de 2012.
3
Para a segunda etapa
do Projeto de Pesquisa:
“Linguística no Sul: estudo das ideias e organização da memória”,
estamos contando com
a participação de três
bolsistas em estágio de
Pós-Doutorado. Duas
vinculadas ao Edital
CAPES-PNPD, e uma
v i nc u lada ao Ed it a l
DOC FI X/FA PERG S/
CAPES.
1
114
Nos últimos tempos temos produzido trabalhos, de forma
intensa, enquanto pesquisadores do Laboratório CORPUS, sobre
a constituição da história disciplinar moderna e, principalmente,
sobre a história da Linguística no sul. São teses, dissertações, artigos científicos e obras de referência, interessantes do ponto de
vista da produção do conhecimento, e isso se dá em parceria com
pesquisadores de diferentes instituições brasileiras e estrangeiras.
Boa parte dos trabalhos procura refletir sobre como tal história
pode ter a sua versão na contemporaneidade e, ao mesmo tempo,
como ela se constitui no âmbito regional, nacional e no quadro
dos países do Prata. Tal ação se dá através de documentos/arquivos/acervos que estamos reunindo e recuperando em nosso
Laboratório, servindo para consulta e disponibilizados em redes
de saberes através da nova política ditada pela (re)documenta(riza)ção do mundo, proposta por Pédauque (2007) para que novas
leituras possam ser realizadas e produzidas.
Dentro de tal política, estamos construindo, cada vez mais,
instrumentos que possibilitem constituir a história disciplinar
contemporânea e, nos últimos tempos, estamos concebendo um
projeto de criação de um Centro de Documentação e Memória
composto por vários setores, entre eles, o de Fundos Documentais
e Acervos. O primeiro fundo a ser pensado e criado foi o Fundo
Documental Neusa Carson (FNDC), designado pelo nome de
uma importante linguista do sul do país, que viveu e trabalhou
na UFSM e na PUC/RS nas décadas de 70 e 80, contribuindo para
a institucionalização e disciplinarização da Linguística entre nós e
tendo uma participação nacional e estrangeira importantíssima no
desenvolvimento de pesquisas no campo da descrição de línguas
indígenas, mais precisamente o Macuxi, em Roraima.
Tal nome foi recorrente quando da pesquisa levada a
cabo no início de 20001. Nela conseguimos levantar e identificar
discursivamente o lugar de alguns nomes na sistematização e
constituição desse disciplinar e, pela visibilidade que tivemos,
na ordem regional, via divulgação em mídia impressa e digital,
familiares de alguns pesquisadores renomados nos propuseram
fazer a doação de arquivos pessoais e bibliográficos2. Foi o caso
do primeiro fundo e do qual vamos tratar mais adiante como
exemplo3. Tal política nos conduz a uma leitura discursiva de
um arquivo constituído pela sua historicidade, pois veremos
que a linguista em questão procura um espaço de formulação e
de produção de saber na Linguística que se revela, para a época
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
inicial, fortemente interessante, vinculada à descrição e ao estudo
das línguas, através de uma relação acadêmica constituída na e
pela sociedade científica da qual fez parte.
Veremos, também, através de tal Fundo, a importância de
desenvolver pesquisas que contribuam com o processo de recuperação da História do Conhecimento Linguístico no Brasil, seja
no tocante à constituição da língua nacional, seja no tocante às
línguas que revelam a heterogeneidade constitutiva do sujeito e
da história, mas, também, de que forma isto está posto naquilo
que Chevalier & Encrevé (1984) vão designar como História Social
da Linguística.
Tal proposta tem nos colocado questões epistemológicas,
tendo por eixo central a possibilidade de um trabalho integrando historicidade disciplinar pelo viés do programa de pesquisa,
pensado e posto em prática, no Brasil, pelos pesquisadores Eni
Orlandi e Eduardo Guimarães, designado como História das
Ideias Linguísticas (HIL), com os estudos franceses da História
Social da Linguística. Como sabemos, o programa HIL carrega, na
sua constituição e formulação, uma filiação materialista, política
e ideológica, lugar teórico da análise de discurso brasileira.
Por outro lado, Chevalier & Encrevé (1984) nos mostram
que a História Social da Linguística não é um complemento na
História das Ideias, pois, para os autores, ela não viria mostrar o
seu conteúdo para afirmar que as verdades científicas são produtos históricos com a razão de que são irredutíveis à história
por realidades singulares, mas que elas nos conduzem à prática
científica como uma espécie de universo concreto da prática do
pesquisador. Na verdade, a estrutura e o funcionamento da prática
científica formam uma espécie particular de condições sociais
que determinam os produtos sociais. A prática científica é uma
prática social (PÊCHEUX, 1995) como qualquer outra, com suas
relações de força, seus monopólios, suas lutas internas e externas,
seus interesses, onde todas elas vão intervir de uma maneira ou
de outra. A prática científica é por natureza um lugar e um espaço de lutas políticas, impondo a cada pesquisador, em função de
sua posição-sujeito, um lugar na história do político disciplinar.
Para os autores, uma História Social não seria revelada por uma
elaboração propriamente científica, mas ela teria o propósito de
poder apreender e entender o sistema de posições da prática social
acadêmica.
Um outro ponto importante a ser considerado tem a ver
com a História Social do pesquisador, fator determinante também
para entendermos o seu lugar hoje na prática científica e suas
contribuições para o avanço na história da ciência linguística na
contemporaneidade. Para nós, História Social está apartada, é
claro, dos moldes de um caminho biográfico que normalmente
se tem tomado nas ciências em geral. Ela tem nos ajudado a
entender de que forma a história da formação do pesquisador
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
115
é um dado importante para entendermos sua produção no/do
conhecimento e sua contribuição no processo de divulgação do
saber sobre a língua. História das Ideias Linguísticas e História
Social da Linguística são postas lado a lado sem que uma tome o
lugar da outra. Histórias repletas de memórias e de sujeitos que
envolvem um espaço de interlocução, proporcionado pelo trabalho
de leitura do arquivo (PÊCHEUX, 1994).
Outro fator importante é a discussão acerca da noção de
arquivo e do tratamento que lhe é dado. Os diferentes documentos têm nos mostrado que devemos retomar nossas certezas, que
acreditávamos serem definitivas, para melhor interrogarmos os
nossos limites. Nosso interesse é tentar, de fato, entender de que
forma a produção do conhecimento sobre a língua tem afetado um
fazer acadêmico-pedagógico específico ao nosso meio acadêmico,
tendo por eixo principal a compreensão das condições de produção do discurso sobre a ciência linguística e sua rede de circulação
nos cursos de graduação e pós-graduação no contexto regional.
Nosso pressuposto teórico e analítico
Refletir sobre arquivo da perspectiva de quem está trabalhando na implementação de fundos documentais e constituição de
acervos provoca um importante deslocamento sobre duas noções
essenciais ao trabalho do analista de discurso: a noção de arquivo
e de tomada de posição-sujeito de quem produz conhecimento
sobre a linguagem, levando em conta o funcionamento das noções
de acontecimento, história e memória.
A noção de arquivo, constantemente mobilizada em trabalhos em Análise de Discurso e História das Ideias Linguísticas,
tem como ponto de partida o dizer de Pêcheux, ou seja, “campo
de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão”
(1994, p. 57) e é desse ponto que partimos quando pensamos
no necessário deslocamento. Esse deslocamento se dá não só
pela mudança de perspectiva em relação ao arquivo, que é uma
materialidade simbólica prenhe em sentidos, podendo ser ainda
um recorte no interior deste “campo de documentos pertinentes
e disponíveis”, de que trata Michel Pêcheux, mas também por
estar explicitando a singularidade do que é dito, de um modo de
dizer, de uma anunciação (no sentido da expressão francesa “faire
connaître”), de uma enunciação.
Ao tomarmos assim o arquivo, torna-se necessário refletir
sobre a constituição de uma outra (e talvez nova) tomada de posição-sujeito de quem produz conhecimento sobre a linguagem, o
que se torna imprescindível quando se trata da implementação de
fundos documentais e de constituição de acervos. Há um sujeito
pesquisador que olha o arquivo, pensa sobre arquivo, recorta
arquivo, analisa arquivo, e este sujeito está num lugar mais ou
menos estável, mas em um lugar já dado. As alterações acontecem,
então, quando esse sujeito, em decorrência de um acontecimento,
116
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
muda sua posição em relação ao arquivo e passa a observar empiricamente, a ver arquivo em lugares que antes não via e onde
outros ainda não veem. Esse sujeito passa a integrar, de fato, “a
partilha do sensível” (RANCIÈRE, 2005), ele toma uma posição
diante do que é comumente partilhado, e o que singulariza cada
parte como diferente, essa tomada de posição do sujeito, se dá
também diante do que foi silenciado por uma aposentadoria ou
por um desaparecimento4.
Essa mudança de posição aponta para um caminho onde “la
politique ne consiste pas à se demander pour qui ou pour quoi on
doit mourir, mais pour qui ou pour quoi on doit vivre” (MILNER,
2011, p. 27). A questão que se coloca, neste momento, é: o sujeito
que vê a potencialidade de um arquivo, sua incompletude, seu
temporário silêncio, é capaz de dar a esse arquivo a possibilidade
de “vida”, de anunciação, de enunciação? Para responder a esta
questão trazemos Scherer (2012)5 quando ela afirma que:
para pensar o arquivo, é necessário considerar a relação entre
o desejo do sujeito de ter acesso a tudo e o freio institucional
que determina o que pode ser lido do arquivo e o que não
poderá ser. Ou seja, estamos pensando o âmbito do controle
e do político na forma como os arquivos se constituem.
Estamos fazendo especial referência aos
f u ndos documentais
e acervos de pessoas
que dedicaram sua vida
pessoal e profissional
à pesquisa em Letras
e Linguística. No caso
deste artigo, estamos
fazendo especial referência ao Fundo Documental Neusa Carson.
5
Palestra de Profa.
Ama nda Scherer em
reunião de trabalho no
LAS/UFF, em 25 de janeiro de 2012.
6
Itálico do autor.
4
Não se trata de uma tarefa fácil, mas é, sem dúvida, um
desafio que seduz e prende o pesquisador. Para nós, é preciso,
então, pensar o acontecimento6 como esse “ponto de encontro
de uma atualidade e uma memória” (PÊCHEUX, 1997, p. 17),
considerando que isso pode ser viabilizado pela recuperação de
arquivos pessoais e profissionais. Entendemos que é pela produção do sujeito que está “guardada” em diferentes materialidades
que se possa promover a anunciação/enunciação daquilo que já
foi dito em outro momento e sob condições de produção outras,
levando-se em conta que “o novo se situa em outra parte, no retorno do arquivo” (GUILHAUMOU & MALDIDIER, 1994, p. 181).
Dessa maneira, pensar um fundo documental a partir do
trabalho de um pesquisador, que já não é presença constante e
produtiva, é sair do lugar de conforto que tantas vezes é lugar
seguro para quem parte de um arquivo já organizado; é investir
em “maneiras inéditas de sentir” (HAROCHE, 2008) e é ousar dar
voz a quem estava calado e que pela organização de um fundo
documental passa a falar novamente, produzindo outros sentidos
na sua própria história e na história do outro que produz conhecimento na área dos Estudos da Linguagem. Nesse caso, é preciso
tomar o arquivo como “une brèche dans le tissu des jours, l’aperçu
tendu d’un événement inatendu” (FARGE, 1989, p. 13), posto que o
arquivo pode sempre nos surpreender, ele é pleno de documentos.
Já a noção de documento, estamos tomando-a a partir do
deslocamento de sentidos que propõe Foucault (1995, p. 8), quando toma o documento enquanto monumento, sendo necessário
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
117
observá-lo não apenas como “rastros isolados deixados pelo homem”, mas, sobretudo, como uma massa de elementos passíveis
de serem “isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos”. Para nós, é preciso tomar
cada documento que compõe um fundo documental como algo
em movimento, disperso e descontínuo, trata-se de um exemplar
de discurso que não pode ser observado apenas em sua organização interna, mas sim na relação que o discurso estabelece com a
língua, com a história e com a exterioridade que o envolve. Assim
sendo, pensar um fundo documental e/ou a constituição de um
acervo a partir de um nome, de uma história de vida pessoal e
profissional, não é tornar esse sujeito igual a tantos outros que
têm um fundo com seu nome; é, ao contrário, dar a ele uma singularidade, é promover a emergência da diferença, da diferença
constitutiva da história, da grande História7.
De fato, o acontecimento é constitutivo da história, embora
não seja apreendido por ela, pois “ele é apreendido na consistência de enunciados que se entrecruzam em um momento dado”
(GUILHAUMOU & MALDIDIER, 1994, p. 166). Porque pensar
historicamente
c’est concevoir le temps politique comme un temps brisé,
discontinue, rythmé de crises. C’est penser la singularité
des conjonctures et des situations. C’est penser l’événement
non comme miracle surgi de rien mais comme historiquement conditionné, comme articulation du nécessaire et du
contingent, comme singularité politique. (BENSAÏD, 2011, p. 41)
Entendemos que os
arquivos são objeto de
estudo da História e da
Arquivologia, áreas com
as quais dialogamos
incessantemente, mas
não trataremos de tais
relações neste artigo.
7
118
Para nós, portanto, ao constituir um fundo documental, promovemos um acontecimento enunciativo, mas não vamos tratar
aqui da noção de acontecimento vinculada à noção de formação
discursiva, porque estamos tratando da interdiscursividade que
isso engendra e não cabe a nós o trabalho de regionalização, pois
o fundo documental não é regionalizável, os sentidos, dados como
evidentes, estão e não estão nele, pois “o sentido sempre pode ser
outro” (ORLANDI, 1996, p. 60).
Pensar um fundo documental é, talvez, abrir a possibilidade
de que se reconstruam caminhos já percorridos e marcados por
acontecimentos discursivos em diferentes pontos da caminhada
do pesquisador que dá nome ao fundo. Esse pesquisador, e aqui
podemos nomear Neusa Carson, mobiliza saberes de diferentes
formações discursivas em diferentes momentos de sua produção acadêmica, o que nos conduz à noção de interdiscurso proposta por Pêcheux (1995, p. 162) enquanto “‘todo complexo com
dominante’ das formações discursivas (...) submetido à lei de
desigualdade-contradição-subordinação”, aceitando, portanto, a
complexidade que o processo de constituição do fundo engendra
porque, aquilo que foi dito/escrito em outro momento, volta a
ecoar. O arquivo, então, refunda um lugar para que o fazer e/ou o
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
“savoir faire” do pesquisador volte à enunciação pela anunciação.
O sujeito volta a “falar” – a organização do arquivo em Fundo
Documental anuncia esse retorno –, passa a produzir sentidos
novamente no discurso de outrem, resolvendo parcialmente o
problema do silêncio das caixas fechadas, da aposentadoria, da
morte do corpo, do desaparecimento.
Orlandi (2010, p. 59), ao tratar dos “silêncios da memória”,
nos diz que “não há como não considerar o fato de que a memória
é feita de esquecimentos, de silêncios. De sentidos não ditos, de
sentidos a não dizer, de silêncios e silenciamentos. Os sentidos se
constroem com limites. Mas há também limites construídos com
sentidos”. Com isso, a autora nos mostra que o acontecimento pode
ser uma nuance8, ficando entre aquele que escapa e aquele que é
absorvido (PÊCHEUX, 2010), pois “é como se não tivesse ocorrido,
não porque foi absorvido, mas, ao contrário, justamente porque
escapa à inscrição na memória” (ORLANDI, 2010, p 60). Para nós,
seria uma inscrição na suspensão do tempo, porque os vestígios
dos sentidos do acontecimento não inscritos na memória ficam
em suspenso, roçando as bordas da memória, adentrando suas
fronteiras, aproveitando-se de sua movência.
De fato, para que haja “o retorno ao arquivo”, proposto por
Guilhaumou e Maldidier (1994), é preciso aceitar o desafio de
promover o gesto de organização empírica e especializada de
arquivos ainda silenciosos. Esse trabalho é dos arquivistas, dos
historiadores, dos analistas de discurso, já numa perspectiva de
abertura de possibilidades múltiplas, desde a fundação até as
análises que certamente virão. Assim, torna-se urgente a consagração da presença da “materialidade da língua na discursividade
do arquivo”, considerando que
Entre a materialidade da língua e da história aí se situa para
Pêcheux o arquivo. Ao trabalhar com arquivos de textos, o
analista de discurso já leva em consideração, portanto, antes
de tudo, que tais textos são fatos de língua. E a língua na
perspectiva da análise do discurso é capaz de contradições, de
jogo com e sobre os sentidos, porque a língua, como sabemos,
tem mecanismos de resistência, não é transparente, e não o
é porque se inscreve na história. E isso faz toda a diferença!
(ROMÃO; FERREIRA; DELA-SILVA, 2011, p. 13)
Portanto, é preciso fazer a diferença, é preciso lutar pela
constituição e manutenção de Fundos Documentais, trata-se de
um ato político e, como nos diz Milner (2011, p. 10), “la politique
vient incessamment combler les silences de notre société”. O que
nos leva a sustentar junto com Guilhaumou que
8
Itálico da autora.
l’archive n’est pas simplement l’ensemble des textes qu’une société a laissés. Matériel brut désormais exploré conjointement
par l’historien classique et l’historien du discours, mais à partir
duquel l’historien du discours ne privilégie pas la recherche
de strutures sociales cachées, elle est alors principalement
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
119
un dispositif non réglé a priori d’énoncés qui constituent des
figures, des objets et des concepts distincts. Ainsi chaque dispositif d’archive établit sa propre mise en oeuvre (2006, p. 21).
Assim sendo, pensar em arquivo é estabelecer relações entre
o sujeito e a memória. Pierre Nora nos ajuda a tomar o arquivo pelo
o que ele designa “lugares de memória” (1993, p. 13), que “nascem
e vivem do sentimento que não existe memória espontânea, que
é preciso criar arquivos [...] porque essa não é uma ação natural”.
Para o autor, os “lugares de memória” não existem sem o olhar
vigilante da história, ao mesmo tempo em que é nos “lugares
de memória” que a história se ancora porque deles se apodera,
ao que acrescentamos, por um movimento que os constitui: são
momentos recortados na movência da história. Esse movimento
pendular memória-história resulta numa sobredeterminação
recíproca, pois, como ensina Guilhaumou (1993), o dispositivo
experimental precisa ser colocado em prática pela leitura de arquivos porque, antes de qualquer coisa, ele comporta uma parte
descritiva, mas inclui nele também elementos reflexivos em uma
dimensão interpretativa.
Para nós, os “lugares de memória” pertencem a domínios
que atestam sua complexidade constitutiva; simultaneamente,
simples e ambíguos, naturais e artificiais, são ofertados à mais
sensível experiência, emergindo da mais abstrata elaboração.
Pode-se investir um lugar de aparência puramente material, como
um depósito de arquivos, como lugar de memória. Mas, para um
lugar constituir-se como “lugar de memória”, deve existir uma
“vontade de memória” que imprima a sua identidade (NORA, 1993
p. 28). Havendo essa vontade de memória, será profícua a constituição de arquivos, garantindo-se espaço para o acontecimento.
Segundo Davallon (2010, p. 25), é preciso que o acontecimento registrado, descrito, representado “saia da indiferença,
que ele deixe o domínio da insignificância”. O acontecimento
deve guardar em si forças para poder impressionar, para poder
ser lembrado, para reencontrar sua vida própria no arquivo pelo
Fundo Documental, pois, assim, ao ser “memorizado”, poderá
entrar na história. Enquanto “histórico”, poderá se tornar elemento
vivo de uma memória.
Importa destacar que entendemos a memória “nos sentidos
entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em
práticas, e da memória construída do historiador” (PÊCHEUX,
2010, p. 50), o que certamente é da constituição de um fundo
documental, tal como estamos trabalhando. A especificidade de
nosso objeto de estudo nos conduz a aceitar que a memória não
é e nem poderia ser
uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um
espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos
120
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço
de desdobramento, réplicas, polêmicas e contra-discursos.
(PÊCHEUX, 2010, p. 56).
Entendemos que considerar os acontecimentos na história
nos leva a refletir necessariamente sobre o jogo entre a memória
e a atualidade. Devemos considerar tanto os acontecimentos que
sustentam a estabilidade dos sentidos, os acontecimentos que abalam esses sentidos e aqueles restos de sentido suspensos à deriva,
advindos de acontecimentos ainda no domínio da insignificância.
O Fundo Documental Neusa Carson e sua constituição
O Fundo Documental
Neusa Carson contém,
em identificação inicial,
454 documentos.
9
Em 20 de agosto de 2011 foi inaugurada uma política de
trabalho para a institucionalização do Fundo Documental Neusa
Carson no âmbito da Universidade Federal de Santa Maria, tendo
por local o Laboratório Corpus – Laboratório de Fontes de Estudo
da Linguagem, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da UFSM. No ano de 2012 foi registrado o projeto do Fundo
Documental Neusa Carson, sob o número 031241 no Gabinete de
Projetos do CAL/UFSM, e uma série de ações foram desenvolvidas e outras projetadas, tais como o início e quase conclusão dos
trabalhos de Arranjo e Descrição do conjunto de documentos do
FDNC, um número da Coleção Fragmentum que será dedicado ao
tema (n. 34, Abr.-Jun. de 2013) e uma exposição científico-acadêmica que está agendada para o mês de outubro de 2013. Com o
recebimento das três doações iniciais: Neusa Carson, Maria Luiza
Ritzel Remédios e de Aldema Menine Mckinney e com a criação
do Acervo Michael Phillips, o Laboratório Corpus, através de seus
integrantes, elaborou uma política de fundos documentais que
servirá de base para a criação de um Centro de Documentação
e Memória, que terá sob sua responsabilidade a guarda desses
fundos e de fundos vindouros.
Até o momento, foram elaborados pela equipe arquivística
(Pólo Arquivologia) três bases de documentos. São eles: a Listagem dos documentos do Fundo Documental Neusa Carson, A
Descrição do Fundo Documental Neusa Carson e O Arquivo do
Laboratório Corpus9. A Descrição do Fundo Documental Neusa
Carson apresenta, em linhas gerais, a área de identificação, a área
de contextualização, a área de conteúdo e estrutura, a área de
fontes relacionadas, a área de notas, a área de controle da descrição
e a área de pontos de acesso e indexação de assuntos. O Arquivo
do Laboratório Corpus, sob a forma de arranjo, contempla as
seguintes séries (gerais), a saber, Série 1: Identificação Pessoal e
Exercício de Cidadania; Série 2: Controle de bens e patrimônios;
Série 3: Atividades Profissionais; Série 4: Atividades de Pesquisa,
Ensino e Extensão; Série 5: Formação Profissional e Acadêmica;
Série 6: Participação em Clubes e Associações; Série 7: Prevenção
de Doenças e Tratamento de Saúde; Série 8: Produção literária;
Série 9: Publicações na imprensa; Série 10: Aperfeiçoamento e
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
121
Participação em Cursos e Eventos; Série 11: Controle Financeiro;
Série 12: Relações Sociais; Série 13: Falecimento e Homenagens
Póstumas; série 14: Documentação tridimensional.
Propomo-nos “flanar” sobre algumas questões pertinentes
ao movimento que ora nos engajamos. Nesse sentido, olhamos
para o procedimento de Arranjo e Descrição, em arquivística,
que considera o “ciclo vital” dos arquivos e que são classificados
em “corrente, intermediário e permanente” (ROUSSEAU & COUTURE, 1998). No nosso entender, no uso quotidiano isso é dito de
outro modo, quando essas três categorias são transformadas em
duas, o que está em uso e o que se deve guardar por qualquer
razão e tempo que seja. Diz-se “arquivo vivo” e “arquivo morto”.
Sendo que o arquivo morto é o que fica vivo, é o que é “permanece” nos arquivos para a história. E é nesse arquivo, permanente,
que trabalhamos.
Sabemos, também, que toda instituição possui um arquivo
vivo e um arquivo morto. Considerando a possibilidade de alguém querer realizar um levantamento sobre Neusa Carson, até
o momento, qual o lugar possível para se encontrar alguns dados
e fatos? Pensamos de pronto na internet, via site de buscas e, em
outro lugar, na UFSM, seu local de trabalho. Mais especificamente
no arquivo morto da UFSM, pois é lá que se encontra sua ficha
funcional. Então é lá que encontraremos Neusa (viva). No arquivo
morto. Ou no arquivo vivo. Vivo para a história porque, segundo Nunes (2008, p. 90), a “memória institucionalizada tem uma
história e é sustentada por certas condições, que quando deixam
de vigorar, abalam a estabilidade do arquivo”. Nosso interesse é
adentrar, ainda que rapidamente, neste arquivo morto/vivo que
pode nos dar um pouco do que foi o trabalho de Neusa Carson e
pode nos dar a dimensão de sua importância para a constituição
da história disciplinar.
E m t o r n o d e 70
documentos do
F DNC s ã o e s c r i t o s
em lí ng ua i nglesa.
São correspondências
com pesqu isadores
de Un iversidades
a me r ic a n a s (g ra nde
maioria) e europeias,
t e x t o s, m a t e r i a l d e
eventos, comprovantes,
vistos, correspondências
administrativas com as
universidades onde fez
mestrado, doutorado e
pós-doutorado, cartas
para colegas e amigos,
etc. Para trabalhar com
esses documentos foi
cr iada u ma equipe
de nom i n ada Pólo
Inglês, coordenado pela
profa. Daniela do Canto.
10
122
Cartografia como vestígio do eu a partir
de um lugar do pesquisador
O Fundo Documental Neusa Carson é composto de extensa
correspondência com importantes universidades e pesquisadores
brasileiros e estrangeiros10, ofícios e memorandos internos – correspondência oficial da UFSM, correspondência com órgãos de
fomento, assim como solicitações de auxílio-pesquisa, revistas com
artigos publicados, tese de doutorado, certificados de participação em eventos, programas de eventos e de viagens de pesquisa,
diploma de doutorado, relatórios (CAPES, CNPq, FUNAI, etc.),
fotos, manuscritos, datiloscritos e recortes de jornais variados
sobre Neusa.
Para este artigo, escolhemos dois trajetos temáticos, nos
inspirando em Guilhaumou (2006), para mostrar um pouco do
que estamos tratando. O primeiro, diz respeito à cartografia que
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
encontramos a partir dos vários slides preparados para apresentações de conferência e participação em congresso da área e
que serviram de base para alguns dos artigos publicados pela
linguista. Estamos chamando esse primeiro trajeto temático de
Cartografia da língua e de si. São as figura1 e figura 2 (Mapa 1a
e Mapa 1b).
Fig. 1 – Mapa 1a11
Fig. 2 – Mapa 1b12
Fundo Documental
Neusa Carson, Série 4
- Atividades de Ensino,
Pesquisa e Extensão,
Dossiê Pós- Doutorado.
Caixa 1, Envelope 74-76.
12
Idem.
11
Na figura 1 temos a localização geográfica da comunidade
Macuxi (objeto de estudo de Neusa) delineada pelo quadrado
tracejado. Já na figura 2, temos o mesmo quadrado tracejado em
destaque e a localização geográfica deste espaço em relação ao
Brasil e aos demais países do norte da América do Sul.
Já na figura 3, mapa 2, que virá logo a seguir, temos a distribuição das comunidades no espaço e a marcação de quais foram
visitadas pela pesquisadora. São elas: Napoleão, Raposa, Vista
Alegre e Boa Vista. Todas elas no contexto brasileiro.
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
123
Fig. 3 – Mapa 213
Idem.
13
124
Se tomarmos a cartografia apresentada, veremos que sua
extensão territorial não é tão somente física brasileira, mas que a
língua dos Macuxi se constitui por uma expansão que ultrapassa
as fronteiras meramente territoriais. O que veremos é que o regional ora é nacional e ora ultrapassa as fronteiras brasileiras para
regionalizar-se, novamente, do ponto de vista do que designamos,
hoje, como América do Sul em relação ao todo no conjunto das
Américas. E o desenho dos pontos cardeais vai se reconfigurando
também. A linguista do Rio Grande do Sul estudando línguas
indígenas de Roraima e que, por sua vez, fazem parte da nação
brasileira, nação essa fazendo parte da América do Sul na América do Norte. Para regionalizar-se, outra vez, pela presença da
pesquisadora nos Estados Unidos. Um percurso território físico
imaginário. Santa Maria. Porto Alegre. Rio de Janeiro. Brasília.
Manaus. Napoleão. Raposa. Vista Alegre. Boa Vista. Lawrence.
Ohio. Rio de Janeiro. Porto Alegre. Santa Maria. Do particular
ao global, do individual ao efeito de totalidade, naquela velha
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
problemática para os estudiosos da língua, da língua de dentro
e daquela de fora. Da especialista de línguas indígenas, que apresenta no mapa o território da língua Macuxi/indígena/brasileira/
americana numa língua outra, a língua inglesa, que também era
sua língua, sua língua de pertença, movendo-se do Brasil para o
Brazil, pertencendo lá e cá. É estar numa língua que está dentro e
que é de fora, passando a ser de dentro, também pela dupla cidadania da linguista14. O que vemos é a necessidade da cartografia
também para falar de si, da sua língua, da língua do outro e do
outro ainda para se transformar na língua de todos nós.
Aos poucos, vamos entendendo o modo de funcionamento
do político, na política de divulgação e de produção do saber sobre
a língua(gem). Na verdade, o que vai sendo colocado em cena
são as representações da ciência linguística pelo sujeito envolvido
nessa história e a mesma cena será, ao nosso ver, a mediadora na/
para uma formação imaginária na história da pesquisa em Letras
e Linguística no contexto brasileiro americano.
Já para a figura 4, documento datiloscrito e intitulado como
Proposta de pesquisa – descrição sumária (em inglês), vários
sãos os possíveis pontos de ancoragem, várias entradas possíveis.
Nosso gesto de leitura vai se dar no recorte, a partir das figuras
anteriores e que estamos chamando de segundo trajeto temático:
Política de línguas e o lugar do linguista. Vejamos o recorte:
Fig. 4 – datiloscrito: Proposta de pesquisa – descrição sumária (em inglês)15 e
Fig. 5 – anotação de borda de página
A professora Neusa
Carson era casada com
o Prof. William B. Carson. Seu sobrenome de
solteira era Martins.
15
Fundo Documental
Neusa Carson, Série 4
- Atividades de Ensino,
Pesquisa e Extensão,
Dossiê Pós-Doutorado.
Caixa 3, Envelope 428.
14
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
125
Transcrição:
SIL = 1956
Problem: Limited knowledge of what is
done by missionaries in Brazil
Solution: Require them to file their findings and data.
Tradução16:
SIL = 1956
Problema: Conhecimento limitado sobre o que é feito pelos missionários no
Brasil.
Solução: Exigir-lhes que apresentem
seus resultados e dados.
Todos nós sabemos do lugar político ocupado pelo SIL
(Summer Institute of Linguistic) na política da pesquisa brasileira
na descrição de línguas indígenas. Não vamos, aqui, entrar nessa
problemática. O que queremos trazer para discussão é o lugar que
a linguista ocupa e a partir do qual começa a refletir para encontrar o seu lugar na prática da política17 do monopólio da política
do SIL, pela prática científica. Prática que, na sua constituição,
se voltarmos às figuras anteriormente apresentadas, se mostra
particular na esfera do nacional regionalizado pelo que somos
enquanto americanos no mundo.
Dessa forma, vemos que a análise desses documentos/arquivos tem sua especificidade, internamente, sua ordem discursiva
se apoia sobre um escopo institucional, mas ao mesmo tempo
particular. Essa ordem é reforçada e reconduzida por toda uma
espessura de práticas de dizer e é possível, pela formulação e constituição desse dizer, entender o dizer da disciplina em questão. Mas
é possível, também, entender o lugar da Linguística pela maneira
como o saber é formulado. Porque “l’archive n’est donc pas une
simple matériau où l’on puisse de référents, elle participe d’un
geste de lecture où s’actualisent des configurations signifiantes,
des dispositifs significatifs” (GUILHAUMOU, 1993, p. 06). Para nós, esses documentos formam momentos precisos/
preciosos e podemos considerá-los como um acontecimento, na
medida em que sua enunciação se inscreve em modos de pertencimento e de relações singulares a cada um e em formulações
que excluem outras e traçam caminhos particulares. Esses documentos, postos em uma história disciplinar, formam um lugar
preciso/precioso: o lugar da Neusa Carson na história de nossa
área particularizando algo de local em nacional, pois como nos
ensina Rancière (1994, p. 71), na sua obra Os Nomes da História, são
“Esses seres que engajam sobre palavras um destino coletivo” e
dessa forma podemos propor questões à relação que a história
disciplinar mantém com as palavras desses homens.
Para concluir
Tradução nossa.
No sentido dado por
Rancière em Aux bords
du politique (1998).
16
17
126
Nossa experiência, ao trabalhar com a História das Ideias
Linguísticas no Sul, indicou a urgência de uma retomada estratégica da noção de arquivo e da observação de como ela funciona no
âmbito institucional. Ao iniciarmos esta pesquisa nos deparamos
com a ausência de um “lugar de memória” que desse conta da
produção acadêmica de professores/pesquisadores que tiveram
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
Agradecemos, aqui,
ao trabalho importante
e competente da Profa.
Rosani Beatriz Pivetta
da Silva, do Curso de
Arquivologia de nossa
universidade, que faz
parte de nossa equipe
de pesquisadores e tem
contribuído significativamente com o grupo.
A referida professora é
especialista na área de
Arranjo e Descrição.
18
papel fundamental na fundação da Linguística no Brasil, como é
o caso de Neusa Carson.
Tudo o que a instituição “guarda” é a sua ficha funcional,
somada, às vezes, às lembranças já fragmentadas de colegas e
de ex-alunos. Tal realidade tornou urgente a necessidade de se
pensar em uma política de fundo documental que possa, de fato,
dar conta de uma memória partilhada, ratificada pela oficialidade
da história que os documentos promovem. Assim, a criação e a
manutenção de fundos documentais vêm funcionar como espaço
que reúne séries de documentos de/sobre um pesquisador, mas
vêm funcionar, principalmente, como espaço profícuo de acesso
a informações antes silenciadas, em suspenso, diríamos nós,
promovendo pesquisas mais substanciadas e garantindo a voz
daqueles que já não estão mais aqui, mas que tiveram e ainda
têm muito a nos dizer.
O que queremos afirmar é que o arquivo, constitutivo do
fundo documental, deve ser tomado como acontecimento, a cada
momento em que ele retorna, se enuncia, sem esquecer, no entanto,
que ele está organizado e descrito por especialistas em arquivo18,
e eles lhe dão uma ordem própria, reconhecida por estudiosos
de todas as áreas. A nosso ver, esta descrição, embora siga preceitos arquivísticos, é sempre outra, posto que “a materialidade
do arquivo impõe sua própria lei à descrição” (GUILHAUMOU
& MALDIDIER, 1994, p. 174).
Sendo assim, o que dá ao arquivo o estatuto de acontecimento é o “gesto de interpretação” do analista de discurso, posto que
é a partir desse gesto que se recupera uma parte do processo de
constituição do arquivo, do fundo documental em questão, por
exemplo. Tomar essa posição em relação ao arquivo constitutivo
do fundo documental é, também, explicitar relações entre a língua
e o arquivo, a história e o arquivo, a instituição e o arquivo, as
partes do arquivo com ele mesmo, o discurso e o arquivo.
Por outro lado, o gesto de interpretação do analista leva em
conta a história como constitutiva dos sentidos na constituição do
arquivo, mas não dá privilégios à história cronológica, toma antes
como aliada à memória, visto que a memória é, por sua própria
natureza, lacunar e saturada, e por isso permite uma leitura
não-linear sem prejuízo às análises propostas.
Acreditamos, de um lado, estar contribuindo para a produção do conhecimento em um domínio de saber que está afetado,
também, pela elaboração de instrumentos linguísticos que, por
sua vez, vão nos constituindo enquanto sujeitos do conhecimento
no emaranhado das relações de fronteira, quer sejam elas de estado ou de países vizinhos no MERCOSUL. Sempre lembrando
que vivemos em um espaço de enunciação e de discurso muito
marcado pela língua e pela história.
Institucionalmente, por outro lado, estamos cada vez mais
imbuídos em um trabalho de equipe e de formação de novos
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
127
pesquisadores com a tarefa, também, de implementarmos uma
cultura de pesquisa que ultrapasse a barreira entre os diferentes
graus de ensino determinados pelas políticas universitárias por
entendermos que o sujeito está sempre instado a interpretar e não
depende unicamente de seu estágio de titulação mas, e sobretudo,
pelo seu interesse em pesquisa. São tentativas que nos ajudam a
refletir sobre a importância da história disciplinar moderna e a
constituição da língua enquanto objeto de saber. São tentativas,
na sua origem e feitura, ainda embrionárias, mas promissoras
do ponto de vista do avanço teórico e analítico para a história
brasileira na História das Ideias Linguísticas.
E, em nossa política de arquivo, nossa meta, também, é dar
lugar a essa palavra coletiva na criação de um Centro de Documentação e Memória onde estaremos reunindo bibliotecas pessoais, acervos, documentos pessoais de pesquisadores, rascunho
de curso e manuscritos de produção de conhecimento. Ou seja,
aqueles momentos, fragmentos de um real materializado que não
têm nenhuma outra unidade além do nome que lhe damos: Neusa
Carson, Aldema Menine Mckinney, Maria Luiza Ritzel Remédios.
E, com a chegada de tais documentos, estamos partilhando
com aqueles que o recebem, o veem, ouvem falar deles, o anunciam e depois o “guardam” na memória. Um Centro de Documentação e Memória para que um pedaço do tempo e da memória,
posto em pedaços pelo institucional, possa ser partilhado e a partir
daí ter sua forma de sobreviver, de ser transmitida, oferecida e
depois falada e projetada no tempo do devir fazendo parte da
materialidade real da história, dando materialidade futura a algo
que teve sua importância pessoal e que pela partilha do sensível
(RANCIÈRE, 2005), como temos afirmado, será coletiva. Pois ao
guardar o que foi de outrem, estaremos guardando, também,
um pouco da história que ajudou a constituir o que somos hoje.
Abstract
This article aims to present the result of research performed by members of the Laboratório
de Fontes de Estudo da Linguagem – Corpus/
PPGL/UFSM, having as object the file policy for
Documentary Funds. The experience reported in
this article is the creation of the Neusa Carson
Documentary Fund. Carson was an important
linguist for the disciplinary constitution of language studies in the Brazilian context. The main
concepts used are file, memory, event in relation
to Discourse Analysis and History of Linguistic
Ideas.
Keywords: file; memory; event; policy; documentary fund.
128
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130
Niterói, n. 34, p. 113-130, 1. sem. 2013
Para além do efeito de circularidade:
interpretando as noções
de pré-construído e articulação
a partir de enunciados idem per idem
Aracy Ernst-Pereira (LEAD/UCPEL)
Ercilia Ana Cazarin (LEAD/UCPEL)
Marchiori Quevedo (LEAD/UCPEL)
Resumo
A partir da observação da inter-relação entre
o funcionamento metafórico e ideológico em
enunciados idem per idem − os que realizam a
fórmula “X é X” −, discutem-se as noções de
pré-construído e discurso transverso, relativas ao
interdiscurso, e suas implicações na administração da leitura. Esse funcionamento caracteriza-se
pela indefectibilidade do pré-construído e pela
relação estabelecida com discursos transversos que
explicam tanto o caráter de evidência quanto de
deriva dos sentidos. Considera-se também a diferença entre o já-dito e o pré-construído e os efeitos
de estranhamento e de invisibilidade decorrentes.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013
Palavras-Chave: Pré-construído; Discurso-transverso; Metáfora; Ideologia;
Memória.
Considerações iniciais
Conforme Pêcheux,
“aquilo que numa formação ideológica dada,
isto é, a partir de uma
posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta
de classes, determina o
que pode e deve ser dito
(articulado sob a forma
de uma arenga, de um
sermão, de um panfleto,
de uma exposição de um
programa, etc.)” (1995,
p.160).
1
132
Enunciados considerados tautológicos são talvez um dos
trunfos de que se pode valer um analista de discurso para defender algo que, em sua seara, tem ares de obviedade: o sentido não
está no texto. É fácil já aqui conjecturarmos situações em que enunciados como “brasileiro é brasileiro”, “negro é negro” ou “mulher
é mulher”, para além do efeito de circularidade, produzam ou um
sentido X ou mesmo seu antípoda. Tomemos o último enunciado
para ilustrarmos o que queremos dizer a partir da seguinte narrativa: certa feita, um professor foi surpreendido pela resolução de
uma aluna de não mais fazer o trabalho da disciplina com a melhor amiga (decisão rara na trajetória de ambas no ensino médio).
A justificativa foi um inefável: “ah, professor, mulher é mulher”.
Sem maior azo para solicitar uma glosa, a interpretação desse
enunciado estacionou em duas possibilidades relativas à tomada
da palavra “mulher”: (i) a retomada de um estereótipo: “volúvel”,
“instável”, “não confiável”; e (ii) a retomada de uma contraposição
a esse estereótipo: ser “de fibra”, “obstinada” por defender suas
ideias, “perseverante” (o que poderia ser pouco apropriado, visto
que elas discordavam e muito sobre o tema do trabalho).
De acordo com Orlandi (1999), os sentidos têm um funcionamento ideológico e metafórico. O primeiro dá conta de uma
naturalização desse sentido, da produção de sua evidência. É por
estar sob o domínio de uma formação discursiva1 que o sentido
se nos apresenta de uma determinada forma. Em uma FD machista, por exemplo, “mulher é mulher” produz, sob a condição
de “aquilo que todo mundo pode ver”, sentidos de “futilidade”,
“consumismo” ou “inferioridade”. Tanto isso se nos torna evidente
que, nessa formação, um conectivo mas uniria “Ela queria muito
economizar” e “mulher é mulher”. Já em uma FD feminista, ou ao
menos não machista, uma possível montagem discursiva abdicaria do mas por um porque, produzindo um sentido próximo de a
mulher querer economizar porque “as mulheres são precavidas”,
“se preocupam com os filhos”, “pensam no futuro” etc.
Paralelamente ao fato de que o sentido não pode ser qualquer um, temos que ele sempre pode ser outro. Esse movimento
é próprio do sentido. Trata-se aqui do segundo funcionamento:
o metafórico. Se isso provoca sempre a possibilidade da emergência de um outro sentido (produzido por um novo gesto de
interpretação), por outro lado implica a necessidade de o sujeito
(tentar) administrar a posição de leitura do outro sujeito. O que
comumente é feito com algum sucesso: basta observarmos que
o sentido tende a reproduzir-se, que há uma forte impressão de
Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013
literalidade da palavra e, se quisermos exemplos mais pungentes,
que os estereótipos têm grande eficácia material.
O funcionamento metafórico, embora permita o atravessamento do inconsciente (ou dele seja efeito), é sempre afetado pelo
ideológico. Uma construção como “O Brasil precisa cuidar melhor
de suas mulheres”, estando alijada sua leitura das condições de
produção, apresenta-se-nos inescrutável: fala-se do Brasil-Estado,
da sociedade ou dos homens brasileiros? “Cuidar” foi atualizado em que sentido: observar, vigiar ou tratar com carinho?
“Mulheres” seriam as esposas, seriam todas as mulheres, seriam
também as crianças do sexo feminino... Afinal, trata-se aqui de
um conceito biológico ou de gênero? Somente a partir de um lugar discursivo, essa frase produz a evidência de seu sentido: um
alerta, uma ameaça às mulheres ou uma reivindicação feita por
elas mesmas. Somente situada no interior de uma dada relação
de forças, a asserção significa solicitação ou de uma ainda maior
tirania ou de uma menor dessimetria entre os gêneros.
Enunciados tautológicos, ao menos os que realizam a fórmula “X é X”, parecem-nos exemplificar muito bem a inter-relação
entre esses dois funcionamentos. Além de reiterarmos que um
enunciado como “mulher é mulher” só fala o que é afinal a mulher
– ou como se a lê –, quando reportado a uma formação discursiva,
arriscamos ainda uma hipótese: é na realização da fórmula “X é
X” que os dois tipos de funcionamento dos sentidos encontram
sua eficácia máxima. O ideológico, por convocar o exterior justamente no paradoxo do não funcionamento/funcionamento de
uma identificação objetiva. O metafórico, por simular a suspensão
de seu próprio funcionamento em uma espécie de curto-circuito
significante. Para tanto, recorremos à noção de interdiscurso e às
modalidades de sua intervenção no intradiscurso.
1. Uma proposta teórica a partir das modalidades
de funcionamento do interdiscurso
Afirmamos, na introdução deste estudo, que o sentido é
dependente da formação discursiva em que se constitui, o que
equivale a dizer que não lhe pode ser pré-existente. Esse sentido
não é nem insensível à materialidade nem incomunicável com o
exterior da FD, visto que essa responde ao “todo complexo com
dominante”, intrincado no complexo das formações ideológicas,
embora simule a evidência do sentido na dissimulação dessa dependência. É o que podemos depreender deste excerto:
... propomos chamar interdiscurso a esse “todo complexo com
dominante” das formações discursivas, esclarecendo que
também ele é submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação que, como dissemos, caracteriza o complexo
das formações ideológicas. Diremos, nessas condições, que o
próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência de sentido que nela se forma, a objetividade material
Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013
133
contraditória do interdiscurso que determina essa formação
discursiva como tal, objetividade material que reside no fato
de que “algo fala” (ça parle) sempre “antes em outro lugar e
independentemente”, isto é, sob a dominação do complexo das
formações ideológicas. (PÊCHEUX, 1995, p. 162, grifo do autor)
O interdiscurso é, por assim dizer, o “exterior específico de
uma FD” (PÊCHEUX, 1997, p. 314) e deve ser visto como
... un processus de reconfiguration incessante dans lequel
une FD est conduite, en fonction des positions idéologiques
que cette FD represente dans une conjoncture déterminée, à
incorporer des éléments préconstruits produits à l’extérieur
d’elle-même, à en produire la redéfinition ou le retournement
à susciter également le rappel de ses propres éléments, à en
organiser la répétition mais aussi à en provoquer éventuellement l’effacement, l’oubli ou même la dénégation. (COURTINE;
MARANDIN, 1981, p. 24)
Sendo a exterioridade constituinte do discurso, o interdiscurso tem no intradiscurso seu “simulacro material” (FERREIRA,
2001). Para Pêcheux (1995), “o intradiscurso, enquanto ‘fio do
discurso’ do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si
mesmo, uma ‘interioridade’ inteiramente determinada como tal
‘do exterior’” (p. 167); “o funcionamento do discurso com relação
a si mesmo (o que eu digo agora, com relação ao que eu disse
antes e ao que eu direi depois) [...] o conjunto dos fenômenos de
‘co-referência’” (p. 166). Para “ancorar-se”2, o interdiscurso intervém a partir de dois tipos de funcionamento: o pré-construído e
a articulação de enunciados.
O pré-construído é apresentado, em uma “primeira aproximação” na obra Semântica e Discurso, em meio ao debate com a
posição fregeana (para a qual deveria haver coincidência entre o
objeto de pensamento e o objeto real). A partir da frase “aquele
que salvou o mundo morrendo na cruz nunca existiu”, Pêcheux
demonstra que o discurso ateísta funciona pela negação, no todo
da proposição, daquilo que necessariamente fora admitido na
subordinada. A imperfeição que Frege atribuía às línguas naturais
é revista por Pêcheux como “separação, distância ou discrepância
[...] entre o que é pensado antes, em outro lugar ou independentemente, e o que está contido na afirmação global da frase” (p. 99).
A necessidade de dar conta desse funcionamento linguístico do
interdiscurso levou P. Henry a
propor o termo “pré-construído” para designar o que remete a
uma construção anterior, exterior, mas sempre independente,
em oposição ao que é “construído” pelo enunciado. Trata-se,
em suma, do efeito discursivo ligado ao encaixe sintático
(PÊCHEUX, 1995, p.99, grifo do autor).
Te r mo tom ado n a
acepção de Maldidier
(2003).
2
134
O pré-construído consiste, assim, na “separação fundamental entre o pensamento e o objeto de pensamento, com a pré-existência
desse último, marcada [por] uma discrepância entre dois domínios
Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013
de pensamento” (p.102). Um desses dois seria o “impensado do
pensamento” e remeteria
simultaneamente “àquilo que todo mundo sabe”, isto é, aos
conteúdos de pensamento do “sujeito universal” suporte da
identificação e àquilo que todo mundo, em uma “situação”
dada, pode ser e entender, sob a forma das evidências do
“contexto situacional” (p. 171, grifo do autor).
Nesse mesmo sentido, para Courtine,
um elemento do interdiscurso nominaliza-se e inscreve-se no
intradiscurso sob forma de pré-construído, isto é, como se esse
elemento já se encontrasse ali. O pré-construído remete assim
às evidências pelas quais o sujeito se vê atribuir os objetos de
seu discurso: “o que cada um sabe” e simultaneamente “o que
cada um pode ver” em uma dada situação. (2009, p.74, grifo
do autor)
Ao ser “naturalizado” pela FD, isto é, tendo produzida sua
evidência, o pré-construído justamente funciona pela elisão desse
“impensado do pensamento”: a discrepância entre o recorte de
sentido que é dado na formação discursiva e a heterogeneidade
ou contradição a que essa posição de interpretação remete e responde. A tomada de posição só pode dar-se a partir de um espaço
dividido, ainda que possa constituir por si mesma um novo nicho.
O segundo modo de funcionamento alude à articulação de
enunciados. Para Pêcheux (1995), enquanto o pré-construído fornece-impõe o “mundo das coisas” (p.164), a articulação “constitui o
sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela representa,
no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito” (p. 164). Essa articulação, por estar identificada a uma FD,
rege o processo discursivo sob, por exemplo, a possibilidade de
substituição: tanto como equivalência (meta-relação de identidade)
quanto como implicação, em cuja substituição orientada o filósofo
não vê uma relação de identidade, mas sim de encadeamento
(conexão). À sequência produzida nessas condições, ele chama
“discurso-transverso” (p. 165).
Aludindo a uma “especificidade diferencial dos dois tipos
de elementos do interdiscurso (‘pré-construídos’ e ‘articulações’)”
(p. 163, grifo nosso), Pêcheux, poucas páginas a seguir (p. 171) em
Semântica e Discurso, aclara as diferenças entre ambos. Enquanto
o pré-construído é “aquilo que todo mundo sabe” (conteúdo de
um sujeito universal, suporte da identificação, e o que todos veem
como evidente em um “contexto situacional”), a articulação pelo
funcionamento do discurso-transverso corresponde a “como todo
mundo sabe” (retorno do Universal no sujeito), “como dissemos”
(evocação intradiscursiva) ou até mesmo o “como todo mundo
pode ver” (universalidade implícita do humano).
Não obstante, há uma inter-relação entre ambos, conforme
podemos ver no excerto a seguir:
Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013
135
... o interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e
põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos
pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por
assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui como
‘sujeito falante’, com a formação discursiva que o assujeita.
(1995, p. 167, grifo do autor)
Dentre as várias questões que no quadro teórico da Análise
de Discurso ainda se encontram em aberto (senão todas; afinal,
como disse Pêcheux, “não há questões vencidas”), podemos citar
três mais atinentes ao que estamos aqui revisando: a interpretação de interdiscurso como pré-construído (Pêcheux parece-nos
explícito acerca dessa diferença); a interpretação de interdiscurso
como sinônimo de memória discursiva (ao que, pelos excertos por
nós escolhidos, é já facilmente dedutível termos posição diversa);
e a variação na interpretação de qual o sentido da discrepância
entre o pré-construído e o construído no enunciado. É o que brevemente discutiremos no tópico a seguir.
No que tange à primeira questão, optaremos por simplesmente evocar a “especificidade diferencial” referida por Pêcheux
acerca dos dois tipos de funcionamento do interdiscurso. Quanto
à segunda, recorremos a Courtine (1981), que introduziu a noção
de “memória discursiva” em Análise de Discurso. Para ele, a
“noção de memória discursiva diz respeito à existência histórica
do enunciado no interior de práticas discursivas regradas por
aparelhos ideológicos”. Courtine, que corrobora a concepção
pecheuxtiana de interdiscurso, ainda fala da “existência de uma
FD como ‘memória discursiva’ “ (2009, p. 105-106).
Na esteira dessa reflexão, aqui consideraremos memória
como um domínio tanto de uma FD quanto do interdiscurso.
Assim, temos que tanto o já-dito (pré-assertado, pressuposto)
de uma FD quanto o pré-construído são diferentes formas de o
sujeito enunciador lidar com a memória: tanto a que se encontra
em sua formação discursiva quanto a que se encontra alhures. A
memória funcionaria como
aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler,
vem reestabelecer os implícitos (quer dizer, mais tecnicamente,
os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos
transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição legível
em relação ao próprio legível (PÊCHEUX, 1999, p.52).
Se o interdiscurso é, por assim dizer, um domínio do discurso, consideraremos a memória como um domínio tanto do
interdiscurso quanto da FD, pois em um e em outra é ela que vai
estabelecer a relação de ambos com uma anterioridade. O caráter
de categoria analítica, dada a ela por Courtine, parece-nos preservado, pois – em vista de que um recorte temporal é um “corte
ideológico” (LE GOFF, 2003, p. 208) – somente na análise é que as
categorias de anterioridade e presente se podem produzir.
136
Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013
Já no tocante à terceira questão, pretendemos ser menos
parcimoniosos ao expor sobre ela. Para tanto, comecemos com a
seguinte afirmação:
a expressão ou as expressões que introduzem o objeto de referência restringem sua interpretação. O ponto importante é que
a restrição depende de um plano de organização da língua,
isto é, de uma articulação regrada forma-sentido. Percebe-se
bem a noção de pré-construído quando se a contrasta com
aquela do já-dito (e toda modalidade do dito fora da asserção:
pré-assertado ou pressuposto): o pré-construído qualifica a
forma da expressão na medida em que ela limita a interpretação, enquanto o já-dito depende do conteúdo (proposicional
ou nocional). (MARANDIN, 1994, p.131).
Aqui pensamos ter não apenas a reiteração da diferença
entre pré-construído e já-dito, mas também a condição indefectível sob a qual uma FD toma para si elementos do interdiscurso:
a partir de uma restrição de interpretação. Isso posto, fazemos
uma relação com a citada “objetividade material contraditória do
interdiscurso”. Por ser o interdiscurso um espaço intersticial, em
que uma FD dominante é determinada pelas demais, os objetos
dos quais ela se apropria como pré-construídos são objetos ou
elementos com significação maior do que ela pode suportar. Esses
objetos, malgrado remetam a um todo significativo – o conjunto
de possibilidades de significação que pertence ao interdiscurso –,
precisam ser recortados a fim de ingressar no campo do dizível
para uma dada FD.
Encontramos corroboração para esse raciocínio em Pêcheux
(1997a): “os objetos ideológicos são sempre fornecidos juntamente
com seu ‘modo de usar’, seu ‘sentido’, isto é, sua ‘orientação’” (p.
145). Esse “modo de usar” restringe, ou melhor: regula a ancoragem do pré-construído, ainda que nele não possam não reverberar
lugares outros de dizer, cujos indícios dão conta desse “impensado do pensamento”, ao qual se referia o autor. No entanto, tais
indícios são dissimulados, em virtude de a FD produzir e coligir
evidências de sentido.
Marandin disseca a eficácia desse funcionamento nos
seguintes termos, explicando que o pré-construído se instaura
“quando o diferencial interpretativo recorta uma diferença em
uma construção ideológica. A eficácia é então máxima, pois a
diferença se apresenta nas formas tais como a língua força a
interpretá-las” (1994, p.131). Collinot e Mazière corroboram tal
posicionamento, ao afirmarem:
Ora, se o pré-construído é esse “ponto em que se pega o interdiscurso”, reinscrição sempre dissimulada, no intradiscurso,
dos elementos do interdiscurso” (Denise Maldidier, 1990), é
sua natureza mesmo a que o faz mestre-organizador da constituição do corpus, lugar onde se tece “por baixo do pano” o fio
do discurso, construção de base que, sozinha, torna possível
Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013
137
o trajeto temático e o evento semântico. (COLLINOT; MAZIÉRE,1994, p. 189-190, grifo do autor)
Nesse sentido, parece-nos que o pré-construído é um
constructo teórico com dupla face: tanto remete para o interdiscurso (em cuja objetividade material contraditória, ele indicia a
disputa de forças entre diferentes FDs) quanto é apropriado e
ressignificado por uma dada forma-sujeito na linearização do
discurso. O “impensado do pensamento” que acompanha o efeito de pré-construído é dessarte administrado pela dissimulação
desse processo, bem como pelo discurso-transverso em que ele é
interpretado. Parece-nos que o pré-construído opera no domínio
de duas memórias: a do interdiscurso, cuja parte considerável
ele (de)nega; e a da FD, que ele atualiza. Em ambas, no entanto,
ao constituir o discurso, ele agita a rede de sentidos, produzindo
efeitos.
Em virtude de uma FD depender do seu exterior para
produzir sentido, não nos parece ser a melhor opção conjecturar
haver frases em que não haja efeito de pré-construído, sob pena
de termos de admitir duas consequências teóricas: (i) limitarmos,
nesse caso, a ancoragem do interdiscurso ao discurso-transverso,
o que equivale a dizer que o interdiscurso não forneceria sempre
os objetos ou elementos para a FD: em algumas vezes, limitar-se-ia
a linearizá-los por relações de implicação, temporalidade, etc. (ii)
tomarmos como possível que uma FD tenha posse completa de
seus objetos, o que equivale a afirmar que esses não responderiam
a um exterior.
Aceitas tais consequências, temos outras ainda mais sérias:
a (i) forçar-nos-ia a admitir a não regularidade do funcionamento
interdiscursivo: ele seria intermitente na sua relação com a FD (se
pensarmos que a teoria da AD prevê uma série de regularidades
– funcionamento metafórico e ideológico, deslizamento etc. –,
admitiremos uma região imprevistamente insular). A (ii), por
sua vez, ao velar os objetos de uma FD ao seu exterior, suporia a
claudicação do princípio da heterogeneidade/divisão/contradição.
O que estamos tendendo a crer aqui é, primeiro, que o
pré-construído não só é um constructo teórico que dá conta da
dupla face do sentido (inspirados em Pêcheux, 1999, diríamos ser
ele um “frasco sem exterior”), mas também que evidencia teoricamente os funcionamentos metafórico e ideológico do sentido e a
administração de uma dada interpretação. É a administração de
sua leitura que evidencia a possibilidade de ele ser sempre outro,
mas não qualquer um, aportando sob o signo da evidência em
uma FD.
Segundo, tendemos a crer que o pré-construído é indefectível em sua presença no discurso. Tanto maior sua eficácia quanto
mais em zona de invisibilidade ele estiver. Não causando o efeito
de estranhamento (ERNST-PEREIRA, 2009), ele encontra-se não
138
Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013
só dissimulado ao sujeito, mas também obliterado ao analista. Relembrando o célebre exemplo pêcheuxtiano – Aquele que salvou o
mundo morrendo na cruz nunca existiu –, em que a discrepância
é bastante evidente, consideremos duas alterações hipotéticas que
produzam respectivamente:
(a)Jesus nunca existiu.
(b)Aquele que salvou o mundo morrendo na cruz é um
exemplo para todos nós.
Se creditarmos o efeito de pré-construído meramente ao
ardil do discurso hegemônico de exigir a assunção da existência
de Cristo como condição sine qua non para vir a negá-lo – jogo
retórico tão requintadamente desmontado na reflexão pecheuxtiana –, a singela substituição por “Jesus” desmonta o construto.
Isso porque em (a) não há, entre os sentidos de “Jesus” e “existir”,
o paradoxo da montagem original (pista do atravessamento do
discurso outro). Nesse sentido, parece-nos que, embora o exemplo
escolhido por Pêcheux apresente uma flagrante discrepância, não
seja ela em si o pré-construído, senão rastro de sua emergência.
Já em (b), o problema teórico é outro, razão pela qual partiremos do que já foi discutido no parágrafo anterior. O elemento
de saber referido por “aquele que salvou o mundo morrendo na
cruz” não é um objeto construído no enunciado; conclusão aliás
incontornável caso admitíssemos a possibilidade de não haver
pré-construído. No entanto, a referência discursiva “Jesus” remete
a um interdiscurso no qual o discurso cristão se encontra em uma
relação de forças com sua exterioridade específica: os discursos
ateu e muçulmano, por exemplo.
Como elemento submetido à condição objetiva material
contraditória/heterogênea/dividida desse espaço – “Jesus” é
figura central no discurso católico, mas auxiliar no muçulmano
e ainda mera ficção no ateu –, esse pré-construído ancora no discurso já tomado pela forma-sujeito, que administra o seu sentido,
recortando do imaginário o que for dizível a partir do seu lugar
discursivo e situando esse resto em uma zona de invisibilidade,
embora o efeito de sua presença-ausente ali também produza
sentidos3.
O que temos, cremos, na frase alterada é somente a eficácia
ainda maior do pré-construído, que, dissimulando a discrepância entre dois domínios de pensamento, opera sob um efeito
de consenso e literalidade, a pleno serviço de um discurso que
tende à monossemia. Em outras palavras, um encaixe quase sem
decalagem.
Q u e v e d o ( 2 0 1 2)
desenvolve esse ponto
no que tange ao texto
visual.
3
2. Uma proposta analítica a partir de um enunciado
tautológico: “mulher é mulher”
Discutidos alguns pontos da teoria, podemos voltar aos enunciados idem per idem. Em primeiro lugar, apropriar-nos-emos
Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013
139
do princípio da dupla diferença, com o qual Pêcheux pensou a
sua prática de leitura. Em um enunciado do tipo X é X, temos
uma primeira diferença de identidade de X em relação a Y ou
Z. Assim, temos a convocação de um pré-construído “mulher”,
tomado do interdiscurso pela sua diferença em relação a “homem” ou “criança”. Esse termo “mulher” surge sob a condição
de evidência (“mundo das coisas”, “o que todo mundo sabe”) de
um contexto situacional: um consenso intersubjetivo mínimo do
que seja uma mulher.
No entanto, já aqui pensamos haver o “impensado do pensamento”: só reconhecemos “mulher” em oposição a “homem”
ou a “criança” por vivermos em uma formação social em que tal
distinção seja importante, produza sentido. O pré-construído,
malgrado ainda em um momento construído hipoteticamente e
no qual ainda não se encontre ancorado em uma FD específica, já é
previamente administrado em seu sentido. Já há um funcionamento ideológico recortando e “evidenciando” o sentido de mulher.
Na sequência da interpretação do que é X (que não é Y ou Z),
instaura-se um paradoxo: ao dizer que X é X e produzir um sentido para além do tautológico, X retroage a si mesmo, produzindo
o sentido de que X é não X. Ou seja, há uma ressignificação do
primeiro X pela ausência inoculada nele pelo segundo. Se “mulher
é mulher” produz o sentido de que mulher não seja mulher, mas
sim uma outra coisa, temos instaurada uma segunda diferença:
a de que X só não seja X sob a condição de sê-lo. Isso posto (e
admitido) provoca a admissão de uma grande diferença entre o
estatuto do sentido em AD em comparação ao estatuto do sentido
na lógica e ao valor saussuriano.
Em “mulher é mulher”, pensamos ter no primeiro termo
“mulher” a ancoragem de um pré-construído (“mulher, que todos sabemos o que é”) funcionando sempre-já ideologicamente,
porque imediatamente tomado pela forma-sujeito que colige as
evidências de sua significação, em um administração da leitura
a partir da linearização do pré-construído, ou seja da sua ressignificação por um discurso-transverso.
Tal ponto talvez fique mais claro a partir de um enunciado
não tautológico, como “Mulher de verdade torna-se mãe também”.
Nele, por exemplo, temos o (mesmo?) pré-construído “mulher”, que
vai sendo ressignificado pelas relações de implicação, condição,
temporalidade, hierarquia, partição e outras, dadas pelo discurso-transverso. Assim, “mulher” passa a significar uma partição
(o subgrupo das que, dentre as “mulheres”, são “mulheres de
verdade”); mulher passa a ser um grupo restrito que alcança uma
outra categoria (melhor, porque “de verdade”); o estatuto de mulher “de verdade” é condição para ser mãe e o implica; a condição
da mulher é estabelecida por uma relação temporal: antes se é
mulher de verdade, depois se torna mãe.
140
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Tornando ao nosso objeto, no enunciado idem per idem “mulher é mulher”, entretanto, temos um funcionamento metafórico
que entra em um aparente curto-circuito no significante. O que
se oferece ao leitor como um efeito de suspensão e lhe provoca
um estranhamento, no entanto, funcionará mais rápido e melhor
pela injunção à significação. Assim, o pré-construído “mulher”
logo encontra a si mesmo no fio do discurso já na condição de
uma evocação intradiscursiva ou retorno do Universal no sujeito
(“mulher” tal como sabemos). Esse retorno da forma-sujeito no
sujeito regerá o discurso-transverso, tanto por relações de implicação (mulher é mulher, na condição de se entender mulher como
x; mulher é mulher, o que implica x) ou de equivalência (mulher
é mulher, o que equivale a mulher ser x).
Sem essa remissão a uma instância maior e prévia (o interdiscurso, sob seus dois modos de funcionamento), não há produção de sentido. Assim como não há produção de sentido se não
houver uma tomada de posição do sujeito, que cesura o continuum
da discursividade e se constitui condição para tomada da palavra.
Como afirma Teixeira (2005), “isso que fala antes, em outro lugar,
não se diz todo”, pois “há algo no acontecimento que escapa às
redes de sentido já construídas”; “[...] o pré-construído [...] não se
totaliza, pois há aí um resíduo não integrável no simbólico (p.
181). Nesse resíduo, cremos, estão a falha e a falta.
Considerações finais
Com base no que apresentamos, esperamos haver, a partir
dos enunciados idem per idem, suficientemente defendido o gesto de
interpretação do pré-construído como especificamente diferente
de já-dito e como ubíquo (produzindo sentidos seja por efeito de
estranhamento seja por efeito de sua presença-ausência, quando
relegado à invisibilidade).
Em nosso entendimento, o interdiscurso funciona indefectivelmente a partir do concerto entre pré-construído e articulação
(efeito-transverso). Essa consideração parece aclarar-nos não só
a dependência do discurso a um exterior, o caráter de evidência
com que se produzem efeitos de sentido localmente, mas também
uma deriva, restos de sentido inalcançados pela administração da
leitura proposta pelo enunciador. Restos dos quais se diz alhures
não terem relevância, mas que revelam, e quiçá relevam, o sujeito
em que se realizam.
A fórmula X é X indicia, a nosso ver, justamente esse carrossel dos sentidos no qual somos “livremente convidados” a tomar
parte enquanto sujeitos, cumprindo a sina de andar mais rápido
(vendo a evidência que nos é dada a perceber) para não sair de
um mesmo lugar (de dizer).
Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013
141
Abstract
Based on the observation of the interrelationship
between the metaphorical and the ideological
functioning in idem per idem propositions –
which follow the “X is X” formula –, this paper
discusses the notions of preconstructed and
transversal discourse, as related to interdiscourse,
and their implications in reading practices. Such
functioning is characterized by the indefectibility
of preconstructed and by the relation established
with transversal discourses that explain both
evidence and floating meanings. It also considers
the difference between the already-said and the
preconstructed and the effects of estrangement
and invisibility which follow.
Keywords: Preconstructed; Transversal discourse; Metaphor; Ideology; Memory.
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Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013
143
Uma análise discursiva
de sujeitos com gagueira
Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo (UCP)
Resumo
Os estudos linguísticos e fonoaudiológicos tomam
a gagueira como uma manifestação de algo que se
dá no plano do corpo, ora significado como tensão
muscular, ora como respiração, produção de fala,
ou, ainda, como formação genética, um sujeito,
portanto, com uma “doença”. Ao percorrer as
discussões teóricas sobre a gagueira, lançou-se
um novo olhar sobre ela, sob a ótica discursiva,
com possibilidades terapêuticas na mesma abordagem. A partir da teoria e dispositivo analítico
da Análise do Discurso de linha francesa, fundada
por Pêcheux e desenvolvida por Orlandi e seguidores, pretendeu-se analisar o sujeito que é visto
no interdiscurso cristalizado pela sociedade como
sujeito-gago: aquele que é portador de uma patologia, inserido em formações discursivo-ideológicas
que o fazem mais gago. Operaram-se recortes
discursivos de dois sujeitos-gagos em processo
de atendimento fonoaudiológico, visto de forma
longitudinal. Considerando a regularidade do funcionamento do discurso e ancorando as análises
na interdiscursividade, ou seja, nos mecanismos
de constituição de sentidos, identificaram-se
certas formações discursivas materializadas no
discurso dos sujeitos em estudo e que representam
possibilidades teóricas e terapêuticas ao estudo da
gagueira. Afirma-se, assim, a gagueira como um
distúrbio de linguagem, diretamente relacionado
às condições de produção, com a indicação de
possibilidade terapêutica na mesma perspectiva.
A análise discursiva realizada mostrou evidente
mudança de posição de sujeito-gago para sujeito-fluente.
Palavras-chave: Gagueira; Discurso; Formações
discursivas.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013
1. Caminhos percorridos nos estudos sobre
a gagueira e o discurso
As publicações internacionais sobre a gagueira apresentam-nos uma heterogeneidade de hipóteses sobre sua origem,
contraposta a uma homogeneidade em sua caracterização. No
entanto, as abordagens convergem em um mesmo ponto: a gagueira é tomada como manifestação de algo que acontece no
corpo, entendido como tensão muscular, respiração, produção
articulatória, ou, ainda, formação genética.
Hoje, as propostas terapêuticas mais conhecidas seguem os
princípios da Psicologia Experimental, Social, da Filosofia fenomenológica e, ainda, da Biologia. Todas as teorias, evidentemente,
apresentam contribuições à clínica fonoaudiológica, na medida
em que, de seus lugares teóricos, operam alguma forma de circunscrição da gagueira. Muitas dessas abordagens, naturalmente,
fiéis à fundamentação teórica em que se apoiam, deixam escapar
a linguagem e, com ela, excluem o sujeito, mesmo entendendo que
ambos se encontram indissoluvelmente atrelados, pois sujeito
e linguagem se constituem mutuamente. Essa reflexão gerou
uma inquietação na pesquisadora que passou a compreender a
gagueira como um problema discursivo e, neste percurso, lançar
um novo olhar sobre a terapêutica da gagueira.
A quem se deve compreender? Ao sujeito-gago ou à linguagem patológica? Não convém separá-los. Há um sujeito que
fala, um sujeito constituído na/pela linguagem, inserido numa
sociedade pautada por valores ideológicos, que interpelam os
indivíduos enquanto sujeitos do seu dizer.
Acredita-se que a Fonoaudiologia necessita fundamentar
o seu fazer clínico, partindo de uma teoria linguística que lhe
dê suporte. Desta forma, alça-se a Análise de Discurso de linha
francesa, fundada por Pêcheux, nos anos 60 e desenvolvida por
Orlandi e seguidores, no Brasil, como teoria de sustentação para
analisar a gagueira e o sujeito-gago, assim como procedimento
analítico que comporá a base do processo terapêutico para esses
sujeitos. Neste sentido, a pesquisadora se afasta dos trabalhos
indicados na revisão dos estudos da área, que identificam a gagueira ao corpo e à fala, assumindo uma posição de circunscrever
o discurso como origem e lugar de apresentação e manutenção da
gagueira, sob a forma peculiar de efeito de interlocução e sentidos.
Neste estudo, será analisado o processo terapêutico de sujeitos-gagos, considerando a concepção discursiva, além de sistematizar os fundamentos teórico-metodológicos desta terapêutica.
Como já enfatizado, adota-se a Análise do Discurso de linha
francesa (AD), que permite a apreensão de uma visão ideológica
do discurso, conjugando os construtos teóricos de três regiões
do conhecimento: o Materialismo Histórico, a Linguística e a
Psicanálise.
146
Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013
A AD, entretanto, não dá conta de questões específicas da
gagueira. Obviamente, ela não teria mesmo que olhar o distúrbio
de linguagem, uma vez que não se propõe a isto. Na aquisição de
linguagem, há pais que interpretam seus filhos e eles adquirem
linguagem, configurando-se falantes ideais. E quando eles não
adquirem? E quando gaguejam?
A partir destas considerações, retorna-se à questão original,
marcada no início da discussão, ou seja, quem é o sujeito gago?
Certamente, a despeito dos estudos veiculados sobre a gagueira,
que insistem no controle do gago sobre a língua/linguagem,
compreendendo-o como um indivíduo centrado, racional e detentor de uma identidade única, estável e coerente, i.e., como
sujeito psicológico, estes sujeitos permanecem em suas posições
de gagos, ou melhor, gagos sob controle, porém continuam a se
declarar gagos. São sujeitos que apresentam, de antemão, a certeza
da gagueira e que, antes mesmo de falarem, já estão certos de que
a palavra será repetida, bloqueada, prolongada.
Assim, propõe-se aqui uma nova concepção de sujeito, o
sujeito da AD – o sujeito assujeitado à língua, que o conforma – o
efeito-sujeito. Neste sentido, o sujeito-gago é constituído assim
na infância, em suas relações discursivas, conforme atestam Azevedo (2000; 2006); Azevedo; Freire (2001); Petrusk; Azevedo; Lima
da Fonte; Cavalcanti (2011); Cavalcanti; Azevedo; Petrusk (2011).
Considerando os pressupostos teóricos da AD, que vê o sujeito em uma formação ideológica/ discursiva, entende-se que o
sujeito-gago ocupa diferentes funções-sujeito a depender de como
se posiciona frente ao seu interlocutor. Um professor pode dar aulas fluentemente, porque ocupa uma posição de quem sabe e tem
a ensinar e, em outra condição de produção, como a de participar
de uma reunião de pais e mestres, gaguejar muito. Nesta posição,
o sujeito identifica o outro como alguém que o julga como gago e
prevê os momentos de repetição, bloqueio e prolongamento antes
mesmo que aconteçam.
2. Caminhos metodológicos para enxergar o sujeito-gago
Para a apreensão das formações discursivas do discurso dos
sujeitos-gagos e propor-se uma possibilidade terapêutica, optou-se
pela Análise do Discurso de linha francesa (AD), que foi teoria e
dispositivo de análise.
Assim, conduziu-se a pesquisa a partir de uma análise
qualitativa da produção discursiva de dois sujeitos (Sujeitos 1 e
2), sendo um do sexo feminino e outro do sexo masculino, com
queixa e diagnóstico de gagueira, em processo de terapia fonoaudiológica com a fonoaudióloga-pesquisadora.
Para a análise discursiva, foram coletados dados referentes
às sessões semanais, que foram áudio-gravadas e, posteriormente,
transcritas literalmente. As sessões ocorreram em consultório
particular e tiveram duração de trinta minutos cada, compreenNiterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013
147
didas em um período entre quatorze e dezessete meses. Assim,
recortes discursivos foram constituídos, de forma longitudinal,
a partir do corpus obtido nos registros.
Nas sessões fonoaudiológicas, os sujeitos falavam livremente, a partir de suas próprias reflexões acerca de suas queixas,
em situações diferentes do processo terapêutico. A gagueira foi,
então, estudada a partir da ótica discursiva, tomando-se por base
estudos anteriores (AZEVEDO, 2000; AZEVEDO; FREIRE, 2001;
AZEVEDO, 2006).
Quanto às considerações éticas, foram utilizados, neste
estudo, uma Carta de Informação sobre a pesquisa e o Termo de
Livre Consentimento e Esclarecimento, observando-se a resolução
196/96. O presente projeto foi encaminhado para análise do Comitê Científico e de Ética da Universidade Católica de Pernambuco,
tendo sido aprovada a sua execução, de acordo com o parecer CEP
nº 008/2006. Ressalte-se, ainda, que a privacidade dos sujeitos que
optaram por participar da pesquisa foi inteiramente garantida,
visto que os sujeitos receberam nomes fictícios.
3. No caminho do discurso: um processo
de terapia fonoaudiológica
Os resultados aqui apresentados dizem respeito aos recortes
discursivos extraídos das sessões realizadas com os dois sujeitos,
representativos de três momentos do processo terapêutico: a
entrevista inicial e dois recortes de sessões posteriores. A partir
deste estudo, foi possível acompanhar, de forma longitudinal, o
discurso dos sujeitos até o processo de alta fonoaudiológica, ou
o momento terapêutico em que se poderia discutir o desvinculamento do sujeito das sessões fonoaudiológicas.
Sujeito 1: a história e o discurso de Fernando
na entrevista fonoaudiológica inicial
T1: Qual a sua queixa? Por que você me procurou?
F1: É que e_u sou gago desde pequeno. A_ntes não me incomodava
não, mas agora, é dif_ícil namorar, f_alar com uma menina, no
colégio também...
T2: No colégio?
F2: É que eu gaguejo muito com os meus colegas, porque eles tiram
onda, visse? Aí, eu f_ico nerv_oso, ansioso e gaguejo. Com painho,
eu também ga_guejo muito, é porque ele fica brigando comigo, “fale
direito, Fernando!”, mas já com mainha, eu quase não gaguejo.
T3: Com a sua mãe, você gagueja pouco...
F3: Com o meu irmão mais velho, eu também gaguejo muito, mas com
a minha irmã mais nova do que eu, eu me dou muito bem e quase
não gaguejo.
T4: São três irmãos?
F4: Não. São dois: um mais v_elho e uma mais nova...
148
Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013
T5: F5: T6: F6: Três, com você.
É, comigo três.
E por que você acha que gagueja, Fernando?
Por que eu gaguejo? Sei não... eu sou muito tímido e também f_alo
muito rápido, visse? Sou m_uito nervoso também... acho que é isso.
T7: Os seus pais dizem o quê? Quando iniciou a gagueira? Você sabe?
F7: Meu avô, pai de painho, é gago. Eles dizem que desde pequeno eu
gaguejo, mas era menos... agora, está pior do que v_oinho... está
muito forte.
T8: Forte?
F8: É. Forte, po_rque tem horas que eu não consigo falar nada... trava
tudo... a voz fica presa.
T9: Presa onde?
F9: Fica presa no pescoço... e não sai som, visse?
T10: Quando acontece isso? Da sua voz ficar travada?
F10: No telefone, sempre. Eu odeio falar no telefone. Não atendo nunca... o meu c_elular é quase virgem. S_abe por que ele é só quase
virgem? Po_rque às vezes, eu ligo pra operadora, que é grátis e
fico ens_aiando minha f_ala com eles. Inv_ento que estou com um
problema e eles f_icam falando. Quando eu preciso falar, f_injo que
estou pensando e me_xendo no aparelho...
T11: Puxa! Isso é bem interessante!
Você me falava que o telefone é uma condição de mais gagueira para
você. Há outras situações assim? Que parecem levá-lo a gaguejar
mais?
F11: F_alar no interfone, que é a m_esma coisa... f_alar com os professores, dar inf_ormação... é o elemento surpresa. Apresentar um
trabalho no colégio... eu nem vou lá na frente... posso até tirar zero
que eu não apresento.
T12: Existem palavras que você já sabe que vai gaguejar?
F12: Muitas palavras que eu nem f_alo, porque já sei que vai travar.
Se começar com “p”, com “c”, “q” ou com “t” eu não falo mesmo.
Tem também o “s”, o “tr” , o “pr” e o “br”...
T13: Me dê alguns exemplos...
F13: Sei não... eu s_ei que essas letras me fazem gaguejar. Ó... gaguejar...
tem o “g” também... toda vez que eu falo essa palavra também
trava.
T14: Sei. Na palavra “gaguejar”. E aí, o que você faz para não falar a
palavra que você já sabe que irá gaguejar?
F14: Ah, aí, eu troco a pa_lavra por outra mais fácil. Se eu tiver que
atender o telefone, não falo alô... f_alo “pronto”, ou então “oi”. Eu
também tenho um bizu, que é bater na perna e piscar os olhos com
força... acho que ajuda também...
T15: Ajuda?
F15: Não? Tu acha que não? Às vezes, parece que ajuda, visse?
T16: Bom, a gente vai poder discutir, bastante, tudo a respeito da gagueira nas próximas sessões...
Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013
149
Fernando é um adolescente de 15 anos de idade que nos
procurou por telefone. Consideramos desnecessário convidar seus
pais para uma entrevista, já que a procura pelo atendimento partiu
do próprio Fernando. O trabalho fonoaudiológico foi realizado
apenas com ele e a família foi falada a partir do que era trazido
em seu discurso, mas não esteve representada diretamente.
Em F1, Fernando relata que se identifica como gago desde
pequeno e esclarece a dificuldade nos relacionamentos sociais, que
parece estar atrelada à gagueira: não pode namorar ou conversar.
O pai e a escola parecem ser condições de produção do discurso que geram mais efeito de gagueira (F2). Ambos são explicados por Fernando: o discurso autoritário do pai e a antecipação
no discurso dos colegas da escola (tiram onda). O irmão mais
velho parece ocupar a posição de gerador de gagueira, em função
da representação do pai, pelo lugar social em que está inserido.
Fernando considera que a gagueira é mantida por três
fatores: timidez, velocidade rápida da fala e nervosismo, como
afirma em F6.
Em F7, a hereditariedade vem à tona, quando o adolescente
identifica o avô paterno como sendo gago. Este é um discurso
que está nas formações imaginárias da família, que mantém um
interdiscurso cristalizado: a gagueira é hereditária, geneticamente
herdada. Fernando reproduz o discurso que focaliza a concepção
genética da gagueira. Neste momento, existe o estigma inevitável:
é gago como o avô (e será sempre gago). A questão genética na
gagueira apresenta, atualmente, vários estudos, porém não são
conclusivos. Salientamos, ainda, que, neste segmento, há uma
referência a estar pior do que o avô.
Fernando localiza a gagueira no seu corpo e, em seu dizer,
há um domínio da mesma sobre o sujeito. A gagueira o aprisiona
e ele diz não conseguir falar. Ele é silenciado por esta submissão
a uma tensão no pescoço, como assinala em F8 e F9. Ao assumir a
gagueira como algo do corpo, este sujeito assume também, como
aceitação, a sua submissão.
O telefone é outra condição de produção geradora de gagueira, que o encaminha ao silenciamento, como podemos confirmar
em F10. Há o desejo de liberar a fala e Fernando ensaia algumas
possibilidades com a operadora. Apesar disto, ele manipula a fala,
fingindo que não é gago. O “alô” é substituído por “pronto”, ou por
“oi”, para que seja liberado. Entendemos que, no nível fonológico,
inclusive, “alô” é uma palavra mais simples do que “pronto”, que
apresenta um grupo consonantal, identificado por ele, inclusive,
em F12, como uma possibilidade de gagueira. Ao dizer “pronto”
ou “oi”, no lugar de “alô”, o sujeito-gago se distancia do sujeito-censurador que se coloca do outro lado da linha. O que, na verdade, é
significativo de gagueira não é a palavra “alô”, mas a condição de
produção: falar ao telefone. Ao pensar em se “expor” ao telefone
reproduzindo o “alô,” que é próprio da formação imaginária do
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uso do telefone, o sujeito antecipa a presença do outro (ouvinte/
interlocutor) que o vai censurar. É uma situação semelhante a que
o leva a gaguejar diante do pai e do irmão mais velho. Observemos que, diante da mãe e da irmã, onde há não-censura, o sujeito
não se apresenta como gago. O que o faz gaguejar diante do pai
e do irmão é a relação de forças entre eles, considerando-se aí as
condições de produção do discurso. Onde há não-censura, não
há gagueira. Onde há censura ou possibilidade de censura, há
gagueira. Sendo mais clara, a antecipação gera no locutor o efeito de que a sua representação é inevitável: se ele prende o outro
em uma posição de quem o julga como gago, o que pode não ser
verdade, ele gaguejará, porque antes de falar, já tem certeza de
que falhará.
Fernando relata, ainda, outras condições de produção que o
encaminham a mais gagueira, como utilizar o interfone, apresentar trabalhos, falar com professores (relação de força – o professor
é hierarquicamente superior) e dar informações a alguém. Há o
que ele chama de “elemento surpresa”, ou algo inesperado que
impossibilita a sua fala, como podemos inferir de sua afirmação
em F11.
Além disso, afirma não conseguir apresentar trabalhos na
escola. Salientamos que a escola já é marcada como geradora de
gagueira, pelo fato de os colegas “tirarem onda”, como podemos
constatar em F2. Ao mesmo tempo, a escola é a instituição representante da correção, formação, com valor ideológico de censura
pela presença do professor-censurador, tal como afirma Foucault
(1996, p. 44): “todo sistema de educação é uma maneira política
de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os
saberes e os poderes que eles trazem consigo”.
Em F12, F13 e F14, há o discurso da impossibilidade de dizer.
Fernando lista várias letras que, a priori, está certo do fracasso e
permanece aprisionado na previsibilidade. Em F14, ele conta o que
faz para manipular a certeza da falha: substitui palavras consideradas difíceis, como alô (que troca por “pronto”, na ilusão de que
é mais fácil) ou utiliza estratégias que o levam a fugir do dizer,
como bater na perna e piscar os olhos com força, acreditando que
estas o ajudam a liberar a fala. Fernando não está tão certo desta
facilitação, uma vez que a nossa interferência, em T15, o desloca
para a negativa do seu ato, no segmento posterior. Assim, ao questionarmos a sua afirmação de que estratégias são facilitadoras do
discurso, demonstramos estranhamento, através da devolutiva
do seu dito – ajuda? Imediatamente, ele se desestabiliza, nega a
afirmação, já não parecendo tão seguro da utilização, em F15: não?
Tu acha que não? Às vezes, parece que ajuda (...).
Sujeito 1 - Fernando - Recorte discursivo 1
F16: Telefonar ainda não dá. Eu penso assim: “alô... eu quero falar com
tal pessoa e tal, tal, tal...”, mas na hora, eu não ligo.
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T17: Mas por que você precisa planejar o que quer dizer?
F17: Sei não... a_cho que pra me dar s_egurança mesmo.
T18: E planejar te dá segurança?
F18: Planejar? Não, visse, porque eu nem consigo ligar...
T19: Então, por que você não tenta telefonar para alguém, sem planejar
o que vai ser dito? A fala é espontânea. Ela precisa ser espontânea.
F19: É, eu vou tentar. Sabe outra coisa? Tem uma m_enina da minha
sala que eu estou a fim e estou pensando em chegar junto, né, pra
v_er se rola...
T20: E por que não faz isso?
F20: Tu acha? E o medo?
T21: Medo? Medo de quê?
F21: Medo de gaguejar. M_edo de querer falar e não s_air nada e a
menina ficar tirando onda da minha cara...
T22: Essa antecipação da situação é que complica, né? Ter medo, ensaiar
o que vai falar, não ajuda nada... tente permitir a sua fluidez...
deixe sair a sua fala... sem previsão de que vai errar, de que não
vai conseguir... a grande questão é: LIBERE a sua fala! E aí, você
se libera também...
O recorte discursivo 1 é marcado pelo dizer da impossibilidade: telefonar e aproximar-se de uma menina são atos submetidos ao medo de gaguejar (F21).
Fernando aprisiona-se na previsão do erro e no planejamento da sua fala, no intuito de ter segurança no dizer, ao mesmo
tempo em que, ao ser confrontado com o próprio discurso, em
T18 e F18, nega a necessidade da programação prévia. Fernando
está aprisionado ao discurso que “padroniza” a gagueira como
uma doença e que por ser censurado, criticado, discriminado, faz
o sujeito-gago pensar que pode prever o seu erro, o que o faz mais
gago ainda. Portanto, podemos ver que são as condições de produção do discurso que inserem o sujeito na posição de sujeito-gago.
A gagueira é, portanto, um distúrbio de linguagem, em que o
discurso da doença pode ser trabalhado pelas vias discursivas.
O fato de desejar conversar com a menina e evitar a aproximação, considerando que gaguejará e ela “tirará onda” dele, configura-se como a antecipação, presente nas condições de produção
do discurso, que se intensifica no discurso do sujeito gago. Antes
que aconteça, o sujeito já antecipa que os outros rirão da sua gagueira, conforme discutido anteriormente.
Sujeito 1 - Fernando - Recorte discursivo 2
T23: O que você tem para me contar sobre esta semana?
F22: Eu estou muito bem, visse? Meu pai veio conversar comigo e disse
que_ todo mundo está me achando muito bem... f_alando bem e
tal.
T24: É mesmo? E você, o que acha?
F23: Eu também acho isso. Eu/eu não estou mais me preocupando com
a minha fala e/e nem planejo mais nada. Falo e pronto. Outro dia,
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eu tinha que ligar para um amigo meu. Comecei a ensaiar... “alô,
quem está falando?...” Desisti e pensei “não vou ensaiar nada!”
Peguei o telefone, liguei e falei super bem.
T25: Que ótimo, Fernando! É isso mesmo... o caminho é esse!
F24: É. E também, contei o meu assalto lá em casa e pros meus amigos
e quase não gaguejei.
T26: Eu me lembro que você dizia ser difícil contar um caso... que era
mais difícil, né?
F25: Agora, nada está mais difícil, porque eu estou parando de ficar
prevendo, com medo das palavras, com medo de gaguejar...
Após quatorze meses de terapias fonoaudiológicas semanais, não consecutivas, com um intervalo de dois meses de férias,
Fernando está vivenciando um processo de mudança da posição
de sujeito-gago para a de sujeito-fluente.
Em seu discurso, o planejamento da fala está se esvaindo e
dando lugar a uma linguagem bem mais espontânea e confiante.
O pai, grande gerador de gagueira no discurso de Fernando,
anteriormente, é agora colocado na posição de quem lhe traz boas
notícias sobre a sua fala, conforme podemos constatar em F22, ao
anunciar que é o pai quem lhe diz que todos estão percebendo a
sua evolução na linguagem.
Os ensaios, tão frequentes outrora, vêm sendo abandonados
com determinação, como relatado em F23. Além disso, contar
histórias, condição de produção geradora de gagueira anteriormente, não impede mais a sua linguagem, que vem fluindo,
sem previsões.
Sujeito 2: a história e o discurso de Amélia
na entrevista fonoaudiológica inicial
T1: Como eu posso ajudá-la?
A1: O meu problema é/é/é/é a minha gagueira. Eu gaguejo muito e
is_so me atrapalha muito.
T2: Atrapalha?
A2: Atrapalha. Atrapalha muito. É/é/é atrapalha no meu trabalho,
nas minhas relações/relações com os amigos também... atrapalha
em tudo... eu fiz faculdade de é/é/é Administração de Empresas e
trabalho em uma firma, mas eu acho que sempre passo insegurança
nas reuniões por causa da gagueira. E já/já tem algumas palavras
que eu já/já sei que vou gaguejar... meu nome também eu nunca
consigo dizer. Administração, eu nunca consigo dizer também...
T3: Agora, você não gaguejou nesta palavra.
A3: Foi, mas/mas eu sempre gaguejo e já procuro evitar, tudinho...
T4: Como?
A4: Como? U_sando tiques, substituindo por outra, mas às vezes, não
dá para evitar, né? Administração mesmo, não dá...
T5: Desde quando você gagueja?
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A5: Ah! Desde que eu me entendo por gente... desde/desde criança.
Mainha diz que eu já comecei a falar gaguejando: ma-ma-ma-ma;
pa-pa-pa-pa. Ela/ela mandava eu falar devagar, respirar e me_lhorava quando eu era criança. Eu já procurei fono duas vezes, uma
com quatorze anos, fiz os exercícios e acabei deixando e outra, com
vinte e três anos. A última fono, eu/eu/eu fiquei três anos e tive
alta e/e/e aprendi a controlar a gagueira. A fono me disse que eu
estava ótima e tudo. Mas/mas eu não acredito nesse controle não,
porque eu acho que a gente não consegue controlar a fala quando
está nervosa. E eu/eu/eu também tenho muitos tiques, tudinho.
Minha perna não pára de se mexer, aperto muito os olhos e/e/e/e
fecho as mãos com força.
T6: E por que você precisa fazer isso?
A6: Por quê? É/é/é/é que dá uma sensação de ajuda na fala, tudinho.
A minha fono é/é/é dizia que ajudava a falar, mas ela também não
gostava que eu usasse não... ficava batendo palmas para eu deixar
de usar tudo.
T7: É um condicionamento...
A7: É, mas não adianta nada. Quando vem o nervosismo, aí, pronto...
T8: E você já fez algum outro tipo de terapia?
A8: Terapia? Fiz é/é/é Psicologia desde criança. Depois, parei e fiz
mais duas vezes, mais duas vezes, mas cansei, porque a gente fica
falando sozinha lá. Eu não gosto não. Acho uma perda de tempo,
perda de tempo...
T9: E o que você quer, agora?
A9: O quê? Eu é/é/é quero melhorar dessa é/é/é gagueira. Eu não estou
esperando ficar curada, porque eu não acredito que tenha cura, mas
eu é/é/é preciso melhorar, é, falar melhor...
T10: Você diz que não acredita em cura. O que é a gagueira, para você?
É uma doença?
A10: Doença? Acho. Acho que é uma é/é/é doença incurável, mas que
pode é/é/é melhorar com exercícios.
T11: É? Que tipo de exercícios?
A11: Que tipo? É... exercícios de é/é/é respiração, que ajudem a dar mais
profundidade respiratória, exercícios de língua, tem o de lábios...
T12: Então, você acha que tem dificuldade respiratória? E alguma
alteração na estrutura da língua, dos lábios?
A12: Se eu acho? Não. Quer dizer, é/é/é a respiração, pode ser, porque eu
sinto que falta ar, falta ar, quando eu falo, mas os é/é/é exercícios de
estalar a língua, vibrar, colocar para um lado e para o outro, esses
eu nunca é/é/é achei que adiantavam não... mas fazia, visse? Fazia
bem certinho na fono e em casa...
T13: Bom, eu sigo uma proposta bastante diferente desta a que você vem
sendo submetida (...)
A13: É. Quando eu leio, eu também não gaguejo... eu adorava ler na
faculdade, no meio de todo mundo, porque eu leio muito bem.
T14: É mesmo? E você sabe que muitas pessoas, quando lêem, gaguejam?
Muitas vezes, até mais do que quando falam?
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A14: É? Pois para mim, acontece é/é/é o oposto. Eu leio muito bem. Eu
adoro ler, desde pequena.
T15: Provavelmente, você estudou em uma escola que valorizava a sua
leitura...
A15: Foi. Eu estudei em uma escola muito é/é/é aberta, daquelas que ensinam o aluno a ser crítico. A gente lia os livros que a gente queria
e depois fazia teatrinho sobre os livros. Era muito boa a escola. Só
era difícil falar com os amigos, com os professores... ler, não. Ler
sempre foi fácil.
T16: E por que era difícil falar com os amigos e professores?
A16: Ah! O de sempre, tá? A gozação é/é/é inevitável depois da gagueira.
T17: Que talvez você já antecipasse que aconteceria... mesmo que não
acontecesse...
A17: Não sei...talvez... mas a discriminação é grande mesmo...
Amélia é uma mulher de 28 anos, com história de gagueira
desde a infância. É formada em Administração de Empresas
e no momento em que procurou a pesquisadora, cursava uma
pós-graduação na área. Trabalha em um escritório e realiza funções relacionadas à sua formação, porém esquiva-se de reuniões,
onde necessite falar (e mostrar-se sujeito do seu dizer).
Amélia já fez outros tipos de terapia fonoaudiológica e psicológica, como indica nos segmentos A5 e A8, em que afirma não
terem gerado o efeito esperado. A proposta terapêutica associada
à Psicologia Experimental, cujo maior representante é Van Riper
(1973; 1982), nos ofereceu uma melhor compreensão do distúrbio
“gagueira”, na medida em que o autor descreveu as possibilidades
etiológicas e semiológicas. Por outro lado, as condutas terapêuticas
que derivam desta abordagem têm, no condicionamento operante,
seu principal pilar e, no caso da gagueira, esta permanece no
estatuto do treinamento, enquanto o sujeito – neste caso, Amélia –
considera-se insatisfeita com a sua fala, como relata em A1: O meu
problema é a minha gagueira e em A5: “eu não acredito nesse controle
(...) a gente não consegue controlar a fala quando está nervosa.”
Da mesma forma, em A9: “eu tive alta” (...) “a fono disse que eu
estava ótima” (...) “eu quero melhorar dessa gagueira”. Se ela precisa
melhorar, há uma doença na fala, o que conduz a uma Formação
Discursiva (FD), com a qual Amélia está identificada: a gagueira é
algo marcado no corpo (nervosismo e tensão corporal).
Amélia gagueja desde muito pequena e a mãe interferia
diretamente na sua fala gaguejada, solicitando que ela falasse
devagar e respirasse. Este tipo de atuação constitui um discurso
autoritário, de acordo com os fundamentos de Orlandi (2007; 2011),
uma vez que não há reversibilidade possível, já que a criança não
tem meios de contradizer a mãe ou de localizar o que está errado
em sua fala. Desta forma, não tendo possibilidades de se deslocar
para a posição sugerida, a criança pode passar a fazer tentativas
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de modificação na fala, utilizando estratégias, na tentativa de falar
melhor ou adiar o aparecimento da gagueira.
Em A2 e A3, Amélia afirma existirem palavras proibidas,
uma vez que, nelas, já há a certeza prévia do erro. Identifica
duas rapidamente: seu nome e a palavra administração, seu curso
concluído e, hoje, sua profissão. Geralmente, o sujeito gago diz ter
dificuldades com as palavras mais usuais no dia-a-dia.
No segmento A5, Amélia afirma apresentar tiques corporais,
que considera oferecerem uma ajuda na liberação da fala (A6). Na
verdade, ela utiliza recursos corporais para esconder a gagueira,
porém eles a fazem mostrar-se mais gaga, na medida em que
são visíveis ao interlocutor e interpretados como características
de insegurança e tensão corporal, como atesta Friedman (2004).
Amélia acredita que a gagueira seja uma doença incurável,
que pode melhorar com exercícios (A10), porém afirma não confiar
nos mesmos, o que estabelece uma relação contraditória em suas
afirmações.
Em T13, a pesquisadora procurou esclarecer a sua proposta
de trabalho, diferente das trabalhadas por ela, marcando a ótica
discursiva como possibilidade terapêutica. Assim, afirmou-se que
esta nova forma de ver a gagueira não trabalha com o controle de
fala, na medida em que prever e tentar corrigir a fala antes que ela
aconteça, já é algo que o sujeito-gago realiza anteriormente à terapia (e sem a necessidade desta). A proposta discursiva pretende
levar o sujeito à mudança efetiva na posição de sujeito-gago à de
sujeito-fluente, considerando-se, naturalmente, a fluência como
limitada e não-ideal, sujeita a falhas, conforme salienta Scarpa
(1995; 2012).
A discussão sobre condições de fluência gerou o efeito de
intervenção de Amélia, em A13, que trouxe um novo e importante dado: na leitura, ela não gagueja. Amélia se percebe como
leitora eficaz, que lê muito bem. Provavelmente, o tipo de escola
que frequentou valorizava a criticidade dos alunos, o que auxiliou na formação de uma autoimagem de boa leitora, conforme
atesta Menezes (2003). Estes argumentos podem ser inferidos a
partir de Friedman (1994; 1996; 2004), que considera existir uma
ideologia do bem falar, na sociedade. Assim, é esperado que todas
as pessoas falem bem e corretamente. Quando o sujeito gagueja,
carrega consigo uma autoimagem de mal falante, formada ainda
na infância, considerado um estigma socialmente marcado.
Ainda em relação à questão social, Amélia identifica, em
A16 e A17, a discriminação e a gozação inevitável como impedimentos à sua fala com amigos e professores. Este também é
um discurso que se repete na clínica com sujeitos-gagos. A antecipação, presente nas condições de produção do discurso, pode
ser introduzida, neste momento, como um forte argumento ao
silenciamento do sujeito, que elabora representações imaginárias
do discurso do seu interlocutor.
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Sujeito 2 - Amélia - Recorte discursivo 1
A18: Eu é/é/é fui falar no telefone é/é/é com uma amiga e gaguejei muito.
T18: Por quê? Falar ao telefone é uma condição de produção que gera
gagueira?
A19: É. Se/se/se alguém ligar pra mim, eu atendo e/e/e falo bem, mas eu
acho que ligar é pior, porque se não ensaiar, tem que ficar gaguejando e/e/e a pessoa fica chateada de ficar ouvindo a gente gaguejar...
T19: Bom, eu vejo duas coisas do seu discurso. A primeira é: por que
ensaiar a fala? Precisa ensaiar? A segunda é... como é que você
sabe que a pessoa fica chateada por ouvi-la gaguejar?
A20: Porque/porque gaguejar é hilário para quem ouve...
T20: Bom, isso é o que você acha e a projeção que você faz do seu interlocutor. Não é fato, não acha? E por que é necessário o ensaio?
A21: Dá mais segurança, eu acho. Éé/é/é o medo de falar errado.
T21: Mas falar precisa ser espontâneo, não acha? Não se pode ensaiar
uma fala, a não ser em situações de apresentação, que, mesmo assim,
muitas vezes, não ficam naturais... tente simplesmente, falar... sem
planejar. O medo de falar errado está levando você a prever. O que
é o erro na fala? A gente erra sempre... é natural. A previsão do
erro leva à gagueira. Você não acha?
A22: E também, é/é/é essa semana, eu conversei com a minha professora
do MBA e, antes, é/é/é eu passei um tempão ensaiando o que eu
iria perguntar a ela. Resultado: eu analiso é/é/é essa conversa como
“muito gaguejada”. Fiquei foi triste!
T22: E como você analisa a etapa anterior à conversa? Aquela em que
você ensaiou o que iria dizer?
A23: Não. Talvez tenha sido por isso é/é/é que a conversa não foi boa.
Mas já é/é/é/é um hábito, tá? Eu é/é/é estava observando uma
colega minha do curso e vendo que é/é/é ela também gagueja, mas
só que é/é/é ela não está nem aí para a gagueira dela e fala muito,
com todo mundo, faz pergunta na sala, tudinho.
T23: Pois é. É aquela estória que a gente já conversou da gagueira
natural. Todo mundo gagueja, né? E o que faz a gente gaguejar?
Muitas vezes, a própria língua, no sentido de código linguístico,
faz a gente tropeçar na fala. Uma palavra extensa, pouco usual, em
um contexto diferente, por exemplo, leva a hesitações, a repetições,
a inabilidade com aquela palavra. A diferença é que na gagueira
natural, não há previsão e o sujeito só percebe a gagueira depois
que ela acontece, entendeu? Na verdade, falar é um ato complexo,
porque veja bem... junto com a combinação de sons em palavras,
você também faz a seleção de palavras, ou seja, você tem possibilidades de sinônimos para uma palavra e, inconscientemente, você
seleciona um, que vai funcionar naquele contexto. O que acontece?
Muitas vezes, há um erro nesta seleção, ou você quer uma palavra
diferente e, aparentemente, ela não chega, e por aí, vai...
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Nos segmentos A18 e A19, telefonar a alguém é uma condição de produção geradora de silenciamento, a não ser que haja
um ensaio. Já receber um telefonema representa uma condição
possível, uma vez que dispensa o planejamento. Novamente, a
antecipação do interlocutor aparece como impedimento para a
fluência, uma vez que Amélia afirma que o ouvinte se aborrece
ao ouvi-la gaguejar e, ainda, em A20, atesta que “gaguejar é hilário
para quem ouve”. Isto é o que ela antecipa do outro, mas que nem
sempre está no outro-interlocutor.
Amélia considera que necessita estar submetida ao planejamento da fala, porque este lhe dá mais segurança (A21; A22).
Ao mesmo tempo, ao refletir sobre a conversa com a professora,
quando fez uso da fala ensaiada, analisa como um momento de
muita gagueira, o que lhe trouxe uma consequente tristeza. Neste
momento, ela interpreta que não há uma relação direta entre
planejamento e fala fluente, mas, ao contrário, o ensaio conduz
ao aprisionamento à forma da fala e gera mais gagueira.
Em A23, Amélia relata a observação de uma colega do curso, que enfrenta as mais diferentes situações, sem se preocupar
com a gagueira que é mostrada. No segmento T23, enfatiza-se a
gagueira natural, descrita por Friedman (1994; 1996; 2004), como
sendo algo bastante frequente, efeito das falhas e imperfeições da
própria lingua(gem).
Sujeito 2 - Amélia - Recorte discursivo 2
A24: Uma coisa boa... eu fui pegar um DVD numa locadora e o cara
disse que eu estava devendo cinco reais. Eu disse que não estava
devendo e defendi o meu ponto de vista, sem gaguejar. Eu fiquei
nervosa, mas não fiz previsão do erro e falei muito bem.
T24: Não teve tempo de fazer previsão...
A25: Não. Até poderia ter feito previsão, mas eu não fiz e falei muito
bem.
T25: Isso é ótimo, porque mostra para você mesma que você fala bem,
sem problema e que não é preciso ficar submetida à forma da fala...
ao contrário, se você se prende à forma, gagueja, porque a fala deixa
de ser algo natural...
A26: Isso foi muito bom mesmo. Agora, tem outra coisa... eu estava com
umas amigas ontem e eu vi que eu gaguejei. Eu não estava fazendo
previsão, mas gaguejei um pouco.
T26: Mas a gente gagueja mesmo. O que eu acho que você precisa diferenciar é o que é a gagueira da previsão, ou seja, aquela que vem
da certeza do erro, vista previamente... aquela que antes de você
falar, já tem certeza de que vai gaguejar, daquela gagueira que é
natural, que você só percebe depois de ela acontecer. Essa última
ocorre porque a fluência é relativa, a língua nos prega peças, faz a
gente tropeçar... todo mundo gagueja, né?
A27: Foi essa mesmo: a natural. Eu não previ e, simplesmente, gaguejei.
Acho até que ninguém notou... só eu.
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Após dezessete meses de terapia semanal, com dois períodos
de férias mensais, Amélia apresenta uma linguagem mais solta e
espontânea. Ainda não discute a alta terapêutica e afirma necessitar dos encontros semanais, porque lhe transmitem segurança
e bem-estar. Já percebe os seus avanços na linguagem e enfrenta
situações, antes consideradas proibidas, como defender o seu ponto
de vista, em A24.
Sobre a previsão do erro na linguagem, Amélia registra dois
momentos em que essa poderia ter ocorrido, mas não aconteceu,
como os relatados em A24 e A26. Em A27, ela já antecipa do outro
a observação da sua fluência, o que registra um grande avanço
em sua história discursiva.
Significa dizer que Amélia se desidentificou com a FD anterior, da doença, e se inseriu em outra FD, em que não é doente
e não há um censurador como interlocutor. É um sujeito fluente,
que tropeça na fala, sem que isto seja um problema. Pode-se
observar a mudança de posição de Amélia, de sujeito-gago para
sujeito-fluente, objetivo da proposta terapêutica na perspectiva
discursiva.
4. Fonoaudiologia e discurso:
ressignificando o processo terapêutico e a gagueira
A discriminação da gagueira está sedimentada no interdiscurso da sociedade e da cultura e o sujeito-gago é significado
como o engraçado, o descoordenado, o inseguro, como se pode acompanhar em novelas e filmes veiculados na mídia. Considerando
este cenário e entendendo que possibilidades terapêuticas assentadas sob o aporte discursivo podem gerar efeitos de mudança na
posição de sujeito-gago para a de sujeito-fluente, discutir-se-ão, a
seguir, questões relativas à terapia fonoaudiológica, partindo de
pressupostos teóricos da teoria discursiva, pautada na Análise do
Discurso de linha francesa, tomando como base a prática clínica
e os casos aqui estudados.
A terapia fonoaudiológica deve ressignificar a concepção de
fluência, procurando compreender a disfluência/hesitação como
constituinte do sujeito/linguagem, conforme já discutido e respaldado em Scarpa (1995; 2012) e Merlo; Barbosa (2012). É necessário
esclarecer o conceito de disfluência, uma vez que as expectativas
da finalização do processo terapêutico têm relação com a noção
de fluência/disfluência. Desta forma, a questão da cura da gagueira,
frequentemente trazida para discussão pelo paciente e família,
precisa ser compreendida como um significante que pede leitura.
Assim, gagueira não é uma doença e, portanto, passível de cura.
Neste trabalho, a gagueira é compreendida como um distúrbio
da linguagem, diretamente relacionado às condições de produção
do discurso, caracterizado pela previsão e certeza a priori do erro.
A partir desta premissa, há, nesta perspectiva discursiva, condições terapêuticas de trabalho fonoaudiológico com o sujeito-gago,
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que o encaminham a um discurso bem mais fluido, com pouca
ou nenhuma previsão de erro, mas sempre haverá momentos de
gagueira ou disfluência natural em sua linguagem, uma vez que
essa é inerente ao sujeito/linguagem.
Outra questão importante é a particularização que deve caracterizar a terapêutica. “Singularizar um paciente é consequência
de uma atitude de ignorância tomada frente a ele”, afirma Millan
(1993, p.67). Neste sentido, há um ineditismo fundamental e necessário em cada processo terapêutico, em cada relação construída,
em cada sujeito-gago, em cada fonoaudiólogo. Há um processo
de descoberta completamente único. Nesse sentido, o processo
terapêutico deve privilegiar a escuta terapêutica, como singular
e necessária. Salienta-se que a escuta é determinada, conforme a
Psicanálise, como interpretativa e vai muito além do simples ouvir.
Cada sujeito-gago é único e traz questões singulares à clínica da
linguagem, que devem ser escutadas e ressignificadas.
O trabalho fonoaudiológico, na perspectiva discursiva,
pretende levar o sujeito-gago a identificar e analisar a previsão
do erro na sua fala, refletindo sobre questões acerca da gagueira,
como a origem e o lugar. Além disso, o sujeito deverá reconhecer
situações discursivas de silenciamento e identificar e analisar
condições de produção geradoras de fluência e de gagueira,
estratégias de evitação e adiamento da gagueira e mecanismos
geradores e mantenedores da fala gaguejada.
Com sujeitos adolescentes e adultos, a entrevista inicial
fonoaudiológica pode ser realizada com aquele que procura a
terapia; no caso do adulto, com o próprio e, em se tratando de
adolescente, com ele mesmo, se vier por conta própria, ou com
os seus pais, se a demanda inicial é destes. Ainda assim, o adolescente é sujeito do seu discurso e também deve ser escutado de
forma singular.
Na perspectiva discursiva, pode-se apontar como possibilidades terapêuticas a determinação do espaço discursivo como
o lugar da gagueira, levando o sujeito a identificar as condições
de produção do discurso gaguejado e do discurso fluente, pela
análise das relações de força, de sentido e da antecipação do seu
discurso. Este conteúdo pode ser trabalhado através da discussão
de situações discursivas, pelas quais o sujeito em atendimento
tenha passado, seja há um longo tempo, ou mesmo na semana
atual. O trabalho com esta discussão é o foco da terapia e principal atividade desde o início. Assim, o sujeito pode, por exemplo,
sendo médico, discutir o porquê de gaguejar com os colegas, em
estudos de casos clínicos e não apresentar gagueira na relação com
os seus pacientes. Neste caso, a relação de forças, ou a situação dos
protagonistas, se encarregariam de explicar, porque está claro que
a posição-sujeito assumida nas duas situações é bastante diferente.
A questão da antecipação do outro (ouvinte) também precisa ser
160
Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013
compreendida e interpretada, porque este pode ser representado
como censurador, ou não, gerando efeito de gagueira ou de fluência. Da mesma forma, o sujeito-gago poderá reconhecer condições
de silenciamento e estratégias utilizadas para evitar ou adiar a
linguagem, além da identificação de mecanismos geradores e
mantenedores do discurso gago.
A previsão do discurso gago, ou seja, a certeza a priori de
que falhará, também é bastante enfocada nesta proposta, ressaltando-se que esta reafirma a gagueira, por se constituir como um
obstáculo à espontaneidade do funcionamento discursivo. Assim,
o sujeito em atendimento necessitará perceber a previsão do erro
e trabalhar no sentido de evitá-la, assegurando um discurso mais
fluente.
É necessário esclarecer que o foco terapêutico está na escuta
interpretativa, ou seja, é a partir da devolução do dito do sujeito
que ele pode deslocar-se do interdiscurso cristalizado relacionado
à gagueira. Para facilitar, então, a recuperação de situações discursivas, inclusive vivenciadas em terapias anteriores, propõe-se que
todas as sessões sejam áudio-gravadas, transcritas e analisadas.
Busca-se estabelecer um novo sentido para as marcas corporais
e para o sintoma na linguagem, por meio do trabalho discursivo.
Com relação às atividades que podem ser trabalhadas na
terapia, estas são situações discursivas trazidas pelo sujeito para
a sessão. Desta forma, o sujeito-gago pode falar, livremente, sobre
condições de produção geradoras de mais fluência ou mais gagueira, naquela semana, por exemplo, e ele mesmo passa a analisar o
que está mantendo-o na posição de sujeito-gago. Paralelamente,
pode haver discussões sobre recortes discursivos de sujeitos-gagos, ou dos seus próprios discursos, já transcritos. O sujeito
passa a produzir efeitos de sentido sobre o seu próprio material
simbólico (os textos produzidos a partir dos recortes discursivos
das sessões terapêuticas entre o sujeito e o fonoaudiólogo).
A alta terapêutica nunca é oferecida, unilateralmente, pelo
terapeuta, mas compreendida como uma demanda do sujeito e
bastante trabalhada no processo. Esta desvinculação do processo
terapêutico acontece quando o sujeito se desidentifica com formações discursivas oriundas de um interdiscurso cristalizado,
como já discutido anteriormente e se insere em nova Formação
Discursiva (FD). O sujeito inicia o processo terapêutico identificado
a formações discursivas relacionadas à posição de sujeito-gago, se
contra-identifica durante as sessões, até que desidentifica dessa FD,
conforme fundamentam Pêcheux ([1975] 1988) e Indursky (2008),
inserindo-se em nova FD: posição de sujeito-fluente, que não vê mais
a gagueira como doença, não prevê o erro, não se preocupa com
o ouvinte-censurador e não utiliza estratégias para não gaguejar
ou mesmo para tentar falar melhor.
Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013
161
Considerações Finais
Pensar o sujeito-gago, como fonoaudióloga, é pensar numa
proposta terapêutica que o tire deste lugar e o insira em outra
situação de integração social: a de sujeito-falante-fluente, considerando a fluência como relativa, uma vez que não há fluência
linear. O sujeito-fluente sabe que a fluência é sempre relativa, pois
fazem parte dela hesitações e repetições, por exemplo.
Acredita-se poder inserir o sujeito neste lugar, longe de sua
gagueira, ocupando uma nova posição: a de sujeito-fluente.
O estudo da gagueira, tal como é significada no discurso
de sujeitos-gagos dessa análise, conduziu a pesquisadora a uma
série de reflexões, uma vez que o foco deste trabalho foi analisar
o processo terapêutico de sujeitos-gagos, a partir da consideração
da concepção discursiva e sistematizar os fundamentos teórico-metodológicos desta terapêutica.
A partir desse estudo, afirmou-se um novo conceito para
a gagueira, ancorado na perspectiva deste trabalho. Sob a ótica discursiva, a gagueira pode ser compreendida como um
distúrbio dessa ordem, que apresenta uma relação direta com as
condições de produção do discurso (relação de forças, de sentido
e antecipação), caracterizada pela ocorrência de repetições de
sons, sílabas, palavras ou frases, hesitações, prolongamentos de
fonemas e/ou bloqueios tensos de sons. Há uma relação direta
entre o sujeito que fala, a presença de um outro (interlocutor) e a
ocorrência de situações de gagueira. Se não há ouvinte, ou se este
não é identificado como alguém que julga, não há momentos de
gagueira. Se, ao contrário, este outro (interlocutor) é antecipado
como alguém que insere o sujeito falante na posição de gago,
então, há momentos de gagueira. A gagueira é, ainda, marcada
pela previsão do erro iminente. Há uma certeza a priori deste erro
e é a partir da possibilidade de errar que o sujeito-gago opta por
tentar evitá-lo ou adiá-lo. Desta forma, substitui palavras perigosas,
ou seja, consideradas como sendo de difícil emissão, por outras
compreendidas como sendo mais fáceis, ou, ainda, escapa da fala
gaguejada, utilizando estratégias corporais, isto é, apertar os olhos,
as mãos, bater os pés, e outros artifícios, que, em última instância,
acabam por mostrá-lo mais gago ao seu interlocutor.
A análise discursiva de dois sujeitos-gagos em situação de
entrevista inicial fonoaudiológica e outros dois recortes de sessões
terapêuticas com a pesquisadora, mostrou evidente mudança de
posição de sujeito-gago para sujeito-fluente.
Por fim, indicou-se uma proposta terapêutica para o trabalho com sujeitos-gagos, sob a ótica discursiva. Foram discutidos
e analisados alguns conteúdos, como a determinação do espaço
discursivo enquanto lugar da gagueira, a ressignificação da
concepção de fluência e disfluência e o reconhecimento de situações discursivas de silenciamento. Além disso, enfatizaram-se a
162
Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013
identificação e análise das condições de produção do discurso,
de situações de previsão e certeza do erro, das estratégias utilizadas com o intuito de adiar ou evitar a gagueira, de fonemas e
palavras considerados difíceis ou impossíveis de serem ditos e,
ainda, a identificação e análise de posições discursivas geradoras
de gagueira e de fluência. Esta é a base terapêutica para o trabalho
fonoaudiológico com sujeitos-gagos sob a perspectiva discursiva.
Não houve a intenção de concluir este trabalho, porque
não o mesmo não está acabado, mas de esclarecer que ele está
aberto a novos olhares, a diferentes leituras, a questionamentos
e discussões. Espera-se produzir reflexões e contribuições para o
estudo da gagueira e do discurso.
Abstract
The linguistic and speech therapy’s studies see the
stuttering as a manifestation of something that
happens in the body plan, well meaning as muscle tension, sometimes as breathing, speech production, or even genetic formation, as a subject,
therefore, with a “disease”. When scrolling the
theoretical discussions about stuttering, we threw
up a new look at it from the discursive perspective
with possibilities with the same therapeutic approach. From the theory and analytical device of
Discourse Analysis from French line, founded by
Pêcheux and developed by Orlandi and followers,
we intended to analyze the subject who is seen in
interdiscourse crystallized by society as subject-stutter: one who is carrying a disease, inserted
into discursive and ideological formations that
make him more stutter. We operated discursive
clippings of two stuttering-subjects who participated of speech therapy, seen in a longitudinal
way. Considering the regularity of the operation of
speech and anchoring the analysis in interdiscursivity, i.e., the mechanisms of formation of senses,
we identified some discursive formations materialized in the discourse of the analyzed subject and
represent theoretical and therapeutic possibilities
for the study of stuttering. We affirmed stuttering as a disorder of language, directly related
to production conditions, indicating therapeutic
possibility in the same perspective. The discursive
analysis performed showed apparent change in
position of stutterer-subject to fluent-subject.
Keywords: Stuttering; Speech; discursive formations.
Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013
163
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Niterói, n. 34, p. 145-165, 1. sem. 2013
165
Discurso sobre a criança:
a questão do ludicismo
Angela Baalbaki (UERJ)
Resumo
Este artigo tem como objetivo investigar o funcionamento do discurso sobre a criança. Baseia-se
na fundamentação teórica da Análise do Discurso
de linha francesa, especificamente, a tradição
inaugurada por M. Pêcheux. Noções como a de
categoria criança e de ludicismo foram propostas
na tentativa de compreender a constituição dos
sentidos do sujeito-criança que circulam em nossa
sociedade. As reflexões aqui tomadas indicam que
o discurso sobre a criança é atravessado por um
ludicismo que implica as relações estabelecidas
com o jurídico, dissimulando, pela brincadeira,
pelo jogo, o próprio jurídico. Também é característico do ludicismo uma projeção do futuro da
criança, o vir-a-ser-sujeito.
Palavras-chave: Discurso sobre criança; categoria; ludicismo
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013
Considerações iniciais
Na Análise de Discurso de orientação francesa, os conceitos
teóricos têm seu valor enquanto operadores na análise. Assim
sendo, nas análises realizadas a partir desse quadro teórico, tratamos tanto dos dispositivos teóricos quanto dos procedimentos
analíticos. Vale destacar que um princípio constitutivo da Análise
do Discurso (AD) é a vinculação desses dois dispositivos. E é
exatamente a vinculação entre teoria e prática que faz com que a
disciplina se movimente. Tal movência não se dá em virtude de
uma superação teórica, mas de adequação ao material de análise.
Com o intento de trabalharmos no interior desse batimento, propomos um novo dispositivo teórico: o ludicismo.
É importante registrar que em AD o dispositivo teórico refere-se a todo seu quadro teórico. Tal dispositivo se particulariza
frente aos conceitos mobilizados em cada pesquisa. O conjunto
de conceitos trabalhados em vista à pergunta, aos objetivos e à
natureza de material de análise compõe o que podemos chamar
de “dispositivo analítico” (ORLANDI, 2000). Apresentamos, a seguir, algumas noções centrais dos dispositivos analíticos, ou seja,
aqueles conceitos que fundamentam a nossa pesquisa a respeito
do funcionamento do discurso sobre a criança.
Em seu livro Análise Automática do Discurso, Pêcheux (1997),
ao definir discurso como “efeito de sentido entre locutores”, distanciou sobremaneira o objeto teórico da AD da noção de mensagem atrelada ao tradicional esquema de comunicação, entendida
como transmissão de informação. O objeto teórico com o que se
preocupa a Análise do Discurso não é uma simples superação da
linguística saussuriana, haja vista que não é um objeto linguístico,
mas um objeto sócio-histórico, no qual o linguístico é pressuposto.
Trata-se, efetivamente, de outro objeto teórico.
O recorte teórico que relaciona língua e discurso não pode
ser confundido como continuidade da dicotomia língua/fala,
tal como entendido por Saussure, na medida em que a noção de
discurso não pode ser posta como uma realização individual do
sistema linguístico. Nessa perspectiva, língua e discurso recebem outra significação, pois “nem o discurso é visto como uma
liberdade em ato, totalmente sem condicionantes linguísticos ou
determinações históricas, nem a língua como totalmente fechada
em si mesma, sem falhas ou equívocos” (ORLANDI, 2000, p. 22).
A língua é condição de possibilidade do discurso. A relação
existente entre processos discursivos e a língua repousa na materialidade da língua. Em outros termos, a língua constitui o lugar
material, a base na qual se realizam os processos discursivos,
fonte de produção de efeitos de sentido.
O discurso, por sua vez, não pode ser considerado um
conjunto de frases portadoras de várias significações. Ele é um
processo que se desenvolve em determinadas conjunturas só168
Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013
cio-históricas, é o lugar em que a ideologia se materializa e estabelece relação com a língua, produtora de sentidos por e para
sujeitos. Se a definição de discurso com que trabalhamos é a de
efeito de sentido entre interlocutores, como falar de sentidos em
uma teoria como a Análise do Discurso?
Consideramos a relação dos sujeitos e dos sentidos afetados
pela língua e pela história. Cumpre destacar que sujeito e sentido
constituem-se mutuamente no discurso. Ou nos dizeres de Orlandi, “ao produzir sentido, o sujeito se produz, ou melhor, o sujeito
se produz, produzindo sentido” (ORLANDI, 2004, p. 56-57).
O processo histórico de constituição de evidência do sentido faz com que o sentido pareça estar fixado como essência das
palavras, como se houvesse um elo que ligasse palavras e seus
sentidos e apagasse as determinações históricas e sociais. Em uma
perspectiva materialista, os sentidos não existem em si mesmos,
não há uma relação transparente com a literalidade, mas são determinados por posições ideológicas no processo sócio-histórico.
A literalidade não pré-existe, ela é um efeito de discurso. Esse é o
ponto em que destacamos/inserimos o nosso trabalho, visto que
não é possível identificar apenas um sentido para o termo criança.
Os sentidos que se apresentam como literais são produtos da
história, e não o resultado de uma relação natural entre palavras
e coisas do mundo. Em determinadas condições de produção, há
a dominância de um dos sentidos, mas outros sentidos possíveis
ressoam. Por isso, podemos afirmar que toda produção discursiva é investida em processos de significação variados. É preciso
ressaltar que “se os sentidos podem sempre ser vários e podem ser
outros, isso não significa dizer que o sentido possa ser qualquer um”
(ORLANDI, 2004, p. 56-57 grifos da autora). O sentido dominante
– ao ser legitimado – fixa-se ideologicamente como sendo o único,
o centro; cristaliza-se. Daí, o efeito de literalidade.
De forma a historicizar a categoria criança, procedemos à
análise dos diferentes materiais que compuseram nosso arquivo.
Observamos que a construção de sentidos sobre criança pode
ser depreendida em diferentes textualizações, desde tratados até
declarações internacionais. A hegemonia do sentido de criança
como um vir-a-ser sujeito aponta para a primazia do discurso
sobre a criança.
Nosso corpus está organizado em torno dos séculos XVIII
a XX, e os materiais de linguagem analisados são: artigos acadêmicos; trechos de tratados sobre infância, declaração mundial.
Pretende-se com esse corpus buscar regularidades dispersas,
comparar diferentes séries temporais, verificar como textos dialogam e apontam para redes de sentidos. Tais regularidades são
identificadas na confluência da constituição (interdiscurso) e da
formulação (intradiscurso). É a memória discursiva que possibilita
a constituição dos dizeres. No movimento, ou melhor, por entre
lembrança e esquecimento, que a memória é atualizada no fio de
Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013
169
cada discurso. E aí (no fio discursivo) podemos encontrar as regularidades. Em outros termos, como se dá o jogo entre o mesmo
e o diferente, ou seja, como certos sentidos de criança se mantêm
ou se deslocam em função de diferentes condições de produção
e da relação mantida com a memória discursiva.
A criança e o ludicismo
Circulam, em nossa sociedade, enunciados que supostamente definem como é ser criança, quando é ser criança, como tratar
a criança, enfim, o que é ser criança. Circulam enunciados que
apontam para a criança em formação: uma “semente-de-adulto”.
Na formulação de tais discursos, a imagem produzida é da falta.
Podemos sublinhar que é uma criança falada pela insuficiência,
por seu caráter incompleto em relação ao ponto almejado de vir
a ser adulto. Talvez resida aí a pretensa curiosidade da criança
posta pelos divulgadores: a de ser adulto.
Sabemos que a constituição do sujeito funda-se em sua
relação com a linguagem, com a história, com a ideologia. Ao
ser apresentada como um sujeito-falado, a criança tem sua
imagem construída como se estivesse fora das determinações
sócio-históricas e de sentido, tornando-se uma evidência. Nesse
movimento de produção de evidência, podemos falar em um
gesto de produção de uma categoria: a categoria criança. Devemos
explicitar que tomamos o termo categoria tal como em Haroche
(1992). Inspirada nos textos de Foucault, a autora destaca que um
mecanismo coercitivo do Estado para fins de poder (“governo
pela individualização”) classifica os indivíduos em categorias.
Em outros termos, “identifica-os, amarra-os, aprisiona-os em sua
identidade. Aprisionamento na identidade que é obrigatoriamente
exibido por cada um...” (HAROCHE, 1992, p. 21).
A criança, em uma suposta identidade, é representada
como una, indivisível, ou melhor, como uma criação da modernidade tomada como “uma mônada – unidade substancial ativa
e individual; presente, no limite, em todos os seres infantis da
espécie humana: sempre a mesma; sempre igual, inquebrantável,
inamovível, irredutível” (BOTO, 2002, p. 57). Essa condição de
identidade produz a ilusão de que o mundo da criança é algo
totalmente desvinculado das relações de produção e reprodução
social. Do nosso ponto de vista, a criança não é uma categoria de
conteúdo a ser preenchida, mas uma construção sócio-histórica.
Em uma perspectiva contrária ao antiespontaneísmo pedagógico, Nosella (2002) afirma que “a criança não é um homem
adulto em potencial, não é semelhante a um novelo que já contém
‘enrolada’ toda a linha da vida e que, portanto, basta puxar pela
ponta que tudo se desenvolve naturalmente” (NOSELLA, 2002, p.
156). Concordamos que a criança seja um sujeito historicamente
determinado, pois não só tomamos a criança como um sujeito
170
Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013
social e histórico, mas, sobretudo, simbólico. Tomamos a criança
em sua condição de sujeito discursivo.
Vale ressaltar que a categoria criança foi produzida nas e
pelas relações postas com o sujeito do capitalismo. Diz-nos Smolka
(2002) que esse sujeito – o homo racionalis, sujeito da razão – em um
esforço de teorização sobre si mesmo, teoriza sobre a criança, ou
melhor, cria evidências. Para a autora, o homo racionalis
imerso em uma intricada trama, sujeito ao conjunto de ideias,
de significações, de esquecimentos historicamente produzidos,
a-sujeitado à ideologia, à linguagem, ao inconsciente. É nessa
tensão que encontramos a criança como produção humana.
Produção certamente orgânica, biológica. Mas não meramente
(re)produção da espécie. Produção fundamentalmente simbólica e discursiva. Nomear a criança, conceituar a infância, ou
teorizar sobre o desenvolvimento ... faz parte de um gesto de
conhecimento tornado possível pela produção de significação característico do próprio Homo – Faber, Simbolicus, Duplex
(SMOLKA, 2002, p.123-124).
Pa r e c e -n o s q ue a
postura encontrada em
“Emílio” foi de encontro ao movimento de
moralização promovido pelos reformadores
da Igreja católica no
final do século XVII. As
concepções difundidas
pela reforma atribuíam
à criança a tendência
natural ao mal. Nessa
conjuntura, a educação foi instituída como
principal garantia de
ordem pública (VORCARO, 2004).
1
Em suma, para falar sobre divulgação científica para a
categoria criança, é preciso, primeiramente, compreender como a
criança foi construída no interior da ideologia capitalista e quais
foram os efeitos produzidos por seu evidenciamento.
Vale registrar que, etimologicamente, o termo criança, de
acordo com Mauad (2004), tem sua origem associada ao ato de
criação. Da mesma forma que os animais têm crias, a criança é a
cria da mulher. Destacando que ‘criar’ refere-se a nutrir, alimentar,
fazer crescer. Diz a autora que somente “nas primeiras décadas
do século XIX, que os dicionários assumiram o uso reservado da
palavra ‘criança’ para a espécie humana” (MAUAD, 2004, p. 140).
Podemos dizer que o uso reservado, ou melhor, a passagem de
cria animal para criança humana se deu em um período no qual
o homem torna-se sujeito e objeto do saber (FOUCAULT, 2007).
Historicamente, a criança é falada pelo adulto. Isso significa
dizer que, em diferentes conjunturas históricas, a criança é falada
diferentemente na relação com o adulto. E mais, cada conjuntura
histórica delimita essa relação.
De forma a compreender a historicidade que funda os
sentidos de criança como um vir-a-ser-sujeito, apresentamos, em
linhas gerais, o tratado pedagógico de Rousseau, cujo título é
Emílio, ou da educação. Esse tratado foi publicado no século XVIII
e talvez seja o primeiro tratado sobre a educação da criança. Nele,
Rousseau versa sobre como deveria ser a educação das crianças
tomadas como seres bons1 por natureza: “Nascemos fracos,
precisamos de força; nascemos carentes de tudo, precisamos de
assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o
que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes
nos é dado pela educação” (ROUSSEAU, 2004, p. 9). Observamos
em Rousseau o papel da educação frente à criança. É a educação
Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013
171
que tornará esse sujeito antes fraco, carente e estúpido em um
sujeito bom: um sujeito submisso às leis. Um sujeito que deve ser
individualizado pelo Estado (por meio de suas instituições, no
caso, a escola).
Pode-se observar, nesse extenso tratado, que a criança é compreendida por uma clivagem racional: o que a separa do adulto é a
“idade da razão”. Para Rousseau, a criança apreenderia a realidade
à sua volta mediante imagens e sensações, sendo “as primeiras
sensações das crianças [...] puramente afetivas” (ROUSSEAU, 2004,
p. 49). A criança, para Rousseau, é inocente, sensível e tornar-seia um bom homem (bom sujeito?) pela educação. Aliás, completa
Rousseau, “na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua
vocação comum é a condição de homem” (ROUSSEAU, 2004, p.
14). Além da clivagem cartesiana, encontramos em Emílio o ideário
iluminista da igualdade entre os homens; igualdade que está na
base das relações jurídicas do capitalismo. Podemos dizer que o
tratado de Rousseau foi fundado na dimensão de um Estado civil.
Em suma, em Emílio encontramos um determinado modo
de ver, pensar, conceber a criança. Seus pressupostos tornaram-se
evidências no discurso pedagógico ocidental, no qual sentidos
sobre a criança e a educação foram naturalizados. No entanto,
Emílio é uma das várias textualizações da discursividade que
funda a categoria criança.
Para compreendermos como determinados sentidos foram
constituídos na obra de Rousseau, faz-se necessário verificar
como operou a constituição desse sujeito de direitos civis. Para tal,
recorremos a Haroche (1992) que, em seu livro Fazer dizer, querer
dizer, ocupa-se em realizar uma análise da história dos mecanismos envolvidos na passagem do sujeito religioso – assujeitado
à ideologia cristã; um sujeito marcado por uma “subordinação
ao texto e ao dogma” (HAROCHE, 1992, p.57) – para o sujeito
jurídico. Cabe dizer que essa passagem não foi automática. Sua
constituição tem uma história cujo momento crucial localiza-se
no período que vai do século X ao século XIII (HAROCHE, 1992).
Um período marcado por transformações no sistema econômico
então vigente (o sistema feudal) cuja influência propiciou o enfraquecimento do poder da Igreja.
Se até o século XI havia uma sujeição pessoal (relação de
vassalagem), nos séculos seguintes, tomou lugar, progressivamente, uma relação centrada nas relações econômicas. Passava-se
de uma economia agrícola de subsistência a uma economia de
manufatura. Com a sedentarização do comércio (instauração do
corporativismo), e a emancipação dos camponeses (reivindicações
de direitos e deveres e liberdades) – decorrentes do processo de
urbanização, começa a haver uma intervenção cada vez maior
do jurídico sobre o religioso. Foi o início do processo de “autonomização” do sujeito. Esse sujeito aparece “aliando obrigação
172
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econômica à liberdade jurídica; o sujeito torna-se, assim, livre
para se obrigar” (HAROCHE, 1992, p. 69).
Imputa-se, no processo de constituição do sujeito jurídico,
uma necessidade de clareza da linguagem, de banir a ambiguidade, objetivando melhorar a comunicação, fazendo-se “entender, mas não compreender” (HAROCHE, 1992, p. 84). No cerne
da problemática da ambiguidade colocada como um problema
de língua está a inteligibilidade do texto legal, que se pretende
compreensivo. Instaura-se uma demanda pela clareza, ou melhor,
desambiguização e logicidade na relação do sujeito com a língua;
uma relação que exige transparência, objetividade, literalidade.
Voltando à discussão sobre a constituição do sujeito jurídico,
Orlandi (2007a) aponta que o discurso humanista da reforma –
expressão da dominação progressiva do sistema jurídico sobre a
ordem religiosa, enfraquecida por sucessivas crises, já anunciava
o individualismo burguês do século XIX. Com esse sujeito, diz a
autora, “não se trata de questionar, mas de entender para se submeter. Há dois polos que se desenham: o da objetividade (caracterizada pelo rigor) disjunto do polo da subjetividade (caracterizado
pela indeterminação e o inefável)” (ORLANDI, 2007a, p. 14).
Segundo Haroche (1992), o assujeitamento (sujeito jurídico)
apoia-se no rigor, na precisão, na transparência, na letra, na técnica: no polo da objetividade. Estabelece, com esse assujeitamento,
uma relação entre o direito e o saber: “o direito ao saber, à inteligibilidade, à curiosidade, à abertura, em resumo, todos nascidos
da troca e da expansão econômica” (HAROCHE, 1992, p.84). O
polo da subjetividade marca o sujeito pela imprecisão, pelo direito
à indeterminação.
O século XVIII, marcado pela revolução científica, consagra
o polo da objetividade, em detrimento do polo da subjetividade. O
processo de desenvolvimento científico e tecnológico produziu um
sujeito submetido às leis do Estado, leis que se impuseram entre o
sujeito e o saber, configurando-o como poder. Para Orlandi (1999),
o processo de constituição do sujeito jurídico atinge seu ápice no
século XIX, século do individualismo triunfante.
O sujeito jurídico é constituído por um equívoco: é interpelado pela ideologia capitalista de autonomia, liberdade e unicidade
e é individualizado pelo Estado, o que o torna responsável por si
próprio e por seu dizer. Do ponto de vista da Análise do Discurso, é um sujeito dividido que funciona no registro jurídico, com
direitos e deveres, como senhor de sua vontade, de suas intenções
e responsável por seu dizer, ao mesmo tempo em que funciona
por uma memória de dizer à qual ele mesmo não tem acesso e é
determinado pela sociedade e pela história (ORLANDI, 2007a).
E como se deu a passagem da ordem religiosa à ordem
jurídica em relação à criança? Todos os acontecimentos ligados ao
desenvolvimento do Direito e à laicização abalaram o mecanismo
Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013
173
Ariès aponta também
que essa valorização se
deu com o surgimento
de uma nova modalidade familiar: a família
nuclear burguesa, trazendo as mulheres e as
crianças para o domínio
privado e os homens
para o domínio público.
Destacamos que esse é
um modelo burguês de
família e não do proletariado. Segundo Boto
(2002), a relação mais
importante da família
medieval dava-se com a
solidariedade da linhagem. A criança era considerada um rebento do
tronco da comunidade
e sua sociabilidade era
comunitária. Com o individualismo burguês,
a família nuclearizou-se e emancipou-se dos
vínculos comunitários,
a criança passou a ser
considerada no interior
das famílias e as relações parentais sobrepuseram-se. O declínio
da esfera pública e o
aumento de processos
de intimidade (domínio privado) no âmbito familiar não podem
ser desvinculados dos
ideais de ig ualdade,
liberdade e defesa da
propriedade. As novas
relações parentais possibilitaram, dentre outros, a transmissão de
propriedade. É possível
pensar que a herança
passa a ser tematizada
para além da propriedade, como por exemplo,
a herança genética e
cultural. Sobre a última,
muito em voga nos séculos XX e XXI, o dever do
Estado de proporcionar
educação passa a ser
quase exclusivamente
da família.
2
174
de dominação do sujeito religioso. E, consequentemente, a relação
que se mantinha com a criança.
A historiografia sobre a criança indica distinções no tratamento dispensado à criança na Idade Média e na Modernidade.
Um dos trabalhos mais expoentes (e também muito criticado) é
o desenvolvido por Ariès (1981). Em suas teses sobre a evolução
da intimidade, Ariès considera que, somente no século XVII,
a valorização da criança2 teve início. Para o autor, dois fatores
levaram à valorização: a emergência da vida privada (como por
exemplo, a nova configuração das moradias, com cômodos separados) e o surgimento de escolas (na modernidade, considerado
o lugar de preparação do futuro adulto). De fato, o autor enuncia
vários aspectos relacionados em torno da valorização da criança:
diminuição da mortalidade infantil, sobretudo, com desenvolvimento da pediatria; desenvolvimento da tipografia (aumentando
a demanda de leitores alfabetizados); e o desenvolvimento da
pedagogia (com o surgimento de novas correntes teóricas e novos
métodos de ensino para aprendizagem de leitura).
Todas as questões apontadas por Ariès (1981) relacionam-se
à ascensão da burguesia e à constituição de um novo modo de
produção. Do nosso ponto de vista, todas essas mudanças, com
o avanço do aparelho jurídico, propiciaram a constituição do sujeito-de-direito. Tendo como base a formação do sujeito jurídico,
podemos pensar sobre o gesto de produção da categoria criança.
Um aspecto que precisa ser retomado nessa discussão são as leis
para a proteção da infância. O modo de pensar a criança (visto
que ela não fala, mas é falada, e deve ser protegida) acolhe os
mecanismos de individualização impostos pelo Estado por meio
de suas instituições. No caso da criança, veremos que a instituição
escolar é a requisitada para tal fim (ao menos nos em um primeiro
momento).
Anteriormente, utilizamos “individualização” conforme
comparece na obra de Haroche (1992). Acreditamos que tal termo
seja tomado como um processo de responsabilização do sujeito.
Cabe ressaltar que a partir desse ponto, tomamos a noção de individualização tal como definida por Orlandi (2002). Para a referida
autora, a ilusão idealista do sujeito como origem em si mesmo
está assentada no desconhecimento de um duplo movimento
na compreensão da subjetividade. Em um primeiro movimento,
ocorre a interpelação do indivíduo, afetado pela língua e pela
ideologia, em sujeito. Diga-se, a forma-sujeito histórica, ou seja,
o sujeito capitalista caracterizado como sujeito jurídico. Em um
segundo movimento, há individualização dessa forma-sujeito
pelo Estado por meio de suas instituições, o que resulta em um
indivíduo ao mesmo tempo responsável e dono de sua vontade.
Para a autora, nesse duplo movimento “há o caráter irrecorrível
do assujeitamento [...] e a possível resistência do sujeito aos modos
pelos quais o Estado o individualiza” (ORLANDI, 2002, p. 72).
Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013
Acreditamos que uma distinção entre a definição de cada uma das
autoras em tela é a consideração da noção como um movimento
da subjetividade que prevê, sobretudo, a resistência.
No final do século XVII, o humanismo decorrente da reforma de Igreja instituía a educação como a principal garantia
de ordem pública. Percebemos que o individualismo burguês
não surgiu fora de um controle sobre o corpo – as práticas de
civilidade. Com os processos de individualização da vida, tais
práticas passaram a ser realizadas pela escola. Em um novo
lugar social, a criança passou a ser educada e tornou-se “aluno”,
como também passou a ser objeto de intervenções (como no século seguinte, em que foi protagonista do tratado de Rousseau).
A civilidade teve importante papel no processo de invenção da
moderna categoria criança e do que foi chamado “especialização
do mundo da criança”.
A especialização do mundo da criança ocorreu paulatinamente e vários foram os aspectos envolvidos. Para Ariès (1981),
a imposição de uma essência inocente à criança consolidou a
mudança no tratamento da mesma. Se anteriormente fala-se
sobre sexo diante das crianças, com as reformas moralizantes
promovidas pelos reformadores da Igreja, no final do século XVII,
os educadores objetivavam incutir um sentimento de culpa nas
crianças. Aliadas à inocência, são ressaltadas, nesse período, a
fragilidade e debilidade da criança. Peres (1999) sustenta que até
o século XVII não havia uma separação entre jogos e brincadeiras infantis e aquelas destinadas aos adultos. Segundo a autora,
com o movimento moralizante, muitos dos jogos passaram a
ser considerados imorais. A preocupação era preservar a moralidade e educar as crianças. Com as restrições morais impostas,
as crianças passaram a se dedicar às brincadeiras e às distrações
diferentes das adotadas pelos adultos. Em relação aos contos de
fada, no século XVII, aparecem as versões como, por exemplo,
as compiladas por Perrault. Conta-nos Bettelheim (1991) que, em
sua origem, na Idade Média, os contos de fada eram destinados
a entreter a corte. Eram contos que continham doses de sexo,
violência, arrogância. Segundo Peres (1999), Perrault higieniza,
moraliza esses contos, torna-os “próprios” para as crianças. Com
esse gesto de moralização, Perrault funda a literatura infantil,
uma literatura destinada a incutir princípios morais. Para Ariès
(1981), os adultos perderam, na segunda metade do século XVII, o
interesse pelos contos de fada. Havia nesse período dois interesses
pela literatura: publicações mais sérias destinadas aos adultos e
outras às crianças e ao povo.
A inserção da criança no aparato escolar, contudo, deu-se
lentamente, sobretudo, para a classe proletária. Com a implantação da revolução industrial no final do século XVIII, a criança
tornou-se, desde a mais tenra idade, “trabalhador”.
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175
Nosella (2002) ressalta que, na fase inicial do capitalismo,
o que corresponderia à fase inicial de acumulação de capital, a
criança exerceu importante função. Tamanha foi sua importância
que, pela primeira vez na história, a sociedade a teria tomado a
sério mesmo que fosse, infortunadamente, para “explorá-la como
força de trabalho produtiva barata” (NOSELLA, 2002, p. 133). Entretanto, com o desenvolvimento científico e tecnológico, a mão
de obra infantil tornou-se obsoleta, pois sua maior contribuição
passou a ser considerada no futuro. A criança passa de mão de
obra barata para assunto de Estado. Tal passagem não se faz fora
do jurídico.
Segundo Donzelot (apud VORCARO, 2004), as primeiras leis
sociais regulavam o tempo de trabalho das crianças nas fábricas. A
partir de 1840, várias normas protetoras da infância se multiplicaram, culminando na primeira Declaração dos Direitos da Criança
(1924). Posteriormente, outras declarações foram promulgadas,
sendo a declaração de 1959 a adotada pela Assembleia das Nações
Unidas. Esse interesse pela criança é resumido por Nosella (2002):
só quando a criança se tornou força de trabalho interessante
para o capital, começou a ser contemplada pela legislação de
forma autônoma de sua família. Foi uma legislação que, num
primeiro momento, obrigou a criança a trabalhar e, mais tarde, após o desenvolvimento da grande indústria, a liberou do
trabalho [...] a questão da guarda e da educação das crianças
tornou-se assunto principal no debate político, na legislação
social e nas reformas escolares desde o final do século XVIII
praticamente até hoje (NOSELLA, 2002, p. 134).
A Declaração dos Direitos da Criança se constitui de um
preâmbulo e de dez princípios – partes da textualização do discurso de direitos humanos. O preâmbulo dá sustentação à declaração,
uma vez que retoma os pactos de sua elaboração. A retomada de
outros discursos que a fundam é materializada pelo termo “visto”.
(“VISTO que os povos das Nações Unidas”; “VISTO que as Nações
Unidas”; “VISTO que a criança”; “VISTO que a necessidade de tal
proteção”; “VISTO que a humanidade deve à criança o melhor
de seus esforços”). Em seu princípio primeiro diz-se que “Todas
as crianças, absolutamente sem qualquer exceção, serão credoras
destes direitos, sem distinção ou discriminação por motivo de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer
outra condição, quer sua ou de sua família”. Em “Todas as crianças” o efeito de sentido é o de afirmar a igualdade entre as crianças. Funciona, de forma pressuposta, o jurídico, produzindo um
efeito de pré-construído: diante da declaração supõe-se que todas
as crianças são iguais. Tanto o preâmbulo quanto os princípios se
organizam em torno da proteção à criança, que em decorrência
de sua imaturidade física e mental, inspira cuidados especiais. À
criança devem ser garantidos educação, saúde e diversão. O tra176
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balho é proibido “antes de idade mínima conveniente” (Princípio
9º). Mas o que seria conveniente? Parece-nos que o “conveniente”
é ditado pelas condições econômicas e políticas de cada país.
A criança-de-direitos é uma construção do final do século
XIX e, como autora menciona acima, permanece nos dias atuais.
A instância de criança-de-direitos está relacionada às revoluções
liberais, tanto a Americana quanto a Francesa. O discurso dos
direitos das crianças tem seus sentidos sustentados no discurso
dos direitos humanos, o qual se funda no discurso da pretensa
igualdade (que de fato, apaga as diferenças). Trata-se da categoria-criança sendo produzida como um sujeito de direitos humanos.
Orlandi (2007b) destaca que o discurso dos direitos humanos
silencia a diferença de classes: fonte de desigualdades. Logo, “a
diferença de classes precisa do discurso da igualdade perante a
lei” (ORLANDI, 2007b, p. 305). Esse discurso da igualdade também
silencia a desigualdade entre crianças. Ressaltamos que a mão
de obra barata da criança não foi banida do sistema de produção
capitalista. Nas regiões mais pobres, em países periféricos, há
bolsões de miséria onde se coaduna o trabalho infantil. Então, o
direito à educação e a proibição do trabalho infantil – previstos na
Declaração dos Direitos da Criança – não são iguais para todos.
Os direitos são destinados igualmente a todas as crianças para
melhor excluir muitas. Esse é um equívoco constituído na e pela
conjuntura burguesa. O lugar de destaque da educação – que
supostamente dá a todos as mesmas oportunidades – e as leis de
proteção à criança são produzidos para lidar com a ambiguidade
instaurada pelo sistema capitalista que se organiza e se estrutura
em torno do lucro e não da dignidade humana.
Se, no início do capitalismo, o pátio da fábrica foi o lócus da
criança proletária, com o desenvolvimento da industrialização e
da tecnologia, ele foi transferido para a escola. Assim sendo, nos
séculos XIX e XX, a criança ganhou um novo lugar social. Para
Boto (2002), a construção da categoria aluno foi a grande referência de compreensão da criança construída na modernidade. De
acordo com o autor, “a estrutura ritual do colégio contribui para
a ‘construção do objeto infância’; ou, mais precisamente, para a
criação da categoria criança-aluno” (BOTO, 2002, p. 33).
As colocações de Boto (2002) apontam para a relação existente
entre os processos de escolarização e a produção da concepção
de infância nas sociedades modernas. Diríamos a concepção de
infância de uma determinada classe. Pensar a criança por meio
da categoria “criança-aluno” e não pela categoria “criança-trabalhador”, por exemplo, possibilita-nos compreender como a criança
é individualizada pela escola.
No acolhimento da infância pelo Estado, este monopolizou
técnicas disciplinares e saberes pedagógicos necessários à escolarização. A monopolização dos saberes não somente possibilitou
a delegação da educação das crianças ao Estado, como também
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177
a diluição da circulação dos saberes na sociedade. Em primeiro
momento buscou-se a organização da turma e depois outras
técnicas de disciplinarização. Uma dessas técnicas foi, segundo
Foucault (2006), o ensino coletivo:
Nas escolas do século XVIII os alunos também estavam aglomerados e o professor chamava um deles por alguns minutos,
ensinava-lhe algo, mandava-o de volta, chamava outro, etc...
Um ensino coletivo dado simultaneamente a todos os alunos
implica uma distribuição espacial. A disciplina é, antes de
tudo, a análise do espaço. É a individualização pelo espaço, a
inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório. (FOUCAULT, 2006, p. 106)
Smolka (2002) destaca
a teoria evolucionista
de Darwin como um
registro das relações
de herança genética e
experiência adquirida,
bem como na busca daquilo que diferencia o
homem dos animais.
Cabe ressaltar que, em
outra condição de produção, foi um registro
que também tematizava
a civilidade. A Teoria
de Darwin desembocou um interesse pela
mente humana desde a
infância até a fase adulta. É nesse contexto que
se pretende colocar a
criança como a repetição
da história do homem,
ou seja, que “a ontogênese repete a filogênese”
(SMOLKA, 2002, p. 114).
Vorcaro (2004) afirma
que a posição evolucionista chegou a isolar as
fases do desenvolvimento humano recapitulando o desenvolvimento
da criança à evolução
da espécie humana: “o
domínio dos instintos
vitais corresponderia
à animalidade; à imaginação supersticiosa
infantil equivaleriam as
culturas primitivas; e o
estado de observação reflexiva madura repetiria
a racionalidade da civilização” (VORCARO,
2004, p. 29).
3
178
Esse espaço individualizado obedece a um princípio de
visibilidade que isola o sujeito de todos os outros (HAROCHE,
1992), passando, dessa forma, o sujeito interpelado pela ideologia
a funcionar como um indivíduo, um autômato.
Ao longo do século XIX, foram desenvolvidos vários métodos de ensino para as crianças. Era o momento de instauração
de uma pedagogia “racional”, preocupada com a racionalização
do ensino. Em um novo tratamento dado à infância, não só a
organização do espaço foi preponderante, mas também metodologias “renovadoras” baseadas em investigações3 teóricas sobre a
criança (análise de funções mentais e de sua fisiologia, leis de seu
desenvolvimento). As metodologias foram definidas em função de
necessidades específicas: suportar as exigências da modernidade
– industrialização crescente e avanços científicos e tecnológicos.
Se, nos séculos XVI e XVII, a escola era o lugar da apreensão da
civilidade, no século XIX, ela se tornou o lugar para preparar a
crianças para as novas imposições sociais. Muitas dessas metodologias basearam-se na promessa ao divertimento, ao lúdico
(contrapondo-se ao trabalho). E essa foi uma nova forma de solidificar a categoria criança – unívoca, inquebrantável, como afirma
Boto (2002), tornando-a uma especificidade dessa etapa da vida.
Por ser a categoria criança enunciada na tensão da relação
entre adulto e não-adulto, ela é significada pela falta, pelo o que
ela ainda não é, ou seja, um vir-a-ser. A categoria criança não é
tomada como um sujeito responsável, mas construída historicamente no interior do aparato jurídico, que a põe como garantia de
vir-a-ser-sujeito. Nessa garantia há uma determinação da implicação do futuro que recobre a atualidade – sempre evanescente – da
criança. A especularização, a futuralização da humanidade e a
correlação de potencialidade permitem produzir um imaginário
que coloca a criança como sendo o futuro da nação.
De forma a compreender a garantia jurídica de vir-a-serbom-sujeito atrelada à categoria criança, consideramos relevante
pensá-la por meio do ludicismo que é aí instaurado. Cabe destacar
que o termo foi inspirado no termo juridismo tal como cunhado
por Lagazzi (1988). Sucintamente, podemos dizer que o juridismo
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Para Foucault (2010),
a criança, como os loucos, os criminosos, os
doentes, os desviantes,
estariam sob mecanismos de poder que exercem sobre eles efeitos de
repressão, de desqualificação, de desconhecimento, de privação; em
suma, “o arsenal dos
conceitos e mecanismos
negativos da exclusão”
(FOUCAULT, 2010, p.38).
4
é uma definição que desvela estreiteza das relações de poder interpessoais cotidianas. O jurídico corresponde à legislação concebida por uma sociedade, o que configura o sistema jurídico. Já o
juridismo é compreendido como “intertextualidade da instância
jurídica, do Direito” (LAGAZZI, 1988, p. 46). O juridismo está
atrelado ao dizer cotidiano que implica o jurídico sem explicitá-lo,
ou melhor, como a relação dos direitos e deveres deriva para o
senso comum. Isso significa que “se mantém uma certa mobilidade
(flexibilidade) entre direitos e deveres, responsabilidades, cobranças e justificativas no cotidiano. [...]. A implicitação é o ponto de
sustentação da ordem cotidiana, porque é por onde o simbólico
se mantém” (LAGAZZI, 1988, p. 46-47).
Intentamos averiguar como a relação da criança com o
jurídico é promovida, visto que não há como não se assujeitar
à forma histórica do sujeito de direito. Em outros termos, nosso
objetivo é analisar, do ponto de vista discursivo, como o jurídico
instaura a relação com a criança, produzindo para tal a categoria
vir-a-ser-sujeito. Mais especificamente, procuramos compreender
como os efeitos de futuridade (visto ser a criança considerada um
vir-a-ser) e de proteção são produzidos no discurso sobre a criança.
É na instância do jurídico que o sujeito do capitalismo se
constitui e não é fora dessa instância que a criança também é
constituída como sujeito. Entretanto, algumas observações precisam ser apreciadas. A relação do adulto com a criança pauta-se
em relações hierarquizadas de comando-obediência (LAGAZZI,
1988) nas quais a voz da criança não tem vez ou lugar. Quando
falamos de obediência, referimo-nos à obediência à medicina,
à psicológica, à pedagogia, ao direito que produzem discursos
sobre a categoria criança. É uma relação tutelar, uma vez que a
criança é instituída juridicamente como aquele que necessita de
proteção e de preparação4.
Embora não se dê vez à voz da criança, são permitidos a ela
o jogo com as palavras, as rimas, os trava-línguas, os chistes, a
ambiguidade (colocada apenas como um problema de linguagem)
em suma, não ter clareza em seu dizer. Todavia, a criança deve
“aprender”, via educação, vir a ser um sujeito ao mesmo tempo
livre e submisso, detentor de direitos e cumpridor de deveres, autônomo e responsável. Essa, contudo, não seria tão somente uma
questão de aprendizagem, mas, em termos discursivos, podemos
compreender como assujeitamento à forma-sujeito histórica.
O ludicismo, tal como estamos propondo, perpassa a relação
da criança-aluno, criança-não-trabalhador, criança-consumidor,
com o jurídico, uma vez que é uma relação que não explicita o
jurídico na constituição desse vir-a-ser-sujeito. Podemos dizer que
o ludicismo está a serviço do aparato jurídico.
Vale sublinhar que o ludicismo não tem relação com o conceito de discurso lúdico desenvolvido por Orlandi (2003). Esse supõe
o non sense, o real da língua. Pensamos o ludicismo no nível da
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constituição do discurso de divulgação científica para a criança.
Dessa forma, os processos sócio-históricos e ideológicos ali se
encontram. É uma relação imaginária – ou como aponta Orlandi
(idem), o “faz de conta” que constitui a relação do jurídico com a
criança, na qual criança é falada em um espaço de previsões.
A categoria criança é atravessada por vários dizeres, de
várias ordens, mas, sobretudo, é atravessada pelos dizeres sobre
a sua fragilidade, imaturidade, curiosidade, afetividade. Em
suma, é atravessada pelo ludicismo de forma a ser assujeitada à
forma-sujeito histórica.
Algumas palavras finais
Neste artigo, trabalhamos com os textos que apontam a
dispersão do discurso sobre a criança, visto que tínhamos como
objetivo compreender a categoria criança. Cumpre destacar que
as análises foram realizadas a partir de um corpus composto por
diferentes materialidades textuais. Para analisarmos a categoria
criança retomamos as reflexões de Haroche (1992) e Orlandi (2002)
sobre o sujeito-jurídico do capitalismo e os trabalhos realizados,
sobretudo, no âmbito da história.
Observamos que, com a irrupção de um novo modo de
produção, a criança foi associada a um período demarcado na
linha do desenvolvimento humano, que é a infância. A criança,
ou melhor, a categoria criança passou a ser falada em um espaço
de previsões. A criança (ao menos a criança de uma determinada
classe social) deixou de ocupar lugar na produção. Por extensão,
por não trabalhar/fazer, a improdutividade foi imputada ao
não-saber. Assim sendo, a criança passou a não fazer e a não
saber. Essa condição a definiu como um de vir-a-ser-sujeito. Juridicamente, a criança não fala, mas é falada pela medicina, pela
psicologia, pela pedagogia, pelo direito – campos autorizados a
observar a criança, demarcar atitudes para distintas faixas etárias,
pronunciar sobre seu desenvolvimento, etc. Uma outra questão
mereceu destaque. O jogo (desvinculado da seriedade adulta)
tornou-se, historicamente, imbricado nas práticas da criança. A
“especialização do mundo infantil” produz consenso: a forma
de falar a criança. A relação da categoria criança com o jurídico é
marcada por um laço pautado no que denominamos ludicismo,
uma relação de ordem imaginária, pautada pela futuridade, que
faz funcionar uma determinada formulação do discurso sobre
criança.
Abstract
This paper aims to investigate the way the discourse about children operates. It is based on the
theoretical principles of French Discourse Analysis, on the tradition concocted by M. Pêcheux.
180
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Notions such as child as a category and ludicismo
were proposed in an attempt to understand the
way the meanings of subject-child are constituted
to make sense through the discourses that circulate
in our society. The survey has indicated that the
discourse about the child is traversed by a ludicismo that implies the relationships established with
the legal sphere, concealing it through playing and
game. Ludicismo is also characterized by a projection of the child’s future, the subject’s will-be.
Keywords: Discourse about children; category;
ludicismo
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VORCARO, Angela. A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2004.
182
Niterói, n. 34, p. 167-182, 1. sem. 2013
Processos, modos e mecanismos
da identificação entre o sujeito
e a(s) língua(s)
Maria Onice Payer(UNIVÁS)
Resumo
Este artigo apresenta resultados de pesquisa que
tem como objeto de investigação os processos
de identificação que envolvem a relação sujeito/
língua(s), seus modos de constituição e seus
mecanismos de aparecimento no discurso. São
observados sobretudo processos da prática de
ensino-aprendizagem de língua materna. Localizamos e descrevemos diferentes modos e mecanismos específicos pelos quais as relações entre o
sujeito e a forma material da língua formadas na
história funcionam discursivamente, na atualidade, em um nível constitutivo, e se marcam na
materialidade da linguagem. O objetivo é precisar
o funcionamento dessas identificações de modo a
contribuir com o trabalho sobre a linguagem na
prática do ensino de língua.
Palavras-chave: identificação; sujeito; ensino;
língua materna; discurso.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013
Introdução
Este artigo resulta de preocupações que vêm sendo trabalhadas em estudos e pesquisas mais amplos, que têm como objeto de
investigação a relação sujeito/língua(s)1, especialmente os processos
de identificação que ocorrem envolvendo essa relação, seus modos
de constituição e seus mecanismos de aparecimento no discurso.
Neste texto expomos alguns resultados de pesquisa que se vão
delineando sobre o funcionamento dessas identificações entre o
sujeito e as línguas específicas e/ou formas da língua diversas,
sobretudo na prática de ensino-aprendizagem de língua materna2.
Nos processos de identificações com a língua nessa prática, localizamos e descrevemos diferentes modos e mecanismos específicos
pelos quais as relações entre o sujeito e as (formas das) línguas
produzidas na história, envolvendo eventos com a língua, funcionam discursivamente na atualidade, em um nível constitutivo, e
se marcam na materialidade da linguagem.
Nosso objetivo é precisar o funcionamento dessas identificações de modo a contribuir com o trabalho sobre a linguagem
na prática do ensino de língua, bem como em outras práticas em
que a acuidade com a língua e os sentidos seja relevante. Para isso,
vamos sistematizar os mecanismos discursivos observados no
aparecimento dessa relação sujeito/língua, e também vamos expor
uma direção de trabalho que se vem esboçando com os sujeitos,
considerando a história em que as relações com a(s) (formas das)
língua(s) se estabeleceram.
A questão
P r o j e t o D i s c u r s o,
Memória e Ensino de
Língua, vinculado ao
Grupo de Pesquisa Prát icas de Li ng uagem,
Memória e Processos
de Subjetivação, cadastrado no Diretório de
Pesquisa do CNPq.
2
Agradeço à FAPEMIG
pelo apoio à apresentação e discussão destes
resultados desta pesquisa no XXVII Encontro
Nacional da ANPOLL
– UFF, Niterói, 10 a 13
de julho de 2012.
1
184
Em certo sentido, a questão da identificação do sujeito à
língua, como correlata da interpelação, encontra-se no cerne da
semântica discursiva em que as noções de sujeito, historicidade e
ideologia se impõem à consideração da língua, sobretudo em seus
aspectos sintático e lexical, enquanto base linguística dos processos discursivos (PÊCHEUX, 1975; 1988). Por outro lado, a noção de
identificação, quando mobilizada relativamente ao quê e ao como
se ligam o sujeito e determinadas formas materiais da língua
(ORLANDI, 1996), conforme vamos trabalhar adiante, adquire
outros sentidos, que a especificam teoricamente, ao mesmo tempo
em que abrem semanticamente para a direção de compreender o
funcionamento desta identificação especificamente na relação do
sujeito com a(s) língua(s), no sentido de línguas específicas, variedades de língua e formas materiais distintas, onde o que está em
jogo é a pluralidade de efeitos de sentido que se produzem por/
em uma forma linguística ou outra, bem como o efeito-sujeito (de
língua) que delas resulta.
Na primeira acepção entende-se o funcionamento da identificação sujeito/sentido que se ressalta no cerne da análise de
discurso, quando M. Pêcheux (1988) assinala à Linguística, pela
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filosofia espontânea do sujeito que a acompanha, o fato de que o
indivíduo não é fonte de seus sentidos, e de que “a ‘evidência’ da
identidade oculta que esta resulta de uma identificação-interpelação do sujeito, cuja origem estranha é, contudo, ‘estranhamente
familiar’” (PÊCHEUX, 1988, p. 155). Na direção da segunda acepção, procuramos trabalhar sobre os processos de identificação
em que a língua, sua forma específica em relação ao conjunto de
línguas e de formas, se expõe também como algo que participa
da construção do objeto do discurso, onde o processo de significação incide sobre e advêm especificamente da materialidade
linguística historicamente instalada, de seus sentidos socialmente
aceitos como memória e de seus efeitos no sujeito, no seio dos
processos de significação. Nesta acepção, a identificação do sujeito
em relação às línguas e às suas diferentes formas, como parte do
processo de significação, volta-se de modo peculiar sobre a base
linguística, assinalando pontos nessa materialidade em que a relação do sujeito com o sentido – a significância – encontra-se em
dependência direta de uma impressão de coincidência (ou não)
com a forma material.
M. Pêcheux (1969) assinalou o valor das imagens que os
sujeitos do discurso se fazem de si e do interlocutor como parte
fundamental do fato discursivo, chamando a atenção para que
também o objeto do discurso (referente) seja compreendido como
um objeto imaginário, de onde resultam as diferenciações e disputas entre formações discursivas que instituem e fazem circular os
diversos referentes. Nesse sentido, o que está em questão quando
se fala em identificação na relação sujeito/língua(s) pode ser indicado ao se pensar, com o autor, que também em torno do “código”
(língua) há imaginários funcionando, de modo que a imagem que
os sujeitos fazem da(s) língua(s) e das variadas formas em que o
objeto do discurso é dito, participa igualmente da produção dos
efeitos de sentido, da construção discursiva do referente, assim
como do efeito-sujeito em seu perfil linguístico.
Referencial teórico e antecedentes
Trabalhamos no campo da análise de discurso de orientação
francesa, em sua relação constitutiva com o materialismo histórico
e a psicanálise. Como dispositivo analítico operamos, fundamentalmente, com a noção de forma material da língua tal como elaborada por Orlandi (1996), para quem a noção de estrutura permite
transpor o limiar do conteudismo, mas ela não basta, pois faz estacionar
na ideia de organização, de arranjo, de combinatória. Segundo a autora,
“é preciso uma outra noção. Esta noção, a de materialidade,
nos leva às fronteiras da língua e nos faz chegar à consideração
da ordem simbólica, incluindo nela a história e a ideologia.
Foi, sem dúvida, a crítica feita ao conteudismo – enquanto
perspectiva teórica (filosófica) que mantinha, apesar do estruturalismo (ou justamente por ele), a separação estanque entre
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forma/conteúdo – que nos abriu a possibilidade de [...] pensar
não a oposição entre forma e conteúdo, mas trabalhar com a
noção de forma material, que se distingue da forma abstrata
e considera, ao mesmo tempo, forma e conteúdo enquanto
materialidade. [...] na língua, tem-se a forma empírica (“pata”),
a forma abstrata (p/b) e a forma material (linguístico-histórica,
ou seja discursiva)” (ORLANDI, 1996, p. 46-49).
Trabalhamos também com a noção de silêncio, constitutivo e
local (ORLANDI, 1992), e de memória, como memória discursiva,
como interdiscurso e enquanto base que regulariza materialidades
discursivas complexas (PÊCHEUX, 1988; 1999), e como memória
do dizer (ORLANDI, 1999); memória do enunciado (COURTINE,
1999); memória da/na língua e as dimensões materna e nacional
que revestem as línguas (PAYER, 2006, 2007, 2011; RÈVUZ, 1998),
bem como a noção de processos subjetivos investidos na inscrição
do sujeito em uma língua estrangeira (CELADA, 2001, 2011).
Também consideramos a história das ideias linguísticas
e a constituição da língua nacional no Brasil (AUROUX, 1992;
ORLANDI, 2001; ORLANDI e GUIMARÃES, 1996) em que se
descrevem processos de gramatização e de institucionalização das
línguas no mundo e o modo como os processos históricos ocorrem
na relação do Estado e da sociedade brasileiros com a língua, com
interpretações advindas de perspectiva teórica não propriamente
histórica, mas discursiva, semântica e da própria área da história
das ideias. Esta abordagem possibilita observar lugares e modos
sócio-históricos e políticos da produção científica sobre a língua,
assim como suas representações e discursos sobre a língua que
se vão produzindo na história e configurando as práticas de linguagem, incluindo o ensino (ORLANDI E GUIMARÃES, 1996;
ORLANDI, 2009; MARIANI, 2004).
Nesse campo teórico e no contexto dessa discussão envolvendo o discurso, a historicidade e a(s) língua(s), a pesquisa em que
se estabeleceram as bases para configurar um campo de questões
sobre a memória discursiva, as identificações e a língua, de nossa
parte, incidiu sobre a memória da língua da imigração italiana
no Brasil, passando pelas intercorrências políticas e ideológicas
em torno do nacionalismo na década de 1930, que resultaram em
uma forte tensão entre a língua nacional brasileira e as línguas
maternas dos imigrantes, o que culminou na interdição destas
últimas e consequentemente interferiu na constituição desses
sujeitos de lingua(gem). Por essa via tenho estudado a noção de
memória discursiva (o interdiscurso, a memória do dizer, a condição do legível) pensando-a relativamente à língua. Esses estudos
permitiram configurar um campo de questões que especificam
o processo de identificação dos sujeitos em relação à língua, seja
como língua materna, seja como língua nacional, segundo uma
modalidade própria de identificação que é a que se dá em torno
da memória da/na língua (PAYER, 2006).
186
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A obra citada é “A
Desidentificação”, in
O. Man noni et al. As
identificações – na clínica
e na teoria psicanalítica.
Rio de Janeiro: Relume
Dumará, p. 196.
3
Assim considerados, pelos processos discursivos observados, transcorridos na história dos sujeitos, produzem-se certos
fatos de linguagem que se compreendem como decorrentes dos
processos de identificação que se dão na história da relação sujeito/
língua(s), envolvendo acontecimentos como o silenciamento de
uma língua no domínio público, a sua permanência no domínio
privado, pelo que ela pode vir a ocupar lugares específicos no
simbólico, pelas vias tanto da memória discursiva sobre a língua,
quanto da memória na língua ela mesma, em estruturas transformadas, que se vêm apresentar nas franjas (traços, marcas) da
língua materna apagada.
Em pesquisas anteriores descrevemos alguns processos de
identificação sujeito/língua(s) através de eventos na linguagem,
como o riso que acompanha enunciados em dialetos, o canto na
língua dos antepassados, a denegação dessa língua na constituição linguística do sujeito, a ultracorreção em língua nacional e as
marcas de dialetos italianos nos mais diversos níveis da língua, em
que atua certa memória e identificação a outra língua (“passada”):
na memória fonética, morfológica, semântica, lexical, sintática, em
expressões e em fragmentos isolados nas conversações cotidianas
(PAYER, 2003; 2006).
Estudando os processos identificatórios na inserção em segundas línguas, Serrani-Infante (1998) observa que essa inserção
se dá também em discursividades da língua alvo, uma vez que
sentidos encontram-se instalados na língua anteriormente (interdiscurso). Trabalhando com conceitos da análise de discurso e da
psicanálise, a autora considera a identificação como “a condição
instauradora, a um só tempo, de um elo social e de um elo com
o objeto de desejo do sujeito” (SERRANI-INFANTE, 1998, p. 252).
Nesse sentido, ressalta que “aquilo que está em jogo, sempre,
numa língua ou em outra, é dizer-se a própria verdade de sujeito do discurso e do inconsciente, e isso será o determinante no
acontecimento da aquisição e suas implicações identitárias” (Idem,
p. 258). Citando O. Mannoni3, observa que “uma identificação é
uma captura. Aquele que se identifica talvez creia que está capturando o outro, mas é ele quem é capturado” (Idem, p. 253).
Entendemos que os processos de identificação entre o sujeito
e a(s) línguas envolvem também lugares de interpretação do sujeito e a sua relação com as imagens das línguas e as dimensões
(materna, nacional, estrangeira) que elas ocupam relativamente
à história, tais como as imagens e dimensões de língua materna,
estrangeira, de imigrante, indígena, de prestígio, popular, etc.
Participam da formação dessas imagens que presidem os processos de identificação os movimentos das políticas de línguas,
nas práticas discursivas como a propagação, a injunção, a interdição e o silenciamento das línguas, pelas situações de conflito e
tensões entre a língua materna e a nacional, situações de apego
ou desprendimento, de passagem pelo sujeito de uma língua a
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outra, como nas imigrações, refúgios e exílios, sempre segundo
condições de produção específicas.
A propósito desses eventos e relações com a língua, lembramos a elaboração de C. Révuz (1998) segundo a qual a língua
“não é e nunca será totalmente dissociável do modo singular
pelo qual ela foi encontrada através das falas das pessoas a seu
redor”. A língua “é vivenciada, intimamente, como uma língua
que diz o prazer ou o reprova, uma língua que desfere a verdade
sobre o mundo e as pessoas ou que, pelo contrário, deixa um espaço para algo não-sabido, não-compreendido, espaço que a fala
do sujeito poderá ocupar” (RÈVUZ, 1998, p. 26). Há razões para
considerarmos que também eventos mais contundentes e amplos
em relação à língua, tais como a interdição e a desqualificação ou
a difusão e o culto imprimem a sua força e as suas marcas a esse
“modo singular” pelo qual ela é encontrada pelo sujeito através
das falas das pessoas ao seu redor.
Processos, modos e mecanismos
da identificação sujeito/língua(s)
Em algumas práticas de linguagem a relação do sujeito com
a(s) língua(s) tal como se formou na história é posta mais diretamente em questão, também como objeto de discurso. Os campos
da pedagogia, alfabetização, escrita, ensino de língua estrangeira,
materna, literatura, assim como situações de (i)migração são algumas dessas práticas, nas quais vimos observando esta relação, e
de que fazem parte os materiais de análise a que nos dedicamos,
constituídos de produções de linguagem oral e escrita, como
textos, escritos, leituras, aulas de alfabetização, conversas entre
profissionais destas áreas e entrevistas. Nestes materiais analisam-se a relação dos sujeitos com a(s) língua(s) em atividades de
linguagem como negociações, diálogos, debates, injunção a dizer,
bem como nos aparecimentos circunstanciados de determinados
mecanismos que indicam certos modos de identificação com a(s)
língua(s). Alguns se manifestam através do riso, ao rir da língua,
pela língua; outros no gesto de cantar determinadas canções e
músicas em línguas específicas, de imigração ou estrangeiras; na
supervalorização da língua; na denegação da presença de dada
língua, bem como na ultracorreção, no equívoco e em manifestações de estranhamentos (FREUD, 1919) em relação às formas
da língua.
As identificações do sujeito quanto à língua e suas formas
materiais se produzem, portanto, em processos constituídos na
historicidade dessa relação. A história predispõe assim a relação
dos sujeitos com as línguas que se lhe apresentam, enquanto objetos simbólicos, políticos e artísticos. A relação sujeito/língua(s)
é atravessada por movimentos de (des)identificação em que se
processam semelhanças e diferenças entre formas linguísticas
e históricas, estranhamentos e reconhecimentos, aceitações e
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recusas, enfim, movimentos através dos quais vão se instalando,
de um modo e não de outro, as (des)identificações entre sujeitos
particulares, sempre tomados em uma rede de eventos e relações
históricas, e as formas específicas, atravessadas portanto por relações diversas, tensas ou de deleite, admiração e culto (cultivo),
especialmente no interior do Estado Nacional Moderno.
Em trabalhos recentes na docência e pesquisa junto a professores de língua(s), vimos observando que no tecido discursivo
manifestam-se esses pontos de tensões, de estranhamento ou de
adesões em relação à língua, e entendemos essa manifestação
como sintoma de algo significativo em relação à história do sujeito
com a língua, na formação de um sujeito apto à significação – algo
que retorna, indicando um material a ser ouvido, interpretado e
trabalhado sobre a relação do sujeito com a língua(gem).
Atentos a essas manifestações, passamos a anotar os modos
diversos pelos quais elas irrompem na materialidade discursiva,
indicando os pontos a serem trabalhados com os sujeitos específicos sobre o que os constitui nessa relação com a língua.
Assim, para a presente pesquisa, a hipótese de trabalho que
se apresenta é a de que esses processos de identificação na relação
sujeito/língua(s) vêm manifestar-se no tecido discursivo através de
modos e de mecanismos específicos pelos quais se expõem as identificações já constituídas com a língua. Objetivamos circunscrever
os modos de relação e mecanismos discursivos desse processo a
fim de descrever/interpretar como funciona essa identificação.
Trabalhamos a ideia de que a prática ou a interlocução atual
joga um papel importante no aparecimento circunstanciado desses
mecanismos. Alguns desses modos e mecanismos pautam-se
na materialidade linguístico-discursiva, outros se manifestam
em modos discursivos diversos, outras materialidades e outras
ordens, tais como a ordem corporal, pelo riso e expressão facial.
Os processos de identificação em relação à(s) língua(s) são
constitutivos do sujeito de linguagem, participando da subjetivação no que diz respeito às línguas, bem como à relação que aí se
estabelece dos sujeitos com a linguagem, configurada que é por
interdições e injunções a uma língua e não outra, a um modo de
dizer e não outro. Essas regionalizações linguísticas que recortam
o dizível foram observadas por M. Pêcheux (1975), em um sentido
um pouco diverso, pela metáfora de que no interior da mesma
língua se falam “línguas diferentes”, e que em seu texto remete
a diferentes formações discursivas no dizer. Podemos retomar
essas imagens considerando com o autor que enunciar em uma
ou outra língua ou forma material produz inscrição em uma ou
outra formação discursiva.
Nos fatos, essas separações (regionalizações) da língua nem
ocorrem de maneira tão distinta e linear. É também em uma
teia de efeitos de sentidos e posições-sujeito que essas formas se
vinculam, se sobrepõem e se (des)ligam. Importa assinalar que
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os efeitos de sentidos que resultam dessas relações do sujeito com
as línguas e suas formas diferentes (re)aparecem no tecido do
discurso, indicando a densidade dessas identificações produzidas
na história e que se reapresentam de algum modo nas atividades
de linguagem e na materialidade do discurso.
Esse reaparecimento se dá, pois, de diferentes modos. Ora
essas identificações são representadas pelo sujeito, como uma
presença/ausência de outra língua, ora aparecem de modo
constitutivo, na exterioridade dessa representação, tomadas
como evidências da língua, da linguagem, dos sentidos, de uma
corporeidade afetada pela significação.
No que se segue, apresentamos algumas situações de linguagem e um esboço de análises em que a identificação sujeito/
língua, tal como está constituída no discurso, vem expor-se na
superfície do dizer, manifestando-se de diversos modos.
Situações e análises
1. Clarice Lispector escreve em uma de suas crônicas a palavra outrem, fazendo-a acompanhada de todo um entorno que diz
respeito à relação com a língua, através desta palavra.
“entregar-se a pensar é uma grande emoção, e só se tem
coragem de pensar na frente de outrem quando a confiança
é grande a ponto de não haver constrangimento em usar, se
necessário, a palavra “outrem”. Além do mais exige-se muito
de quem nos assiste pensar: que tenha um coração grande,
amor, carinho, e a experiência de também se ter dado ao pensar” (C. Lispector, Brincar de pensar, in A descoberta do mundo.
Grifos nossos).
Sobre a forma material do português arcaico, onde ele
se mescla com o registro em latim (qual o limite entre essas
memórias das línguas?), a escritora formula algo sobre a confiança
e o constrangimento de enunciar ou não um elemento como este
(outrem) na escrita. O sentido de constrangimento mencionado
remete ao tema do estranhamento em face das formas da escrita,
tal como manifesto por crianças em alfabetização (SOUZA, 2010),
que retomaremos adiante. Nesta situação encontra-se portanto um
procedimento metaenunciativo (AUTHIER-REVUZ, 1998) sobre
a (forma da) língua e seus efeitos.
2. A coordenadora de pós-graduação lato sensu de uma
Universidade, sujeito de quem se tem a imagem de experiente e
ativo nos campos acadêmico, médico e político, conversa engajadamente ao telefone, explicando ao interlocutor uma situação
um pouco complicada, e em dado momento se desculpa de um
modo peculiar, com a forma descurpa, com ênfase na variação
consonantal pronunciada. Pelo tom engajado da conversa, embora
institucional, o pedido de desculpas possivelmente fosse considerado desnecessário para os interlocutores, mas dadas as posições,
mesmo assim ele se realiza, parcialmente, como em um jogo em
190
Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013
que se dissesse: você e eu sabemos que não seria necessário isso, mas
pela posição de que estou falando, é o caso de dizer... Essa multiplicidade
de sentidos se materializa na substituição da forma desculpa (me
desculpa ou desculpa(e)-me) por outra forma que pode ser interpretada como alheia, pronunciada por uma “voz anônima”.
Dito desta forma, nesse contexto, o enunciado produz um
efeito de ambiguidade e pluralidade entre realizar efetivamente o
gesto de se desculpar e indicar que ela sabe que naquela específica
relação este gesto seria até certo ponto dispensável. Não é o caso
de optar entre um ou outro efeito, pois discursivamente o que tem
valor de expertise nessa interlocução está justamente na pluralidade
de efeitos com que se enuncia, e que se marca através da simulação
de uma forma linguística que a princípio seria diferente da “sua”
própria. Outras situações de simulação analisadas assemelham-se
à imitação de outro interlocutor, de outra posição discursiva.
3. Crianças em situações de alfabetização, tal como analisadas por Souza (2010), como antecipamos, expressam com
frequência seus estranhamentos diante das diferentes formas da
língua, as que já sabem e as que devem vir a conhecer na escrita.
Uma situação marcante dentre essas manifestações ocorre quando
uma das crianças, diante da intervenção corretora da professora
alfabetizadora, contra-argumenta: “mas o meu pai fala assim”. Souza
reflete sobre o modo como a criança explicita, sobre a língua, a
observação de que a forma linguística usada por ela (assim como
pelo pai, pela mãe, pela comunidade) – e que constitui língua em
sua memória discursiva – não seja acolhida pela professora. Trata-se de uma situação em que a criança se depara com a divisão
tanto da língua quanto da autoridade de quem institui para ela
a língua. Sabe-se que, conforme a teorização lacaniana, a figura
paterna representa a lei. Pela análise de discurso, o pai representa
uma posição discursiva que funciona na base da imagem de autoridade. Nesta situação está-se diante de um ponto de irrupção
do modo como está constituída a relação da criança com a forma
da língua, e a resistência a desidentificar-se com essa forma.
4. C. M. da Silva (2012) explicita como os sujeitos procedentes
de diferentes processos de imigração (esporádica, esparsa, em
massa, do pós-guerra) têm as suas identificações com as línguas
materna e nacional afetadas de modos distintos. O pesquisador
observa:
para os imigrantes em massa, que conheceram [...] a interdição de sua língua, não é indiferente falar em português ou
em italiano, enquanto para os imigrantes esparsos e dos do
pós-guerra, que não conheceram essa interdição pontual, a
passagem de uma língua a outra se faz sob o efeito de uma
‘naturalidade’, como eles dizem. Não há a marca de língua
interditada em relação ao italiano como língua materna,
tampouco a imagem da língua portuguesa como ligada a um
funcionamento jurídico-político (SILVA, 2012, p. 56).
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191
Nessa situação, nota-se como os acontecimentos linguísticos
marcam o sujeito constituindo diferentemente a sua relação com
as línguas, de modo a produzir em relação à sua enunciação diferentes efeitos, como o de naturalidade, na evidência da linguagem,
e ausência de intervalos de silêncios significativos, indicativos,
segundo a interpretação do pesquisador, de intervenções vivenciadas em relação à língua e sua história, como fica ressaltado
nas entrevistas com os imigrantes do pós-guerra. Nesta situação
podemos destacar, das relações de (des)identificação com as
línguas, a irrupção do silêncio, o efeito de naturalidade no dizer
e a presença de efeitos jurídico-políticos na enunciação de uma
língua ou outra.
5. Consideremos ainda as inúmeras situações de riso que
seguem enunciados com formas linguísticas de dialetos de imigrantes – em massa, que se defrontaram com a interdição oficial
da língua materna. Junto ao riso ocorre a imitação dos jovens (falantes de português) em relação aos velhos (falantes de dialetos
ou com suas marcas acentuadas), numa ambiguidade entre uma
identificação carinhosa e a exposição da alteridade linguística.
Consideramos que a manifestação do riso diante das formas
linguísticas constitui uma manifestação de (des)identificação de
outra ordem, uma manifestação corpórea de pontos de tensão,
que não passa pelo trabalho da formulação do equívoco pela
simbolização da diferença, como vimos formular-se na situação
acima analisada4.
6. Alunos do ensino médio foram mobilizados para ler
crônicas de C. Lispector e em seguida escrever sobre sua leitura
(SILVA, 2012). Dentre esses escritos encontram-se sinais de uma
identificação constitutiva, na escrita de uma das alunas (Marina), com a leitura da literatura desta escritora, assim como uma
imitação de suas formas literárias: a pontuação, a construção
sintática, a simulação de uma enunciação cotidiana, entre outros.
Apresentamos um fragmento de texto da aluna:
Desenvolvimentos
de análises do riso, da
denegação, da ultracorreção e do canto como
modos do processo de
identificação em língua
materna encontram-se
em Payer, 2003.
4
192
Já ouvi falar, não me lembro quem falou e muito menos quem
a escreveu, mas ouvi! E era uma frase que dizia mais ou menos assim “toda felicidade vem embrulhada num fino papel
de tristeza.” E foi dessa frase que me lembrei lendo a crônica
“Medo do desconhecido” de Clarice Lispector. [...] E pensando
no que escreveria agora, lembrei-me de uma outra frase de
Clarice Lispector “O que sinto não é sempre o que sinto e sim
outra coisa”. Porque esse não é um texto, são palavras unidas
expressando um “pensar”. Isso é texto? Sei lá. Mas não quero
expressar o que sinto de um modo grosseiro, por isso escrevo
agora com o coração. Talvez o mesmo coração que Clarice, acho
que agora ela está em mim e isso me traz felicidade, a mesma
felicidade vaga e inexplicável de que ela falava na crônica...
(SILVA, 2012, p.100-101).
O texto da aluna indica ainda a formulação de uma relação
de intertextualidade em sua relação com a leitura de outros textos
Niterói, n. 34, p. 183-196, 1. sem. 2013
da autora, bem como uma desidentificação, se não resistência crítica, com o gênero textual da “redação”, tema insistente no ensino
médio envolvido com a preparação para o vestibular.
Mencionamos acima algumas dentre as muitas e diversificadas situações de linguagem reunidas no corpus da pesquisa, a
fim de indicar como se expõem os modos diversos (constitutivos,
representados ou de outra ordem, como a corporal) dos mecanismos discursivos que manifestam na materialidade do discurso
o funcionamento de um processo de identificação do sujeito
em relação à(s) língua(s) e formas linguísticas presentes em sua
história e nas práticas discursivas atuais. Podemos sistematizar
estes e outros mecanismos, já estudados em outros momentos,
em um esquema como o que segue.
1. Procedimentos meta-discursivos sobre língua: comentários, mecanismos meta-enunciativos.
2. Modos não-formulados: equívocos, ironia, lapso, estranhamento, autocensura.
3. Relação não representada com a língua: denegação, ultracorreção, imitação, simulação.
4. Irrupção de ordem corporal: riso, expressão facial, gesto.
5. Formulação representada: explicitação de pontos de
identificação e de (des)identificação com a língua.
Não vamos aqui, pelo espaço-tempo deste texto, descrever
todos os mecanismos mencionados no esquema acima, que foram
e estão sendo objeto de trabalho em outras partes da pesquisa.
Apenas gostaríamos de assinalar um modo de organização destas relações, enquanto processos (de identificação), modos (representados ou não, formulados ou não, irrompendo em ordens e
materialidades significantes diferentes), e mecanismos pelos quais
se manifestam na materialidade discursiva essas (des)identificações (meta-enunciação, ironia, imitação, etc.). Esta organização,
ao nosso ver, dá conta de indicar a especificação conceitual da
noção de identificação, como dissemos no início, ao abrir para
uma direção que a considera, no seio do discurso, na relação do
sujeito com a(s) língua(s).
Dentre esses modos e mecanismos, gostaríamos de ressaltar
um deles, que ao nosso ver tem um valor crucial para a prática de
ensino de língua. Trata-se, no domínio da representação, da formulação desses processos. Consideramos importante que os sujeitos
de linguagem possam alcançar essa capacidade de formulação, de
modo a poder colocar em palavras, dar linguagem, elaborar esses
pontos de (des)identificação que constituem a sua relação com as
formas materiais, com os sentidos, como “gestos reconhecidos e
não denegados”, como diria Michel Pêcheux (1982).
A direção de trabalho em que se está investindo desse
modo é de que esses pontos tensos da história dos sujeitos com
a(s) língua(s) possam ser trabalhados de modo a se tornarem
saberes para o/do sujeito sobre si mesmo e sobre as línguas. Em
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193
uma história cheia de multiplicidade silenciada como a nossa,
há indícios de todo um material de memória das línguas (seus
sentidos e seus sujeitos) funcionando de modo subterrâneo, não
reconhecido e pouco institucionalizado. O predomínio entre nós
do formalismo e do positivismo em termos de história das ideias
linguísticas dificulta uma representação mais condizente com os
sujeitos simbólicos realmente presentes em nossa história social.
Além disso, notam-se marcas impressas nos sujeitos em práticas
escolares repressoras sobre a língua, que incidem na sua relação
com a linguagem, levando a uma redução dessa relação, na escola,
a uma relação com a forma, em detrimento dos efeitos de sentido.
Há uma potencialidade no material simbólico que atua nos
subterrâneos, em um e em outro caso, demandando olhar, escuta,
atenção e um trabalho qualificado, enfim, sobre as marcas dessas
relações. Esse trabalho pode levar esse material a deixar de atuar
no obscuro dos sentidos e vir a tomar lugar na superfície do dizer,
em formulações expressas e representações “que dizem a própria
verdade de sujeito do discurso e do inconsciente”, como dizia
Serrani-Infante (1998).
Num grau máximo desse trabalho qualificado sobre a relação sujeito/língua, esses pontos de (des)identificação podem vir
a ser exercidos politicamente, e também vividos poeticamente,
à maneira de C. Lispector, que soube explorar tão bem as suas
próprias (des)identificações em relação à língua, aos sentidos, ao
mundo “evidente”.
Concluindo
Procuramos circunscrever e precisar o funcionamento
discursivo indicado por pontos de irrupção, na materialidade
discursiva, da identificação sujeito/língua(s). Para as práticas
profissionais com a língua resta avaliar sua operacionalidade
analítica, a fim de compreender como está se dando para os
sujeitos essa (des)identificação, e como ela pode ser trabalhada
para ganhar terreno sobre o não sabido e o não reconhecido em
relação à língua. Importa aqui pensar esses processos no ensino:
na leitura, na escrita, na elaboração, tanto dos sentidos e do texto
quanto do sujeito de linguagem.
Entender os processos, os modos e os mecanismos dessa
identificação sujeito/língua pode contribuir para compreender
as vicissitudes por que passam os sujeitos no processo de subjetivação, como diz Celada (Payer e Celada, 2011) em sua inscrição
na língua. E isso, sobretudo quando outros processos já se instalaram também na relação entre os sujeitos e as línguas através da
história. Deste modo se compreende melhor como a língua pode
ser posta, no ensino, como objeto não só de conhecimento, mas
também de relação e de identificação.
194
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Abstract
This article presents the results of a research that
has as object of investigation the identification
process that involves the connection between
the subject and the language(s), its manners of
constitution and its appearance mechanisms in
the discourse. Above all, situations on the practice
of learning-teaching of the mother tongue are
observed. We located and described different methods and specific mechanisms through which the
connection between the subject and the material
form of the language formed in history function
discursively, currently, in a constitutional level,
and are marked on the language’s materiality.
The goal is to precise the functioning of these
identifications to contribute with the work about
language in the practice of language teaching.
Keywords: identification; subject; learning-teaching; mother tongue; discourse.
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196
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Identificação, memória e figuras
identitárias: a tensão entre
a cristalização e o deslocamento
de lugares sociais
Evandra Grigoletto (UFPE)
Fabiele Stockmans De Nardi(IFPE)
Resumo
A proposta deste artigo é discutir a noção de
figuras identitárias, observando como a memória
intervém no processo de produção de sentidos,
promovendo a cristalização e/ou o deslocamento
de determinados lugares sociais. Essa noção se
apoia no conceito de figura, que tomamos aqui
enquanto cristalização, no tempo, de uma imagem
que está colada à representação de um lugar social.
A figura aparece como forma por meio da qual é
possível representar esse lugar, podendo sofrer
deslocamentos ao ser discursivizada em diferentes
épocas. Trata-se da forma material de um discurso
fundador (ORLANDI, 2003) que marca o imaginário que se constrói sobre um grupo social. Ao
ocuparmo-nos das figuras identitárias, traçamos
como objetivos centrais deste artigo: 1) produzir
uma teorização acerca dessa noção no campo da
AD, a partir da relação entre os conceitos de figura, memória e identificação; 2) explorar a sua
produtividade analítica, a partir das figuras do
cangaceiro e do compadrito.
Palavras-chave: memória; figuras identitárias;
identificação.
Gragoatá
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Palavras iniciais
Este trabalho surge de uma inquietação acerca do funcionamento dos discursos que se produzem em torno de determinados
lugares sociais, cuja presença-ausência continua ecoando ao longo
do tempo – seja em narrativas histórias ou ficcionais, seja em discursos na internet –, ora como modo de designar a si mesmo, ora
como forma de (des)identificar-se ao outro. Apesar de poderem
apresentar funcionamentos diversos, esses lugares têm em comum
o fato de participarem da construção identitária de grupos sociais.
Observando, então, o funcionamento de alguns discursos acerca
de personagens como o cangaceiro e o compadrito, chegamos à
noção de figuras identitárias (DE NARDI; GRIGOLETTO, 2012).
Entendemos que a figura representa a cristalização de elementos
que caracterizam um lugar social, o qual passa a ser nuclear na
construção identitária de um grupo, ainda que haja incessantes
desdobramentos nos processos de (des)identificação dos sujeitos
com esse lugar.
Partindo dessa reflexão, surgem alguns questionamentos
que orientarão o percurso que realizaremos neste artigo. O que
faz com que essas personagens se colem a diferentes épocas e
discursos, fundando determinados lugares sociais? Qual o papel
das figuras nas construções identitárias e qual o funcionamento da
memória nesse processo? O que caracteriza o funcionamento de
figuras como o cangaceiro e o compadrito nos discursos em análise?
Para refletir sobre essas questões, utilizaremos o referencial
teórico da Análise do Discurso de linha pecheuxtiana, especialmente aqueles trabalhos que se dedicam a pensar as relações entre
a memória e os processos de identificação. Inicialmente, vamos
nos dedicar a discutir a noção de figuras identitárias para, em
seguida, trabalharmos a sua relação com a noção de memória. Por
fim, apresentaremos algumas análises de discursos produzidos
em torno das figuras do cangaceiro e do compadrito.
Figuras identitárias: especulações e desdobramentos
O tratamento das figuras identitárias e de seu lugar nos
processos identificatórios exige que pensemos, inicialmente, no
que vamos entender, neste trabalho, como lugar social. Ao situarmo-nos no campo da Análise do Discurso, somos levados a
observar as relações entre os diferentes espaços que são colocados
em jogo nos processos discursivos. Embora não se trabalhe na
AD com o sujeito empírico, tampouco com uma cisão entre os
espaços empírico e discursivo, é preciso levar em consideração as
determinações sócio-histórico-ideológicas às quais o sujeito está
exposto ao inscrever-se no discurso. Conforme reflexão feita por
Grigoletto (2008, p. 53), entendemos o lugar social “como ponto
de ancoragem para a constituição da prática discursiva”. Assim,
os diferentes lugares sociais que todos nós podemos ocupar, en198
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“Um soldado francês
não recua”, significa,
porta nto, “se você é
um verdadeiro soldado francês, o que, de
fato, você é, então você
não pode/deve recuar”.
(PÊCHEUX, 1997, p. 159)
1
quanto sujeitos empíricos, ao mesmo tempo determinam e são
determinados pelas práticas discursivas. “O sujeito sempre fala
de um determinado lugar social, o qual é afetado por diferentes
relações de poder, e isso é constitutivo do seu discurso. Então, é
pela prática discursiva que se estabiliza um determinado lugar
social/empírico.” (GRIGOLETTO, 2008, p. 54). A noção de figura,
tal como estamos entendendo aqui, funciona, no interior dessas
práticas, contribuindo para a cristalização e/ou deslocamento de
determinados lugares sociais, representativos de grupos específicos que fazem parte da história de um povo: o cangaceiro e o
compadrito. Embora funcionem de forma diversa, essas são figuras
emblemáticas nos discursos sobre a constituição identitária do
nordestino e do porteño. Pêcheux (1975) traz o exemplo do soldado francês1, mostrando como a norma identificadora determina os
lugares sociais de cada sujeito, sob o efeito do ideológico. Portanto,
os lugares sociais ocupados pelos sujeitos em uma formação social
já são moldados em função de condições histórico-ideológicas
específicas. Assim, ao dizer, inscrever-se num determinado discurso, o sujeito carrega traços desse lugar que ocupa socialmente.
No entanto, esses lugares, embora mais estáveis quando se situam
no espaço empírico, podem sofrer deslocamentos/atualizações
ao serem discursivizados. O que nos interessa aqui é justamente
observar como esses deslocamentos são operados em discursos
atuais que tematizam as figuras do cangaceiro e do compadrito.
Ao propormos a noção de figuras identitárias, pensamos
(DE NARDI; GRIGOLETTO, 2012) em um conceito que nos permitisse analisar os processos discursivos mediante os quais se
produzem, em determinados grupos sociais, identidades locais
que se personificam, funcionando como lugares historicamente
constituídos cujos traços vão deixando marcas na constituição
identitária do sujeito. Portanto, tratar do funcionamento dessas
figuras exige que pensemos na própria noção de identidade e sua
compreensão dentro do quadro teórico do AD.
Compreender a identidade como uma construção marcada
pela historicidade é o que buscamos neste trabalho, por isso, ao
pensar as identidades nacionais, voltamo-nos para Hall (2006),
que nos mostra ser a sua produção o resultado de um processo
de enfrentamento com o outro, seja para negá-lo, seja para aceitar
a heterogeneidade e o hibridismo como elementos dessa identidade que se institui. Para o autor, importa lembrar, no entanto,
que por trás de todo o desejo de unidade há sempre o risco de
se suprimir tanto as diferenças culturais, quanto a historicidade
inscrita em todo processo de construção de identidades. Assim,
ainda que não vivamos mais o tempo das identidades nacionais, tais reflexões nos interessam porque todos os processos de
globalização podem levar a um apagamento do local em nome
da criação de uma universalidade. A reação a esse apagamento
pode ser, contraditoriamente, o retorno ao local, o que instaura a
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199
necessidade, segundo o autor, de considerarmos a tensão entre o
global e o local, observando como ela está se articulando.
A atualização do que temos chamado de figuras identitárias
faz com que nos inscrevamos justamente nesse espaço de tensão
para observar se, em alguma medida, essas figuras ainda podem
ser consideradas espaços de identificação dos/para os sujeitos
que fazem parte dos grupos sociais de que elas são representativas. Isso, no entanto, não pode ser feito antes de observarmos
que a noção de identidade, quando deslocada para o campo da
AD, leva-nos a Pêcheux (1997, p. 155) e sua consideração de que a
“evidência” da identidade oculta que esta resulta de uma identificação-interpelação do sujeito, cuja origem estranha é, contudo,
“estranhamente familiar”. Tal evidência produz o ocultamento da
cisão, da movência inerente aos processos discursivos por meio
dos quais a identidade aparece como se fosse UNA. O sujeito,
ao ignorar a sua condição de assujeitado, constitui-se enquanto
fonte e origem do seu dizer e, no repetir incessante dessa suposta
unidade, fabrica-se a cristalização de UM sentido, de UMA identidade, de UM lugar social.
Capturar A identidade está, para a AD, na ordem do impossível, e é por isso que, ao questionar essa evidência, passa-se
a trabalhar com os processos de identificação, procurando compreender momentos de identificação2 por que passa o sujeito,
imerso na dispersão. Para o sujeito da AD, que é “fruto de múltiplas
identificações – imaginárias e/ou simbólicas – com traços do outro
que, como fios que se tecem e se entrecruzam para formar outros
fios, vão se entrelaçando e construindo a rede complexa e híbrida
do inconsciente e, portanto, da subjetividade.” (CORACINI, 2003,
p. 203), não há nunca uma identidade que esteja pronta e a qual
ele possa se acomodar definitivamente: falamos de um sujeito
do/no discurso, atravessado pela ideologia e pelo inconsciente,
rodeado por espaços de identificação com que se filia (ou não) e a
partir dos quais constrói um lugar de dizer. Trata-se de um sujeito
imerso em um processo constante de movimentos de (des)identificação em sua relação com o simbólico, movimentos ancorados
no imaginário que se constrói sobre determinados lugares sociais,
os quais abrigam, em sua discursividade, dizeres e sentidos que
ecoam/ressoam em diferentes momentos sócio-históricos.
Entendemos que é justamente a análise dessas discursividades que nos levará aos indícios de como se constituem e trabalham as figuras identitárias no processo de (re)construção de
identidades locais e/ou regionais. Ainda, para pensar o conceito
de figura, podemos olhar para Pêcheux (1997, p. 154) quando, ao
referir-se à noção de interpelação ideológica, ele recorre a esse
termo. A figura aparece em Pêcheux pela referência que ele faz à
reflexão de Althusser sobre o processo de interpelação, a fim de
mostrar que a figura da interpelação é como uma “ilustração”, um
200
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O que tomamos como
momentos de identificação aqui está relacionado ao que Pêcheux
(1975) teorizou sobre
as modalidades de tomada de posição do sujeito. Essas modalidades resultam, segundo
o autor, da relação de
desdobramento entre o
“sujeito da enunciação”
e o “sujeito universal”,
podendo ocorrer em três
diferentes movimentos
do sujeito. Na primeira
modalidade, que caracteriza o discurso do
“bom sujeito”, há uma
superposição, uma identificação plena entre o
sujeito da enunciação e
o sujeito universal, ou
a forma-sujeito. Na segunda, que caracteriza
o discurso do “mau sujeito”, há deslocamentos,
de modo que o sujeito da
enunciação se contra-identifica com o sujeito
universal. Na terceira
modalidade, há uma
desidentificação entre
o sujeito da enunciação
e o sujeito universal, de
modo a produzir uma
ruptura com os saberes/
sentidos daquele FD em
que ele enunciava, passando a enunciar numa
nova FD (PÊCHEUX,
1997, p. 215-217)
2
“exemplo”, ao mesmo tempo reconhecível e abstrato o suficiente
para dar origem ao conhecimento.
É o caráter de ilustração tratado por Althusser e Pêcheux
que entendemos presente nas figuras identitárias, produzindo,
para o sujeito, a evidência do estar nesse lugar social que uma
determinada figura representa. Assim, a figura aparece enquanto
forma por meio da qual é possível representar, ilustrar esse lugar,
que sofre, no entanto, deslocamentos ao aparecer em discursos
de diferentes épocas. Ela seria, portanto, a forma material, matriz
identitária de um discurso fundador que marca o imaginário que
se constrói sobre um grupo social. Conforme Orlandi (2003, p.
7), “em relação à história, os discursos fundadores são discursos
que funcionam como referência básica no imaginário constitutivo
desse país”, sendo tarefa do analista observar “como é que eles se
estabilizam como referência na construção da memória nacional”.
A figura personifica uma identidade local, constitui-se num
lugar marcante, residual, em que essa construção identitária se
apoia. As figuras não têm necessariamente uma origem única, ou
são frutos de um mesmo processo de aparecimento/criação, mas
compartilham o fato de terem se consolidado em determinados
momentos históricos, passando a ser deles representativas, criando lugares de memória que tendem a se cristalizar. Em trabalho
anterior (DE NARDI; GRIGOLETTO, 2012), recorremos a Pêcheux
(2011, p. 158) para afirmarmos que, ainda que tais figuras não
mais existam materialmente, a referência discursiva delas “já é
construída em formações discursivas (técnicas, morais, políticas...)
que combinam seus efeitos em efeitos de interdiscurso”. A produção discursiva desses objetos circula, portanto, “entre diferentes
regiões discursivas, das quais nenhuma pode ser considerada
originária”.
A figura é o resultado, assim, de uma série de processos de
regularização por meio dos quais se estabelece uma memória,
que, segundo Pêcheux (1999), é caracterizada por um jogo de
forças entre regularização e desregulação; ou seja, a recorrência
a algo pode caracterizar um movimento em que dizer o “mesmo”
é dar espaço ao “jogo da metáfora”. “Uma espécie de repetição
vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes
de desdobrar-se em paráfrase.” (Idem, p. 53)
É pelo viés da memória, então, que sentidos, dizeres,
imagens, etc. dessas figuras continuam ressoando em discursos
contemporâneos, produzindo efeitos nos dizeres dos/sobre os
sujeitos que se identificam ou são identificados com seu espaço
de origem. Não são as figuras, portanto, que permanecem, mas
suas reverberações, que podem indicar um determinado comportamento, um estilo de vida, um tipo de organização social, uma
maneira de vestir, um gesto em relação à vida. Longe de serem
fixas, no entanto, essas marcas deslizam, podem levar à “transfiguração” (ORLANDI, 2003, p. 7).
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201
A figura identitária funciona, assim, como uma espécie de
resíduo resultante dos processos de cristalização de identidades
locais cujos traços ressoam, pelo viés da memória, em discursos
de diferentes épocas, produzindo uma matriz de sentido por meio
da qual é possível representar esse lugar.
O funcionamento da memória e sua relação
com as figuras identitárias
Nossa percepção do passado é a apropriação veemente daquilo que
sabemos não mais nos pertencer (NORA, 1993, p. 20)
3
Para falar sobre lugares de memória, Nora
(1993) faz uma distinção
entre lugares e meios
de memória, afirmando
que a existência dos lugares só é possível pela
desaparição dos meios,
determinada pela aceleração de nosso tempo
– mundialização, democratização, etc. – em
que não há mais uma
passagem regular do
passado para o futuro. Já
não vivemos a memória,
e por isso temos necessidade de consagrar-lhe
lugares onde ela possa
se manter.
202
Trabalhar com a noção de figuras identitárias levou-nos a
pensar sobre a memória e o modo como ela intervém no processo de produção de sentidos, promovendo a cristalização e/ou o
deslocamento de determinados lugares sociais, já que os processos
identitários são marcados pela historicidade, remetendo-nos ao
trabalho da memória discursiva. Pelo viés da memória, pode se
marcar tanto o apagamento quanto a retomada dessa historicidade, a qual tende a ser suprimida pelo desejo de unidade que
atravessa o sujeito. Trabalhar com os processos de identificação
é situar-se, portanto, num espaço de tensão entre cristalização
e deslocamento, que é, justamente, no nosso entendimento,
conforme afirmamos no item anterior, o espaço em que se situam
as figuras identitárias.
Pierre Nora (1993, p. 7), ao trabalhar com a relação entre
memória e história, propõe que pensemos sobre os lugares de
memória e a curiosidade recente sobre eles. Essa curiosidade,
para o autor, reside no fato de estarmos vivendo um momento de
enfrentamento entre “a consciência da ruptura com o passado”,
e uma memória que, embora esfacelada, é ainda “suficiente para
que se possa colocar o problema de sua encarnação”. Como ele nos
indica na epígrafe acima, apropriamo-nos daquilo que do passado
não mais nos pertence, não mais existe enquanto concretude, mas
que permanece ressoando como sinal de “reconhecimento e de
pertencimento de grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos” (NORA, 1993, p. 13). O funcionamento dos lugares de memória3, tal como proposto por Nora,
parte da consideração de que temos a necessidade de criar esses
lugares porque já não mais habitamos a memória, ou seja, aquilo
que insistimos em guardar nesses lugares não aparece mais em
nossos rituais cotidianos, mas ainda diz sobre o passado que nos
habita. Se a memória deixa de existir, criamos suportes exteriores
para ela, os quais atendem, de certa forma, à nossa necessidade
de lembrar. “A passagem da memória para a história obrigou
cada grupo a redefinir sua identidade pela revitalização de sua
própria história. O dever de memória faz cada um historiador de
si mesmo.” (NORA, 1993, p. 17).
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O autor, quando tematiza o conflito entre memória e história,
coloca em causa distintos modos de reatualização do passado. Para
a AD, história e memória não se opõem, mas se complementam,
se (con)fundem, já que a história é constitutiva do discurso. Como
mencionamos no início deste item, interessa à AD trabalhar com
a historicidade e não com história do ponto de vista cronológico,
uma vez que importa observar não a linearidade da história, mas
o modo como ela se inscreve – às vezes em pedaços, esfacelada –,
nos processos discursivos. Ao falar sobre a historicidade, Orlandi
(2004) reforça o fato de que o conceito aparece na AD como um
modo de reafirmar a relação constitutiva entre linguagem e exterioridade. É para falar sobre a exterioridade como algo encarnado
no discurso que pensamos a historicidade, então, conforme a autora, como aquilo que remete ao modo de um discurso produzir
sentidos.
Com a AD – e isto que estamos chamando de historicidade – a
relação passa a ser entendida como constitutiva. Desse modo,
se se pode pensar em uma temporalidade, essa é uma temporalidade interna, ou melhor, uma relação com a exterioridade
tal como ela se inscreve no próprio texto e não como algo lá
fora, refletido nele. Não se parte da história para o texto –
avatar da análise de conteúdo –, se parte do texto enquanto
materialidade histórica. A temporalidade (na relação sujeito/
sentido) é a temporalidade do texto. (ORLANDI, 2004, p. 55)
Então, pelo viés da historicidade, o que estamos chamando
de figuras identitárias é o resultado de processos discursivos por
meio dos quais se tenta reter, de um passado, aquilo que, embora
não seja mais vivido, é parte de uma construção identitária. Ao
serem atualizadas, as figuras marcam, no discurso, o retorno a
um lugar de memória no qual o sujeito desse discurso encontra
um espaço de (des)identificação: se por um lado pode, a figura,
representar a marca de pertencimento a um grupo e sua história,
pode, por outro, configurar-se como um espaço de recusa, um
desconhecimento do passado como possibilidade de identificação
com o que o sujeito entende como sendo a sua identidade. Nesse
sentido, a figura designa o outro, o estranho, aquele que não se
é (ou não se quer ser). Toda figura nasce, contraditoriamente, de
seu desaparecimento, porque pertencia a um tempo-espaço que
se transmutou. Mas nesse tempo em que vivemos, das identidades
rarefeitas, da mundialização, do desaparecimento do sentido de
nação, das forças globalizantes de que fala Hall (2006), parece
que o efeito-contrário da dissolução das fronteiras identitárias
é justamente a necessidade de recuperar a identidade de grupo,
ou seja, construir lugares de memória e atualizá-los. É preciso
lembrar (ou fazer lembrar).
Para a AD, a lembrança não é nunca para o sujeito a recuperação plena daquilo que se consagrou ao esquecimento. A
natureza cindida do sujeito e lacunar dos processos por meio dos
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203
quais se constitui, implicam a necessidade de pensar a lembrança
como um retorno da memória – igualmente lacunar – ao dizer do
sujeito, e não o ato solitário de rememorar. Falamos, portanto, da
memória discursiva, termo que, segundo Courtine (2009, p. 105) é
“distinto de toda memorização psicológica”, e diz “respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas
regradas por aparelhos ideológicos” (Idem, p.105-106). Quando
tratamos da memória em AD, estamos remetendo a esses “lugares
de dizer em que os já-ditos se assentam esperando o momento de
retornar pelo discurso” (DE NARDI, 2003, p. 79). São resquícios de
uma história que se reatualizam no discurso por meio da relação
imaginária que com ela os sujeitos estabelecem, não importando a
natureza dessa história, se real ou fictícia. Formam-se, nos termos
de Courtine (1999, p. 18), domínios de memória: “a exterioridade do
enunciável para o sujeito enunciador da formação de enunciados
‘pré-construídos’, de que sua enunciação apropria-se”.
Mas nem tudo se reatualiza. Todo trabalho da memória
discursiva implica um efeito de esquecimento: o que se atualiza é
apenas aquilo que é possível dentro do domínio da formação discursiva na qual o sujeito se inscreve. Toda lembrança traz consigo
o esquecimento de algo, aquilo que não pode retornar ou, no caso
das figuras, o que sobre elas o sujeito recusa como possibilidade
de lembrança. Para Nora (1993, p. 12), “os lugares de memória são,
antes de tudo, restos”. Há, portanto, nos processos discursivos,
funcionamentos que regulam que restos podem voltar à cena e
quais devem permanecer nas sombras. Para Indursky (2011, p.
87), “se determinados sentidos precisam ser ‘esquecidos’, significa
que eles desaparecem do âmbito de uma FD”. Tal funcionamento,
para a autora, nos permite pensar na distinção entre a memória
discursiva e o interdiscurso, que, igualmente,
dizem respeito à memória social, mas não se confundem. A
memória discursiva é regionalizada, circunscrita ao que pode
ser dito em uma FD e, por essa razão, é esburacada, lacunar. Já
o interdiscurso abarca a memória discursiva referente ao complexo
de todas as FD. Ou seja, a memória que o interdiscurso compreende é uma memória ampla, totalizante e, por conseguinte,
saturada.” (INDURSKY, 2011, p. 87-88).
Por isso dizermos que não são as figuras propriamente
que permanecem, mas suas reverberações, que se inscrevem no
discurso produzindo espaços de deriva que marcam o processo
de identificação do sujeito com o lugar social de que ela é marca.
Ou seja, se as figuras são espaços de identificação para o sujeito
e sua relação com elas se dá por um processo de transferência,
ou seja, “pela existência de uma relação abrindo a possibilidade
de interpretar” (PECHÊUX, 1983, p. 53), é porque há um espaço
de interpretação que dá lugar ao movimento de retomada dessas
figuras em diferentes espaços-tempos discursivos, colocando-nos
204
Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013
a questão de como se comportam, então, nos universos dos quais
são parte. E é o funcionamento desses processos de transferência
que nos ajuda a compreender sua permanência (ou não) como
lugares de identificação (DE NARDI; GRIGOLETTO, 2012).
As figuras do cangaceiro e do compadrito:
algumas análises4
A discussão teórica
que ora empreendemos
bem como as análises
ap r e s e nt ad a s fora m
discutidas, preliminarmente, no III Simpósio Nacional Discurso,
Identidade e Sociedade, do qual resultou a
publicação a qual fizemos menção em vários
momentos do artigo, a
saber, DE NARDI; GRIGOLETTO, 2012.
5
http://www.osultimoscangaceiros.com.
br/blog/
6
Pêcheux, ao analisar
a questão da memória e
da repetição, comenta:
“haveria, sob a repetição, a formação de um
efeito de série pelo qual
uma regularização se
iniciaria, e seria nessa
própria regularização
que residiriam os implícitos, sob a forma de remissões, de retomadas
e de efeitos de paráfrase
(que podem a meu ver
conduzir à questão da
construção dos estereótipos).” (PÊCHEUX,
1999, p. 52)
4
A fim de podermos observar a produtividade analítica da
noção de figuras identitárias, temos trabalhado com as figuras
do cangaceiro e do compadrito, os quais funcionam como referência para o imaginário que se constrói sobre discursos regionais,
fazendo parte da constituição identitária do sujeito nordestino,
no primeiro caso, e cristalizando um sentido sobre o ser porteño,
no segundo. Elegemo-los, portanto, considerando que ambos,
embora diferentes, podem ser entendidos como personagens
que cristalizam identidades locais, uma vez que se consolidaram
em momentos históricos determinados, passando a ser deles
representativas. São, assim, figuras em torno das quais se foram
criando lugares de memória com tendência à cristalização. Como
dissemos na primeira parte desse trabalho, não se coloca em causa
a existência material dessas figuras, mas a referência discursiva
a elas, que, como efeito do interdiscurso, remetem à produção de
um objeto material.
Isso é o que podemos observar, por exemplo, com a figura
do cangaceiro, que aparece em discursividades atuais, a exemplo
daquela presente no blog “Os últimos cangaceiros”5, designação
utilizada por um moto clube de Pernambuco. Na página inicial do
blog, conforme podemos observar na tela abaixo, fotos antigas de
Lampião e seu bando se sobrepõem às imagens dos integrantes
do moto clube. A alternância entre as fotos atuais e os registros
dos cangaceiros produz um interessante efeito em que presente
e passado se entrecruzam, fazendo trabalhar efeitos da memória
no discurso. No centro das fotografias, a marca da atualidade: a
única imagem fixa é a do bando de motoqueiros pousando em
frente à sua bandeira. Nela, observamos determinados elementos
– como o chapéu e as armas utilizadas pelos cangaceiros – que
nesse espaço representam aquilo que da figura do cangaceiro
permanece como cristalização6.
A reprodução desses objetos funciona aqui como um elemento de identificação com o cangaço; trata-se de vestígios desse
outro tempo-espaço que, ressignificados, fazem trabalhar a relação
entre memória e atualidade. Outro elemento interessante a ser
observado é a presença do mandacaru que contorna o escudo.
Essa planta, símbolo do sertão nordestino, está presente, ainda,
na fotografia que aparece de fundo, reconstruindo uma imagem
comum nas representações do nordeste e sua gente.
Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013
205
Fig. 1 – página inicial do blog “Os últimos cangaceiros”
Esses são alguns dos elementos que caracterizam o movimento de atualização do que anteriormente chamamos de marcas
identitárias, pelas quais o sujeito se identifica com a figura do
cangaceiro. Ainda que hoje seja apenas uma personagem histórica,
essa figura inspira, pela utilização de seus emblemas, um sentimento de pertencimento a esse lugar, permitindo aos sujeitos dizerem-se através da recuperação de fragmentos de uma memória,
regional e atemporal. Atemporal porque esse dizer funciona como
se estivesse unindo pontas com o passado, ao mesmo tempo em
que permanece reverberando sentidos no presente, rememorando
elementos que desse passado ainda significam para a sua forma
de se organizar enquanto grupo, enquanto bando. Símbolo da
insurgência7, o cangaço parece retornar, para esse grupo, como
marca de resistência, uma demonstração da fidelidade a um estilo
de vida que tende a ser apagado. Sobre isso é interessante observar
o que se diz, no blog, em “Quero ser um Cangaceiro”:
Sobre essa questão,
recomenda-se o vídeo
“Conheça a história do
cangaço e as duas faces
de lampião”, que estão
entre os links que, no
blog, remetem à história
daqueles que lhe dão
nome: http://www.osultimoscangaceiros.com.
br/videos/ ou http://
w w w.yo ut u b e.c o m/
watch?feature=player_
embedded &v=HTK yKj
dwDGA#!.
7
206
SD1: Motociclista não é aquela pessoa que tem uma moto
para apreciar a paisagem só nos finais de semana. Mas sim
aquele cara que tem moto como uma extensão do seu corpo e
principalmente como um estilo de vida (em seu sentido literal).
Quando eu falo de estilo de vida, é o fato de você comer, beber,
viver, respeitar, amar, respirar a moto e seus irmãos. Por que
tu achas que inúmeros Moto Clubes falam que o motociclista verdadeiro quase não se vê mais? Porque os que vivem e
pertencem a esse estilo de vida, são poucos. Quer ser um de
nós entre em contato e deixe sua mensagem será um prazer
conversar com você! (http://www.osultimoscangaceiros.com.
br/ser-cangaceiro/)
O que se verifica, na sequência acima, é realmente a atualização dessa designação “Cangaceiro”, que, utilizada pelos motociclistas para autodesignarem-se, passa a representar um outro
Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013
espaço, mantendo, no entanto, traços que unem esses homens de
tempos distantes. Rebeldia e fidelidade aos seus companheiros
parecem ser elementos comuns; e é pelo nome e pela recuperação
de elementos materiais que caracterizavam essa vida insurgente
e, ao mesmo tempo, rica e fascinante do cangaço que o elo entre
os tempos se faz. Ser motociclista, no dizer desse sujeito, é também dizer não aos valores que lhe são impostos e construir uma
fraternidade com aqueles que aceitam o código de conduta que
lhe será imposto como condição para esse pertencimento.
Conforme Postal (2012), “a identidade está relacionada tanto
com a demonstração de quem o sujeito quer ser, quanto com a
bagagem de narrativas que o constituem e que podem operar na
figuração efetiva de seu dizer-se”. É, entendemos, nesse conjunto
de dizeres que formam as narrativas sobre o cangaceiro que o sujeito do discurso em análise vai buscar o sentido de ser cangaceiro,
que implica um modo de organizar-se, a conservação de um ideal
comum – embora esse ideal esteja completamente ressignificado –,
a fidelidade ao seu modo de vida, o respeito às regras do bando:
“Dentro de nossos bandos, vale nosso CÓDIGO INTERNO”. Há
um retorno, portanto, a uma memória que se ressignifica, provocando deslizamentos em torno desse sentido de ser cangaceiro.
Mas, como mencionamos ao citar Indursky (2011), essa memória
não vem inteira, ela não rediz O cangaceiro, em sua existência
histórico-material, mas o transforma em metáfora desse sujeito
que se diz a partir de elementos que atualiza de uma memória
tão prenhe de contradições. Sem a pretensão de nos aprofundarmos nessa questão, vale salientar que, em torno dessa figura do
cangaceiro e da instituição do cangaço, circulam sentimentos
bastante contraditórios, de repulsa e fascínio, medo e admiração,
que talvez possam ser explicados a partir do papel mesmo que
teve um de seus maiores expoentes, Lampião, ao mesmo tempo
bandido e justiceiro.
Tais questões podem ser compreendidas pela impossibilidade de pensarmos a memória distanciada de suas condições
de produção e atualização. Ao falar sobre memória discursiva,
Pêcheux (1999, 52) afirma que ela “seria aquilo que, face a um texto
que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos” (...) de que sua leitura necessita: a condição do legível em
relação ao próprio legível.” Ao citar Pierre Achard, o autor analisa
os processos de regularização por meio dos quais se estabelece
essa memória, observando, no entanto, que ela é caracterizada
por um jogo de forças entre regularização e desregulação; ou
seja, a recorrência de algo pode caracterizar um movimento em
que dizer o “mesmo” é dar espaço ao “jogo da metáfora”. “Uma
espécie de repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase.” (Idem, p.
53) Há sempre “o outro interno em toda memória”, diz Pêcheux
(1999, p. 56).
Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013
207
O que chamamos de figuras identitárias seriam, portanto,
esses lugares de condensação de um imaginário social, ocupado
por homens que dele foram (ou são) representativos e cuja imagem
produz um retorno a esse lugar, ainda que nesse movimento os
sentidos do estar nele se reconfigurem. É assim que, pela remissão
às imagens de Lampião e seus seguidores, se atualizam no blog
“Os últimos cangaceiros” algumas marcas que representam a
identificação desse sujeito com um lugar social, historicamente
determinado. Retorna a paisagem do sertão, os termos por meio
dos quais se designam os integrantes do bando, o cuidado com
a aparência – uma certa estética que se mantém nas roupas, nos
chapéus, nos rifles que são agora apenas símbolos de pertencimento –, ou na interlocução proposta pelos links que podem ser
abertos a partir do blog, em que encontramos tanto referência ao
universo dos moto clubes, quanto a estudos e comentários sobre o
cangaço. Esse sujeito, portanto, que se inscreve nas discursividades
em análises, fala sobre os cangaceiros, mas se diz um deles, o que
nos permite pensar que essa figura ainda produz um espaço de
identificação importante entre aqueles que vivem nesse lugar.
Um movimento distinto parece caracterizar a segunda
figura sobre a qual nos debruçamos: o compadrito. Nessa busca
inicial que empreendemos por menções a essas figuras no espaço virtual que as estivessem atualizando, não encontramos, em
relação ao compadrito, nenhum movimento que se assemelhasse
ao anteriormente descrito sobre o cangaceiro, ou seja, grupos
que se autodenominem “compadritos” na Buenos Aires dos dias
atuais. Chama-se ao outro compadrito, ao identificá-lo por seu
comportamento e/ou por sua linguagem, como se o compadrito
fosse sempre um outro:
Don Dulce hablaba como un criollo aunque a Pereda no se le
pasaron por alto algunas expresiones de compadrito porteño,
como si don Dulce se hubiera criado en Villa Luro y llevara
relativamente poco tiempo viviendo en la pampa. (BOLAÑO,
2010, p. 28)
No trecho de El gaucho insufrible, Bolaño reproduz algo que
parece comum em relação a essa figura: se sabe de onde veio,
quem era, como se vestia e falava, mas é raro encontrar quem
se identifique com ela, embora com ela possa ser identificado. A
presença dessa figura, quase sempre relacionada ao universo do
tango, parece estar restrita aos que se ocupam de explicar seu
surgimento e sua permanência num período de tempo já remoto,
sobrevivendo apenas nas narrativas que a resgatam como símbolo
de um outro tempo que não se atualiza. Se ainda há compadritos,
não se escuta a sua voz, e embora se saiba quem foi essa figura e
como se pode caracterizá-la, ela parece não mais funcionar como
um lugar de identificação para os sujeitos contemporâneos.
Assim como outras personagens, tende o compadrito a fazer
parte de um conjunto antigo de figuras que remetem a uma confi208
Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013
guração desse espaço mais visível nos tempos atuais, embora sua
menção e imagem não se deixem apagar. É provável que esteja
na ordem do desejo ver essa multiculturalidade presente, e por
isso evocá-la é um trabalho necessário para o reconhecimento
desse espaço social que se quer designar. Trata-se, nos termos de
Lacarrieu (2007, p. 57), da necessidade de construir-se uma matriz
cultural que remeta a uma imagem que vem do passado para
“reinventar el presente y desear el futuro”. Esse futuro se constitui,
em grande medida, conforme a autora, pelo desejo de uma Buenos
Aires europeizada que por muito tempo se fez presente e à qual se
pode atribuir, em certa medida, a cristalização de algumas figuras:
elas não se reatualizam, mas sua presença enquanto memória de
um tempo anterior se faz necessária. Conforme comenta a autora,
que se ocupa das imagens e imaginários sociais que constituem
a dimensão simbólica da cidade:
Referimo-nos, aqui,
a obras como BORGES,
J. L.; BULLRICH, S. El
compadrito: su destino,
sus barrios, su música.
Buenos Aires: Emecé
Editores, 2000; CARRETERO, Andrés. M. El
compadrito y el tango.
Buenos Aires: Peña Lillo
& Ediciones Continente,
1999. Tais obras serviram como leituras complementares para este
artigo.
9
Lacarrieu (2007) comenta que “el tango fue
visualizado como un
símbolo necesario para
identificar a la ciudad,
pero no a los ciudadanos”.
10
PALACIO S, A. “O
“compadrito” - O pária,
as prostitutas e a cópula”. Disponível em:
http://blogs.estadao.
com.br/ariel-palacios/o-compadrito-e-a-danca-que-era-quase-uma-2/.
Acesso em: 30 de janeiro
de 2012.
11
ht t p://w w w.periodicodesdeboedo.com.
ar/malevos-guapos-y-compadritos/. Acesso
em: 08 de fevereiro de
2012.
12
http://blogs.estadao.
com.br/ariel-palacios/o-compadrito-e-a-danca-que-era-quase-uma-2/
8
Esto permite congelar la población en una multiculturalidad
inexistente en el presente, y también incluir la presencia de
expresiones culturales ligadas a su proyección cultural, hipervisibles en los conventillos de antaño, donde cada outro puede
ser estereotipado en su simplificación [...]; visualizados como el
objeto del deseo, que en ausência – pues los conventillos actuales ya no albergan este tipo de mesclas – se hacen presentes.
(LACARRIEU, 2007, p. 57)
Essa presença ausente é o que sentimos com o compadrito,
de quem muito se diz8, sobre quem fala a literatura ou cantam os
tangos, que aparece nos bailarinos que se apresentam em diversos
espaços da cidade, reproduzindo traços de seu vestir e bailar, cujo
linguajar deixa marcas num modo argentino de falar, mas que
não aparece como um lugar social com quem ainda se identifiquem os porteños. Assim como o tango, o compadrito pertence a
Buenos Aires, mas já não mais com ele se identificam os homens
de Buenos Aires9.
Mas quem eram os homens assim designados. Característicos da Buenos Aires do século XIX, nem homens urbanos, nem
gaúchos, os compadritos viviam nos espaços marginais, escondidos
entre sombras de um lugar que parecia querer expulsá-los. Como
escreve em seu blog Ariel Palacios10: “Vivia de biscates na periferia
das cidades, sem ousar entrar nas mesmas, nem pensar voltar ao
campo”. “Parece que estar “entre” era a condição do compadrito,
entre o ser marginal ou herói, entre despertar medo ou fascínio,
“Son indivíduos egocêntricos, individualistas, solitários, competitivos y fundamentalmente criollos”11.
Entendemos que esse lugar marginal que ocupa o compadrito
é o que permite, como comentamos acima, que ele sirva sempre
para designar o outro: aquele que não se é, o que está na margem,
escondido nas sombra dos outros, esquivando-se como um bom
bailarín. Nesse sentido, é interessante observar os comentários
postados acerca de um texto12 em que se fala sobre o compadrito:
Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013
209
SD2
– E você conhece algum ‘compadrito’?
– Muitos. Às vezes eles chegam até a presidência, né?
SD3
E é verdade... às vezes os compadritos chegam à presidência. Muitas vezes não são compadritos... mas estão
rodeados por vários deles, a modo de guarda pretoriana...
O que se observa é que se ainda se pode falar em compadritos
e reconhecê-los, é porque há algo dessa figura que permanece, que
extrapolou o espaço do texto literário e das milongas para seguir
produzindo sentidos.
Palavras finais
Nesse artigo, procuramos reunir algumas reflexões que
temos feito acerca do que designamos figuras identitárias, procurando mostrar como a observação dos processos discursivos,
a partir da teorização sobre os lugares sociais, pode nos levar a
pensar em figuras que resistem à passagem do tempo, retornando como uma memória insistente na constituição de identidades
regionais mesmo em um espaço-tempo em que as identidades
parecem se dissolver. Entendemos que as figuras funcionam como
uma ancoragem de dizer, representação material de um lugar
social que reverbera como espaço de (des)identificação para os
sujeitos. Mesmo que não consigamos mais resgatar os discursos
que deram existência a essas figuras, observamos que se (re)produz nos discursos atuais, pelo viés da memória, algo de muito
particular que diz do pertencimento do sujeito contemporâneo
ao lugar que essa figura ilustra.
Podemos dizer, portanto, que tanto diante de cangaceiros
como de compadritos é possível falarmos em figuras identitárias,
visto encontrarmos em relação a essas personagens processos
semelhantes, entre os quais podemos destacar a sua vinculação
com um período histórico específico, do qual passaram a ser a
“imagem” mais presente, ou, como dissemos anteriormente, a
cristalização, no tempo, de uma imagem que está colada à representação de um lugar social. É esse lugar social por elas ocupado
que tais figuras ilustram, fazendo com que se (re)produza em
torno de si um imaginário a ser construído sobre o grupo social
de que são parte.
No entanto, as análises parciais que fizemos até agora acerca
dos discursos que “atualizam” essas figuras no espaço virtual
nos mostram um funcionamento distinto: enquanto a figura do
cangaceiro aparece, para alguns, como um lugar de identificação
ainda possível para o ser nordestino, a partir do qual é possível
210
Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013
dizer-se como pertencente a um lugar, apagando ou aproveitando-se justamente da contradição que marca essa existência
conflituosa do homem do cangaço – um tanto herói outro tanto
bandido –, ao compadrito parece ter sido reservado o destino de
designar sempre o outro, o torto, o marginal. Ainda que a literatura o tenha utilizado como personagem, ainda que sua presença
viva nas vozes dos que cantam antigos tangos, parece improvável
dizer-se um compadrito13. Talvez os distinga a distância temporal
de sua existência e dos tempos sociais, o fato de ser o compadrito
um solitário, enquanto em bandos viviam os cangaceiros, mas
certamente há ainda a investigar os movimentos sócio-históricos
que determinam as distintas apropriações dessas figuras nos
discursos contemporâneos.
O que apresentamos aqui são apenas especulações iniciais
acerca tanto da funcionalidade do conceito de figura para as
análises que pretendemos empreender, como do funcionamento
dessas discursividades sobre as quais começamos a nos debruçar.
Mas certamente vivem nos discursos sobre esses lugares sociais
e nas condições sócio-históricas de seu (des)aparecimento a possibilidade de compreender as distintas formas de atualização de
uma memória que insiste em retornar. Como nos diz Nora (1993,
p. 14), são “lugares salvos de uma memória na qual não mais habitamos, semi-oficiais e institucionais, semi-afetivos e sentimentais;
lugares de unanimidade sem unanimismo que não exprimem
mais nem convicção militante nem participação apaixonada, mas
onde palpita ainda algo de uma vida simbólica.”
Abstract
Com exceção de sites
que remetem ao tango,
encont ra mos apenas
um blog de um Body
Piercer que utiliza como
autodesignação o termo
compadrito. Como buscávamos a utilização
dessas designações por
grupos, não incluímos
aqui a a nálise desse
caso, que, no entanto,
pode ser revelador do
imaginário que cerca o
compadrito, se considerarmos que as práticas
que são divulgadas por
meio do blog, a exemplo
da suspensão corporal,
ainda podem ser entendidas, de certo modo,
como marginais.
13
Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013
This article aims the discussion about the notion
of identity figures, observing as the memory is
involved in the production of meanings, and in the
promotion of crystallization and/or displacement
of certain social places. This notion is based on the
concept of the figure, that we take here while crystallization, in time, of an image that is attached
to representation from a social place. The figure
appears as a form through which it is possible to
represent this place, and the same may undergo
displacements when it is discussed at different
times. This is the material form of a discourse
“founder” (ORLANDI, 2003) that marks the
imaginary that is built on a social group. Thus,
when dealing with identity figures, we plotted
as central objectives of this article: 1) produce a
theory about this notion in the field of AD, based
on the relation among the concepts of figure, memory and identification; 2) explore its analytical
211
productivity, from the figures of the “cangaceiro”
and “compadrito”.
Keywords: memory; identity figures; identification.
REFERÊNCIAS
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NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares.
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Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013
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POSTAL, R. Mascarilha e récita: estratégias contemporâneas de
figuração identitária. 2012.
Niterói, n. 34, p. 197-213, 1. sem. 2013
213
Corpo, trabalho e prazer: as práticas
de prostituição em cadastros policiais1
Fernanda Surubi Fernandes (UNEMAT)
Olimpia Maluf Souza (UNEMAT)
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar a relação
corpo-trabalho-prazer em práticas de prostituição.
Questionamos o que é o trabalho na relação com o
corpo, o que é o corpo na relação com o trabalho e
com o prazer? Nessa direção, pretendemos neste
estudo abordar a teoria da Análise de Discurso
de linha francesa, que tem como objeto teórico o
discurso, no qual encontramos as marcas de ruptura que nos permitirão compreender, através dos
gestos de interpretação, como o sentido faz sentido.
Palavras-chaves: prostituição; prazer; profissão;
corpo.
Este artigo é um recorte da
dissertação de Mestrado: Castidade e Luxúria: a constituição da
imagem feminina nos cadastros
policiais - UNEMAT/2012.
1
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013
Introdução
Atualmente, no Brasil, há lutas que buscam a legalização da
prostituição como profissão. No entanto, ainda é uma questão de
grande complexidade, pois a dificuldade dessa legalização passa
por interditos na relação do trabalho com o corpo produzindo
sentidos na atualidade. Nessa direção, parece-nos necessário compreender o trabalho na relação com o corpo e o corpo na relação
com o trabalho e com o prazer. No caso da prostituta, o corpo é seu
instrumento de trabalho, mas, ao mesmo tempo, a moral religiosa
o institui como “templo sagrado”, assim, esse sentido produz, para
a prostituta/prostituição, efeitos de que sua atividade de meretriz
transgride o lugar instituído pela moral social cristã. Fazemos uso
do corpo para o trabalho – trabalho braçal, trabalho intelectual,
etc. –, pois é ele que nos permite produzir, porém, a meretriz, ao
usar do corpo para atividades relacionadas ao sexo, foge ao que é
determinado pela moral social como trabalho honesto, uma vez
que o corpo da prostituta é usado para sentir/dar prazer.
Essa situação produz problemas em relação aos direitos e
deveres das prostitutas e coloca em funcionamento toda uma
memória constitutiva da prostituta/prostituição que é marcada
de forma negativa. São sentidos que foram construídos em relação
à sexualidade, aos vários imaginários sociais sobre a mulher, à
prostituta na história produzindo efeitos que marcam o estigma
social.
Nessa direção, no batimento entre a paráfrase e a polissemia,
a prostituição alcançou status de ocupação, pela Classificação
Brasileira de Ocupações (CBO), mas ainda não se coloca como
profissão, no Brasil, apesar de haver, já há muito tempo, vários
projetos de lei com tal finalidade.
De todo o modo, são as discussões sobre a profissionalização da prostituição que possibilitam, nos cadastros policiais dos
anos 60 e 70, na cidade de Cáceres-MT2, a compreensão de uma
dualidade que se tornou constitutiva dessa atividade, uma vez
que os registros ora marcam a prostituição como profissão ora
como ócio, prazer, luxúria, caracterizando-a como um “desvio”.
A construção dos sentidos:
o corpo na relação trabalho x prazer
Os cadastros policiais, recortados para
a presente análise encontram-se atualmente
no arquivo histórico do
curso de História (NUDHEO) da Universidade do Estado de Mato
Grosso (UNEMAT), no
Campus Universitário
de “Jane Vanini”.
2
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Foucault (2008, p. 117) ao falar da docilidade dos corpos, nos
mostra a dominação do corpo como uma forma de poder:
Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo
como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais
dessa grande atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que
se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se
torna hábil ou cujas forças se multiplicam.
Esse corpo modelado, controlado, põe em funcionamento
uma memória sobre a sexualidade insubmissa, ou seja, a prostiNiterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013
tuição se realiza pelo uso do corpo para o prazer, não exercendo
o que se espera de um corpo dócil, isto é, “[...] um corpo que pode
ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado
e aperfeiçoado” (op.cit, p.118). Essa docilização dos corpos leva-nos
a questionar como é constituído, nesse espaço disciplinar, a prostituta e a prostituição, pois, para Foucault (2008, p. 123), há “[...]
lugares determinados [que] se definem para satisfazer não só a
necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas
também de criar um espaço útil”. Um funcionamento, segundo
o autor, presente nos hospitais, nos quartéis e nas escolas, cuja
tentativa de controlar o ser humano através do corpo, através do
trabalho, suprime a sexualidade, exacerba as regras e faz funcionar valores morais.
Nessa relação, o corpo é voltado somente para o trabalho,
é como se não houvesse tempo para o não fazer nada, assim, os
corpos ociosos são submetidos às regras e, como tais regras não
podem parar, tornam-se corpos úteis para o trabalho, mas somente
para isso, pois com a submissão freia-se também qualquer ato que
o faça mudar ou pensar nas relações de forças de trabalho, uma
vez que se trata de extrair dos corpos sempre as forças mais úteis.
Segundo Dhoquois (2003, p. 43)
[...] O corpo pode ser usado e coagido não só pelas condições
de trabalho como também pela primazia dos interesses da
empresa sobre os do trabalhador. O corpo deste está muito
envolvido com seu dever de obediência. O corpo laborioso é
um corpo submisso.
Esse funcionamento da sociedade disciplinar nos faz pensar
no trabalho da prostituta ou na prostituição como trabalho, pois,
nesta sociedade, a prostituição vai se colocar em um outro lugar,
o lugar do silêncio constitutivo, que se instala historicamente pela
opressão e, ao mesmo tempo, pela resistência. Nesse funcionamento, ao se tentar oprimir o trabalho da prostituta/prostituição, o
que se produz como efeito são modos de resistência, que vão do
enfrentamento absoluto à desobediência silenciosa.
Nos modos de opressão pelo Estado, o corpo é tomado
como um meio de controle dos sujeitos, no entanto, a prostituta/
prostituição parece se colocar na contramão desse processo, pois
o corpo, que é um objeto de controle, de manipulação pela força
do Estado, é, no caso da mulher que se prostitui, seu bem, seu
material de trabalho, sua mão de obra, o objeto de sua produção.
Assim, essa atividade já se constitui na contramão do processo
civilizatório, pois, ao usar o corpo como instrumento de trabalho,
a prostituta/prostituição é tomada historicamente como sinônimo
de vagabundagem, de preguiça, de luxúria. Ou seja, o uso do
corpo para o exercício da sua atividade profissional, desqualifica
o seu fazer como profissão. Essa contradição marca a constituição
da imagem da prostituta através do corpo, que é tomado por ela
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própria como força de trabalho, como objeto de sua produção e
pelo poder do Estado como vagabundagem, como ócio, como
libertinagem.
Nessa direção, o corpo feminino marca o lugar do privado,
do interditado, e ao mesmo tempo, ele é “[...] exibido, apropriado e
carregado de significação” (PERROLT, 2003, p. 14). A constituição
da imagem da prostituta vai se produzindo, então, através daquilo
que aparenta, através do seu corpo, pois a prostituta/prostituição
se constitui nesse lugar contraditório de uso do corpo, tanto para
obter lucro quanto para propiciar satisfação sexual a outrem. Para
Foucault (1979, p. 22), é no corpo que
[...] se encontra o estigma dos acontecimentos passados do
mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos
e os erros; nele também eles [os desejos, os desfalecimentos e
os erros] se atam e de repente se exprimem, mas nele também
eles se desatam, entram em luta, se apagam uns aos outros e
continuam seu insuperável conflito.
Ou seja, o corpo é considerado no sentido da configuração
biológica da espécie humana, mas também é materialidade significante, é suporte do simbólico. Essa dupla interpretação sobre o
corpo nos leva a compreender como a história, através dos fatos,
através das marcas no corpo, reclama sentidos (HENRY, 1997).
Desse modo, a teoria discursiva à qual nos filiamos mostra-nos que há, na forma material, vestígios, marcas de ruptura
que nos permitirão compreender, analisar, através dos gestos de
interpretação, como o sentido faz sentido.
A Análise de Discurso compreende entre seus conceitos
a noção de sujeito, que se constitui pela linguagem, enquanto
posição-sujeito. Do mesmo modo, compreende a história como
processo de produção de sentidos, atravessada pela contradição;
e a língua enquanto possibilidade de discurso, como materialidade onde encontramos o discurso, que para Pêcheux (2009) é
efeito de sentido entre locutores, ou seja, é um “[...] processo que
se desenvolve de múltiplas formas, em determinadas situações
sociais” (ORLANDI, 2007b, p. 54). Sendo assim, é o efeito produzido pela inscrição da língua na história e essa inscrição só pode
ser vista através da língua, através do texto, enquanto lugar de
materialização da ideologia.
Pela Análise de Discurso, portanto, há, na língua e na
história, um real, que compreendemos como sendo da ordem do
impossível: “[...] não descobrimos, pois, o real: a gente se depara
com ele, dá de encontro com ele, o encontra.” (PÊCHEUX, 2008, p.
29), ou seja, não é algo já determinado, mas algo que possibilita a
produção dos sentidos, porque o sentido não é estático, é construído em determinadas situações e diferentes sujeitos.
Assim, temos a incompletude como o real da língua, pois, “[...]
toda língua é afetada por uma divisão, [...], que se sustenta pela
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existência de um impossível, inscrito na própria ordem da língua”
(GADET e PÊCHEUX, 2010, p. 32). Desse modo, a incompletude é
a possibilidade de produção dos sentidos, pois sem ela a língua/
linguagem torna-se inconcebível. Nessa direção, Gadet e Pêcheux
(2010, p. 30) afirmam que:
Para os que sustentam que a língua trabalha com a existência
de uma ordem própria, o real da língua reside naquilo que nela
faz Um, a assegura no Mesmo e no Idêntico e a opõe a tudo o que
da linguagem cai para fora dela, nesse inferno ininteligível que
os Antigos designam pelo termo de “barbarismo”: o campo do
interdito na linguagem é, assim, estruturalmente produzido
pela língua, do interior dela mesma (Grifos nossos).
Desse modo, pensar a língua como unidade faz parte de
um imaginário, que permite que os sentidos possam ser determinados, restringidos, um eficaz trabalho da ideologia. Entrementes,
todo sentido produzido “[...] é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente
de seu sentido para derivar para um outro” (PÊCHEUX, 2008, p.
53), ou seja, os sentidos sempre podem vir a ser outros devido a
características constitutivas da língua: a incompletude, a falha,
o equívoco. Essa concepção teórica considera que a língua não
é transparente, sendo necessário um dispositivo que auxilie no
acesso a sua materialidade, assim, a sua discursividade.
A Análise de Discurso compreende o real da história, como
sendo a contradição, que possibilita a mudança, o deslocamento,
quando se tem o impossível, o alhures. Essa concepção teórica
considera que a história deve levar em conta o sujeito, e assim,
não pode ser tomada como uma simples sucessão de fatos, um
relato, mas um acontecimento no discurso, ou seja, um modo de
produção de sentidos.
Desse modo, a AD considera não a história propriamente,
mas a historicidade, que se encontra no texto, considera, portanto,
não partir da história para o texto, mas do próprio texto, uma vez
que, através da “trama de sentidos”, a história constitui-se nele.
Nessa direção, a Análise de discurso é vista como um processo de desnaturalização, que busca compreender funcionamento
da ideologia, ou seja, busca ver na materialidade como as histórias
são mobilizadas. Uma história é, de um lado, fatos, acontecimento,
e de outro, é a compreensão desses fatos tomados como acontecimentos. Nesse caso, desnaturalizar os sentidos que estão postos,
é compreender que algo pode sempre tomar outros sentidos.
Os traços da memória histórica materializam-se na língua
como efeitos de sentido que, no momento da formulação, dada
as condições de produção – o contexto imediato e o contexto
sócio-histórico – são colocados em funcionamento. O sujeito é
posição-sujeito, pois o seu dizer produz sentidos que são sempre
postos em relação a.
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Desse modo, há sentidos que são cristalizados pela sociedade, mas há também os que são silenciados, fazendo com que
haja sentidos que instituem cada palavra – é o que ocorre com a
palavra “prostituta” – que, ao ser formulada, aciona um já-dito, um
pré-construído, que é colocado em funcionamento por diferentes posições-sujeito marcadas pelos modos de inscrição nessa memória.
A prostituta/prostituição, ao fazer funcionar uma dada
memória discursiva, coloca também em funcionamento o sentido
de sujeito-de-direito, que é convocado pelas noções de direitos e
de deveres que instalam todo sujeito capitalista, pois, para poder
se identificar, para poder ser reconhecido socialmente é necessário
se assujeitar aos ditames do Estado.
Haroche (1992, p. 51) denomina de “sujeito jurídico da
linguística”, ou seja, aquele que “[...] se caracteriza por duas
propriedades, no limite, contraditórias: uma vontade sem limites e
uma submissão sem falhas”. Nessas condições, a definição de sujeito-de-direito serve para imputar-lhe a noção de direitos e deveres,
o que faz com que pense ser dono de seu dizer e de seu fazer, e,
assumindo esse lugar, se assujeite ao Estado para que possa fazer
uso dos seus direitos e deveres. Segundo Lagazzi (1988, p. 39), a
noção de sujeito-de-direito
[...] é uma noção histórica, que só se concebe à noção de Estado.
Ambas – a de sujeito-de-direito e a de Estado – surgiram concomitantes à fundamentação do poder jurídico que, por sua vez,
foi (é) decorrência de modificações econômicas que, a partir
do século X, ocasionaram a passagem gradual do feudalismo
para o que se concretizaria, mais tarde, como capitalismo.
Assim, a noção de sujeito-de-direito vem marcar o momento
em que o homem se constitui sobre outras determinações, ou seja,
deixa de se assujeitar à religião, à Igreja e, passa, através do Direito
(que o torna autônomo), a assujeitar-se ao Estado.
De acordo com Lagazzi (op.cit. p. 20) “[...] cada vez mais
fortemente o sujeito-de-direito foi se configurando, e hoje a responsabilidade é uma noção constitutiva do caráter humano, da
pessoa, do cidadão, sem o que não nos reconheceríamos socialmente”. Diante da afirmação da autora, compreendemos que a
ideologia, que produz o efeito de evidência de que somos sempre
sujeitos sociais com direitos e deveres, se faz por um esquecimento
necessário que produz a ilusão de que somos os donos e a origem
do nosso dizer, pois o sujeito relaciona-se com o mundo através
de um imaginário que se representa pelo simbólico, ou seja, as
crenças, as palavras, as próprias relações interpessoais, significam
pela ordem simbólica.
Lagazzi (2011) nos mostra como a contradição está marcada
no discurso produzindo sentidos. Nessa direção, afirma que a
contradição é o que possibilita a mudança, o deslocamento, quando se tem o impossível, o alhures, ou seja, é “[...] a impossibilidade
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da síntese, reiterando a distância entre contradição e oposição”
(LAGAZZI, 2011, p. 279).
Assim, a contradição permite a produção de outro sentido
que não está marcado pelo já dado, por isso contradição não é o
mesmo que oposição. A oposição marca o previsível, não sendo
possível produzir outros sentidos, enquanto a contradição é o
diferente, é a possibilidade de deslocamento.
Entrementes, Orlandi (2002) nos mostra que há discursos
que são interditados de tal forma que não permitem a produção
de outros sentidos possíveis, como é o caso da prostituta/prostituição. A produção dos sentidos sobre o imaginário da prostituta
circula em torno de aspectos histórico-sociais, que visibilizam
os sentidos sobre a prostituição produzindo o preconceito. Para
Orlandi (2002, p. 197) o preconceito:
[...] se constitui nas relações sociais, pela maneira como elas se
significam e são significadas. Não é um processo consciente
e o sujeito não tem acesso ao modo como os preconceitos se
constituem nele. Vêm pela filiação a sentidos que ele mesmo
nem sabe como se formaram nele.
Conforme abordado
em seu livro As formas
do silêncio (ORLANDI,
2007).
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A AD busca, portanto, a compreensão dos sentidos em suas
múltiplas possibilidades. A produção dos sentidos ocorre em
funcionamentos discursivos, de modo que os sentidos possam
vir a serem outros, ou, nas palavras de Orlandi (2002, p. 197), “[...]
os sentidos não podem ser os mesmos”, uma vez que dependem
das condições de produção nas quais está inserido o dizer.
Pensando assim, chegamos à compreensão de que a produção de sentidos sobre a história da prostituição passa pelo viés das
condições históricas e sociais. Incluindo-se os sentidos negativos
sobre o imaginário da mulher, de forma geral, e mais especificamente, da meretriz. Esses sentidos negativos estão na base do
estigma social, do preconceito que sofreram (e ainda sofrem) as
mulheres que eram (e são) meretrizes.
Desse modo, o preconceito impede, segundo Orlandi (2002,
p. 198), a produção de sentidos outros, pois restringe-se ao que já
está dado. Assim, para a autora, o preconceito está para a ordem
da censura3, que silencia “[...] sentidos possíveis que [...] não podem
ser ditos”. O preconceito ocorre, então, na base do silenciamento
dos sentidos, na interdição. Nesse caso, certos assuntos são silenciados pela sociedade, pois são ainda considerados tabus, ou seja,
passam pelo processo de interdição. A prostituição é um exemplo
de tabu, não só ela, mas também toda uma história da sexualidade
que foi sendo silenciada por uma sociedade mais conservadora.
Foucault (1988, p. 9) nos mostra que, na sexualidade do século XVII, “[...] ainda vigorava uma certa franqueza. As práticas
não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência
excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o
ilícito uma tolerante familiaridade”. Assim, falar de sexo era algo
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S eg u ndo O rla nd i
(2002, p. 200), “[...] o politicamente correto silencia o fato de que não se
trata só de uma questão
de boa vontade. Trata-se
de explicitar o político”.
Nessa direção, as palavras consideradas “corretas” servem para representar a moral social
presente na atualidade,
e, ao mesmo tempo, censurar modos de dizer
(outras palavras) sobre
questões que ainda são
consideradas tabus em
nossa sociedade.
4
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tido como comum, não era uma blasfêmia e muito menos algo
que somente alguns pudessem falar. Mas, segundo o autor, os
discursos sobre o sexo passaram para o “quarto do casal” e para
os especialistas, pois somente estes detinham um saber que lhes
permitia falar sobre sexo.
Esse funcionamento sobre o sexo nos permite compreender
de que forma os sentidos vão sendo constituídos e de que forma
o silêncio produz sentidos: através do silenciamento de alguns
dizeres para que outros predominem.
Nota-se que atualmente há uma gama de textos, imagens,
filmes, sites que falam sobre sexo e sexualidade de várias formas
e com vários sentidos. Mas, por outro lado, esse grande número
de informações não significa que falar de sexo atualmente deixou
de ser tabu, deixou de existir uma repressão sexual. Isso pode ser
visualizado pelos meios de censura que existem na atualidade,
pois muitos canais de televisão aberta são obrigados a tirar certas cenas do ar ou utilizam um recurso que mitiga as palavras
consideradas politicamente incorretas4.
Em O Mal-estar na civilização, Freud (1930) nos mostra como
os sentidos foram sendo construídos a partir de muitos imaginários sociais, culturais e históricos que perpassam também
os dizeres sobre a prostituição.
Nessa direção, para o autor, a própria ideia de civilização, de
sociedade, se contrapõe com a de prazer, com a de sexualidade,
pois através da sociedade foram se constituindo os modos de se
viver, com regras, com direitos e deveres, constituiu-se, assim, o
princípio da realidade, que se contrapõe ao princípio do prazer. Para
o autor, esses dois princípios fazem parte do ser humano, o que
põe em funcionamento, de um lado, o desejo de ser feliz, o imediatismo do prazer, independente de regras, convenções sociais
(princípio do prazer), e, de outro, as regras, as normas do como
viver em sociedade com o seu igual (princípio da realidade). Essa
construção de sentidos perpassa o imaginário sobre a mulher e
a prostituição e, dessa forma, sobre a própria sexualidade que
constitui todo sujeito. Assim, é interessante, nesse estudo, perceber
que falar sobre a prostituição, sobre a sexualidade ainda é algo
que produz preconceito na sociedade atual.
Frente a essas colocações teóricas, nos deteremos na análise
discursiva dos cadastros policiais que materializam os sentidos
sobre a mulher e a prostituição, principalmente na relação trabalho-corpo-prazer, que produzem efeitos na prática da prostituição.
O equívoco constitutivo das/nas práticas de prostituição
Atualmente, o uso dos termos “puta”, “prostituta”, “meretriz”, entre outros, estão sendo questionados por movimentos
que buscam o reconhecimento da prostituição enquanto “[...]
uma profissão como outra qualquer” (RODRIGUES, 2009, p. 69).
Esses grupos passaram a usar os termos “profissionais do sexo”
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Tais como “Associação das Profissionais do
Sexo”; “Rede de Trabajadoras Sexuales de Latinoamerica y el Caribe”;
“Trabajadores sexuales
argentinas em acción
por sus derechos”.
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ou “trabalhadores do sexo”. Trata-se, pois, do funcionamento do
politicamente correto, que, segundo Orlandi (2002), apenas busca
silenciar, apagar os sentidos que estão presentes na sociedade,
principalmente em relação ao preconceito. Para a autora, o único
modo de mudar os sentidos do uso de determinada palavra é
através da mudança das condições de produção dessas palavras,
pois só assim elas podem sofrer um deslize, um deslocamento, ou
seja, é necessário mudar as relações sociais para que os sentidos
deslizem, desloquem e permitam que o preconceito tenha fim.
Desse modo, alguns grupos5 que pregam a profissionalização da prostituição não aderem ao uso dos termos “puta”,
“prostituta”, “meretriz”, ao contrário, propõem mudanças sobre a
forma de denominação da prostituição. Assim, esses novos modos
de renomeação – que atendem à demanda atual do politicamente
correto – produzem a afirmação do estigma social que esta atividade sofreu/sofre, ao invés de exaltar a prostituta/prostituição
enquanto profissão. Ou seja, ao designar a prostituta como “profissional”, como “trabalhadora” tenta-se apagar o preconceito que
essa atividade produziu ao longo da história. Portanto, ao dizer
“somos trabalhadores, somos profissionais” produz-se uma tentativa de silenciamento do estigma social da prostituição para
visibilizá-la enquanto “um trabalho como outro qualquer”, sem
preconceito nenhum. Mas, enquanto os dizeres sobre a prostituta/
prostituição se derem nas condições de produção atuais, a mudança de designação não produzirá nenhum resultado, porque
o estigma social continuará produzindo seus efeitos, ou seja, os
sentidos das palavras só mudarão se houver condições históricas
para isso, ou seja, a proposta de mudança não assegura a adoção
e circulação do novo nome.
Nessa relação com o trabalho aparece, então, o equívoco
constitutivo das práticas de prostituição, pois toda a contradição –
presente na relação prostituição x trabalho e corpo – vem investida
por questionamentos presentes no nosso dia a dia, na sociedade:
circulando, produzindo sentidos. Afinal, o que é trabalho? O que
é esse trabalho na relação com o corpo, o que é o corpo na relação
com o trabalho e com o prazer?
Há, nas relações sociais, uma insuportabilidade em deixar
circular os sentidos sobre o prazer, porque a sexualidade traz
para todos os sujeitos um fantasma socialmente insustentável
que é o prazer. Historicamente, a relação entre trabalho e prazer
é algo inconciliável, principalmente no momento em que a Igreja,
como instituição, leva o homem a repudiar o prazer, através da
moralidade, atravessando, barrando constantemente a sua relação
com a sexualidade.
O preconceito funciona, então, como um modo de dar visibilidade a essas questões, pois faz circular pré-construídos nos
quais os dizeres sobre prazer/sexualidade são silenciados, ou seja,
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não se pode falar de prazer, não se pode falar sobre o corpo na
relação com o prazer.
Nessa direção, o preconceito nega os sentidos que traduzem
essa interdição, mas, ao mesmo tempo, é a interdição que torna
tão forte os efeitos sobre o sexo, que sempre encontra formas de
escape, de deslize, de falha, produzindo sentido. Assim, mesmo
silenciado, interditado, o dizer sobre o sexo/sexualidade continua
incomodando, funcionando nas relações sociais, produzindo
efeitos.
Nessa direção, o trabalho, pautado por um sistema capitalista, produz sentidos voltados para a concepção do sustento, como
forma de edificação do ser humano, sem o qual o homem não se
constituiria como sujeito para a sociedade, como um bom cidadão,
que cumpre suas obrigações. Por essa razão, a própria relação do
prazer com o trabalho fica diluída, pois não há tempo para o prazer
(“tempo é dinheiro”), produzindo, assim, efeitos negativos sobre
os sujeitos que visibilizam, através de sua atividade, a questão do
prazer, ainda que de outrem, como é o caso da prostituta.
Portanto, tem-se, nessas condições de produção, a contradição marcada pelo trabalho e pelo prazer, ou seja, ou corpo serve
para o trabalho ou serve para o prazer, o que coloca em funcionamento uma impossibilidade de que prazer e trabalho circulem
mutuamente. E nessa relação, a prostituta vai se constituir como
o lugar do equívoco, do deslize, pois produz um funcionamento
em que trabalho e prazer se constituem mutuamente através do
uso do corpo na prostituição.
Talvez essa contradição não permita que, ainda hoje, no
Brasil, haja a legalização da prostituição como profissão, pois
essa legalização coloca-se no lugar do interditado, do proibido,
permitindo, portanto, como um de seus efeitos, a consolidação
do estigma social que marca a prostituta/prostituição. Nesse
entremeio, instituem-se as várias imagens projetadas sobre a
prostituição que a insere, em alguns momentos, como profissão
e, em outros, desqualificando-a como tal, interpretando-a como
mero negócio, como veremos a seguir.
O cadastro policial
Nessas fichas encontram-se os dados básicos de um cadastro:
nome, filiação, data de nascimento, cidade, nacionalidade, estado
civil, identidade, residência, profissão, local de trabalho, ramo/
negócio, procedência, infração, data/entrada. Logo em seguida
há um espaço denominado “Observações”, como já mencionamos.
Em alguns dos registros, encontramos profissões como
costureiras, manicure, cabeleireira, etc. No caso da ficha acima
(figura 1) temos como profissão “costureira” e como ramo/negócio “Atualmente, meretrício”. Percebemos que há, portanto, um
desencontro entre o que é profissão e o que é ramo/negócio.
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Fig. 1. Imagem adaptada de um cadastro policial com o item “observações”
Fonte: Núcleo de documentação de história escrita e oral (NUDHEO)
A formulação – “Atualmente, meretrício” – produz um funcionamento em que ser meretriz é uma atividade recente, enquanto que ser costureira é uma atividade mais antiga. Essa diferença
entre as formulações faz funcionar sentidos de que o sujeito possui
uma profissão, mas que não atua nela ou ela é insuficiente para a
manutenção própria e da família, sendo necessária a prática do
meretrício, razão pela qual a ficha comporta o item profissão e o
item ramo/negócio, que, no caso desse cadastro (figura 1), surgem
de formas distintas.
Nesse mesmo cadastro, aparece, no item observações, uma
outra profissão: a de “bailarina”. Nesse item, a profissão “bailarina” juntamente com a formulação “Bar Tropical” – “É bailarina
no Bar Tropical, no local onde mora” – produz um deslizamento
produzindo efeitos de sentido que toma uma profissão, a de
bailarina, ou um local, o bar Tropical, para significar a atividade
de prostituição. Os sentidos do que se coloca como paráfrase ou
polissemia dependem das condições de produção das formulações
e da inscrição em cada formação discursiva na qual o sujeito do
dizer se constitui. Assim, bailarina e Bar Tropical representam
o espaço do meretrício no social, na cidade de Cáceres. Ou seja,
estar no Bar Tropical, ser bailarina, nessas condições de produção,
significa exercer a profissão de meretriz, ou seja, caracteriza a
imagem da mulher como prostituta.
Conforme Orlandi (2007a), através dos objetos simbólicos,
podemos compreender como o sentido é produzido, logo, é a
formação discursiva que determina o que pode e deve ser dito,
portanto, afirmar-se como “bailarina do Bar Tropical” insere o
dizer da prostituta, enquanto materialidade, em uma formação
discursiva jurídica, ou seja, aquela que autoriza a dança e o local
como profissão reconhecida, silenciando a atividade da prostituição. A atividade de bailarina, então, é uma profissão socialmente
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aceita, com local e atividade definidas, o que retiraria a prostituta
da ilicitude que o próprio fato de cadastrá-la produz. No entanto,
a atividade de bailarina – que é considerada como profissão enquanto a prostituição é considerada ilícita – no registro policial,
associada a um local – o bar Tropical – passa a ser considerada
apenas uma atividade de prostituição, pois se trata da venda do
próprio corpo.
Entrementes, há formulações presentes em uma outra ficha
de qualificação que tomam o meretrício como profissão, tanto
nos itens profissão e ramo/negócio quanto no item denominado
observações, como veremos no cadastro a seguir:
Fig. 2. Imagem adaptada de um cadastro policial com o item “observações”
Fonte: Núcleo de documentação de história escrita e oral (NUDHEO)
No caso do cadastro acima (figura 2), os itens profissão e
ramo/negócio representam um mesmo lugar, o do meretrício,
não havendo uma distinção. Nessa direção, tem-se a inscrição
do meretrício como uma profissão – “Ninguém a força a viver
dessa profissão” – havendo, portanto, uma descriminalização
desse tipo de atividade, que passa a ser considerada, apenas uma
comercialização, como qualquer outra, em que a meretriz prestava
um serviço e recebia por ele.
Vemos, portanto, como o uso do corpo para atividade de
prostituição produz sentidos contraditórios, pois, considerado
como degradação, o prazer para a sociedade é algo primitivo, feio,
que deve ser silenciado, e a meretriz representa o que a sociedade
condena e repudia, pois a sua atividade se faz pelo uso do corpo
para o trabalho e pela proporção do prazer. Dessa maneira, ao dar
prazer através do corpo, a prostituta pode também senti-lo, o que
é negado pela sociedade capitalista, pois o corpo propicia o lugar
de poder dizer sobre o trabalho e sobre o prazer, numa relação
contraditória. Assim, seus efeitos produzem a contradição, tanto
negativa, de estranhamento (o uso do corpo para a prostituição)
quanto de aceitação pela moral social (o uso do corpo para o
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trabalho). No entanto, a prostituição também não seria o uso do
corpo para o trabalho, para o sustento? E, ao mesmo tempo, não
seria o corpo, nessa relação de trabalho, o objeto de proporcionar/
sentir o prazer?
Este funcionamento relaciona-se com a contradição presente
nos cadastros analisados, pois as marcas presentes – “profissão:
costureira; ramo/negócio: Atualmente, meretrício”; “Ninguém a
força a viver dessa profissão” – demonstram o lugar da prostituição como profissão e, ao mesmo tempo, funcionam como sua
denegação.
Historicamente a relação trabalho x corpo constitui o corpo
como lugar do sacrifício, do sustento, do viver de acordo com as
regras sociais (princípio da realidade), apagando (censurando)
o corpo como instrumento de prazer (princípio do prazer). O
funcionamento inconciliável entre o princípio da realidade e o
princípio do prazer, descritos por Freud (1930), marcam o lugar
de ilegitimidade da prostituta/prostituição.
Na tentativa de controlar a sexualidade, o prazer, os regulamentaristas buscavam; entre as décadas de 1890 a 1920, não só
controlar o lugar em que as prostitutas deviam viver e se prostituir,
como também mantê-las sob o jugo da não satisfação sexual, ou
seja, “[...] o ideal de puta para os regulamentaristas é a mulher
recatada e dessexualizada, que cumpre seus deveres profissionais, mas sem sentir prazer e sem gostar de sua atividade sexual”
(RAGO, 1985, p. 92). Ou seja, os efeitos produzidos são os de que
as prostitutas deveriam ser “recatadas” e “dessexualizadas” ao
realizarem o seu trabalho, pois lhe era interditado o prazer sexual.
Desse modo, esse apagamento da possibilidade de prazer coloca
a meretriz mais próxima da mulher honesta – a quem também
era negado o prazer, pois sendo “recatada” e “dessexualizada”, o
sexo servia-lhe apenas ao propósito de gerar a prole e cuidar do
lar. Nessa direção, a atividade da prostituta constituiu-se como
um lugar de dar prazer e não de obter prazer, assim, a função do
trabalho para a meretriz era apenas a de provê-la financeiramente,
marcando a contradição constitutiva entre o trabalho e o prazer.
O uso do corpo para atividade de prostituição constituía
uma forma de resistência da prostituta, pois fazia uso de algo
interditado (o corpo), com o qual além de se beneficiar financeiramente, poderia sentir prazer. Os sentidos produzidos nos mostram
como a interdição, a censura de falar sobre sexo, está arraigada
na sociedade através desse olhar negativo sobre a relação do corpo com o prazer. Nesse sentido, o corpo não serve apenas para
o trabalho, para produzir de forma a contemplar os ditames do
capitalismo, uma vez que é lugar de sentir e de dar prazer. Nessa
direção, a prostituta constitui-se de modo a produzir sentidos
que se instalam pela contradição entre trabalho, prazer e corpo.
Trata-se de sentidos que, construídos pela moral social, produzem uma contradição que é constitutiva da prostituição, pois,
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apesar de ser renegada pela sociedade, em nenhum momento
vemos a tentativa de pôr fim a essa atividade. Assim, a prostituta/
prostituição foi/é considerada um “mal necessário”, devendo ser
apenas controlada, mas não extinta. Aqui também se instala uma
interessante contradição, pois a prostituição é mantida como um
mal necessário para dar prazer ao outro, mas não para o prazer
pessoal da prostituta. Dessa maneira, a prostituta é um mal necessário, pois o prazer é também necessário. Assim, se o homem
não pode ter prazer com a esposa, devotada ao lar e aos filhos,
é necessário alguém que lhe dê prazer, ou seja, se há, por um
lado, a mulher-mãe, é preciso que haja a mulher-prostituta. Essa
dualidade é historicamente constitutiva na imagem feminina e
nasce da imperiosidade de o homem sentir prazer e da interdição
do prazer feminino.
Desejo e sobredeterminação:
a desresponsabilização do Estado sobre a prostituição
A necessidade social da prostituta/prostituição se materializa nos cadastros policiais produzindo efeitos de desobrigação e
de desresponsabilização do Estado:
(01) “É meretriz voluntariamente há 8 anos”
(02) “Ninguém a força a viver dessa profissão”
(03) “Não vive constrangida em sua profissão de meretriz”
Observamos que essas formulações se constituem numa
relação parafrástica e polissêmica. Para Orlandi (1998), o jogo
sobre as regras da língua é o que afeta a repetição, produzindo
deslocamentos, que permitem, através da substituição, que o
sentido possa a vir ser outro.
Nesse caso, as formulações: “É meretriz voluntariamente há
8 anos”./ “Ninguém a força a viver dessa profissão”. / “Não vive
constrangida em sua profissão de meretriz”, produzem efeitos que
apagam e subsumem todo o caráter de indução social à prostituição, pois, ao colocar a prostituição como um ato de vontade, de
desejo pessoal da prostituta, apagam-se fatores socioeconômicos e
culturais, produzindo o efeito de que quem pratica a prostituição
voluntariamente o faz por desejo e por prazer.
Dessa maneira, a liberdade para ‘escolher’ se tornar meretriz, se é que ela existiu, retirou-a, por outro lado, da condição
de mulher submissa e dependente, e conferiu-lhe a condição de
uma mulher que é dona de sua própria vida, ou seja, a atividade
de meretriz conferiu-lhe um sentido de escolha. No entanto, é
preciso salientar que a posição sujeito policial interpreta as falas da prostituta, falando por ela, ao produzir as fichas. Desse
modo, produz-se o silenciamento de todas as condições sociais
e econômicas que levam a mulher a se prostituir, pois os efeitos
que as formulações – (01) “É meretriz voluntariamente há 8 anos”;
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(02) “Ninguém a força a viver dessa profissão”; (03) “Não vive
constrangida em sua profissão de meretriz” – produzem acerca
da imagem das prostitutas são os de mulheres que gostam desse
tipo de vida, que não se sentem culpadas e que são obstinadas em
fazer o que sempre quiseram fazer. Esse efeito confere à mulher a
condição de leviandade, pois optam por não mudar o que fazem
e o fazem por prazer, por gosto ou por qualquer outra razão de
menor valor.
Nessa direção, há uma transgressão das regras sociais, nas
quais o sujeito não tem o direito de não fazer nada, ele é assujeitado ao Estado, a um sistema capitalista que preza pela produção,
assim, enquanto um sujeito-de-direito, possui direitos e também
deveres que condicionam o seu modo de vida. Nessa relação, o
trabalho é marcado como lugar de desenvolvimento da sociedade.
E se o sujeito não produz, se vive somente para o prazer, transgride
todas as regras sociais, marcando sua condição na sociedade como:
leviano, “vagabundo”. De outro modo, para fugir a esse estigma,
é necessário que sofra a interdição do prazer.
Ao se formular “É meretriz voluntariamente há 8 anos”
(figura 1) – tem-se em funcionamento o sujeito de direito, aquele
que “pensa” ser dono do seu dizer e do seu fazer. É, pois, esse
sujeito que é ressaltado nessa formulação, pelo funcionamento do
advérbio de modo “voluntariamente”, que expressa o modo como
se dá a prostituição, ou seja, por vontade do sujeito. Trata-se, pois,
de formulações que se filiam ao discurso jurídico, uma vez que diz
do sujeito-de-direito que pode, por sua livre e espontânea vontade,
praticar a prostituição. O uso do vocábulo “voluntariamente”
produz também o mesmo sentido que “voluntariosa”, ou seja,
“aquela que age apenas ou principalmente segundo sua própria
vontade”. O sujeito-de-direito é, nesse caso, um sujeito sem culpa,
que age obstinadamente, que segue seus caprichos sem consideração à vontade de outrem para exercer a sua própria vontade,
qual seja a de exercer a prostituição. Desse modo, a prostituição
passa a ser atribuída à individualidade da prostituta, pois se é
prostituta em razão de sua própria vontade, o que produz efeitos
de desobrigação do Estado para com a prostituta/prostituição.
Nessa direção, os sentidos que se produz sobre a mulher/
meretriz, com a venda de seu próprio corpo, é o de que ela apaga
a necessidade do exercício de uma profissão reconhecida em nome
da sua “escolha”, do seu voluntarismo, da sua ausência de culpa.
O efeito que esse tipo de discurso produz é o de um sujeito que
pensa ser dono de sua vontade e que pensa ser livre. É por essa razão
que o seu dizer produz a ilusão de que a prostituta tem o controle
sobre si e que não está sujeita às relações de poder, decorrentes
dos modos de produção capitalista.
Compreendemos, assim, que há, nessa formulação, um processo de desresponsabilização do Estado, como já mostramos, pois
se o sujeito policial registra que a prática da prostituição é um ato
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de vontade do sujeito, apaga, desse modo, toda a possibilidade de
que ela seja decorrente das mazelas socioeconômicas das mulheres
naquele período. Do mesmo modo, desresponsabiliza o aparelho
repressor – a polícia – de qualquer ação, pois a prostituição não
é crime, mas a indução, por terceiros, dessa prática é criminosa.
Ora, se a prostituta afirma que sua ação de prostituir é voluntária,
ela isenta de qualquer responsabilidade o aparelho repressor e
alguém que, eventualmente, possa estar induzindo-a a tal prática.
Nas formulações (01), (02) e (03), notamos uma gradação, ou
seja, são dizeres diferentes, mas que produzem os mesmos efeitos
de sentido, qual seja o da não obrigatoriedade de ser meretriz.
Porém, na formulação (03) – “Não vive constrangida em sua profissão de meretriz” –, além do dizer referir-se ao sujeito-de-direito,
a formulação faz remissão também ao atravessamento do discurso
jurídico pelo religioso, uma vez que coloca em funcionamento a
noção de culpa, implicitando que a prostituta deve constranger-se
da atividade que realiza. Assim, em “não vive constrangida”,
o funcionamento que se coloca é o de uma mulher que não se
constrange, não sente culpa, não se deixa interpelar pelos sentidos
instalados pela moral cristã que a prática da prostituição apaga.
Trata-se de sentidos que, filiados a uma concepção da moral religiosa, colocam a mulher como alguém que deve manter-se pura,
casta e desempenhando com qualidade o papel de boa mãe e
esposa.
Assim, o efeito que a formulação produz é o de que as relações morais e sociais são subsumidas pelas econômicas, pois não
há constrangimento pelo tipo de atividade que se pratica. Desse
modo, ser meretriz, de um lado, é ter uma profissão e se colocar
como produtiva em um sistema que exige a produção, daí o fato
de “não viver constrangida”. Mas, por outro lado, a produtividade
da prostituta realiza-se sobre algo interditado – o uso do próprio
corpo para a obtenção/doação de prazer –, produzindo um deslize,
uma contradição, pois o uso inadequado do corpo, ressaltado pelos
valores morais e instituídos pelo discurso religioso, permanece
produzindo seus efeitos e afirmando o estigma social para a
prostituta, mesmo que ela seja considerada produtiva, conforme
a ordem do sistema capitalista.
Considerações Finais
A Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) assegura à
prostituição o status de ocupação, mas não de profissão, apesar
de haver inúmeros projetos de lei que pleiteiam essa finalidade.
Esse funcionamento moroso, contudo, tem uma razão de ser, pois
o trabalho com o corpo deve dignificar o homem e não produzir-lhe prazer. Assim, a negação do status de profissão à prostituta funciona como um castigo, uma punição, pois as regalias
conquistadas pelas profissões não devem alcançar as mulheres
que usam o corpo para sentir/dar prazer. Portanto, funcionando
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por um batimento entre a paráfrase e a polissemia, há avanço e há
retrocessos, há o mesmo e o diferente, há sentidos novos e sentidos
recorrentes em relação às prostitutas/prostituição, pois a sua força
de trabalho não pode/deve ser considerada como dignificante,
mesmo com tantas ONG’s, mesmo com tantos projetos de lei do
legislativo, mesmo com tanta luta pela causa.
Se considerarmos os modos de funcionamento capitalista
de lidar com as situações sociais, a prostituição poderia até ser
elevada à condição de profissão, uma vez que, nesses modos de
produção, é o lado econômico que tende a prevalecer. Contudo, é
importante assinalar que o discurso que prevalece sobre a prostituta/prostituição é o da moral, o da religião, principalmente
pelo poder legislativo do país que, ainda hoje, interpelado por
essas discursividades moralizantes, vota contra a legalização da
prostituição adulta como profissão.
Desse modo, a interdição do uso do corpo na relação com
o trabalho, visando a sentir/dar prazer, produz uma contradição
permanente para a prostituta, pois ela constitui-se na contramão
dos valores morais e mesmo do sistema capitalista, uma vez que
ela é produtiva, mas a sua forma de produção não é aceita.
Entrementes, a contradição presente na relação trabalho-corpo-prazer demonstra, ao longo da história, que, por mais que se
busque restringir, censurar, interditar o prazer, ele aparece em
algum lugar, sempre encontra modos de escape. É a necessidade
do prazer que, em conflito com os valores morais, sociais e religiosos (princípio da realidade), propicia à prostituição seu lugar
de “mal necessário”, pois, o prazer é necessário, produzindo assim
uma contradição constitutiva para a produção dos sentidos e dos
sujeitos nas práticas de prostituição.
Abstract
This article aims to analyze the relationship
between body-work-pleasure in the practices of
prostitution. We question what is the work in
relation to the body, which is the body in relation to work and pleasure? In this direction,
we intend to address in this study the theory of
Discourse Analysis of French line, which has as
its theoretical object the discourse, in which we
found the marks of disruption that will allow us
to understand, through gestures of interpretation,
as sense makes sense.
Keywords: prostitution; pleasure; profession;
body.
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231
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Niterói, n. 34, p. 215-233, 1. sem. 2013
233
A milícia e o processo
de individuação: entre a falta
e a falha do Estado
Greciely Cristina da Costa (UNIVÁS)
Resumo
Neste artigo, refletimos sobre o modo como a falta
e a falha do Estado intervêm no processo de individuação ressaltando que a individuação do sujeito
pelo Estado, de acordo com Orlandi (2012), é uma
questão política dada a relação do indivíduo com
a sociedade. Para isso, observamos a configuração
da milícia face ao espaço da favela e em relação ao
Estado. Ao mesmo tempo, procuramos explicitar
algumas discursividades que enunciam a forma
pela qual a milícia é identificada em discursos sobre ela, notadamente em uma entrevista realizada
com moradores do Rio de Janeiro.
Palavras-chave: Discurso; Milícia; Processo de
Individuação.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013
A gente quase nunca vê. Esse pessoal do extermínio a gente quase
nunca vê. Teve até um desses do extermínio, que ele andou preso;
ele é policial, porque teve um inquérito, descobriram que ele estava
exterminando. Mas ele não foi expulso. Diferente dos outros, ele não
foi expulso. Ele continua policial. A milícia funciona mais assim para
exterminar. Eles querem manter a paz assim. Não mantém a paz,
fechando rua (Entrevistado 22).
Agradeço ao Prof.
Dr. Ignacio Cano pela
concessão de parte de
seu material de pesquisa, cuja entrevista
com moradores do Rio
de Janeiro, alguns de
áreas miliciadas, foi coletada pela equipe de
pesquisadores do LAV
(Laboratório de Análise
da Violência), da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ).
Na entrevista os sujeitos eram questionados
sobre a milícia e sua
atuação.
2
Fazem parte da milícia, além dos policiais e
ex-policiais, bombeiros
e agentes penitenciários,
mas esses são m inoria, por isso, preferimos
destacar o nome polícia,
pois é ele, também, que
é enunciado para se referir à milícia.
1
236
Sabemos que o extermínio é crime, mas não é imputado
a qualquer sujeito como o Entrevistado 22, acima mencionado,
em entrevista sobre a milícia1, denuncia: Teve até um desses do
extermínio, que ele andou preso; ele é policial, porque teve um inquérito,
descobriram que ele estava exterminando. Mas ele não foi expulso (não
foi “devidamente” punido?). Ele continua policial (continua exterminando?) e a milícia funciona assim mais para exterminar. Extermínio,
policial, milícia são formas enunciadas no interior de um discurso
que aponta para ilegalidade cometida pelo policial e, ao mesmo
tempo, para a prática criminosa e para o próprio sujeito que fica
impune e, ainda, para a especialidade da milícia: exterminar.
Esse discurso está inserido em uma conjuntura sócio-histórica, na qual tornou-se constante tratar a violência policial como
legítima, quando autorizada pelo Estado. Tornou-se constante
significá-la como legítima para garantir a ordem, a paz e a segurança. Tornou-se constante, para uma parte de nossa sociedade,
banalizar o extermínio praticado pela polícia, quando um suposto
inimigo está inscrito, supostamente, no lugar social e no espaço
ditos de marginalidade, como por exemplo, o morador de/na
favela. Por outro lado, ordem, paz, segurança, inimigo, formas
materiais submetidas à opacidade da língua e ao seu sistema
sempre sujeito a equívocos, têm seus significados deslocados,
pois eles reclamam outros sentidos e por isso mesmo podem
politicamente se dividir, se contrapor, ressignificar em uma rede
de discursividades distintas.
O fragmento acima faz parte de um discurso sobre a milícia que põe em cena a polícia de um outro modo, com outros
sentidos, na relação com a milícia. Expliquemos. Em 2006, a
denominação milícia começou a circular na mídia para se referir
à polícia (policiais junto a outros agentes de segurança pública)2
que entrava em áreas de favelas ocupadas por narcotraficantes
a fim de “combatê-los”. Mas, ao invés de efetuar mandados judiciais, prisões outorgadas, entre outros procedimentos legais, esse
combate consistia na expulsão, até a execução sumária, daquele
considerado inimigo, naquele determinado espaço, visando, com
isso, a instauração de uma espécie de domínio. Depois do combate,
a milícia passava a controlar ilegalmente as relações comerciais
e sociais dessas áreas, a partir da imposição de um dispositivo
normativo regido pelo discurso, até então dito moral, de enfrentamento da criminalidade e de manutenção da ordem, da paz e
da segurança. Essa prática criminosa explicita a polícia com outro
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nome. Em outros termos, o discurso sobre a milícia explicita uma
prática da polícia, primeiramente, porque a milícia assim como a
polícia irrompe do interior de uma mesma instituição do Estado,
imaginariamente, representante da Lei. A milícia assim se configura nos limites do sentido de polícia e instala imaginariamente
a contraparte da Lei, o crime. A milícia é significada e constituída
entre a lei e o crime. Esse é um dos efeitos dos discursos sobre a
milícia analisados em nossa pesquisa de doutorado (COSTA, 2011).
Eles enunciam essa constituição afetada pela formulação de uma
tensão, do embate entre o legítimo, o legal e o ilegal, provocados,
sobretudo, pela falta e pela falha do Estado enquanto articulador
político-simbólico (ORLANDI, 2001a) na contemporaneidade.
Neste artigo, procuramos apresentar, através de recortes da
tese, de que modo a falta e a falha do Estado intervêm no processo
de individuação ressaltando que a individuação do sujeito pelo
Estado, de acordo com Orlandi (2012), é uma questão política dada
a relação do indivíduo com a sociedade. Para isso, observamos a
configuração da milícia em relação ao espaço da favela e ao Estado.
Ao mesmo tempo, procuramos explicitar algumas discursividades
que enunciam o modo pelo qual a milícia é identificada.
Interpelação, Individuação e Identificação
Em Do sujeito na história e no simbólico, Orlandi (2001a) apresenta dois movimentos que constituem o processo de subjetivação
do sujeito: Interpelação e Individu(aliz)ação. A autora explica que
o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia, no simbólico,
constituindo assim a forma-sujeito histórica (PÊCHEUX, 1975;
ORLANDI, 2001a), enquanto o Estado, “com suas instituições e as
relações materializadas pela formação social que lhe corresponde”
(p. 106) individua essa forma-sujeito. Orlandi acentua que desse
processo resulta um indivíduo responsável e dono de sua vontade, com direitos e deveres. Segundo ela, uma vez individuado,
esse indivíduo, ou melhor, esse sujeito individuado estabelece uma
relação de identificação com uma ou outra formação discursiva
produzindo diferentes efeitos. E assim, nas palavras da autora,
se constitui em uma posição-sujeito na sociedade. E isto
deriva de seus modos de individuação pelo Estado (ou pela
falha do Estado), pela articulação simbólico-política através
das instituições e discursos, daí resultando sua inscrição em
uma formação discursiva e sua posição sujeito que se inscreve
então na formação social com os sentidos que o identificam
em sua posição sujeito na sociedade (ORLANDI, 2012, p. 228).
Em Por uma teoria discursiva da resistência do sujeito, Orlandi
(2012) retoma esses pressupostos para fazer avançar teoricamente a reflexão sobre a constituição do sujeito na relação com a
resistência pensada discursivamente. Com esse propósito, neste
estudo, a autora assinala que o “Estado, em uma sociedade de
mercado predominantemente, falha em sua função de articuNiterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013
237
Zaluar & Conceição
(2007) retornam ao sign ificado etimológ ico
da palavra milícia, que
sugere serviço militar
(militia, de origem latina:
miles quer dizer soldado
e itia se refere a estado,
condição ou atividade),
para expor a maneira
como essa denominação
é tomada em diferentes países. Comumente ela denomina força
militar composta “de
cidadãos ou civis que
pegam em armas para
garantir sua defesa, o
cumprimento da lei e
o serviço paramilitar
em situações de emergência, sem que os integrantes recebam salário
ou cu mpra m f u nção
especificada em normas
institucionais” (p.90).
Deu nome ao exército
oficial do Canadá; na
Suíça, ao exército oficial
de reserva; às tropas de
reserva, da Austrália
e, também, do Canadá.
Em países que não têm
o que se chamou polícia, milícia dá nome
a um policiamento regional. O modo como
as autoras conduzem
sua exposição nos dá a
impressão de que a ideia
de segurança e de defesa
estrutura as distintas
milícias. Mas o sentido
de segurança e defesa é
bastante ambíguo. Milícia Talibã é, também,
denominação do movimento fundamentalista
islâmico, cujo preceito
é político-religioso e,
como sabemos, sua prática é terrorista.
3
238
lador simbólico e político. E funciona pela falha. Isto é, a falha do
Estado” (p. 229). Para Orlandi, essa falha não diz respeito à falta
de interesse, descaso, nem significa que o mercado substitua o
Estado. Trata-se de uma falha necessária, estruturante do sistema
capitalista contemporâneo. Falha que incide sobre o processo de
individuação e, portanto, intervém no processo de identificação.
Sobre esse último, Pêcheux (1982) propõe pensar a ideologia como
um ritual com falhas. Nesse sentido, a falha é o lugar do possível
(ORLANDI, 2012, p. 230), lugar em que a ideologia “se abre em
ruptura, onde o sujeito pode irromper com seus outros sentidos
e com eles ecoar na história” (idem, ibidem, p. 231), pode então,
produzir outros efeitos no processo de identificação.
Em relação às formas ideológicas constitutivas da contemporaneidade, Orlandi (2012, p. 226) apresenta duas hipóteses.
Segundo a autora, há
na contemporaneidade, duas formas ideológicas que regem
o imaginário citadino: 1. O mito da completude (a sociedade
como um todo organizado e coeso) criando a interpretação da
desagregação (aquilo que fica fora dela) e 2. em uma perspectiva
neoliberal, o fato de que a reciprocidade, a solidariedade cedem
lugar à rivalidade, à competição, à marginalidade.
Por esse viés, podemos situar a milícia primeiro em relação
à cidade como constituída especificamente em um espaço: o da
favela. Espaço esse segregado. Espaço, cuja ausência do Estado
é visível e a arbitrariedade das forças policiais também. Em segundo, no ponto de encontro da falha e da falta no Estado, cujo
resultado é o confronto ideológico entre aquilo que é ou não dito
como marginal. A reflexão de Orlandi, sobretudo, nos leva a compreender a milícia como uma das formas de relação do Estado (ou
a sua falta/falha de/na relação) com os sujeitos históricos sociais.
Forma essa que, por sua vez, interfere no modo como os sujeitos
individuados identificam a milícia, como ela se constitui a partir
de um discurso sobre ela.
Milícia e Estado: Modos de Individuação
A denominação milícia3 , na relação com diferentes definições, se inscreve em um processo discursivo desencadeado pela
substituição de uma denominação por outra. Seu funcionamento
discursivo é permeado de equívocos, é, por isso, colocada o tempo
todo em suspenso, em nossa pesquisa (COSTA, 2011). Para tecermos algumas considerações sobre ela, neste momento, trazemos
uma definição – como veremos equívoca, sobretudo, em seu modo
de denominar – formulada no interior dos estudos sociológicos,
na qual a milícia é um grupo armado irregular e se define pelos
seguintes eixos:
1. controle de um território e da população que nele habita
por parte de um grupo armado irregular;
Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013
2.caráter em alguma medida coativo desse controle dos
moradores do território;
3. ânimo de lucro individual como motivação principal dos
integrantes desses grupos;
4. discurso de legitimação referido à proteção dos habitantes
e à instauração de uma ordem que, como toda ordem,
garante certos direitos e exclui outros, mas permite gerar
regras e expectativas de normatização da conduta;
5. participação ativa e reconhecida de agentes do estado
como integrantes dos grupos (CANO & IOOT, 2008,
p. 59).
Estes eixos, por sua vez, deslocam o sentido de militar de
milícia, ao passo que fazem referência a um grupo composto
por agentes de segurança do Estado (policiais militares e civis,
bombeiros, agentes penitenciários), interessados no controle, na
coerção, na extorsão, na instauração de uma ordem e normatização
da conduta num determinado espaço, de determinados sujeitos.
Esse espaço, referido acima como território, não diz respeito a
qualquer espaço. Sabemos que a milícia invade, em sua maioria,
favelas dominadas por traficantes, ou seja, enunciar território, para
se referir ao espaço visado pela milícia, é trazer para dentro dessa
definição a problemática em torno da relação de poder(es) que
existe nesse espaço, pois, além de o termo presentificar posições
divergentes na forma como a favela se significa nessas condições
de produção, ele remete a espaço institucionalizado, que está
diretamente ligado ao poder de Estado, faz parte dele. Como nos
explica Orlandi (2011a):
Se, de um lado, podemos pensar uma definição jurídica para
território – limitação da força imperativa das leis ao território
que as promulga – de outro, podemos pensar a definição política: condição da terra que faz parte de um Estado. Mas desde
que o poder está em jogo temos a possibilidade de intervenção.
Portanto estas definições não são inertes, nem politicamente
‘neutras’. Há sempre a necessidade de ‘órgãos’ competentes,
legítimos que exerçam territorialidade (p. 20 – grifos da autora).
E, quando se trata da favela e no que se refere à presença de
“órgãos” legítimos, neste espaço, já se delineiam, ao menos, duas
problemáticas postas pela questão da territorialidade. Primeiro,
porque a favela é dita, em termos jurídicos, como ilegal, uma vez
que é resultado de ocupações ilegais, de construções irregulares,
definida no Boletim Oficial da Secretaria de Serviços Sociais da
Cidade como grupo de habitações “de alta densidade, construído
de maneira desordenada com material inadequado, sem serviços públicos e sobre terrenos utilizados de maneira ilegal sem
o consentimento do proprietário” (cf. DRUMMOND, 1981, p. 2 –
tradução nossa). Mesmo que essas áreas tenham sido submetidas
Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013
239
ao projeto de urbanização, denominadas favela-bairro, elas são
consideradas, pelos órgãos públicos, bairros não-oficiais, tendo em
vista sua condição fundiária. Muitas daquelas que conseguiram
a regularização da propriedade, por outro lado, não se eximiram
de sua configuração estereotipada de favela, por outras razões,
dentre as quais podemos citar o domínio de narcotraficantes. Há
um forte imaginário social, que sustenta a configuração de favela
enquanto ilegal desde seu surgimento. Segundo Drummond
(idem), essa visão do poder público sobre a favela consiste em isolála, marginalizá-la nas suas diferenças de maneira a denunciar um
gueto fora da lei que necessita de ordem.
Para Donzelot (2009, p. 47), o isolamento de uma população
pobre, numa parte da cidade, autoriza uma gestão interna desta
população por uma administração especial, que se encarrega de
conhecer suas necessidades específicas e conter sua expansão
– nós diríamos seus excessos? Eis aqui, um segundo momento
envolvendo essa problemática da territorialidade. Apoiando-nos
na afirmação desse autor e articulando-a com a de Orlandi (2011a)
acima mencionada, podemos dizer que o órgão de Estado que se
faz presente neste território é a polícia. Mas, qual é a prática da
polícia, nesse espaço dito ilegal?
Como também sabemos, a polícia, às vezes, divide espaço
com os traficantes de drogas, que, em certa medida, gerenciam a
favela e são significados como um poder paralelo – nossa análise
esbarra, já adiantamos, num recorrente significante: domínio, que,
de certo modo, é significado não só na relação com os limites
geográficos, mas com o poder exercido pelos narcotraficantes
e, também, pela milícia. Poder esse que, em certas favelas, se
sobrepõe ao Estado. Com efeito, já se configuram aí relações de
força entre o que é dito legal (a polícia, o Estado) e ilegal (a favela,
os traficantes), em nossa sociedade. Há o reconhecimento de que
a polícia enquanto representante do Estado é legal, de que os
narcotraficantes são criminosos, ilegais e de que a favela, mesmo
tendo juridicamente reconhecida sua ocupação, é significada como
ilegal, em determinadas condições. Por exemplo, quando ocorre
uma incursão da polícia na favela, todos se tornam suspeitos,
tomados como supostos “ilegais”. Se a polícia age com violência,
executa um morador, sua prática é justificada, pois um imaginário,
que funciona eficazmente, no Brasil, condena o morador de favela ao lugar de marginalidade. Se a polícia executa traficante, o
discurso do Estado é o de que a violência foi legítima. É comum
ouvirmos dizeres tais como o de que matar “bandido”, “criminoso”, “assaltante”, “traficante” não é crime. Esse é um discurso
recorrente na sociedade brasileira. A violência policial é justificada,
nesse discurso, por causa dos sentidos atribuídos à favela e aos
seus moradores, apagando suas reais condições de existência. O
que vemos, então, é que a territorialidade exercida pela polícia se
sustenta pela/na violência.
240
Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013
Essas questões ressoam no que permite a formação, a ação
da milícia, a nosso ver, seu lugar de policial – agente de segurança
do Estado, suposto representante da Lei – disposto num espaço
tão já marginalizado como é o da favela. Tanto é assim que algo
falha ao caracterizar a milícia, na citação acima, enquanto “grupo
armado irregular”. Ao se dizer irregular, se apaga, se esquece o ilegal; se enfatiza o armado, mas não o criminoso. No entanto, é esse
mesmo dizer que nos permite chegar à possibilidade de enunciar
grupo de policiais ilegais, por exemplo. O ilegal tem a ver diretamente
com o rompimento do princípio básico do poder legislativo, dizer
ilegal é dizer contrário à Lei e, portanto, ao Estado. Irregular, por
sua vez, direciona, com contornos menos visíveis e puníveis, os
sentidos em movimento na relação com o Estado, com a favela,
com o favelado, com a própria milícia. Isso tem consequências
na produção de evidências, no jogo de representações sociais, no
processo de interpelação e individuação dos sujeitos, em nossa
formação social. Visto sob outro prisma, irregular ainda nos leva
a refletir se a milícia rompe com o Estado. Neste sentido, a milícia
coloca o Estado noutra relação com a territorialidade, com suas
instituições e no que diz respeito a ele mesmo em sua função de
articulador simbólico-político no processo de individuação dos
sujeitos, pois, como reflete Orlandi (2011a):
a forma sujeito histórica – em nosso caso capitalista – é individuada pelo Estado, em sua função simbólico-política – pelas
instituições e discursos – e é o indivíduo, assim produzido
por esse modo de individuação, que, pelo processo de identificação, vai se inserir/identificar com esta ou aquela formação
discursiva, constituindo-se em uma posição-sujeito específica
na formação social (p. 11).
É o modo de individuação na relação com o processo de
identificação que está em jogo, nesse caso. A ideologia é o ritual
com falhas e o equívoco na definição de milícia aponta para uma
delas.
A existência da milícia põe, assim, em foco uma complexa
problemática na relação entre cidade, Estado e sujeitos, pois, a
partir do domínio de favelas sustentado por práticas violentas,
sobretudo, a do extermínio, de coerção em busca de lucro, um
grupo ligado às forças de segurança do Estado – policiais reformados, ou na ativa, oriundos das polícias civil, militar, do corpo
de bombeiros, agentes penitenciários – subjuga ilegalmente esses
espaços e seus moradores, especificamente, no Rio de Janeiro.
Ou seja, a milícia comete crimes, mas ancorada em um discurso
moral de enfrentamento da criminalidade – semelhante ao da
polícia, que talvez seja ainda mais forte que o lugar de policial
–, ela expulsa, extermina traficantes e depois, sob o pretexto de
manter os locais “seguros”, se impõe na favela intervindo na vida
dos moradores: cobra taxas de manutenção da segurança, interfere
no transporte alternativo, nos serviços de telefonia e internet, no
Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013
241
comércio, na compra e venda de gás em busca de lucro, controla
a entrada e a saída dos moradores, visitantes dos bairros. E, ainda, pune com o extermínio qualquer um que seja considerado
como inimigo, a saber: usuários de drogas, ladrões, opositores,
invasores, moradores etc.
Até pouco tempo não havia uma lei que a considerasse em
sua instância criminosa. Um projeto de lei, que dá existência
jurídica à milícia, ao prescrever os crimes praticados por ela, é
formulado em 2008. Entretanto, através de um dispositivo normativo próprio, a milícia, com o argumento de “manter a segurança”,
instaura uma série de normas que estabelece uma determinada
ordem. Esse dispositivo se baseia na prática de violência como método de “proteção” e valida a circulação/imposição dessas outras
leis nas áreas dominadas. Os sujeitos que moram ou circulam por
elas têm de se submeter às leis dos milicianos. São essas normas
que organizam as relações sociais nestes espaços. Derivam da
ocupação de uma posição de poder, nesses locais, a formulação
e imposição de (novas) leis que regem este espaço e as condições
de existência. Por conseguinte, os moradores têm de se submeter
às novas regras sob a ameaça de punição.
Com isso, pode-se dizer que a Lei e o Estado falham no
processo de individuação do sujeito? Essa hipótese dirige a compreensão dos discursos sobre a milícia, a observação da ligação
entre Espaço, Sujeito, Estado e Sociedade, em suas múltiplas formas de significá-la.
Na “medida em que seus membros são agentes de estado,
são a representação da autoridade, ganharia sentido o seu discurso
de se opor à criminalidade” (CANO & IOOT, 2008, p. 67). Esse é
um dos efeitos ideológicos produzidos, no imaginário, pelo lugar
de policial. É desse lugar, enquanto membro do aparato policial,
que se sustenta o discurso moral, que apresenta como defesa a
execução sumária. Defesa, proteção, segurança são significantes
marcados fortemente pelo equívoco, permeados de ambiguidade
e produzem efeitos nesse discurso. Por um lado, tem seus sentidos
estabilizados na medida em que naturalizam as ações milicianas:
julgar, condenar, punir, executar. Um dos vestígios desse efeito
estabilizante é o apoio que a milícia recebeu de autoridades do
setor de segurança pública, de alguns governantes e de moradores
de algumas favelas. Por outro lado, esses sentidos são deslocados
em discursos que relacionam a milícia à insegurança, à arbitrariedade, à extorsão, ao extermínio etc.
Vejamos outro fragmento da entrevista realizada com moradores do Rio de Janeiro, no qual é formulado o apoio à milícia.
Observem, no entanto, que esse apoio aparece na formulação de
um dizer “citado”, de dentro, de lá que é atribuído a outro sujeito,
ao morador de uma área miliciada, pelo entrevistado, que, por sua
vez, se coloca no lugar de fora. Esse discurso aparece alicerçado
na ideia de tranquilidade, liberdade, proteção, segurança que a
242
Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013
milícia oferece em troca de um valorzinho ao contrário do tráfico
de drogas que era horrível. O entrevistador pergunta o que a comunidade está achando da milícia:
E64: Eu estive conversando com um morador recentemente, de lá, e ele
falou: “Olha, meu irmão, melhorou muito, melhorou muito, entendeu?
O pessoal paga um valorzinho lá... melhorou, a gente não tem aquele
negócio de ter que chegar tarde ter que ser parado ali pelo traficante,
não tem isso mais, os moradores são identificados direitinho, então”.
O tráfico lá era horrível, era um tráfico pesado, favela do Barbante em
Inhoaíba, hoje não, a milícia dominou os moradores estão tranqüilos.
Até perguntei isso recente a um amigo que mora lá, “Como é que está
lá aquela região?”, “Ih, rapaz, acabou, a milícia dominou tudo, está
uma maravilha agora. Não há aquele problema mais de você ficar
preocupado, sair com a família, sair com o carro, porque a milícia
tomou posse lá e acabou o problema”. Então os moradores aceitaram
a idéia porque tem mais liberdade para sair, tem mais liberdade de
entrar com o carro, por exemplo, você vai entrar com o carro numa
comunidade dessas está arriscado você perder o carro.
A letra E corresponde a Entrevistado e o
número subsequente, à
ordem em que aparece
na entrevista.
4
Para este sujeito, a cobrança de taxa não é problema. O problema é o traficante, é a insegurança, o roubo do carro, a falta de
liberdade, o constrangimento. E frente a essa situação, o domínio
da milícia é uma maravilha. Neste discurso, domínio pode ser
substituído por administração? A administração da milícia é
uma maravilha? Desta posição discursiva, parece que o controle
exercido pela milícia é significado como segurança. A milícia sabe
quem é morador e não o submete ao constrangimento de ser parado
ali pelo traficante, pois os moradores são identificados direitinho e estão
tranquilos, tem mais liberdade para sair, entrar com o carro.
Em outros discursos, a cobrança da taxa, como veremos
mais abaixo, é dita dinheiro exigido com violência, ou seja, esse dizer
explicita o gesto com que a taxa é cobrada, é extorsão, um crime,
uma violência. Aqui, a forma-material enunciada para se referir
a ela é valorzinho, que descarta o sentido de violência e explicita
outra relação com a milícia. A taxa é insignificante para este sujeito. Ele não se sente submisso à milícia, mas protegido por ela.
De que modo se dá a produção destas evidências para este sujeito? O sujeito deste discurso é interpelado pela prática ideológica
da milícia que o faz esquecer a ilegalidade dela e atribuir a ela
o status de autoridade em seu grau máximo, o do domínio, aqui
o soberano. A milícia tomou posse, ou seja, a chegada da milícia
é significada como instauração de uma autoridade num espaço
antes ocupado pelo tráfico. Diante do tráfico, compara o sujeito,
a “gestão”/o governo da milícia é uma maravilha. Essas discursividades ratificam a eficácia do discurso contra a criminalidade
formulado pela milícia.
Por outro lado, a prática violenta no momento em que a
milícia “entra” no bairro é explicitada. O uso da violência, a demonstração de poder no confronto e a expulsão dos traficantes
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garantem aos milicianos temor de um lado e respeito da comunidade, de outro. A milícia se impõe.
E6: Houve confronto com os traficantes, dominaram mesmo algumas
áreas, a milícia dominou. Aqui o Parque Jardim Bangu, traficante não
se cria ali porque a milícia se instalou e acabou.
Esse dizer, que incide em dominar, explicita que a autoridade
exercida pela milícia é instaurada pelo combate seguido de
vitória frente aos traficantes, enquanto a milícia dominou, se
instalou e acabou se inscreve numa rede de sentidos que coloca
a milícia como força maior, poder absoluto. Desnecessário
dizer mais. Pois ela é capaz de pôr um ponto final, mortal no
tráfico de drogas. Afinal, traficante não se cria ali: não mora, não
domina, não vive... É pela violência que a milícia se impõe.
Atualmente, acumulam-se, no Disque-Denúncia do Rio,
milhares de denúncias de extorsão, homicídio, tortura, tráfico de
drogas, corrupção, entre outros crimes cometidos pelas milícias.
São sintomas de que são muitos os sujeitos que significam a milícia
como criminosa. Com efeito, essas denúncias nos apontam outras
questões referentes ao significado, novamente ligadas ao papel
de policial em nossa sociedade, considerado defensor enquanto
parte da instituição policial e quando se integra à milícia pode
constituir-se como criminoso, pode ser dito fora da Lei?
Sobre a polícia são evocados diferentes sentidos na constituição de discursos que circulam na conjuntura atual sobre a
milícia. Esses sentidos são convocados pela memória discursiva
a confrontar-se na história de modo ressignificado, disperso,
atravessado com outros dizeres que imputam à polícia outras
imagens, especialmente, se projetadas a partir de sua relação com
a milícia. Uma delas é explicitada na denúncia de engajamento
de policiais em ilegalidades, descrita por Philip Alston5, relator
da ONU. Ele afirma que as
Relatório da Sociedade Civil para o Relator
da Especial da ONU
para Execuções, sumárias e extrajudiciais. Rio
de Janeiro, 2007.
5
244
polícias estaduais, especialmente a polícia militar do Estado,
trabalha rotineiramente em outro emprego, quando estão de
folga. Alguns formam ‘milícias’, ‘grupos de extermínio’, ou
‘esquadrões da morte’ e outros grupos que agem com violência inclusive execuções extrajudiciais, que ocorrem por vários
motivos. Primeiro, procuram dar ‘proteção’ a comerciantes,
fornecedores de transporte alternativo, em que outros são
forçados a pagar para este grupo. Dinheiro exigido com
violência. Segundo, para evitar facções saiam de seu controle. Pessoas suspeitas de fornecer informações ou colaborar
com outras facções são mortas. Em terceiro lugar, apesar de
alguns não serem criados como grupos de extermínio de fato,
os relacionamentos ilícitos que eles desenvolvem com outros
elementos mais poderosos e afluentes da comunidade, resulta
freqüentemente no engajamento de assassinatos de aluguel
(ALSTON, 2007 apud RIBEIRO, 2008, p. 14 – grifos nossos).
Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013
É interessante e importante ressaltar que, neste discurso, como
em muitos outros, a discussão na busca de se definir, de se
delimitar o papel da milícia ignora a condição de existência do
sujeito submetido ao seu domínio. Um vestígio desse esquecimento pode ser explicitado, por exemplo, no momento em
que ao se referir ao sujeito que é forçado a pagar, se enuncia
outros: em que outros são forçados a pagar para este grupo.
Dinheiro exigido com violência. Há marcada na formulação
uma indeterminação do sujeito que ressoa no discurso seu
apagamento. Em contrapartida, na mesma formulação, a prática de exigir dinheiro enfatiza a violência. Como dissemos
anteriormente, aqui a taxa exigida pela milícia é discursivizada
como violência. Ao contrário, de valorzinho, que mostramos
em um dos fragmentos anteriores. O processo de produção de
evidências desses dois discursos, portanto, percorre direções
de sentido diferentes. Ainda em relação ao discurso de Philip
Alston, é importante dizer que seu discurso indistingue polícia
de milícia. Nesse caso, a denominação nomeia outro ofício,
como se milícias, grupos de extermínio ou esquadrões da
morte, entre outros, fossem ramos de atuação da polícia. Esse
efeito é produzido pelo dizer outro emprego. Milícia aparece
então significada como um ramo de atividade paralelo da polícia, cuja principal atividade é a execução. Esse dizer marca
outra face da polícia. Por conseguinte, é possível visualizar
duas posições discursivas antagônicas sobre a polícia, que, no
entanto se recobrem. No caso daquele sujeito que a apoia, ela
é interpretada como protetora. Para outros, como criminosa.
O Espaço Simbólico-Político da Favela
A autora analisa um
poema postado por um
sujeito navegador situado no Complexo da
Maré, no Rio de Janeiro,
cujo discurso produz
efeitos de r upt u ra e
deslizamento dos estabilizados, construindo
um lugar de resistência, pautado no “não”
de desacordo f rente
ao “não” do Estado, o
“não” maior da morte.
Texto apresentado na II
Jornada e-Urbano - Cidade e Tecnologia digital:
modos de significação
do espaço, realizada no
dia 28 de junho de 2011,
no auditório do IEL/
UNICAMP, gentilmente
cedido pela autora.
6
O “modo como se dispõe o espaço é uma maneira de configurar sujeitos em suas relações, de significá-los” (ORLANDI,
2011b, p. 01). Um exemplo: o policial na favela, como é identificado
pelo sujeito morador, deste lugar social, neste espaço? Em outra
instância, inúmeras vezes o sujeito que mora na favela, o favela(do)
é tomado, é significado por esse espaço e vice-versa. Ao longo de
muitos anos o processo de criminalização da favela recai sobre
seus habitantes marginalizando-os. Efeito da segregação.
Romão (2011) sublinha algumas negativas historicamente
constituídas que recaem sobre a favela, sobre o favelado. Descrevendo a favela como “lugar de direitos negados”, a autora
enfatiza que a nomeação favelado-bandido é legitimada por uma
voz exterior à favela, que impõe o não “à vida como imperativa e
como única via possível”6. Esse modo de significar a favela está
relacionado à constituição da milícia face ao Estado, pois o não
imposto à favela está ligado à ausência do Estado, de instituições
públicas, de acesso aos serviços públicos etc. É importante frisar
que a (falta de) segurança aparece entre essas faltas, pois a ideia de
espaço perigoso circula desde o surgimento das favelas cariocas,
significando-as. Com efeito, a polícia é chamada para intervir,
cuja prática, desde então, é violenta.
Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013
245
Nesse trabalho, Medeiros mostra que o movimento social Posso me
identificar se configura
como um movimento
de resistência a tal inscrição.
7
246
Dito de outra maneira, a favela se constitui como espaço
na falta do Estado. Um espaço marcado pela falta do Estado,
metaforizada na falta de recursos, na falta de infraestrutura, de
regularização, etc. Um espaço cujos lugares deixados vazios vão
sendo ocupados de diferentes formas.
Valladares (2005) assinala que aos morros, que inicialmente
foram ocupados por ex-combatentes da guerra de Canudos, foram
destinados imaginariamente os pobres, negros, desempregados,
imigrantes. Com isso, as favelas passaram a ser vistas como o
espaço dos excluídos. O preconceito que recaía sobre esses sujeitos expandiu-se e se sedimentou na favela. O que, por sua vez,
contribuiu rapidamente para a construção da favela como lugar
de marginalidade. Os sujeitos foram afetados pelos sentidos desse
espaço. Esse processo, no qual percebemos um efeito de metonimização que nos remete à afirmação de que o “desempregado, o
desvalido sem domicílio, o inativo sem utilidade, o exilado sem
pátria, o prisioneiro a quem se nega o nome ao se chamar por
uma matrícula, o imigrante sem direito... são todos definidos por
uma falta” (SCHALLER, 2002, p. 151). No tocante ao morador da
favela, a falta é sobredeterminada por sua relação com o espaço,
na construção estereotipada de seu lugar. Os favelados tornam-se
favelados pela ocupação ilegal de uma propriedade, ditos a partir de então como: subversivos, marginais, promíscuos, doentes,
preguiçosos, vagabundos, perigosos, desordeiros, imorais. Assim
são historicamente significados como “favelados, fora da lei sobre
um terreno que não lhes pertence” (DRUMMOND, 1981, p. 1) até
chegarem a ter visibilidade a partir de interesses políticos, como
eleitores e, em 1950, através de um recenseamento realizado pelo
governo, deslocados minimamente para a posição de trabalhadores. De acordo com Medeiros, o lugar de inscrição do morador
de favela configura-se, na atual conjuntura, como um lugar “fora-dentro: fora dos direitos, mas neles incluído pelas penalizações.
É esta a sua posição-sujeito na formação discursiva que faz significar cidadão em nossa formação social” (2011, p. 2127).
Em resumo, o que queremos ressaltar é que a configuração
da favela como um espaço à margem, segregado, criminalizado
recai sobre o sujeito-morador identificando-o, por exemplo, nesta
posição-sujeito fora-dentro no interior de nossa formação social.
Por conseguinte, tanto a configuração desse espaço como um
espaço de faltas quanto a inscrição de seus moradores nessa determinada posição discursiva fora-dentro resultam da individuação
pelo Estado, de seu papel como articulador político-simbólico que
ora falta, ora falha. Nessa direção, a falha permite a corrupção e
violência policial, a instalação do narcotráfico enquanto a falta do
Estado e suas instituições deixa um lugar vazio.
A narrativa seguinte trata da descrição de um homem de
proezas, valente, de grande coração e nos mostra uma versão de
Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013
como a instalação de um domínio teria ocupado o vazio provocado
pela ausência do Estado:
Um dia chegou à favela um homem – Zé da Barra. Vinha do
Piraí. Já trazia grande fama. Suas proezas eram conhecidas.
Era um valente, mas um grande coração. E Zé da Barra chegou
e dominou a favela [...] E a favela que não conhece polícia, não
conhece impostos, não conhece autoridades, conheceu Zé da
Barra e a ele teve que obedecer. E Zé da Barra ficou sendo o
chefe incontestável da Favela (COSTALLAT, 1995, p. 37 apud
VALLADARES, 2005, p. 34).
Uma falta é preenchida? Um lugar “vazio”, sem representante, sem referência é preenchido. De que modo? À favela, que
não conhece polícia, não conhece impostos, não conhece autoridades, é
imposta um chefe, que a dominou. O léxico, especialmente, autoridades, chefe, dominou, no nível da formulação, que relaciona a favela
a um domínio, à ausência de autoridades, a partir de condições de
produção determinadas, nos conduz à figura daquele que manda, Zé
da Barra. A incidência, do nível interdiscursivo no eixo da formulação, configura um lugar de poder, de mando ocupado por ele.
O lugar de chefe significado como de comando, de domínio,
de autoridade produz, por conseguinte, o seu avesso: o lugar do
submisso. É o que de certa forma se textualiza em: E a favela que
não conhece polícia [...] conheceu Zé da Barra e a ele teve que obedecer.
Desliza dessa narrativa uma série de já-ditos estereotipados:
favela não tem lei, não tem Estado, não tem governo, não paga
impostos, não tem ordem... Podemos dizer que a figura de Zé da
Barra substitui o Estado, nesse espaço, sobretudo, no processo de
individuação desse sujeito? Na atual conjuntura é possível supor
que Zé da Barra é então substituído pelo narcotraficante, pela
polícia, pela milícia?
Um dos entrevistados tem uma resposta possível:
E30: Assim, eu moro lá desde que eu nasci, e assim desde que eu me
conheço por gente tem esse chefão que é o [Zé X]8 que manda em tudo
lá, que comanda, não deixa entrar tráfico, não deixa bandido roubar,
se alguém roubar ele corre atrás. E ele tem todo um, como é que se
diz? Um grupo, né? De policiais, que são policiais, mas trabalham
pra ele, entendeu? Assim, eu acho, na minha opinião, que foi um tipo
de dominação meio que carismática. Esse [Zé X] ele é um ex-policial
e acabou... assim... aquele negócio... [...] Ele é tipo assim um líder
que no carisma começou a mandar, entendeu? [...] Carisma e poder.
O nome mencionado
na entrevista foi alterado.
8
Contrapondo o discurso sobre Zé da Barra com esse sobre
Zé X, podemos dizer que Zé da Barra é substituído por Zé X. Ele
faz a segurança: não deixa entrar tráfico, não deixa bandido roubar e
se alguém roubar ele corre atrás. Ele substitui a polícia, aliás, ele é
ex-policial e tem em torno dele uma organização, um grupo de
policiais, mas exerce seu papel conforme o seu próprio comando,
afinal é ele que manda em tudo lá, ou seja, ele já se coloca como
aquele que não segue regras vindas da corporação.
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Observem como é forte o lugar de (ex)policial no dizer: ele é
ex-policial e acabou... assim... aquele negócio. Este sujeito parece
enunciar que Zé X pôs fim à criminalidade. Se alguém roubar ele
corre atrás é modo de não dizer o que se faz com aquele que
rouba: bate, expulsa, mata, ou, ainda, um modo de enunciar que
o assaltante não fica impune. Zé X pôs fim à impunidade. O sujeito que enuncia esquece que Zé X é ex, que ele ocupa um lugar
ilegalmente. Os policiais, por sua vez, trabalham para ele e não
para o Estado. Aqui o verbo entendeu parece frisar e, ao mesmo
tempo, confidenciar o poder de Zé X em relação a esses policiais.
Contraditoriamente, aqui parece lembrar que os policiais se submetem ao poder dele, ilegalmente. Ele é a autoridade, chefão, tipo
assim um líder. Vejam que duas discursividades se articulam neste
discurso. Dizer chefão é enunciar o poder, o autoritarismo que
configuram a imagem de Zé X, ao passo que descrevê-lo como tipo
assim um líder que exerce um tipo de dominação meio que carismática
– e notem que o termo aqui não é domínio, nem comando –, no
qual também se define que a dominação é meio que carismática é
(d)enunciar, talvez, a estratégia que o leva a constituir-se no lugar
do Estado. O sujeito entrevistado conclui: carisma e poder. Duas características, ou melhor, dois sentidos que funcionam articulados
no processo de individuação desse sujeito, pois elas fazem parte
da imagem construída de Zé X, que não é líder religioso, não é
líder comunitário, nem líder político, é um líder, cuja constituição
se dá numa indefinição entre o autoritarismo e, diferente de Zé
da Barra, o carisma. Que sentido tem carisma em tais condições
discursivas? Poder e carisma conferem a ele, legitimidade.
Assim como nesse discurso, observamos, ao longo de nossa
pesquisa, os processos discursivos desencadeados por formas
de significar, modos de individuação instituídos na relação com
o espaço político-simbólico, os quais se desenvolvem na falha/
falta do Estado.
Algumas Considerações
E1: Dois milhões e meio de pessoas, são vidas. Sem governos, sem
governo, sem estado. Então, quer dizer, dois milhões e meio de pessoas
sem governo, você está me entendo? Sem estado. Estado pratica violência duas vezes, pela ausência dele e quando ele entra na comunidade.
Esse enunciado de base situa as condições de produção de
significação que circunscrevem o acontecimento discursivo da
milícia: muitas vidas expostas à violência, à dupla violência pela
presença e ausência do Estado, sujeitos sem direitos (sem governo, sem estado) num espaço de negações (sem governo, sem estado).
Segregados. É diante desse sujeito, nesse espaço, que a milícia
se impõe, à sombra do Estado, pois ele falta/falha, na maneira
como está investido no modo de existência da prática de milícia
e de existência desses dois milhões e meio de pessoas. São condições
248
Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013
de produção que atravessam, constituem discursos de fora e de
dentro das áreas miliciadas à medida que engendram efeitos de
evidência.
Ocorre que um significante, recorrentemente, enunciado
para significar milícia, contribui, especialmente, para a compreensão de sua prática, em seu acontecimento discursivo. Por isso,
voltamo-nos para ele. Trata-se de domínio (dominar, dominada,
dominou, dominação), investido e revestido de poder.
Observamos que diferentemente de controle atribuído à polícia, de comando dito para o narcotráfico, a milícia é interpretada,
identificada como domínio. Domínio dá sentido à milícia, a partir
de duas instâncias: domínio imposto, forçado, violento, sem possibilidade de oposição, cuja significação é determinada por uma
formação discursiva opressora, permeada de indeterminações,
de indistinções, de silêncio, produzida pela falha do Estado; e
domínio instaurado como autoridade, gestor, poder, cujo lugar,
tendo ao lado o sentido de controle inscrito numa formação discursiva administrativa, se configura na falta do Estado.
Falha e falta do Estado, em seu papel de articulador político-simbólico, ambas, em constante movimento, são determinantes
para a compreensão do modo como se configura a milícia no
discurso sobre ela, sobretudo, na tensão que se instala entre o
estatuto de legal e de legítimo. Com efeito, onde o Estado falta,
o princípio de legitimidade é evocado e sustentado pela ideia de
defesa, de segurança.
Face à falha, as práticas de violência, sobretudo, de invasão,
de violação de direitos, de estupro, de extorsão e de extermínio
significam a milícia, em sua ilegalidade como criminosa. Por
conseguinte, explicitam a sua constituição ilegal e a impunidade
policial. A polícia em seu grau máximo de violência, “invisível”
dado seu lugar de policial, cuja violência se naturalizou, em certa
medida. Da falha do Estado resulta a milícia como desdobramento
da polícia.
Visto do lugar de policial, de certa forma, a autoridade,
conferida à polícia pelo Estado, reveste a milícia de legitimidade
e institui outro significado para sua prática. Na base desse processo, está a oferta de segurança. Um dos entrevistados diz que
sua comunidade apoia a milícia, a partir do reconhecimento desse
lugar de policial:
E5: Apoio. Apoio, apoio total. Aplauso mesmo. Porque agora a gente
sabe que não tem marginal, não tem ninguém cheirando por aí, porque parou, tiroteio não tem mais, é muito raro a gente ouvir um tiro
e porque são policiais, então são pessoas que vão oferecer
segurança pra gente.
Esses deslocamentos, de um lugar para outro, de um lugar
permeado por outro, em conflito com outro, provocam o deslizamento dos sentidos. Dispersão. O que nos mostra o discursos sobre
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249
é uma complexa rede de relações, de significações, posta em movimento pela milícia, que se (nos) situa face ao social, que intervém
nas condições reais de existência, ou seja, nos coloca face ao real.
Podemos dizer que legitimidade, legalidade e ilegalidade
estão em movimento e funcionam a partir de certos lugares na
sociedade. Esse movimento transita por outros discursos, deslocando os sentidos de um lugar para outro. E, se quem decide os
sentidos é o político (ORLANDI, 2001b, p. 10), o embate entre
legitimidade e legalidade também é regido por ele. O político divide, na língua, os sentidos de ordem, paz e segurança e permite
que, em determinados discursos, eles sejam significados como
desordem, guerra e insegurança.
Abstract
In this article, we reflected on how the lack and failure of the State intervenes in the process of individuation underscoring that the individuation of the
subject by the State, according to Orlandi (2012),
is a political issue because of the relationship of
the individual with society. For this reason, we
observed the configuration of the militia in the
space of slum and in relation to the State. At the
same time, we explicate some discursivities, which
set out the way in which the militia is identified
in discourses about it, especially in an interview
conducted with residents of Rio de Janeiro.
Keywords: Discourse; Militia; Process of Individuation.
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Niterói, n. 34, p. 235-251, 1. sem. 2013
251
Das línguas na história: “Upatakon
(nossa terra)”
Maria do Socorro Pereira Leal (UFRR)
Resumo
Este artigo tem como questão central o funcionamento da expressão “Upatakon (nossa terra)” em
manchetes do jornalismo online sobre a disputa
pela terra entre índios e brasileiros. Consideramos
alguns aspectos da relação entre a língua oficial
do Brasil e uma língua indígena ao se denominar
em língua macuxi o trabalho policial para retirar
os brasileiros da terra indígena. A reflexão tem
como aporte teórico-metodológico a Análise do
Discurso (PÊCHEUX, 1969, 1975; ORLANDI,
1990, 1999).
Palavras-chave: Análise do Discurso; língua
portuguesa; língua indígena; índios.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013
Neste trabalho, apresentaremos uma análise da língua
enquanto forma material (ORLANDI, 1999), ou seja, a língua
em seu imprescindível entrelaçamento com a história forjando
a possibilidade do equívoco. Essa reflexão é assim possível por
adotarmos como aporte teórico-metodológico a Análise do Discurso, conforme proposta por Pêcheux (1993 [1969], 1997 [1975],
dentre outros) e, aqui no Brasil, por Orlandi (1990, 1999, dentre
outros). Para este artigo também nos valeremos das proposições
de Guimarães (2000, 2005).
Em pesquisa de doutoramento, analisei textos acerca da
disputa pela terra entre índios e brasileiros em um arquivo constituído por escritos divulgados online, e oriundos de três diferentes
instâncias: foram compiladas manchetes jornalísticas, cartas abertas de grupos políticos e cartas de associações indígenas de Roraima. Desse conjunto, para este trabalho restrinjo-me às manchetes
jornalísticas e, mais especificamente, enfoco a denominação dada
a uma intervenção policial cuja finalidade era auxiliar na retirada
de brasileiros da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
No que se apresenta como notícia objetiva e neutra, discutiremos
o embate na construção de sentidos, construção na qual também
está funcionando o fino jogo estabelecido pela língua indígena,
incrustada na língua oficial do Estado brasileiro, ao se denominar
o trabalho policial “Operação Upatakon”.
Passo a situar brevemente o fato que foi objeto das manchetes
jornalísticas aqui analisadas.
Desde abril de 2005, logo após a terra indígena Raposa Serra
do Sol ter sido homologada, a Polícia Federal e a Força Nacional
de Segurança passaram a ser mobilizadas em nome do Governo
Federal e enviadas a Roraima sob a justificativa de manutenção
da paz entre índios e não índios. Ou, em outros termos, a “Operação Upatakon” foi dada como necessária para garantir que se
efetivasse o decreto assinado pelo Presidente da República e pelo
Ministro da Justiça. Essa intervenção teve três “edições”, sendo
que a terceira perdurou por mais de um ano e meio (de março de
2008 até o final de outubro de 2009), operação cujo corpo chegou
a ser constituído por quinhentos policiais.
Um momento dos mais críticos da investida dessas forças
policiais pode ser situado em 2008. O mês de abril, bastante conturbado, foi marcado, por um lado, pela intensificação da pressão
dos índios para que os fazendeiros desocupassem suas terras e,
por outro, os adversos à forma como a homologação fora realizada – em área contínua – tentavam, de diversas formas, revogar
essa decisão. A título de exemplo, os fazendeiros que cultivavam
arroz na terra indígena organizaram manifestações na capital (Boa
Vista), interditaram estradas e queimaram pontes para impedir a
entrada dos policiais nas fazendas situadas nas terras indígenas
em questão. Ao lado disso, sobressaiu um enfrentamento explícito
no âmbito da lei entre o governo de Roraima e o Governo Federal
254
Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013
Esse prefeito, que
ficou conhecido como
líder dos arrozeiros, foi
eleito deputado federal
de Roraima (DEM), obtendo o segundo maior
número de votos entre
os que compõem a atual
legislatura (2011 - 2015).
1
em torno da manutenção ou não da força policial para retirar os
fazendeiros. Vale registrar que, no final do mês de abril, houve
um episódio de grande violência: dez índios foram feridos na
terra Raposa Serra do Sol – oito deles foram baleados – e, como
acusados, foram presos o prefeito de Pacaraima, dez de seus funcionários, além de seu filho.1
Para a análise das manchetes, inicialmente observamos que,
com a Constituição de 1988, a Língua Portuguesa passa a ser em
relação ao Estado – língua oficial do Estado brasileiro, não mais
à nação segundo se verificava nas constituições anteriores. Ao
lado disso, ao formular o reconhecimento das línguas indígenas,
tem-se que a Língua Portuguesa é oficial, mas não é única. Vale
ressaltar que, com esse gesto, autoriza-se constitucionalmente
saber que no Brasil são praticadas em torno de 200 línguas. O
Brasil é, pois, um país multilíngue. (GUIMARÃES, 2000). A isso
se soma outro fator que altera o “espaço de enunciação” no Brasil,
conforme propõe Guimarães (2005): em 1988 a individualidade do
índio deixa de ser ignorada, ou seja, garante-se que cada índio em
particular – sem a obrigatoriedade do coletivo –, seja reconhecido
enquanto aquele que pode ingressar em juízo, legalmente. No
entanto, o modo de distribuir as línguas em relação – o “espaço
de enunciação” – funciona pela desigualdade com que as línguas
são distribuídas para seus falantes. E isso intervém afetando o
funcionamento de cada uma dessas línguas.
No tocante às línguas indígenas, elas são reconhecidas como
línguas dos índios sem que isso altere a representação da língua
do/para o Estado. Há uma língua em que o cidadão brasileiro
deve se expressar, a língua oficial do Estado, a Língua Portuguesa. Com isso, o Estado reserva às línguas indígenas poderem
ser “elementos de caracterização dos índios” e, sobretudo, não
poderem ser faladas “enquanto elemento de política de Estado.”
(GUIMARÃES, 2000, p. 178)
Vale notar um dado posterior a essa reflexão: atualmente
no Brasil há dois municípios em que línguas indígenas foram
estabelecidas como línguas cooficiais. E isso somente foi possível
na última década: em 2002, em São Gabriel da Cachoeira (AM), as
línguas indígenas Nheengatu, Tukano e Baniwa passaram ao status
de cooficial. E, mais recentemente, em 2010, o Guarani passou a ser
segunda língua oficial do município de Tacuru (MS). Atualmente,
podemos, então, observar que, à exceção dessas quatro línguas,
o Estado brasileiro reserva às demais línguas indígenas - estimadas em torno de cento e oitenta - poderem ser “elementos de
caracterização dos índios” e, sobretudo, não poderem ser faladas
“enquanto elemento de política de Estado.” Ou seja, ainda não estamos distante do que concluiu Guimarães (2005, p. 178) ao dizer
que “não existem no Brasil enquanto seres falantes” os índios ou
quaisquer outros que falem uma língua que não a portuguesa.
Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013
255
Além disso, para refletir sobre a seleção de uma língua indígena para denominar uma intervenção cuja finalidade é retirar
os brasileiros da terra indígena, cumpre também observar que,
sobre o Brasil e a língua que nele se fala, ainda labora o imaginário
de unidade linguística, mecanismo comum à construção das
identidades nacionais modernas. No caso brasileiro, ecoa forte o
que nos diz que no Brasil só se fala uma língua, a Língua Portuguesa. Aspecto esse que computa sumariamente na relação entre
as línguas no espaço brasileiro de enunciação.
Nesse sentido, vale notar que o jornalismo dito de referência, ao pôr em circulação a língua oficial, constitui-se e institui e
recorta determinados leitores no espaço de enunciação brasileiro
que, como vimos, possui natureza política e existe sob o signo
da desigualdade. Assim, o que se estampa como manchete não
escapa a esse funcionamento político. É considerando esse funcionamento que, em lugar de harmonia, mais se põe em relevo o
embate instaurado entre línguas, embate cujo teor a tradução não
pode aplacar. Ou seja, não pressupondo um claro saber oferecido
na relação entre os termos das línguas, pode-se questionar: Upatakon faz saber o quê e a quem? O que vai sendo necessariamente
silenciado ao se dizer em uma língua e não em outra – ao se denominar em macuxi em detrimento do português?
Inicialmente, no processo pelo qual se nomeia a operação
Upatakon, pode-se levantar que a direção em que a tradução se
realiza parte de “nossa terra” para Upatakon, não o contrário, posto
que a língua portuguesa é a língua oficial do Estado. Dessa forma,
com a/pela nomeação em língua indígena, o Estado desfaz o gesto
que fizera outrora, com seus diversos atos de política linguística
que, como se sabe, culminam com a imposição do uso exclusivo
da língua portuguesa, em 1757, pelo Édito dos Índios, do Marquês
de Pombal. Como diz Mariani (2003), em reflexão sobre o processo
por ela denominado “colonização linguística”: “No caso da colonização lingüística brasileira, a política lingüística estabelecida
pelo Diretório dos Índios e a ação de Pombal constituem elementos
cruciais no processo de apagamento das línguas indígenas e da língua
geral. Estas línguas foram ficando cada vez mais ausentes da construção discursiva que oficializa uma história da colonização e, também, da
história da própria língua portuguesa no Brasil.” (MARIANI, 2003,
p. 8. Grifos nossos.)
Em Upatakon, nomeação compreendida como gesto político-linguístico de Estado, podemos pinçar o trajeto oposto ao que
foi instituído pelo “processo de apagamento das línguas indígenas”,
forjadas de modo que permaneceram fora da história oficial sobre
a(s) língua(s) no Brasil. Assim sendo, o movimento de nomeação
em língua indígena funciona em relação a esse processo histórico.
Ou seja, é em relação ao apagamento das línguas indígenas em
nossa história que Upatakon rende existência ao que se registra,
em língua portuguesa, no texto constitucional de 1988.
256
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Mais que isso, queremos acentuar que na formulação Upatakon são os índios que dizem “nossa terra”, pois, como nos foi dado
saber desde a homologação em 2005, aqueles que podem dizer
“nossa terra” em relação à Raposa Serra do Sol são somente os
índios das cinco etnias que lá vivem: Ingarikó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana. Isso, se se quer remeter aos aspectos
legais por um corte cronológico mais recente. Pela referência assim
construída para o que a tradução nos indica pelo pronome possessivo ‘nossa’, dá-se voz exclusiva aos índios. Com Upatakon, se o
Estado toma a voz é para os índios dizerem, ou melhor, no que o
Estado diz Upatakon não é mero discurso sobre, como tem costumado ser quando se trata dos índios no Brasil. (ORLANDI, 1990)
É por ser em língua indígena que Upatakon su-porta o gesto
de expulsão dos brasileiros que teimavam em permanecer na
Raposa Serra do Sol. E isso não se deixa reduzir a simples mecanismo de tradução para bem informar os leitores das notícias
sobre a disputa pela terra: é línguas-e-história. Estar/Ser em uma
ou outra língua é mobilizar sentidos que se constituem em duas
diferentes Formações Discursivas. Ou seja, Upatakon condensa
aquilo que pode e deve ser dito pelos índios ao passo que em
“nossa terra” outra é a determinação: brasileiros são os que podem
e devem assim dizer.
Pelos aspectos que levantamos, especialmente pelo gesto
inverso do Estado em relação às línguas indígenas, propomos
que há pistas para outra redivisão, diferente da que propõe Guimarães (2000, 2005), quanto ao espaço de enunciação brasileiro.
Há nesse gesto de nomeação um movimento que, embora possa
parecer singelo e de pouca monta, pode apontar uma agitação
de sentidos, o que se efetua pelo gesto reverso empreendido pelo
Estado, rompendo – de fato – a proibição do uso de quaisquer línguas indígenas no Brasil. Revela-se plausível que a língua indígena
pode, sim, ser falada “enquanto elemento de política de Estado”,
contrariamente ao que foi praticado durante séculos. Articulando
a partir do que nos ensina Pêcheux (1993), a língua pôde vir a ser
outra. Da perspectiva da Análise do Discurso, o fato de poder
assim denominar o trabalho policial não é da ordem da língua
enquanto estrutura, mas desse mecanismo em uma conjuntura
sociopolítica específica, que, no Brasil, produz-se na desigualdade
do “entre línguas”, como vimos.
A despeito disso, como sabem os analistas do discurso, os
sentidos não se constituem isoladamente, mas “em relação a”.
Como afirma Orlandi (1999), retomando Pêcheux, “Os sentidos
não estão nas palavras elas mesmas. Estão aquém e além delas.
(...) As palavras falam com outras palavras. Toda palavra é sempre
parte de um discurso. E todo discurso se delineia na relação com
outros: dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória”.
(ORLANDI, 1999, p. 42-43)
Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013
257
Nesse sentido, remetemos a LEAL (2011),
pesquisa de mestrado
em que investigamos o
funcionamento da expressão “o povo roraimense”.
3
Essas manchetes
são de abril de 2008,
da Folha Online (04 e
08/04/2008. www.folhaonline.com.br), da Folha
BV (07/04/2008. www.
folhabv.com.br) e do
G1 (09/04/2008. www.
g1.globo.com).
2
258
No caso em questão, urge destacar que a nomeação em
língua indígena é dada em um complexo com outras relevantes
construções discursivas de referência, mesmo que só nos atenhamos aos termos e expressões que com Upatakon circulam no
espaço do jornalismo online sobre disputa da terra entre índios e
brasileiros. Vejamos um pouco desse funcionamento.
Um dos elementos fundamentais dessa trama de sentidos
é, certamente, o modo como os sentidos do termo ‘Roraima’ são
construídos. Considerando o conjunto das manchetes, organiza-se
uma totalidade harmônica entre o governo e todos os que vivem
no estado, uma unidade cuja demanda é inequívoca e certeira.2
Permeiam as manchetes que é “Roraima”/ “Governo”/ “Governador de Roraima” que “pede a Lula que PF saia de reserva”, que
“pede no STF suspensão da Operação Upatakon 3”, que “entra
com ação para paralisar operação da PF em reserva indígena”
ou que “pede liminar no STF para suspender operação em reserva”.3 Por esse modo de anunciar, os que vivem no estado e sua
representação política são apresentados como um único bloco de
idênticos, sem dissonância e, assim, se delineia o interesse comum
pela suspensão da Operação Upatakon. Ou seja, o jornalismo não
concebe existência fora dessa comunhão plena quanto a extirpar
o que ratificaria a terra como posse dos índios (através da retirada dos fazendeiros da Raposa Serra do Sol). Diante disso, urge
questionar isso que se apresenta como homogeneidade unânime
do querer: onde restam os milhares de índios que têm lutado pela
demarcação/homologação da Raposa Serra do Sol por mais de três
décadas? Enfim, onde restam os não índios que também compartilham o princípio de que a terra pertence, por direito, aos índios?
Como significam em relação a Roraima os que exigem a retirada
de qualquer um que não seja índio da terra Raposa Serra do Sol?
Como parte dessa rede de sentidos, observamos que, em
2009, diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, qual seja, a
ratificação da extensão em área contínua decretada em 2005 para
a terra Raposa Serra do Sol, o prazo estipulado para a saída dos
fazendeiros vai sendo circunscrito como artifício faltoso de normas e tempo necessários para ser uma obra exequível. Torna-se
manchete que “Deputados pedem maior prazo para desintrusão”;
“Deputados pedem regras para saída de reserva em RR”; “Comissão da Câmara deve pedir ao STF prazo maior para a saída de
não índios”; “Arrozeiro pede mais prazo para deixar reserva em
Roraima”.4 De modo geral, por essa forma de apresentar a situação
– restrita pelas manchetes jornalísticas às solicitações de dilatação
do prazo –, o cerne da questão do direito dos índios à posse da
terra no Brasil e o processo de luta pela efetivação desse direito é
deslocado para outro aspecto cujo fundamento são os brasileiros,
não os índios. Por tal deslocamento é que se pode dizer de prazo
e que se pode qualificá-lo como abreviado, não razoável, enfim,
Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013
Essas manchetes foram publicadas, respectivamente, por Folha BV, 28/04/2009; G1,
28/04/2009; Folha BV,
27/04/2009 e Folha Online, 26/04/2009.
5
Para uma ref lexão
com mais vagar acerca
do direito à posse e à
propriedade da terra,
ver LEAL, Maria do Socorro Pereira. Índios
& brasileiros: posse da
terra brasilis nos discursos jornalístico online,
político e indígena. Tese
de doutorado (2011) realizada sob a orientação
da Profª Drª Bethania
Mariani. Disponível em
www.uff.br.
4
um prazo que torna impraticável a saída dos fazendeiros da terra
indígena.
Com isso, transcorre como natural que não haja manchete
para fazer relembrar que a Raposa Serra do Sol fora homologada
há quatro anos e que, na ocasião, a todos os não indígenas foi dado
o prazo de até um ano para saírem da região. Considerando o
funcionamento da memória do/no jornalismo, sempre tornando
a si mesma, como pôde escapar das manchetes o fato de que há
um limite cronológico sendo distendido desde abril de 2006? E,
frente à solicitação de regras para tal saída, as manchetes não
poderiam remeter à Constituição Brasileira como norma quando
estipula os direitos indígenas à terra?
Ao lado disso, no que tange aos políticos e fazendeiros, eles
são positivamente distintos em torno da ação implicada pelo verbo
repetido nas manchetes dos sítios jornalísticos (de Roraima, de São
Paulo, do Rio de Janeiro): eles são projetados na posição dos que
“pedem” prazo, o que aponta aquiescência e disposição favorável
quanto à saída da terra indígena. Por esse viés da solicitude, o que
é posto em evidência não é uma possível intransigência ou mesmo
má vontade. Sobretudo, não há pistas nas manchetes que sinalizem os fazendeiros como transgressores da lei ao permanecerem
na terra Raposa Serra do Sol. Não há palavra aí que os desabone
como ilegítimos na terra indígena.
Da perspectiva da Análise do Discurso, podemos dizer que
tal funcionamento não é sem estabelecer relação com sentidos
opostos sobre os políticos e fazendeiros, sentidos postos em circulação fora da esfera do jornalismo dito de referência, admissíveis
de serem articulados em outra Formação Discursiva. Enfim, certo
é que, em não se trazendo esses aspectos como notícia – ou seja,
silenciando sentidos produzidos tendo os índios como ponto de
partida –, são fortalecidos outros sentidos, especialmente a manutenção do direito à propriedade da terra pelos brasileiros em
detrimento do direito à posse indígena da terra.5
Nesse sentido, depreendemos que a tradução de Upatakon
para a língua portuguesa foi sempre oferecida no corpo do texto,
jamais na manchete, espaço que, conforme ensinam os manuais
de elaboração do texto jornalístico, deve privilegiar com precisão
o alvo relevante de um conteúdo a ser transmitido. O que se apresenta como “estratégia jornalística” de construção da manchete
(LAGE, 2002), só pode aí funcionar como isca de captura do leitor
por poder mobilizar desigualmente uma das duas línguas em
jogo. São, portanto, sentidos já sedimentados e predominantes
como efeito de uma relação dinâmica, desigual, contraditória da
conjuntura linguístico-histórica brasileira.
Além de estar alocada fora do limite de destaque da notícia,
a tradução pouco comparece. E quando isso ocorre, a expressão
fica restrita entre parênteses (nossa terra) ou na estrutura frasal
acompanhada de “quer dizer” ou “significa”, sem que nenhuma
Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013
259
As manchetes são,
respectivamente dos sítios www.g1.globo.com,
18/04/05; www.folhabv.com.br, 05/09/2007;
w w w.g1.g l o b o. c o m ,
11/04/08; www.folhabv.com.br, 26/02/2008;
www.folhabv.com.br,
01/03/2008.
7
Prato do cotidiano
dos índios Macuxi, Wapixana, Taurepang preparado à base de peixe
cozido no tucupi (líquido extraído da mandioca) e pimentas diversas
(murupi, olho-de-peixe,
malagueta, trótróimû,
canaimé, con forme a
época e região) usadas
em qua nt idade b em
acima do usual para os
não índios. Além disso,
folhas de pimenta malagueta fazem parte do
caldo.
6
260
observação seja dada como necessária sobre essa relação das línguas em questão. Ou seja, tudo se dá como se “Upatakon (nossa
terra)” não pudesse provocar nenhum mal-estar no leitor. Vejamos
em alguns trechos de notícias como se textualiza a relação entre os
termos: “operação Upatakon, que significa ‘nossa terra’ na língua
Macuxi”; “A retirada dos produtores rurais da reserva Raposa Serra do Sol foi batizada com nome de Operação Upatakon 3 (Nossa
Terra)”; “No interior da reserva, uma das tarefas dos policiais será
esclarecer a população sobre o objetivo da Upatakon – expressão
da língua macuxi que significa ‘nossa terra’”; “O nome Upatakon
na língua Macuxi quer dizer ‘nossa terra’”; “A Operação Upatakon
I (que significa nossa terra, na língua Macuxi)”.6
Diante da pouca frequência da tradução, certamente algumas hipóteses podem ser levantadas, considerando a presença
corriqueira de termos de outras línguas na língua portuguesa.
Seria o caso de esse termo da língua macuxi ter sido apropriado
pelos falantes e englobado à língua portuguesa? Upatakon teria se
tornado inteligível para os falantes do português e sua tradução,
desnecessária e obsoleta? Com Upatakon ocorrera processo semelhante a, por exemplo, coffee break, paper, menu ou mesmo damurida7
(em Roraima)? Não parece ser esse o caso. A despeito da clareza
e objetividade apregoadas pelo dizer jornalístico, da perspectiva
discursiva ressaltamos que é da posição de filiação a dada língua – a portuguesa – que o jornalismo institui seu dizer como
óbvio para si e seus leitores. Ou seja, dispor a língua indígena na
manchete como se o macuxi circulasse como transparente para os
pretensos leitores não é dar ênfase positiva a essa língua. Antes,
destacamos o apagamento daquilo que tão-somente o macuxi
possibilita, conforme já mencionamos: a expulsão dos brasileiros
das terras indígenas.
Nesse sentido, simultaneamente à raridade da tradução de
Upatakon, observamos que o emprego do termo também foi sendo
substituído. Assim, onde se poderia dizer Operação Upatakon dizse “Força Nacional se une à PF”, “Federais e Força Nacional” ou
simplesmente “PF”. Com isso, o que se mostrar é o deslizamento
de uma língua pela outra, mecanismo carregado de sentidos na
formação social brasileira, como já vimos apontando antes. Não
obstante, não se dizendo mais Upatakon, foi possível estampar
como manchete, em 2009, após todas as ratificações da posse indígena da terra: “Fazenda de Quartiero será desocupada em condição de terra arrasada”. (www.folhabv.com.br, 30/04/2009). Frente
a esse enunciado, em perfeitas condições de gramaticalidade e
de aceitabilidade, o que nos intriga, portanto, é de outra ordem: a
do discurso, cuja propriedade diz respeito ao funcionamento da
língua na história, nas relações com outros textos, outra memória,
outros sentidos.
Assim, na naturalidade da formulação “fazenda de Quartiero” está necessariamente esquecido que a referida fazenda
Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013
situa-se na Raposa Serra do Sol, terra declarada indígena em
todas as instâncias legais cabíveis, inclusive pelo STF, um mês
antes da publicação dessa manchete. Da perspectiva do que não
foi lembrado, seria possível dizer, por exemplo, que “a terra dos
índios volta maltratada a seus legítimos donos”. Mas, essa provável
construção, também em perfeitas condições de gramaticalidade
e de aceitabilidade semântica, é impedida de vir a ser manchete,
porta sentidos “fora do lugar”, por assim dizer. Assim, é pela presença de certas manchetes, mas também pela ausência de outras,
que determinados sentidos ganham existência e passam a ser
formulados (oferecidos-e-recebidos) já habitando um “natural”
do dizer.
Como se sabe, há muito se formula a garantia da posse
indígena da terra brasilis, mas esses dizeres não têm circulado
com tanto vigor, nem se têm traduzido em fato inequívoco no
funcionamento social, como mostra a continuidade dos embates
pela terra entre índios e brasileiros: permanece a instabilidade,
a disputa dos sentidos, a exemplo do que se verifica em torno da
textualidade das diversas leis. Diante disso, ao jornalismo não cabe
a prerrogativa de eximir-se do que é inerente ao funcionamento
da língua: é mesmo ao fazer o que diz ser uma escolha neutra
em prol da informação objetiva que ele se encontra no político
da língua, já tomando partido, inclusive, quanto ao embate das
línguas que são praticadas no Brasil.
Abstract
This paper has as its main issue the expression
“Upatakon (our land)” in headlines of the online
journalism about the dispute of land between Indians and Brazilians. We analyze some aspects of
the relation between the official language of Brazil
and the Indian language to denominate in Macuxi
language the police work to remove the Brazilians
out of the indigenous land. This work is based on
the Discourse Analysis theoretical framework,
as explained in works of Michel Pêcheux. (PÊCHEUX, 1969, 1975; ORLANDI, 1990, 1999).
Keywords: Discourse Analysis; portuguese
language; indian language; Indians.
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262
Niterói, n. 34, p. 253-262, 1. sem. 2013
A interface linguagem/mundo
como produção simultânea: quando
estudantes enfrentam
a administração central
em uma universidade pública
Bruno Deusdará (UERJ)
Décio Rocha (UERJ)
Resumo
Este artigo problematiza diferentes modos de
conceber os vínculos entre o plano linguístico e
o extralinguístico, rejeitando qualquer anterioridade deste sobre aquele. Como referencial teórico,
parte-se de Bakhtin, afirmando-se um privilégio
da variação sobre a estabilidade do sentido. Com
Maingueneau e Deleuze, aponta-se uma necessária reflexão sobre o tempo, ao se propor uma
dinâmica de coengendramentos entre linguagem
e mundo. Nas análises, privilegiam-se os embates
em notícias que tematizam a inauguração de um
Restaurante Universitário em instituição pública
do Rio de Janeiro.
Palavras-Chave: produção de real, sentido,
prática discursiva, enunciação.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 263-, 1. sem. 2013
Introdução
O presente artigo tem sua motivação em um encontro intempestivo entre um interesse teórico voltado para a produção de
sentido na linguagem e um evento, no mínimo, inusitado: a recente
inauguração (ou teria sido um simples “teste de funcionamento”,
conforme se alegou mais tarde?) do Restaurante Universitário
de uma universidade pública do Rio de Janeiro, momento para o
qual foi convidada a “comunidade universitária”, ou melhor, parte
dessa mesma comunidade, uma vez que se impediu o acesso de
um dos segmentos mais interessados no evento – os estudantes.
Acerca do interesse teórico indicado anteriormente, seria
preciso dizer que, não obstante vasta tradição de estudos sustentar
a cisão entre a dimensão verbal e aquilo que seria seu exterior,
optamos por uma perspectiva discursiva a partir da qual a recusa
a essa aparente cisão é correlata da afirmação de uma dinâmica
de coengendramentos. Com efeito, parece-nos indispensável
interrogar o que sustentamos quando optamos por apreender a
relação entre o verbal e seu entorno como efeito de um processo,
ao mesmo tempo, assimétrico e simultâneo.
Delineado o problema em torno do qual nos debruçamos,
caberia igualmente justificar a opção pelo evento “abertura do
Restaurante Universitário da Uerj”. Trata-se de anunciada “inauguração” para a qual, na qualidade de docentes da referida universidade, recebêramos “convite” enviado por correio eletrônico
em mala direta institucional. Tendo sido citado nominalmente no
referido convite, o governador do Estado tornou-se presença esperada no evento, gerando apreensão na comunidade acadêmica e a
consequente convocação de manifestação pública pelo movimento
estudantil, a se realizar durante a divulgada “inauguração”. Esse
foi o suposto motivo do impedimento do acesso dos estudantes
ao restaurante, sendo mantida sua circulação limitada a uma
área exterior e distante do local da “inauguração”, com a utilização de cordões de isolamento sustentados por um quantitativo
considerável de funcionários da segurança da Universidade. Os
conflitos resultantes desse tensionamento foram prontamente
noticiados nos portais eletrônicos dos grandes jornais e em programas de rádio. No dia seguinte à abertura, nota emitida pela
Reitoria da Universidade se referira ao evento como um simples
“teste para o funcionamento do Restaurante Universitário”. Acrescente-se que foi frustrada a expectativa de presença do governador
do Estado ao evento.
Objetivos e quadro teórico
Eis alguns questionamentos que inspiram a discussão a ser
encaminhada no presente artigo: que polêmicas se sustentariam
a partir das tensões entre o evento “inauguração”, anunciado
no convite que circulara amplamente, e o evento “inauguração
264
Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013
simbólica” ou “teste de funcionamento”, conforme passou a declarar a nota divulgada no dia seguinte ao ocorrido? Considerando
os sentidos que se afirmam ou se negam nessas polêmicas, em
que medida é possível tratar do socius como produção que se realiza também por meio da linguagem? Pretendendo argumentar
favoravelmente à impossibilidade de descolar a divulgação de um
convite e a produção de nota oficial, textos jornalísticos e emissões
radiofônicas da situação empírica que tais textos antecipam e
relatam, que conceituação é preciso propor acerca do verbal e do
social? Que outros problemas estariam subjacentes à conceituação proposta? De que referenciais dispomos para sustentar que
a produção de sentido não reside exclusivamente nas situações
empíricas, nem apenas nos textos que favorecem seus arranjos e
as relatam, mas em um encontro assimétrico e simultâneo entre
essas dimensões?
Já dissemos anteriormente ser possível considerar ao menos dois modos de apreensão dessa relação entre o verbal e seu
entorno. Nosso intuito com o presente artigo reside em explorar
a conceituação em torno dos efeitos de sentido na linguagem,
considerando o social e o verbal como dimensões em constante
interdelimitação.
Só aparentemente a linguagem faria referência a eventos
que lhe seriam exteriores. Seu poder de representação, tomado
largamente como sua principal propriedade, se ativa, produzindo
um duplo apagamento: de um lado, um esquecimento de que os
contornos assumidos por aquilo que se “transmite” nos textos
não passam de estabilizações sempre provisórias, em permanente
reconfiguração; de outro lado, um esquecimento de que a própria
situação de interação verbal investe na produção do ato que a
institui e se legitima no curso mesmo de sua enunciação.
Partimos de uma distinção proposta entre significado e
sentido, a qual reforça a impossibilidade de sustentar a estabilidade de um significado mais básico, dito genericamente “literal”,
como ponto de partida de qualquer variação. Entre outros referenciais possíveis, a obra de M. Bakhtin parece oferecer elementos
importantes para o encaminhamento da discussão em tela. Tal
distinção, no entanto, aponta para uma necessária teorização
acerca de dois problemas: de um lado, a já referida articulação
entre o linguístico e seu entorno; de outro, o problema do tempo,
tendo em vista as insuficiências de uma perspectiva meramente
cronológica dos eventos.
Considerando o frequente apagamento de uma reflexão
conceitual mais efetiva em torno da dinâmica de engendramentos
simultâneos entre o verbal e o extraverbal na tradição dos estudos
da linguagem, a motivação que sustenta o presente texto nos indica a necessidade de recorrer a referenciais oriundos de outros
territórios disciplinares.
Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013
265
Linguagem e mundo: a distinção entre significação
e sentido como afirmação da vida
Se é possível delimitar um solo conceitual a partir do qual as
reflexões ora propostas emergem e ganham consistência, esse é o
de uma perspectiva discursiva caracterizada, entre outros aspectos, por uma recusa da anterioridade do social frente aos textos que
se produzem e que, ao menos aparentemente, a ele remeteriam.
Tal recusa impulsiona a compreensão acerca dos processos de
produção de sentido, evitando circunscrevê-los unicamente nas
relações de oposição entre as palavras – tal como, em linhas gerais,
se observou na concepção de língua como sistema de signos – ou
na referência que as expressões linguísticas estabeleceriam com
o estado de coisas que lhes é exterior – segundo pretenderam
destacar abordagens formalistas.
Parece-nos conveniente iniciar por um trabalho negativo,
explicitando os diferentes traços de um contorno que dicotomiza
linguagem e mundo, encontrando pontos de contato entre abordagens historicistas e logicistas a que uma perspectiva discursiva
viria se contrapor.
Em linhas gerais, a anterioridade e, em certo sentido, a naturalidade das configurações sociais em relação ao plano linguístico
remetem a um senso comum que goza de intenso prestígio não
apenas no âmbito das ciências da linguagem, mas também em
outros campos do saber.
Com efeito, postula-se a existência de um mundo mudo e
caótico que demandaria das comunidades humanas sistemas cuja
propriedade essencial asseguraria a inteligibilidade e a comunicabilidade dos eventos. A esses sistemas de representação caberiam
fundamentalmente duas propriedades: a de decomposição dos
eventos do mundo em diversos elementos, constituindo-os em
palavras que nomeiam os seres, caracterizam-nos ou os qualificam, denotam eventos e expressam circunstâncias, permitindo
sua compreensão pelos indivíduos, e a de reorganização desses
elementos decompostos segundo certos princípios de ordenação,
assegurando a transmissão de conteúdos.
A aposta na anterioridade de um real empírico – natural e
mudo, é preciso insistir – caracteriza tal concepção, considerando
que os diversos elementos que compõem as formas instituídas
no mundo se encontrariam em relativa instabilidade. Caberia
à linguagem pôr à disposição do falante formas que tornariam
harmoniosamente inteligíveis e, consequentemente, comunicáveis
os eventos demasiadamente caóticos.
A dupla recusa que mencionamos anteriormente situaria
as propostas de teorização acerca da produção de sentido no
âmbito dos estudos do discurso em diálogo, de um lado, com os
fundamentos de uma semântica de base lexical e, de outro, com
as orientações formalistas de base sentencial. No entanto, além
266
Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013
do necessário trabalho negativo exigido pela emergência de uma
disciplina não prevista no campo do saber, espera-se ainda que
a dupla recusa mencionada se institua, convocando os pesquisadores da área do discurso a um trabalho de teorização não
restrito, por razões óbvias, à mera redefinição conceitual.
Entre as abordagens discursivas, observa-se, com maior
frequência, o confronto com uma concepção lexical, segundo a
qual o significado, sendo propriedade do signo, gozaria de certa
estabilidade. O contexto exerceria papel secundário, sendo convocado apenas como possibilidade de desfazer ambiguidades. Esse
papel secundário conferido ao contexto se justificaria, em perspectiva lexical, por um posicionamento em torno do significado
como provocado por uma estabilidade prévia, um acordo que se
manifestaria na permanência de certos traços do significado nas
situações de troca verbal.
Segundo Bakhtin, a precedência da estabilidade em relação
ao variável seria decorrência de uma aproximação demasiada
entre o sinal e o signo linguístico. Segundo o autor, a estabilidade
é característica do sinal como “entidade de conteúdo imutável”,
que demandaria do falante de uma língua mera identificação, daí
a impossibilidade da pura “sinalidade” nas línguas humanas. O
que torna a forma linguística signo “não é sua identidade como
sinal, mas sua mobilidade específica” (BAKHTIN, 2004, p. 94).
Desse modo, o que se sustenta é a instabilidade da significação em confronto com a multiplicidade de contextos situacionais em que ocorrem. A autonomia do signo como remetendo
unicamente a duas faces – a do significante e a do significado
– abranda-se em favor da mobilidade das interações nas quais
se inscrevem.
Considerando que “... não lidamos com a palavra isolada
funcionando como unidade da língua, nem com a significação
dessa palavra, mas com o enunciado acabado e com um sentido
concreto: o conteúdo desse enunciado” (BAKHTIN, 2000, p. 310),
a multiplicidade de significado, longe de ameaçar a unidade da
palavra, é sua característica constitutiva: “a multiplicidade de
significações é o índice que faz de uma palavra uma palavra”
(BAKHTIN, 2004, p. 130).
Dessa forma, desloca-se, com tal discussão, o contexto de
uma função complementar à dimensão constitutiva do sentido
na linguagem. Os signos não poderiam comportar em si parcelas
do significado do enunciado, sob o risco de considerar que, nas
interações, se compartilhariam sequências de signos que justificassem compreender-lhes os significados isoladamente, em vez de
enunciados dotados de um projeto de dizer e de certa expectativa
de resposta.
A esse respeito, a distinção proposta por Bakhtin entre tema e
significação é relevante: esta remete a “elementos da enunciação que
são reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos” (BAKHTIN,
Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013
267
2004, p. 129), enquanto aquele se refere aos contornos individuais
e não reiteráveis da enunciação. “O tema da enunciação é concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual ela pertence”
(BAKHTIN, 2004, p. 129).
Tal distinção nos leva a perceber, de um lado, que não há
qualquer razão para se considerar, como tradicionalmente se faz,
certo conjunto de traços mais básicos de significado (sua literalidade) a que outros se juntariam. A relação com a palavra não se
reduz ao mero reconhecimento de sua dimensão identitária. Disso
decorreria a insistência do autor em ressaltar a compreensão como
atividade responsiva. “A cada palavra da enunciação que estamos
em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de
palavras nossas, formando uma réplica” (BAKHTIN, 2004, p. 132).
Com efeito, já reunimos elementos suficientes a respeito da
contribuição do autor, cujas reflexões vêm sendo retomadas, desde
os anos oitenta, por abordagens discursivas de base enunciativa
e pragmática. Segundo Bakhtin, o tema remeteria ao sentido do
enunciado como único e não reiterável, deixando à significação
uma parcela ao mesmo tempo dotada de maior estabilidade e
não isolável. O sentido de um enunciado efetua-se a partir de sua
inscrição situacional, a que comparece sempre como resposta.
O enunciado está repleto de ecos e lembranças de outros
enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma
esfera comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser
considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados
anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra ‘resposta’
é empregada aqui em sentido lato): refuta-os, confirma-os,
completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e, de um
modo ou de outro, conta com eles (BAKHTIN, 2004, p. 316).
Evidenciar a presença de “ecos” e “lembranças” no enunciado corresponde a um projeto bastante forte no campo dos estudos
do discurso remetendo à impossibilidade de autonomia de um
texto frente a outros textos, tal qual o confirma a larga aceitabilidade do interdiscurso como um primado. Tal posição daria uma
resposta contundente à suposta oposição entre literalidade e expansão da significação, advogando que a produção de sentido se
sustentaria na multiplicidade de vínculos que dão consistência à
rede interdiscursiva, produzidos como efeitos sempre provisórios
e não como traços localizáveis.
Ainda em relação ao fragmento anterior, como não perceber certa compreensão, mesmo contrabandeada, do enunciado
como remetendo a “ecos” que lhe são anteriores, mas também
antecipando posicionamentos? Como deixar de ressaltar que cada
enunciado, além de “congelar” sentidos recuperados em alguns já
emitidos, antecipa, supõe, anuncia outros, dos quais ele próprio
se torna um “eco”, ainda que em potencial?
Se a dimensão histórica, em Bakhtin, é circunscrita a uma
leitura do tempo como sucessão de eventos, pretendemos destacar
268
Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013
acima uma outra leitura do tempo, não como sucessão de eventos
organizados em sequência cronológica, mas como cortes, instantes
que não cessam de abrir passado e futuro, simultaneamente.
Supõe-se assim que cada ato de linguagem inaugura o instante,
redefinindo passado e futuro.
Parece-nos evidente que a questão que insiste aqui apontaria
para o potencial de produção de mundos na linguagem, para o
qual o problema do tempo se torna debate imprescindível, uma
vez que não há precedência de nenhum dos dois planos. Dessa
forma, a defesa de uma dinâmica de engendramentos simultâneos
entre linguagem e mundo parece passar por uma redefinição de
ambos os planos, recusando conceber o mundo como plano das
ações materiais e o linguístico como plano do simbólico, reduzido
à representação.
Práticas discursivas e produção de mundos:
o caso da inauguração do bandejão da UERJ
Desdobrando as discussões anteriores, neste item procederemos à análise do que, de maneira razoavelmente superficial, diremos tratar-se de textos que circularam em torno do
evento “inauguração” do bandejão da Uerj. Se qualificamos o
que dissemos antes como “razoavelmente superficial”, é porque
reconhecemos a enorme dificuldade em evidenciar os laços entre
o verbal e seu entorno de outro modo, pretendendo eliminar
qualquer possibilidade de se vislumbrar entre os dois planos a
determinação de um sobre o outro. Ou seja, trata-se de evitar que
se considere possível a existência de um evento como “inauguração” independente da produção de uma massa de textos: convite,
confirmações, explicitações de ausências, programação, reservas,
entre tantos outros. O esforço que empreendemos aqui se dirige
exatamente sobre a explicitação dos laços de coconstrução entre
o verbal e o não verbal.
Retomando o que anunciamos no início deste artigo, chamou-nos especial atenção ter havido inicialmente a circulação de
um “convite” para a “inauguração” do Restaurante Universitário,
em nome do governador do Estado e do reitor da Universidade,
dirigido à “comunidade universitária”. No dia seguinte ao ocorrido, no entanto, uma nota oficial amplamente divulgada na
Universidade e citada extensamente ou na íntegra em textos
da grande imprensa passa a se referir ao evento como “teste de
funcionamento”.
A breve retomada da tensão que neste artigo investigamos
já oferece algumas indicações dos materiais considerados nas
análises aqui propostas: há, inicialmente, dois modos de designar
o evento em concorrência. Dessa forma, dialogamos com o imperativo metodológico em que se mantém “uma certa concepção
de corpus que privilegie a perspectiva do não uno, do múltiplo”
(ROCHA, 2003, p. 207). Essa opção se sustenta na ideia de que o
Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013
269
interdiscurso prevalece sobre o discurso, devendo o pesquisador
intervir na montagem do córpus de análise, investindo na explicitação de posicionamentos em confronto.
Considerando o propósito de problematizar os engendramentos simultâneos entre linguagem e mundo, elegemos como
córpus de análise o convite para a inauguração, a nota oficial,
divulgada no dia seguinte, e seis notícias, encontradas a partir
de busca realizada na página eletrônica “Google”, utilizando os
descritores “restaurante universitário Uerj” e “bandejão Uerj”.
Adotaram-se os seguintes critérios para seleção das ocorrências
listadas: (i) data de publicação, restringindo-nos aos textos divulgados no próprio dia do evento e no dia subsequente, e (ii)
página eletrônica de origem, considerando-se os portais “oglobo.
globo.com”, “noticias.yahoo.com.br”, “mancheteonline.com.br” e
“sidneyrezende.com.br”. Entre os demais resultados da busca,
observamos a repetição das mesmas notícias, em outras páginas,
com publicação em data posterior. Já a indicação da fonte original
das notícias não se deu regularmente em todos os casos.
Inicialmente, procedemos a um levantamento dos diferentes
modos de apresentar ao coenunciador o evento ocorrido, considerando como designações os grupos nominais utilizados nessas
referências. Tal encaminhamento pressupõe que haja à disposição
do falante um conjunto bastante diversificado de elementos linguísticos que permitem apresentar um referente ao coenunciador.
Trata-se de instruções ao coenunciador que propõem a identificação de algo em determinado contexto.
No caso em análise, a referência oferece meios de apresentar a própria situação e os participantes nela envolvidos, além
de argumentar sobre certa relação entre o evento “abertura do
Restaurante Universitário” e a “manifestação de estudantes”. A
respeito da referência, trata-se de “atividade que implica a cooperação dos coenunciadores e poderá malograr, caso o coenunciador,
por exemplo, se engane de referente” (MAINGUENEAU, 2001, p.
179-180).
Apresentamos inicialmente, em sua integralidade, o texto do
convite que circulara por mala direta e impresso na Universidade,
na semana anterior ao evento:
O Chanceler da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Excelentíssimo Senhor Governador Sérgio Cabral, e o Magnífico
Reitor, Professor Ricardo Vieiralves, têm a honra de convidar
V. Sa. para a cerimônia de inauguração do Restaurante Universitário da UERJ, a ser realizado no dia 12 de setembro de
2011, às 12h, no campus Maracanã
Vejamos a seguir alguns dos modos a partir dos quais os
eventos foram apresentados nos textos em análise. Os fragmentos
destacados seguem numerados nas sequências em que aparecem
aqui, acompanhados da referência à fonte.
270
Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013
(F1) Na segunda-feira, 12 de setembro, foi feito um teste para
o funcionamento do Restaurante Universitário no campus Maracanã, com a presença de um grupo de professores, técnicos
administrativos e alunos. A abertura do RU para a comunidade
acadêmica acontece ainda este mês, em data a ser divulgada
oportunamente. [Nota Uerj]
Em dissonância com o que fora divulgado por meio de
convite com circulação virtual e impressa na Universidade, a
nota oficial emitida pela Reitoria refere-se a “um teste para o
funcionamento”. Ressaltando o deslizamento suposto pela alternância de uma designação a outra, destaque-se o fato de que
uma “inauguração” remete a “cerimônia de entrega de uma obra”,
“uma primeira apresentação”, o “início” de algo. Uma cena de
inauguração se institui, criando certa relação entre os promotores
do evento (no caso, alguém que realizou uma obra pública) e os
participantes, que são convidados interessados / testemunhas
do que se inaugura. Já um “teste de funcionamento” não chega a
pressupor rituais de formalidade esperados em uma inauguração
e também não demandaria convites amplamente distribuídos.
Em um teste, espera-se que os participantes escolhidos possam
avaliar o sucesso ou não do empreendimento.
Se a voz oficial parece insistir em um “teste de funcionamento”, o que se reitera, no entanto, nos demais textos é o signo
“inauguração”, como se pode observar abaixo. Tal reiteração se
dará tanto na enunciação do jornalista, quanto na fala atribuída
aos estudantes que participaram da manifestação, em trechos
apresentados em relato:
(F2) “A inauguração no novo bandejão da Uerj, na manhã desta
segunda-feira, terminou em tumulto entre vigias e estudantes.” [Notícia 1]
(F3) “A estudante do 10º período de História, Carolyna Barroca, de 23 anos, disse que foi uma das agredidas durante a
confusão:
− A manifestação era pacífica e tomei um soco no peito de
um segurança. Uma menina foi jogada no chão e várias outras apanharam. O bandejão é público e eu não posso usar. A
inauguração foi só para um grupo de convidados.” [Notícia 1]
Como se vê, a designação “teste de funcionamento” ocorre
apenas nos trechos atribuídos à voz institucional, seja através da
nota na íntegra, quanto em citações dela:
(F4) “Por meio de nota, a assessoria da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Uerj) esclareceu na tarde desta segunda-feira que o tumulto entre estudantes e seguranças durante um
teste de funcionamento do novo bandejão da universidade teria sido
provocado pelos próprias manifestantes.” [Notícia 2]
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Na sequência abaixo, permanece o privilégio conferido à
referência à “inauguração”, empregado também em sua forma
verbal correlata:
(F5) “Seguranças da Uerj estão fazendo um cordão de isolamento em torno do bandejão da universidade, que foi inaugurado na manhã desta segunda-feira, para evitar que estudantes
entrem no local. Mais cedo, houve tumulto entre os alunos e
os vigias.” [Notícia 3]
A alternância entre as duas designações mencionadas acima
constitui um cenário de embate entre posicionamentos distintos,
a cuja atenuação se assiste como mecanismo de emergência de
certo grau de mediação, correspondendo a um ideal de notícia
como “transmissão de informações” ou ainda como índice que
pretenderia reforçar certa “objetividade” pressuposta em tal
gênero de discurso. A referida atenuação se instituiria a partir
da recuperação do signo largamente utilizado na fala dos alunos – “inauguração” – a que se passa a qualificar na expressão
“inauguração simbólica”:
(F6) “De acordo com a assessoria da UERJ, o bandejão começará
a funcionar em menos de um mês, mas houve uma inauguração
simbólica que reuniu o reitor Ricardo Vieira Alves, representantes de professores, de funcionários e de alunos” [Notícia 5]
Em F6, a presença da expressão “inauguração simbólica”
parece ressaltar a existência de algum tipo de comemoração que,
a despeito do esperado, não redundará em um início de funcionamento do “bandejão”. Esse destaque se sustentaria na oposição
indicada pela utilização da conjunção “mas”, em que “começar a
funcionar” se projeta como ação futura em relação à “inauguração
simbólica” realizada. Tal leitura é reiterada em F7, quando “uma
inauguração simbólica” é reformulada por “a comemoração”:
(F7) “Uma inauguração simbólica foi realizada nesta segunda-feira, onde alunos que estariam no local queriam participar
da comemoração, mas foram impedidos de entrar pelos seguranças da própria instituição”. [Notícia 6]
Dessa forma, percorrer os diferentes modos de designar o
evento ocorrido nos deu acesso a certos embates, opondo as vozes
que sustentam ter havido “uma inauguração” sem a presença do
principal segmento interessado na obra em questão – os estudantes – às que passaram a indicar a ocorrência de um “teste de
funcionamento”, cujo acesso limitado estaria, por consequência,
justificado. Uma terceira voz parece compor o cenário, referindo-se a uma “inauguração simbólica”, que, de um lado, reforçaria
a existência de uma comemoração e, de outro, destacaria que tal
evento não marca o início do funcionamento do “bandejão”.
Ao longo da leitura das notícias, outra entrada relevante
aponta para a relação proposta entre a “manifestação” e o “tu272
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multo”. Percebemos que, em certos fragmentos, a “manifestação”
é apresentada razoavelmente equivalente ao “tumulto”:
(F8) “Menos de 100 manifestantes, muitos de fora da Uerj,
fizeram uma manifestação em frente ao prédio onde está localizado o Restaurante. Alguns manifestantes, mais exaltados,
foram contidos pelos seguranças depois de agredirem dois
estudantes e uma funcionária da vice-reitoria, que está neste
momento em atendimento médico”
Em F8, insinua-se uma correspondência entre a “manifestação” e o “tumulto”, apresentando este como decorrência do tipo de
movimento proposto, em que alguns “manifestantes” se encontravam “mais exaltados”. Atribuir aos estudantes a categoria de
“manifestantes” já supõe certa personalização dos atos em curso,
uma vez que a ação de “manifestar” é tomada como atributo dos
indivíduos a que se referem.
Recuperando-se o relato atribuído a estudante, explicitado
em F3, ao contrário da suposta correspondência entre “manifestação” e “tumulto”, o que se observa é a indicação da responsabilidade sobre o “tumulto” à agressividade dos seguranças da
Universidade. Confronte com o seguinte trecho de F3: “A manifestação era pacífica e tomei um soco no peito de um segurança.
Uma menina foi jogada no chão e várias outras apanharam”.
Retomando o que vimos destacando até aqui, é possível
observar que a referência ao teste de funcionamento parece se
restringir aos fragmentos em que são apresentados relatos atribuídos à administração central da Universidade. A referência à
“inauguração” é reiterada também na enunciação do jornalista.
Tal recorrência vai concedendo estatuto de “informação” a esses
fragmentos. A preferência por uma designação em detrimento de
outra não parece ser proveniente apenas de uma escolha. Não se
pode afirmar, por consequência, que tal escolha reflita uma observação mais autorizada do empírico. Interessa-nos aqui indicar
a reiteração como mecanismo de produção de objetividade da
notícia. Os contornos que o evento vai ganhando se fortalecem
ou enfraquecem a partir da repetição de certas expressões em
detrimento de outras.
(F9) “Após a inauguração do novo bandejão da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj), na manhã de segunda-feira, ter
terminado em tumulto entre vigias e estudantes, a sub-reitora
de Extensão e Cultura da Uerj, professora Regina Henriques,
argumentou que os preços do restaurante da universidade
foram calculados a partir de uma pesquisa”. [Notícia 4]
Com efeito, F9 parece evidenciar de modo bastante instigante o encontro entre diferentes vozes, cujo encadeamento
promove o apagamento dos embates que vão se constituindo ao
longo dos textos e no confronto entre eles.
Parece ser possível aqui aproximar o trabalho do jornalista
daquele descrito por Deleuze (2007) acerca do métier do pintor.
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Apenas ilusoriamente o jornalista estaria diante da folha em
branco quando se propõe a narrar um evento. Trata-se, antes, de
imaginar a folha (ou a tela do computador) povoada de clichês.
“Com efeito, se o pintor estivesse diante de uma superfície em
branco, poderia reproduzir nela um objeto exterior que funcionaria como modelo” (DELEUZE, 2007, p. 91). Antes de preencher
a tela em branco, o pintor inicia seu trabalho esvaziando-a dos
clichês que a povoam:
(...) ele não pinta para reproduzir na tela um objeto que funciona como modelo; ele pinta sobre imagens que já estão lá, para
produzir uma tela cujo funcionamento subverta as relações
do modelo com a cópia (DELEUZE, 2007, p. 91).
No caso da notícia, os clichês parecem residir em um modo
recorrente de se referir às manifestações, conferindo destaque a
seus desdobramentos em detrimento dos motivos que os geram.
Os clichês se atualizam e se repetem indefinidamente de uma notícia para outra. Eles emergem mesmo quando se pretende atribuir
igual destaque às diferentes vozes. Vejamos o fragmento a seguir:
(F10) “A partir daí, há três versões do conflito. Em uma delas,
alunos contaram que um grupo teria tentado entrar no bandejão - onde professores, funcionários e alunos convidados
participavam do primeiro teste de funcionamento do bandejão.”
[Notícia 4]
O discurso indireto
livre corresponde a uma
forma de apresentação
do relato que se caracteriza por uma mistura
de vozes em que “não se
pode dizer exatamente
que palavras pertencem
ao enunciador citado e
que palavras pertencem
ao enunciador citante” (MAINGUENEAU,
2001, p. 153).
1
274
Em F10, anunciam-se “três versões” para “o conflito”. Embora se pretenda, ao menos aparentemente, conferir igual destaque
às três versões, é inevitável perceber que se supõe a existência do
“conflito”. As polêmicas residiriam apenas nas versões. Seguindo
com a leitura do fragmento em análise, observa-se a série proposta
pelos alunos: inauguração, tentativa de entrada, impedimento,
conflito com a segurança. Essa série parece ser contraditória com
outra, atribuída à administração central da Universidade: teste
de funcionamento, manifestação exaltada/conflito. Na primeira
série, vê-se que o tumulto é gerado desde o impedimento da entrada dos estudantes. Na segunda, o tumulto parece decorrência
natural do tipo de manifestação proposta, das atitudes exaltadas
de alguns participantes.
Essas séries correm paralelas, instituem a “produção de
mundos” divergentes. O que se realiza na notícia é o encontro
entre essas séries, que se observa, por exemplo, na presença da
expressão “teste de funcionamento”, na apresentação da série
atribuída aos estudantes. Se é possível restituir essa expressão
como indicador da presença da voz da administração central da
Universidade, tal elemento pode ser considerado como marca de
uma citação em discurso indireto livre1, entrelaçando-se no relato
que vinha sendo atribuído aos estudantes, como se pode recuperar
com o verbo “contaram”.
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Pretendendo sustentar, em consonância com a hipótese de
uma semântica global, a multiplicidade de sentidos em concorrência, apontamos outra entrada possível para apreensão dos
diferentes embates que atravessam as notícias de jornal: as diferentes formas de apresentação do discurso relatado.
Um aspecto a ser considerado remete aos traços semânticos
dos termos dicendi mobilizados:
(F11) “De acordo com Gabriel Siqueira, também estudante de
História e membro do Conselho Superior de Ensino e Pesquisa,
o protesto era para reclamar do valor do bandejão. Os alunos
alegam que em outras instituições públicas de ensino os preços
são mais baratos”. [Notícia 1]
(F12) “Por meio de nota, a assessoria da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Uerj) informou na tarde desta segunda-feira
que o tumulto entre estudantes e seguranças durante um teste
de funcionamento do novo bandejão da universidade teria sido
provocado pelos próprios manifestantes. Alguns deles, mais
exaltados, segundo a nota, teriam agredido dois estudantes e
uma funcionária da vice-reitoria. O texto diz ainda que dois
seguranças ficaram feridos e um carro teve o vidro quebrado”.
[Notícia 1]
(F13) “A universidade também informou os valores a serem
cobrados por refeição, questionados pelos manifestantes: estudantes cotistas pagarão R$ 2 pela refeição; não-cotistas R$
3; e funcionários R$ 5,31”. [Notícia 1]
Nos três fragmentos anteriores transcritos da notícia 1,
percebem-se estatutos distintos sendo conferidos a cada uma das
vozes em relato. Em F11, a voz do estudante é introduzida, modalizada a partir da expressão “de acordo com...” e através do verbo
“alegar”. Já a voz institucional é apresentada tanto em F12 como
em F13 igualmente por modalização – “segundo a nota” – e pelo
verbo “informar”. Desse modo, à voz dos estudantes caberia certa
posição reativa, considerando que os traços semânticos do verbo
em questão apontariam para um caráter opinativo / explicativo
do relato. No que tange à voz institucional, confere-se estatuto
de origem da informação, atribuindo-lhe traço de “objetividade”.
O que dizemos parece apenas reforçar as observações anteriores acerca do trabalho do jornalista com clichês; as oposições
que se atualizam parecem não se afastar muito do esperado,
quando o que se noticia é um protesto contra a medida tomada
pela administração de um estabelecimento. Os fragmentos que
seguem comprovam a recorrência da distribuição das vozes já
observada acima, bem como o lugar conferido a cada uma delas:
(F14) “Por meio de nota, a assessoria da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Uerj) esclareceu na tarde desta segunda-feira
que o tumulto entre estudantes e seguranças durante um teste
de funcionamento do novo bandejão da universidade teria sido
provocado pelos próprios manifestantes”. [Notícia 2]
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(F15) “A universidade também informou os valores a serem
cobrados por refeição, questionados pelos manifestantes”.
[Notícia 2]
(F16) “Os alunos faziam uma manifestação contra os preços das
refeições − que irão custar de R$ 2 a R$ 5,31. Alunos alegaram
ter levado socos e pontapés dos seguranças e um deles acabou
com o braço arranhado. Já a Uerj informou, em nota, que os
próprios manifestantes teriam agredido dois estudantes, uma
funcionária e dois seguranças”. [Notícia 3]
No entanto, é preciso ir além de um mero levantamento das
pistas em análise, que nos levariam à evidência de diversas cenas
se superpondo, em um regime de variação contínua. Tal encaminhamento nos manteria restritos a uma concepção representacional
da linguagem, supondo que o evento “abertura do Restaurante
Universitário” teria sido anterior à sua divulgação na imprensa e
ao pronunciamento, em nota, por parte da Administração central
da Universidade.
Cabe não perder de vista dois aspectos que julgamos fundamentais na argumentação favorável a uma concepção de coengendramento entre linguagem e mundo. O primeiro desses aspectos
residiria em perceber que a abertura do Restaurante Universitário
não se dá sem a produção simultânea de uma “massa” de textos
à qual só se pode ter acesso parcialmente.
Observe-se o fragmento a seguir como exemplo do que
vimos argumentando:
(F17) “Apesar dos relatos da existência de feridos, segundo a
Polícia Civil, não foram registradas ocorrências da confusão
nas três delegacias da região, até o final da tarde de ontem”.
[Notícia 3]
O que em diversas situações ganha estatuto de informação
objetiva não são ações empíricas, mas tão somente encadeamento
de relatos, como os que se explicitam em F17. Nesse fragmento, são
retomados os relatos que indicaram haver feridos em confronto
com a voz atribuída à “Polícia Civil”. Essa voz se manifesta desautorizando “os relatos da existência de feridos”.
Como outro exemplo, diríamos que não nos parece possível
deixar de observar que a organização de cordões de isolamento, o
impedimento do acesso de centenas de estudantes ao local tenha
se dado sem que uma ordem, sem que conversas, orientações
normativas tenham circulado. Do mesmo modo, a presença de
centenas de estudantes pressupõe panfletos de convocação, mensagens de celulares, postagens em páginas eletrônicas de redes
sociais, confecção de faixas, confirmações, possíveis desistências,
tudo isso é produzido também por meio de textos.
Dessa forma, o problema do tempo na linguagem ganha
importância quando se rejeita o senso comum em torno do qual
um dado estado de coisas seria anterior aos textos que lhe fariam
276
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referência. Quando a relação entre linguagem e mundo é concebida em termos da anterioridade deste sobre aquela, não há outra
dimensão do tempo implicada aí senão a que percebe o histórico
como sucessão de presentes, aprisionando-o em uma cronologia.
Se, em Bakhtin, já havia a sensibilidade acerca de uma problematização do sentido que rejeita a primazia da estabilidade
frente à variação, na perspectiva discursiva tal como vem sendo
desenvolvida por D. Maingueneau, o problema do tempo parece
insistir, mesmo que não esteja explicitamente indicado. Com
efeito, é possível ressaltar, no conceito de prática discursiva, de D.
Maingueneau (1997), a síntese, de um lado, da recusa da anterioridade do social sobre o linguístico e, de outro, da proposta de
indissociabilidade entre a linguagem e a produção de modos de
existência. A recusa residiria em considerar que, com a noção de
prática discursiva, emerge um posicionamento a partir do qual
“não se dirá ... que o grupo gera um discurso do exterior, mas que
a instituição discursiva possui, de alguma forma, duas faces, uma que
diz respeito ao social e a outra, à linguagem” (MAINGUENEAU,
1997, p. 55). A inflexão proposta residiria em considerar não mais
os grupos em sua existência empírica exterior à linguagem, ressaltando-o sim como uma “face” da instituição discursiva. Tal é a
ressalva apresentada pelo autor: “é preciso ainda deixar bem claro
que visamos aos grupos que existem unicamente por e na enunciação,
na gestão destes textos (...)” (MAINGUENEAU, 1997, p. 56).
A proposta que igualmente se faz com a referida noção
indica uma necessária reflexão por parte do linguista em torno
dos modos de organização dos grupos – passo fundamental para
o reconhecimento de que o conceito de prática discursiva teria
outro impacto além da mera ampliação da noção de discurso.
A esse respeito, Rocha afirma que se trata de redimensionar o
objeto de estudo, o qual indica uma dupla produção: “por um
lado, a produção de enunciados segundo um determinado sistema de regras; por outro, o complexo institucional implicado com
tal produção” (ROCHA, 1997, p. 51). Esse redimensionamento é
assim avaliado como “um salto qualitativo na formulação teórica
do autor: a inclusão da dimensão institucional, cuja produção
se encontraria submetida às mesmas coerções que regulam os
enunciados” (ROCHA, 1997, p. 52).
Considerações finais
Neste artigo, retomamos uma discussão fundamental para
a constituição do campo dos estudos do discurso: a reflexão em
torno do sentido na linguagem como produção. Tal debate nos
coloca invariavelmente em contato com um conjunto de problemas que, em diversos momentos, foram retirados do campo dos
estudos do discurso. Entre as questões tratadas, destacamos aqui
a necessária reflexão sobre o social e o problema do tempo.
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277
A esse respeito, ver
Maingueneau (2005).
2
278
Percorremos o referencial bakhtiniano com o intuito de
apresentar uma concepção em torno do papel do contexto no privilégio do sentido como remetendo ao único e ao não reiterável.
Tal concepção é parte imprescindível de uma teorização sobre a
linguagem que se recusa a restringi-la a uma dimensão de “reapresentação” dos eventos supostamente exteriores. Considerando
todo ato humano como um texto em potencial, Bakhtin oferece
elementos importantes para a afirmação acerca da produção de
mundos como processo que se efetua no plano linguístico e extralinguístico.
Na sequência, ao retomar a noção de prática discursiva,
ressaltamos que o avanço necessário de uma teorização em torno
dos vínculos entre o linguístico e o extralinguístico como planos
em concorrência na produção de mundos consideraria inevitavelmente o problema do tempo. Tal problema parece merecer mais
atenção, já que o que se pretende afirmar com ele é a possibilidade
de criação de sentido.
Se o que se observa nesses textos, à primeira vista, é uma
disputa de versões entre textos que retomam um evento passado,
ainda que em uma distância de tempo consideravelmente pequena, explicitamos as considerações necessárias para afirmar que
não se trata apenas de “versões”, transmitindo eventos anteriores.
O congelamento das forças em embate constitutivo das narrativas parece provocar um apagamento da dimensão interventiva
da linguagem sobre o real, cujos contornos passamos a explorar.
Em linhas gerais, pode-se dizer que a notícia, como gênero
do discurso, pretende-se à narrativa supostamente objetiva de um
evento, indicando possíveis envolvidos, coordenadas de espaço e
tempo, motivações presumidas, entre outros elementos. Diríamos,
provisoriamente, que, ao sustentar o plano linguístico como instaurador de novos mundos, recusamos a posição segundo a qual a
notícia figura como “transmissão de informação”. A objetividade
obsessivamente perseguida por manuais de redação dos grandes
jornais seria, antes, efeito provocado por certos procedimentos
enunciativos do que qualidade inerente a esses textos.
A coexistência entre o evento “inauguração” e o evento
“teste de funcionamento” (ou ainda, como aparecerá em algumas notícias, “inauguração simbólica”) instaura-se produzindo
diferentes modos de inscrição dos participantes envolvidos, bem
como formas diversas de explicitar a passagem da “manifestação”
ao “tumulto”.
Com efeito, a diversidade de pistas apresentadas contribui
com a hipótese de que o sentido não se encontra em uma única dimensão do texto, mas as atravessa todas, em menor ou maior grau,
tal como se sustenta com a hipótese de uma semântica global2.
Tal modo de conceber o sentido parece permitir a aproximação
entre os estudos do discurso e a filosofia de G. Deleuze, já que a
variação de sentido como atualização em permanente provisoNiterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013
riedade de formas dá expressão a forças. “O sentido é então uma
noção complexa: há sempre uma pluralidade de sentidos – uma
constelação, um complexo de sucessões, mas também coexistências – que faz da interpretação uma arte” (DELEUZE, 1976, p. 3).
Abstract
In this paper, we discuss different ways of conceiving the articulation between linguistic and
nonlinguistic domains, refusing the point of view,
which presupposes the anteriority of the latter
over the former. Our theoretical basis draws from
the work of Bakhtin, Maingueneau and Deleuze,
in order to support three main issues: the primacy
of variation over stability of sense, the concept
of time and the dynamics of coengenderings between language and reality. In the analysis, we
highlighted the clashes reported in different news
about the inauguration of a canteen in a public
university of Rio de Janeiro.
Keywords: production of reality; sense; discursive practice; enunciation.
REFERÊNCIAS
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de Michel Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 2004.
_____. Estética da Criação Verbal. Trad. de Maria Ermantina Galvão.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
_____. Francis Bacon: lógica da sensação. Trad. de . Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2007b.
_____. Nietzsche e a filosofia. Trad. de Edmundo Fernandes Dias e
Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976.
MAINGUENEAU, D. A gênese dos discursos. Trad. de Sírio Possenti.
Curitiba: Criar, 2005.
_____. Análise de Textos de Comunicação. Trad. de Cecília Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001.
_____. Novas Tendências em Análise do Discurso. Trad. de Freda
Indursky. Campinas: Pontes; Ed. da Unicamp, 1997.
ROCHA, D. “A opção por um espaço discursivo de análise:
questões metodológicas”. In: PAULIUKONIS, M. A. L.; GAVAZZI,
S. (Org.). Texto e discurso: mídia, literatura e ensino. Rio de Janeiro:
Lucena, 2003. p. 197-208.
Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013
279
_____. Produção de subjetividade: para uma cartografia dos discursos das publicações sobre videojogos. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Ensino de Línguas). São Paulo: PUC-SP, 1997.
280
Niterói, n. 34, p. 263-280, 1. sem. 2013
Análise discursiva do Plano
de Desenvolvimento Institucional
do CEFET/RJ: uma proposta
de resistência a um discurso
institucional hegemônico1
Fábio Sampaio de Almeida (CEFET-RJ UnED)
Maria Cristina Girogi (CEFET-Celso Suckow)
Resumo
1
O trabalho de onde se originou este artigo (ver GIORGI,
2012) centra-se na discussão
sobre o papel dos ensinos médio
e técnico no PDI do CEFET/RJ.
Gragoatá
Considerando as mudanças em curso na organização da rede
federal de educação profissional e tecnológica, buscamos problematizar o papel do discurso como mecanismo de produção
e manutenção de relações de saber e poder hegemônicas que
engendram subjetividades de uma comunidade heterogênea
como um projeto hegemônico em um documento oficial do
CEFET/RJ. Nosso objetivo é identificar a construção discursiva da noção de comunidade como grupo que sustenta
o discurso institucional de apoio ao projeto de transformação
em Universidade Tecnológica, considerando de que modo o
referido documento pode dar visibilidade à heterogeneidade
que constitui uma instituição na qual coexistem os níveis
médio, técnico e superior. Para tal, apresentamos uma análise discursiva do Plano de Desenvolvimento Institucional do
CEFET/RJ e, como referencial teórico, seguimos as propostas
de uma análise do discurso enunciativa, que se orienta pelas
noções de interdiscurso (MAINGUENEAU, 2005) e de
dialogismo (BAKHTIN, 2000; 2004) e pelas relações entre
poder, saber e subjetividade (FOUCAULT, 1987, 1996;
2004). Entendemos que nossas análises linguísticas remetem, no documento analisado, a duas reflexões relevantes.
A primeira é uma valorização de saberes que relacionam a
instituição a um ensino pautado na eficiência, produtividade,
organização e desenvolvimento, semelhante a qualquer empresa comercial ou industrial, que prioriza principalmente
atitudes necessárias no mercado de trabalho capitalista, e
em lugar de formação de um trabalhador, o adestramento,
a docilização de corpos que possam ser úteis ao mercado de
trabalho. A segunda seria a homogeneização da comunidade
como grupo que, mais do que sustentar PDI, respalda discursivamente o projeto de Universidade Tecnológica.
Palavras-chave: discurso institucional; ensino profissional e
tecnológico; produção de subjetividade; relações poder/saber.
Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013
As instituições federais de educação profissional de nível
médio sofreram recentemente uma reformulação. A maioria dos
Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs) e escolas técnicas foi transformada pelo governo Lula em Institutos Federais
de Educação Ciência e Tecnologia (IFETs), e apenas os três mais
antigos, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Paraná, não passaram por tal processo. O último já alcançou o nível de Universidade
Tecnológica (antes mesmo da transformação das outras unidades
em IFETs) e os dois primeiros, atualmente ainda CEFETs, pleiteiam
o mesmo, contrariando a proposta governamental dos Institutos
Federais Tecnológicos. Nesse contexto, percebemos nas políticas
públicas federais um investimento na ampliação da educação profissional e tecnológica pública realizada especialmente na criação
de Instituições de Ensino Superior que teriam, segundo o MEC,
como princípio articular as dimensões do ensino, da pesquisa e
da extensão. Dessa forma, na prática, extinguem-se instituições
que eram apenas de nível médio, que passam a funcionar como
instituições de ensino superior, com maior autonomia administrativa e pedagógica.
A complexidade desse contexto político e econômico atravessa o plano da discursividade local, materializando-se em documentos que chegam a ser exigência para o próprio funcionamento
da instituição de nível superior, como será apresentado. No caso
do CEFET/RJ, entendemos que o projeto de transformação em
Universidade Tecnológica (UT) está estrategicamente redigido
em um desses documentos, o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI).
No presente artigo, pretendemos identificar, por intermédio da análise desse PDI, a construção discursiva da noção de
comunidade como grupo que sustenta o discurso institucional
do CEFET/RJ de apoio ao projeto de transformação em UT, tendo
em vista de que modo um documento pode representar ou dar
visibilidade aos grupos e interesses que constituem os diversos
níveis de ensino aí presentes, a saber: médio, técnico e superior.
Para tal, o texto está organizado em quatro partes. A
primeira é uma breve apresentação da instituição. Na segunda,
se problematizam o seu papel e as relações de saber e poder que
a constituem. A terceira exibe o PDI e o contexto de produção
que o instituiu como documento obrigatório para instituições
de ensino superior. No quarto bloco, introduzimos o referencial
teórico-metodológico e procedemos nossas análises. E por último,
nossas considerações finais.
O CEFET/RJ: entre o profissional e o tecnológico
No que se refere à relação trabalho e educação, pode-se
afirmar que há, desde os tempos do Brasil Colônia, a preocupação com os interesses da elite e a desvalorização de qualquer
atividade relativa a trabalho. Ao longo dos anos, cada vez mais,
282
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reforça-se a ideia de que o trabalho manual está aliado ao povo,
aos desfavorecidos da fortuna, ao passo que o intelectual é reservado
aos homens de posses.
Dando um salto no tempo, é apenas no início do séc. XX
que surgem, não por acaso, políticas públicas favoráveis ao ensino técnico-profissional no Brasil, a partir do momento em que se
entende ser preciso diversificar as atividades econômicas em prol
do nosso desenvolvimento industrial. Funda-se, então, a Escola
Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Brás, para formar mão de
obra qualificada (ver BRANDÃO, 1997).
Acompanhando todas as mudanças que sabemos ter ocorrido no sistema educacional brasileiro, e após muitas denominações, chegamos ao Centro Federal de educação Tecnológica Celso
Suckow da Fonseca – CEFET/RJ, instituição atual, que se define
em sua página como um centro que:
(...) é desafiado e se desafia, permanentemente, a contribuir
no desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro e da região.
Atento às Diretrizes de Política Industrial, Tecnológica e de
Comércio Exterior do país, volta-se a uma formação profissional que deve ir ao encontro da inovação e do desenvolvimento
tecnológico, da modernização industrial e potencialização da
capacidade e escala produtiva das empresas aqui instaladas,
da inserção externa e das opções estratégicas de investimento
em atividades portadoras de futuro – sem perder de vista a
dimensão social do desenvolvimento. Assim se reafirma como
uma instituição pública que deseja continuar a formar quadros
para os setores de metalmecânica, petroquímica, energia elétrica, eletrônica, telecomunicações, informática e outros que
conformam a produção de bens e serviços no país (Disponível
em: www.portal.cefet-rj.br/a-instituicao/historico.html)
Tais palavras nos permitem compreender que a instituição
tem características bastante específicas, não se configurando como
uma instituição de ensino básico, tampouco como uma de ensino
superior. Em suma, trata-se de uma instituição atualmente tão
peculiar, que sequer pode ser chamada escola, uma vez que nela
convivem, além dos ensinos Médio e Técnico, o Ensino Superior,
com cursos de graduação e pós-graduação, lato e stricto sensu.
E é por conta dessa diversidade que recorremos a Foucault,
no intuito de melhor entender de que modo o discurso estabelece
relações de poder / saber e produz certos modos de subjetivação.
Discurso, poder e produção de subjetividade na escola
Foucault, a nosso ver, é fundamental, quando se pretende
conceber um novo modo de entender o sujeito – não como ser
pré-linguístico, mas sim constituído em meio a questões históricas, relações de poder, saberes. Foucault (1996) desenvolve ideias
acerca da relação entre as práticas discursivas e os poderes que as
atravessam, postulando a existência de diversos procedimentos
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em nossa sociedade que controlam e regulam a produção dos
discursos.
Torna-se visível a relevância da linguagem como elemento,
que, em lugar de representar, constitui uma realidade discursiva.
Como consequência, o sujeito, para o filósofo, não preexiste à sua
constituição na/pela linguagem e as subjetividades são também
resultados de operações discursivas.
Não existem, portanto, estruturas permanentes que constituem a realidade; e o discurso, como prática social, é produzido
desde relações de poder e não deve mais ser tratado como conjunto
de signos, e sim como prática, que, em lugar de representar, de
somente designar, pode construir os objetos sobre os quais fala
(FOUCAULT, 2004, p. 55).
Entendemos que devemos estar atentos a essa produção de
discursos na escola, espaço no qual a distribuição de poder e saber
é reconhecidamente desigual, além de procurar descristalizar falas que se justificam a partir de processos educativos, que, muitas
vezes, acreditamos serem inevitáveis ou naturais, quando esses
são apenas decisões que, como afirma Jardine (2007), poderiam
ter sido tomadas em outros sentidos. A escola nem sempre foi
esse modelo que disciplina, normaliza, divide e distribui tempos
e espaços, classifica, diagnostica, sanciona e o qual reproduzimos;
esse modelo é simplesmente resultado de embates de poder. Uma
escola com base na organização fabril, cujo papel transcende à
formação educacional, tem como objetivo final formar corpos
disciplinados e dóceis que não questionem e mantenham a hegemonia vigente: a do capital.
O sujeito do conhecimento constitui-se historicamente por
meio de “um discurso tomado como uma conjuntura de estratégias que fazem parte das práticas sociais” (FOUCAULT, 1996, p.
11). Com base em Nietzsche, Foucault (1987) nos faz entender que
o saber não é algo que se impõe ao sujeito, mas, ao contrário, algo
que o origina. O saber seria “aquilo que se pode falar”, o que tem
valor, ou seja, aquilo que adquiriu o status de acadêmico, científico.
Não são apenas conteúdos, mas relações de poder.
Imprescindível relacionar a questão dos saberes com a
escola, que é, por um lado, lugar fundamental para a construção
de subjetividades; e, por outro, instituição marcada e atravessada
pela configuração social. Dessa forma, reiteramos que há que se
discutir o modo como se estabelecem as relações de poder no
âmbito da escola, sempre levando em conta o lugar que ela ocupa
na configuração da sociedade atual.
Voltando à constituição peculiar da instituição CEFET/RJ,
onde saberes diversos coexistem, seria ingênuo pensar que os
docentes de níveis distintos seriam valorizados da mesma forma, ainda que muitos professores que lecionam no ensino básico
também atuem na pós-graduação, por exemplo. Mas, como nos
ensina Foucault – opondo-se à tese de que haja formas e sujeitos
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de conhecimento dados previamente, sem sofrer influências das
condições de existência sociais, políticas e econômicas, as quais
seriam simplesmente depositadas no homem –, relevante são as
práticas sociais, sendo estas o conjunto de regras tácitas que devem
ser obedecidas, que se relacionam com a constituição de domínios
de saber. Na realidade, as práticas sociais constroem os domínios
do saber, originando não só conceitos e objetos como também novas formas de sujeito. Nesse sentido, os antes valorizados saberes
relativos ao ensino profissional de nível médio passam a ceder
espaço àqueles vinculados ao ensino superior.
Outra contribuição foucaultiana relevante para nós seria a
análise da relação entre as práticas sociais de controle e vigilância
e o nascimento do poder, que permitem entender como se estabeleceu, ao longo do tempo, o nexo entre o sujeito e a constituição da
verdade. Mais especificamente, as práticas judiciárias ocidentais
no que tange ao modo de julgar o homem a partir de seus “erros”
são um modo de definir tipos de subjetividade e formas de saber,
pois originaram modelos de verdade que ainda fazem parte de
nossa sociedade em diversos domínios, na política, no comportamento diário e, também, na ordem da ciência, uma vez que:
“Até na ciência encontramos modelos de verdade cuja formação
releva das estruturas políticas que não se impõem do exterior ao
sujeito do conhecimento, mas que são, elas próprias, constitutivas
do sujeito do conhecimento” (FOUCAULT, 1996, p.27).
É a partir da reforma e da reorganização dos sistemas judiciário e penal que surge o que Foucault chama de sociedade
disciplinar: a sociedade contemporânea, que substitui o saber de
inquérito por um saber de “vigilância”, na qual vivemos até hoje
e do qual a escola é um exemplo.
No próximo item apresentamos nosso córpus que, em nosso
entendimento, é exemplar da sociedade disciplinar, proposta por
Foucault.
O PDI: um breve histórico
Nos anos 90, como resultado de conceitos econômicos deslocados para a área educacional, difunde-se cada vez mais a ideia de
que tudo pode e deve ser avaliado com o objetivo de melhorar a
qualidade do que é produzido. Nesse sentido, é preciso controlar
as instituições, e a LDB 9.394/96 legitima o já existente controle
burocrático sobre as instituições educacionais, incluídos nestas
professores, técnico-administrativos e alunos.
Em meio a esse contexto e como exemplificação de referido
controle, origina-se o PDI, a partir de duas atribuições definidas
na LDB de competência do MEC: o credenciamento e a avaliação institucional. Suas devidas regulamentações, contudo, são
postergadas, uma vez que o plano passa a figurar no cenário nacional somente em julho de 2001, ao tornar-se um dos elementos
obrigatórios dos processos de credenciamento das Instituições de
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Ensino Superior (IES), além de um dos itens a ser considerado na
avaliação institucional.
Em março de 2002, por meio de uma resolução do CNE,
outorga-se mais poder ao plano, que passa a ser obrigatório para
o protocolo de autorização de cursos e de credenciamento de IES
(SEGENREICH, 2005, p. 152).
Em 2002 são publicadas pelo MEC as Diretrizes para Elaboração do PDI, com o objetivo de dirimir quaisquer dúvidas
com relação ao plano e servir como diretriz para sua elaboração.
Segundo Segenreich, no entanto, essas diretrizes têm como real
propósito:
[...] sacramentar o enfoque ‘credencialista’ conferido ao PDI na
Resolução 10/2002 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO,
2002). Tendo em vista a natureza normativa do documento, ele
é uma boa fonte para avaliar o papel que o MEC espera que
o PDI desempenhe dentro e fora da instituição universitária.
(SEGENREICH, 2005, p. 153)
No mesmo ano, por meio da publicação de uma resolução
reforça-se a ideia do PDI como instrumento de planejamento e
avaliação ao estabelecer a obrigatoriedade geral de recredenciamento das universidades e IES do país, tornando-se o plano o
centro da avaliação para o dito recredenciamento.
Esse pequeno histórico permite identificar uma contradição
entre o documento que deveria ser uma referência de fato para a
avaliação institucional numa perspectiva formativa e o documento
que passa a ser condição para o credenciamento/recredenciamento das Instituições de Ensino Superior, servindo, a nosso ver, mais
como instrumento de controle, do que como diretriz.
Em 2004, por força de lei, reforça-se a ideia do PDI como
instrumento de controle, já que esse passa uma das etapas
obrigatórias para garantir a uma instituição seu status de nível
superior.
Em 2006, dispõe-se, por intermédio de decreto, acerca do
exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação de
instituições de ensino superior e cursos superiores de graduação,
além de, no sistema federal de ensino, exigir-se uma nova adequação dos procedimentos de elaboração e análise do PDI, que
passa, então, a ser regulamentado.
Desse modo, consiste num documento em que se definem
a missão da instituição de Ensino Superior e as estratégias para
atingir suas metas e objetivos, pautados em indicadores de desempenho. Ou seja, trata-se, em resumo, de um instrumento legal
para a aferição da qualidade da gestão; um plano estratégico.
É, portanto, como já visto, referência para qualquer critério
ou processo de avaliação relativa a Instituições de Ensino Superior e, mais: uma exigência para que elas existam e se instituam
como tal.
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Pode-se entender o PDI como resultado concreto e efetivo de
uma política; um documento que não surge ao acaso, mas que, de
fato, representa uma política de avaliações relacionada à tendência
de aplicar a todas as instituições os mesmos princípios e métodos
administrativos do mundo empresarial, em consonância com as
políticas públicas que vêm sendo adotadas no país.
E assim, em meio a tantos discursos que se produzem pela
e na comunidade CEFET/RJ, por grupos diversos, surge um
documento privilegiado para, de certa forma, constituir discursivamente o que a instituição é ou pretende ser. Um documento
elaborado exatamente com o objetivo de falar por essa comunidade – em que coexistem os ensinos Médio, Técnico e Superior,
além de docentes que atuam ora no Médio e no Superior, ora no
Técnico e no Superior, ora nos três níveis – a partir do ponto de
vista do Ensino Superior.
O CEFET/RJ elaborou, até o momento, dois PDI: o primeiro
referente ao período de 2005-2009 e o segundo ao de 2010-2014.
Nossas análises se baseiam na versão impressa do segundo PDI,
que está em vigor, por ter sido essa a distribuída aos servidores
de todas as unidades, garantindo maior circulação dentro da
instituição.
Passamos agora às considerações de ordem teórica e metodológica, no que tange à opção por uma perspectiva discursiva
de análise dos enunciados do PDI do CEFET/RJ.
Dialogismo e interdiscurso: por uma semântica
da resistência no discurso e nos grupos sociais
Buscando dar visibilidade ao papel da linguagem na
construção de sentidos sobre a escola e seus atores em um texto
institucional, recorremos a uma perspectiva discursiva de cunho
sócio-histórico (BAKHTIN, 2000; 2004) e enunciativo (MAINGUENEAU, 2005; 2002).
Bakhtin (2000) nos ensina que os discursos envolvem a
relação sujeito-linguagem numa determinada situação de comunicação, isto é, remetem ao diálogo entre interlocutores e entre
discursos e compreendem a interação como ação inerente às
práticas sociais; práticas essas sempre situadas em determinado
contexto histórico e social e sujeitas a diversas coerções.
O autor prescreve que todo discurso é dialógico, construído tendo como base outro discurso, pelo qual, por conseguinte,
é atravessado e cujas marcas carrega. Os sentidos não devem
ser entendidos como estáveis ou preestabelecidos dentro de um
enunciado, uma vez que este, unidade real da comunicação, atualiza-se a cada relação que se estabelece entre os interlocutores. E
é no cruzamento de enunciados que se preserva a memória social. Em sendo assim, todo discurso é construído tomando como
base um Outro, e suas marcas nos permitem um acesso a outras
enunciações.
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Nesse sentido, a proposta de Maingueneau (2005) sobre o
primado do conceito de interdiscurso é também relevante para o
objetivo da pesquisa. O autor entende que qualquer prática discursiva se deve considerar a partir da alteridade, pois qualquer
que seja a identidade que um discurso possa assumir, ela é sempre
indissociável de seu Outro.
Visando operacionalizar a noção de interdiscurso, o autor
propõe uma tripartição conceitual: universo discursivo, campo
discursivo e espaço discursivo. Como afirma, estas não são unidades preestabelecidas e estáveis, e sim uma abstração conceitual.
O universo discursivo compreende o conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem em uma dada
conjuntura. Devido à sua grande extensão, Maingueneau afirma
que esse é pouco útil ao analista e constitui apenas possibilidade
de domínios a serem estudados. Neste artigo seriam todas as
formações discursivas que atuaram e atuam na constituição de
discursos da e sobre a educação.
Já campos discursivos são o conjunto de formações discursivas em concorrência – enfrentamento aberto, aliança, indiferença
aparente, por exemplo, – entre discursos que possuam a mesma
função social e que divirjam em relação à maneira de exercê-la.
Os diferentes discursos sobre o papel da escola técnica, sobre o
ensino profissionalizante ou sobre a educação tecnológica são
exemplos de campos discursivos.
Finalmente, espaços discursivos são subconjuntos de formações discursivas cuja inter-relação é relevante para a análise. É o
recorte que resulta das hipóteses fundadas no conhecimento dos
textos e da história destes, que serão confirmadas ou rejeitadas
no decorrer da pesquisa. Cabe acrescentar que a configuração do
espaço discursivo deve ser assumida pelo pesquisador e, portanto,
este deve explicitar os critérios que legitimam essa escolha.
É essa visão que norteia a seleção dos enunciados analisados
neste artigo e de outros que constituíram o córpus da pesquisa.
Buscamos observar de que modo se constroem os discursos em
um documento institucional e, para tal, como os efeitos de sentido
produzidos têm a ver com o lugar sócio-histórico de onde o tema
é falado e o modo como é falado. Para este artigo, foram selecionados os enunciados que fazem referência, pelo uso do termo
“comunidade”, a um grupo de indivíduos que atuam verbalmente
na sustentação do discurso institucional em questão.
Sabe-se que o que constitui efetivamente uma comunidade
são os discursos que ela produz, por conseguinte nenhuma instituição pode existir enquanto tal sem produzir discursos, que a
atravessem e a constituam. Assim, a partir de uma perspectiva
discursiva, é certo que se deve compreender o PDI como discurso
em meio a seu contexto de produção e, como afirmam Rodrigues
e Rocha (2010, p. 207):
288
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[...] observar como os discursos estão-se construindo requer
que os tomemos como um modo de apropriação da linguagem socialmente constituído. Sendo assim, mais do que com
o conteúdo temático, os efeitos de sentido que se produzem
têm a ver com o lugar sócio-histórico de onde o tema é falado e, consequentemente, com o modo pelo qual ele é falado.
Trata-se de uma complexidade que só faz ratificar um modo
de funcionamento discursivo compatível com os princípios de
uma semântica global. (RODRIGUES; ROCHA, 2010, p. 207)
Nossa aposta é que, se existe um discurso que enuncia a
partir do CEFET/RJ, Instituição de Ensino Superior, esse discurso
não pode ser homogêneo e representar um único ponto de vista.
Acreditamos, portanto, que seja possível identificar ao menos dois
sujeitos que falem de lugares sócio-históricos, se não opostos, pelo
menos distintos. Mesmo porque nenhum enunciador enuncia
sozinho, sempre se podem identificar outras vozes, pela presença
ou pelo apagamento.
A escolha da designação “comunidade” como modo de entrada no texto, então, é responsiva a uma dupla compreensão. Por
um lado, o fato mesmo de o discurso implicar necessariamente
a organização social de comunidades discursivas (MAINGUENEAU, 2005), ou seja, ele é elemento constitutivo dessa organização, na qual os sujeitos discursivos são produzidos ao mesmo tempo em que produzem textos. Por outro, o vocabulário constitui na
perspectiva de uma semântica global um dos planos que integra
a produção de sentido nos enunciados (MAINGUENEAU, 2005).
Destacamos que nos interessa a possibilidade de uma mesma unidade lexical ser explorada semanticamente no plano do
discurso de modos distintos por diferentes formações discursivas,
isto é, de uma mesma palavra designar, e assim, produzir diferentes referentes, ainda que no mesmo texto.
Nesse sentido, pretendemos reconhecer possíveis pontos
de controvérsia, outras vozes enunciadas ao longo do documento
que nos permitam melhor compreender a comunidade construída discursivamente no documento, desde os efeitos de sentido
que nele se produzem, uma vez que acreditamos, como Rocha
(2003, p. 202), na “possibilidade de o Mesmo já se constituir em
pista para localizar o Outro (nos pequenos deslizamentos que se
verificam)”. Para tal, destacamos os enunciados nos quais o termo
“comunidade” atua como sujeito de ações que possuem um traço
semântico dicendi, seja uma fala mais explícita ou uma ação que
implica indiretamente uma fala.
O termo “comunidade” aparece pela primeira vez na apresentação do PDI em dois momentos:
Este Plano de Desenvolvimento Institucional do Centro Federal
de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET/
RJ para o período 2010-2014, aprovado pelo Conselho Diretor
na Sessão Extraordinária de 16 de dezembro de 2010, ao expressar avanço em relação às diretrizes estabelecidas no PDI
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2005-2009 apresentado ao Ministério da Educação com base no
novo estatuto do Centro e na organização acadêmica atinentes
aos Decretos 5.224 e 5.225, de 1o de outubro de 2004, reflete o
posicionamento da comunidade interna no sentido de assumir
a continuidade de uma trajetória de formação que congrega o
desenvolvimento da educação tecnológica nas dimensões de
ensino, pesquisa e extensão.
Todo PDI traz desafios àqueles que se constituem como
agentes e beneficiários do projeto nele presente. No caso de
uma instituição de educação tecnológica, sua comunidade
acadêmica – docentes, técnicos-administrativos e alunos – e
a sociedade – aí compreendidos diferentes grupos sociais, o
mundo produtivo e o poder público constituído.
Apesar de o segundo enunciado explicitar a constituição
dessa comunidade “docentes, técnicos-administrativos [sic] e alunos”, outorga ao referente uma unicidade, uma homogeneidade no
mínimo questionável, principalmente porque, como já afirmamos,
se existe um discurso que enuncia a partir do CEFET/RJ, esse não
pode ser homogêneo e representar um único ponto de vista. Mesmo porque nenhum discurso poderia. É, a nosso ver, no mínimo,
redutor afirmar que, dentro do quadro heterogêneo que constitui
essa ou qualquer instituição, existe uma comunidade homogênea
que assume um movimento em nome do Ensino Superior.
Retomamos o fragmento que define “comunidade acadêmica” sobre o qual devem ser tecidas ainda algumas considerações.
A primeira sobre a definição de agentes e beneficiários de uma
instituição de educação tecnológica. Se “Todo PDI traz desafios
àqueles que se constituem como agentes e beneficiários do projeto
nele presente” e é necessário indicar quais são os agentes e beneficiários nessas instituições, é porque tais agentes e beneficiários
são particulares. Os agentes seriam a comunidade acadêmica
específica da instituição e no que se refere à sociedade – que
cumpriria o papel do beneficiário – são especificados “diferentes
grupos sociais, o mundo produtivo e o poder público constituído”.
Entendemos que, pela indefinição presente em “grupos sociais
diversos” e pela impossibilidade de se vincular o “poder público
constituído” a apenas um segmento das instituições públicas
educacionais, estabelece-se um laço específico entre a instituição
de educação tecnológica e o mundo da produção, que não estaria
dado, não seria óbvio ou natural, mas que, inegavelmente, representa um laço que vem se construindo ao longo da história do
nosso ensino profissional.
Percebemos que o ponto crucial gira em torno da questão da
identificação do grupo ou dos grupos que discursivamente dão
sustentação ao discurso do PDI. Para tal, identificamos, em um
primeiro momento, duas designações que poderiam contribuir
com esse processo: Comunidade e CEFET/RJ. Uma leitura detida
do documento nos possibilita identificar traços que as distinguem.
290
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Enquanto ao CEFET/RJ se atribuía no plano uma identidade
aparentemente individualizada de caráter institucional, a comunidade é identificada com diferentes grupos (docentes, técnico-administrativos e discentes) e muitas vezes colocada no mesmo
nível da comunidade externa. Há, assim, uma oposição entre o
lugar da instituição e o daqueles que a constituem, justificando
nossa opção por centrar as análises no termo comunidade com o
objetivo de identificar, no PDI em nome de quem se fala, quando
se fala da comunidade do CEFET/RJ, ainda que não pensemos ser
coerente essa cisão entre um lugar institucional e a comunidade
formada por aqueles que constituem os coletivos que a ocupam.
Fragmento 1
Fragmento
Termo dicendi
No exercício cotidiano de sua atuação, tal intenção im- apontadas
plica prosseguir em:
diálogo
- investir permanentemente nas dimensões quantita- debatidas
tiva e qualitativa dos projetos de ensino, pesquisa e
extensão, levando em conta o contexto de desenvolvimento e demandas apontadas no diálogo com atores
sociais e debatidas com a comunidade interna; (p. 15)
No primeiro fragmento, o enunciador do documento, ao
reforçar a continuidade das ações que já são executadas no âmbito
da instituição, a fim da ter “sua institucionalidade reconhecida
como Universidade Tecnológica” (CEFET, 2010, p. 15), atribui ao
CEFET/RJ o investimento permanente nas três dimensões de ensino, pesquisa e extensão. Leva em consideração, para isso, duas
ordens de coisas estabelecidas: o contexto de desenvolvimento e
as demandas.
Uma vez que não fica claro, a partir da leitura do texto,
a que contexto se refere, passamos às considerações acerca das
demandas, “apontadas” a partir do “diálogo” com atores sociais,
que devem ser “debatidas” com a “comunidade” do CEFET/RJ.
Com relação à questão da demanda, entendemos haver
no enunciado uma divisão em dois momentos, de diálogo e debate, nos quais os participantes são distintos. Faz-se, portanto,
necessário perguntar quem seriam esses atores sociais ou, mais
relevante, por que a comunidade interna é excluída deste grupo.
Enquanto os que atuam socialmente determinam quais são suas
demandas, a comunidade interna desempenha o papel operacional de debater modos de encaminhamento dessa demanda.
Desse modo, apesar de o uso de termos como “diálogo” e
“debate” apontar para uma equivalência entre ações ou posicionamentos sociais, identifica-se na materialidade linguística a oposição que dá sustentação à visão taylorista de trabalho, por meio da
qual o “mundo produtivo” pensa quais são as suas necessidades,
restando à instituição formadora de mão de obra executar a tarefa
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291
de operacionalizar meios de atendê-las. Interessante notar que, ao
contrário do que pode parecer, a ação de debater no enunciado
em questão está subordinada à ação de dialogar, já que o debate
realizado pela “comunidade interna” se realiza a partir do que já
fora estabelecido no diálogo com os “atores sociais”.
Sendo assim, esse falar nada mais é do que atender à vontade do outro, que não é a própria comunidade interna, que, nesse
momento, tem a função de servir à externa ou pelo menos à sua
parte significativa: o “mundo produtivo”.
Fragmento 2
Fragmento
Termo dicendi
[...] reflete o posicionamento da comunidade interna reflete
no sentido de assumir a continuidade de uma trajetó- posicionamento
ria de formação que congrega o desenvolvimento da
educação tecnológica nas dimensões de ensino, pesquisa e extensão. (p. 5)
No fragmento 2, constrói-se discursivamente uma ação a
partir de um “posicionamento” tomado pela “comunidade interna” que assume “a continuidade de uma trajetória de formação
que congrega o desenvolvimento da educação tecnológica nas
dimensões de ensino, pesquisa e extensão”.
Analisando o caráter dicendi do verbo “refletir” e do substantivo “posicionamento”, concluímos que é preciso identificar uma
voz que tenha sustentado um posicionamento e qual foi esse posicionamento para que o mesmo esteja sendo refletido no discurso
institucional. Identifica-se, assim, uma construção semelhante à
noção de discurso narrativizado proposto por Sant’Anna (2004),
segundo a qual há o apagamento de alguns dos constituintes da
enunciação relatada.
Conforme a autora, no discurso narrativizado presente no
gênero notícia apagam-se as referências de coenunciadores, de
tempo e de lugar e de como o enunciador-jornalista haveria tido
acesso às informações que relata. Apenas é possível verificar a
existência de uma enunciação anterior por meio da presença
de um termo de “força dicendi” que, no entanto, não esclarece o
contexto dessa enunciação. Já no caso identificado no PDI, não são
os coenunciadores e o contexto espaço-temporal que se apagam,
mas sim o dito. É possível identificar um enunciador, a “comunidade interna”, e um termo dicendi, o “posicionamento”, mas não
aquilo que efetivamente foi dito para garanti-lo.
O efeito produzido pelo apagamento da voz da comunidade
interna faz crer na homogeneidade de sua opinião. Desse modo,
o enunciador do PDI estabelece uma aliança entre o discurso
institucional e o discurso da comunidade interna explicitada pelo
verbo “assumir”, garantindo respaldo ao projeto do PDI.
292
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Fragmento 3
Termo dicendi
Fragmento
Desejava-se o reconhecimento externo do Centro concepção
como Instituição de Ensino Superior, com ciência da decisões
importância da manutenção e crescimento dos cursos
técnicos de nível médio, já firmemente estabelecidos.
Desde então, como atestam a produção e a divulgação
de documentos e eventos que materializam a concepção e as decisões da comunidade sobre o tema, a Instituição aguarda o encaminhamento do MEC ao pleito
apresentado oficialmente mediante exposição de motivos e projetos, notadamente em dezembro de 2005,
setembro de 2007 e abril de 2009. (p. 18)
As mesmas considerações poderiam ser feitas no fragmento
3, com relação às decisões tomadas pela comunidade. Constrói-se
a imagem da “comunidade” como sujeito que “concebe” e “decide”,
ou seja, atua discursivamente, mas se apaga novamente aquilo
que foi dito, ficando apenas a lógica da aliança com o discurso
institucional. Nele também é reforçada a oposição entre a “instituição”, no papel de enunciador do PDI, e a “comunidade”, ambos
os sujeitos distintos e independentes, já que a cada um cabem
diferentes ações.
Considerando a diversidade do quadro docente e discente
da instituição (indiscutivelmente a maioria atuando no Ensino Básico), parece pouco crível o consenso no que se refere ao reconhecimento externo do centro como Instituição de Ensino Superior,
já que isso seria desconhecer ou não reconhecer a comunidade
pragmática da qual se faz parte.
Fragmento 4
Fragmento
Termo dicendi
As orientações internas da proposta de adesão ao apreciadas
REUNI, apreciadas na comunidade e referendadas
pelo Conselho Diretor, fortalecem e atualizam objetivos, estratégias e ações constantes deste Plano de Desenvolvimento Institucional, levando em conta que as
diretrizes gerais desse Programa guardam consonância com o projeto de Universidade Tecnológica que articula níveis de ensino e integra atividades de ensino,
pesquisa e extensão. (p. 26)
Relevante no fragmento 4, uma vez mais, a separação entre
comunidade e dimensão institucional, nesse caso o Conselho
Diretor. A primeira aprecia, enquanto o segundo referenda. A
nosso ver, ou está omissa a ação de aprovar a proposta de adesão
ao REUNI ou o Conselho Diretor, em lugar de referendar, apenas
aprovou, sem que a comunidade tomasse uma decisão sobre o
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tema, visto que o verbo “referendar”, dentro desse contexto específico, apontaria para o ato de aceitar algo que já foi previamente
aprovado por outrem. Uma vez mais, se fala de comunidade em
um projeto que apenas contempla o Ensino Superior. Além disso,
a ação atribuída à comunidade, “apreciar”, destaca apenas uma
tomada de consciência e não um posicionamento efetivo.
Fragmento 5
Termo dicendi
Fragmento
Investir nas ações de extensão já existentes e reconheci- reconhecidas
das pela comunidade interna e externa (p. 51)
No fragmento 5, a comunidade interna é colocada em posição análoga à externa quanto ao papel de “reconhecer” ações
de extensão já existentes no CEFET/RJ. O verbo de traço dicendi
“reconhecer” indica um posicionamento passivo da comunidade
em relação a uma ação ativa, a de investir, realizada por um sujeito
que não é referenciado, mas que pode ser vinculado à instituição,
já que o PDI é um discurso institucional.
Fragmento 6
Fragmento
Termo dicendi
Apoiar a comunidade interna na elaboração de pro- elaboração
jetos a serem desenvolvidos mediante financiamento
externo (p. 70)
Já no fragmento 6, a comunidade interna é construída
como aquela que elabora projetos. Não obstante, o que parece ser
uma ação efetiva de autonomia, na verdade, passa distante das
atividades de planejamento da instituição, uma vez que a comunidade precisa ser apoiada na realização dessa ação, ainda que
não se explicite por quem. Parece que a questão a ser destacada é
o interesse que demonstra o enunciador institucional nos financiamentos externos de projetos, já que são eles que garantem as
verbas que, além de dar destaque à instituição por sua atuação,
propiciam a ampliação de condições de infraestrutura, de compra
de materiais, livros e equipamentos.
No que tange ao fragmento 7, asseveramos que a aparente
forma ativa presente no ato de “avaliar” que se atribui discursivamente à comunidade não se sustenta a partir do momento em
que serão avaliados “objetivos, estratégias e ações” de um PDI que
já possui, pelo menos no plano discursivo, o pleno apoio dessa
comunidade.
294
Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013
Fragmento 7
Termo dicendi
Fragmento
Em consonância com a diretriz de democratização do avaliados
planejamento, gestão e avaliação institucional, este
PDI deverá ter seus objetivos, estratégias e ações permanentemente acompanhados e avaliados pela comunidade do Centro, ensejando planos plurianuais
e operacionais específicos para efetivação das metas
estabelecidas. Nos planos operacionais serão consideradas as prioridades e definida a programação associada à disponibilização de recursos.
Em resumo, se relacionamos as considerações feitas ao longo das análises, pode-se entender comunidade, como um sujeito
homogêneo, a quem são atribuídas, em geral, tarefas de execução,
distantes do planejamento da instituição. À comunidade interna
cabe pensar um modo de encaminhar a realização das demandas
da comunidade externa, representada pela figura do “mundo
produtivo”. Pensar cabe àqueles órgãos e Setores Institucionais
que são designados separadamente e, em oposição à comunidade
acadêmica, àqueles que certamente encabeçam a hierarquia do
Organograma.
No próximo item serão apresentadas as considerações finais
de nosso artigo.
Breves considerações finais
Tomando como base a relação poder/saber proposta por
Foucault (2004), fazem-se necessários questionamentos acerca da
valorização de determinados saberes em detrimento de outros,
que propiciam em um determinado momento, por meio de uma
imposição institucional, a substituição de uma lógica histórica e
socialmente construída, que valoriza os ensinos Técnico e Médio, por outra que opta pelo ensino Superior como identidade
institucional. Ainda que os primeiros possuam maior número de
alunos, de docentes, além de maior reconhecimento social, pois é
inegável que, quando se fala em CEFET/RJ, ainda “a antiga Escola
Técnica”, entra em cena o ensino de nível Médio e não o Superior.
Nossas análises linguístico-discursivas apontam a valorização de saberes que relacionam uma instituição de ensino à eficiência, produtividade, organização e desenvolvimento, que deve
funcionar de forma semelhante a qualquer empresa comercial
ou industrial. Valores que implicam uma formação que prioriza
não só habilidade, mas principalmente atitudes necessárias ao
mercado de trabalho capitalista. Em lugar de formação de um
trabalhador, o adestramento, a docilização de corpos úteis ao
mercado de trabalho. E, para tal modo de funcionamento, é funNiterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013
295
damental entender a comunidade como massa homogênea, que
aceita e não questiona, que executa e não formula.
Para concluir, entendemos que em uma instituição peculiar
que se pretende uma universidade tecnológica, na qual convivem níveis de ensino diversos, mesmo em um documento que
se enuncie a partir do ponto de vista do Ensino Superior, seria
possível identificar diferentes vozes e posicionamentos por meio
de marcas explícitas de heterogeneidade. Entretanto, por mais
que, reiteradamente, a comunidade seja dividida entre docentes,
técnico-administrativos e discentes, é tratada como uma unidade, massa homogênea a quem só se atribuem ações para dar
sustentação a projetos alheios. Uma comunidade única oposta,
discursivamente, à figura da instituição CEFET/RJ.
Abstract
Considering the ongoing changes within the federal organization of professional and technological
education, this paper aims at discussing the role
of discourse as a mechanism of production and
maintenance of knowledge and power hegemonic
relationships that engender subjectivities in a
heterogeneous community as a hegemonic project
in an official document from CEFET/RJ. Our
goal is to identify the discursive construction of
the notion of community, in the sense of a group
which holds the discourse that supports the project
of institutional transformation from CEFET/RJ
to Technological University, considering the way
that the document brings visibility to heterogeneity in that institution, in which coexist different
levels as high school, technical and graduation
as well. To accomplish this task we performed an
analysis of CEFET’s Institutional Development
Plan. As the theoretical framework is proposed
an enunciative discourse analysis, based on the
notions of interdiscourse (MAINGUENEAU,
2005), dialogism (BAKHTIN, 2000, 2004) and
the relationship among power, knowledge and
subjectivity (FOUCAULT, 1987, 1996, 2004).
The linguistic analysis leads to a couple of relevant reflections: the first one relates teaching to
efficiency, productivity, organization and development as it is the case of any capitalist enterprise
where, instead of training the worker, inputs
docilization of bodies that may be useful to the
market; the second would be the homogenization
of the community as a group, that not only sus296
Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013
tains PDI but also provides discursive support to
the Technological University project.
Keywords: institutional discourse; technological
and professional education; subjectivity production; relationship power/knowledge.
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298
Niterói, n. 34, p. 281-298, 1. sem. 2013
O significado acional no discurso
da Constituição Brasileira:
o gênero discursivo normativo
constitucional em questão
Ruberval Ferreira (UECE)
Maria Clara Gomes Mathias (UECE)
Resumo
O estudo aqui proposto volta-se para a construção
do gênero discursivo jurídico-normativo constitucional, a partir de sua dimensão ideológica,
procurando compreender como o emprego de
formas linguísticas particulares contribui para
o estabelecimento e a sustentação de relações de
dominação no interior do discurso e fora dele
(THOMPSON, 2009). Toma-se como referencial
teórico a compreensão da ADC do discurso como
um momento de práticas sociais, dialeticamente
interconectado com outros elementos. Além da
ADC, o presente estudo procura desenvolver um
diálogo transdisciplinar com a pesquisa histórica do contexto em que foi gestada nossa atual
Carta Magna, com o Direito Constitucional e a
Teoria Geral do Estado, notadamente no que toca
ao valor social e jurídico das constituições na
contemporaneidade. Para a operacionalização da
análise ora desenvolvida, tomamos como instância
discursiva de análise a Constituição Federal de
1988, diploma normativo que inaugura o Estado
de direito brasileiro, assim como adotamos como
referência a discussão que Fairclough (2003) faz
sobre a noção de significado acional e a categoria
analítica estrutura genérica.
Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica,
significado acional, estrutura genérica, Constituição Federal.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
Introdução
A história das formações sociais é marcada por tensões,
conflitos e confrontos de forças ou vontades de diversas ordens que
configuram um mosaico de antagonismos sociais extremamente
complexo. É uma história de lutas sustentadas por estratégias
de linguagem que instauram ordens postas como necessárias e
que raramente têm sua dimensão ético-política problematizada
(FERREIRA, 2007). A Constituição brasileira é exemplo de um
empreendimento discursivo que tem sua história fundada nessas
mesmas tensões, que são sempre materializadas na linguagem.
O estudo aqui proposto volta-se para a construção do gênero
discursivo jurídico-normativo constitucional, a partir de sua dimensão ideológica, procurando compreender como o emprego de
formas linguísticas particulares contribui para o estabelecimento
e para a sustentação de relações de dominação no interior do discurso e fora dele (THOMPSON, 2009). Para tanto, tomamos como
instância discursiva de análise a Constituição Federal de 1988,
diploma normativo que inaugura o Estado de direito brasileiro,
por meio da fixação de uma ordem simultaneamente jurídica,
discursiva e sociológica.
Nesse contexto, a perspectiva particular do discurso oferecida pela Análise de Discurso Crítica – ADC, em sua vertente mais
proeminente, a Teoria Social do Discurso, de Norman Fairclough
(2001; 2003), oferece elementos interessantes para pensarmos
o objeto em questão. Toma-se como referencial teórico a compreensão da ADC do discurso como um momento de práticas
sociais, dialeticamente interconectado com outros elementos.
Partindo do paradigma funcionalista da linguagem, Fairclough
(2003) postula que o discurso figura no interior das práticas sociais
de três maneiras distintas, como formas de agir, como formas
de representar e como formas de ser. Fornece, por essa via, um
modelo de análise a partir de três tipos de significados – acional,
representacional e identificacional. Para a operacionalização da
análise ora desenvolvida, adotamos como referência a discussão
que Fairclough (2003) faz sobre a noção de significado acional e a
categoria analítica estrutura genérica.
Além da ADC, o presente estudo procura desenvolver um
diálogo transdisciplinar com a pesquisa histórica do contexto em
que foi gestada nossa atual Carta Magna, com o Direito Constitucional e a Teoria Geral do Estado, notadamente no que toca ao
valor social e jurídico das constituições na contemporaneidade,
assim como no que diz respeito a uma concepção culturalista da
Constituição e do Estado, entendendo que o direito é fenômeno
social e é norma. Impossível é a pretensão de separar um do outro
(REALE, 2010, p. 7).
300
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
O contexto histórico da década de 1980
e a Constituinte de 1988
Muitos historiadores situam, na década de 1980, um estágio
de transformações geopolíticas profundas vivenciadas pelo mundo, ocasionando uma mudança de época. Pode-se dizer que, ao
longo desta década, atingiu seu ápice um longo processo, que se
estendeu desde o pós-guerra, de superação da idade industrial
e início da era da informação ou pós-industrial. O modo de produção capitalista adquiriu um novo rosto, procurando conciliar
o ímpeto voraz do mercado em meio às novas demandas do
intercâmbio entre nações, com os anseios sociais e com a necessidade de um controle, mesmo que mínimo, do Estado sobre a
economia. Todo este contexto produziu reflexos profundos sobre
a sociedade brasileira.
Durante esta década, o Brasil busca acompanhar a tendência de proliferação de governos neoliberais vivenciada em todo o
mundo. Esse direcionamento econômico, que se inicia ainda no
período ditatorial, se estenderá durante o processo de redemocratização e será um fator fortemente determinante para a conformação
da nova ordem jurídica inaugurada no Brasil com a promulgação
da Constituição de 1988, notadamente no que diz respeito à ordem
econômica e financeira adotada pelo Estado brasileiro.
Justamente por ser um período de superação de uma duradoura ditadura, o anseio por participação nos rumos do país era
muito sentido em toda a nação. Nesse ínterim, a população foi
mobilizada a interferir nos destinos do Estado. Um movimento
emblemático do engajamento político popular que marcou a década de 1980 foi o chamado movimento das “diretas já”. O povo
brasileiro foi às ruas, em 1984, para exigir a volta das eleições
diretas para presidente.
Dentro desse contexto de intensas transformações e de forte
apelo popular, configurou-se o ambiente político-jurídico que deu
origem à Assembleia Nacional Constituinte de 1987, nascedouro
da Constituição Federal promulgada em 1988. As atenções e esperanças dos brasileiros voltaram-se para esse momento histórico
de instituição de uma nova ordem jurídico-constitucional no país.
Havia um desejo de que ela não só fixasse os direitos dos cidadãos
e os institutos básicos da nação, mas também fosse a fonte para
solução de uma série de problemas que marcavam a sociedade
brasileira àquela época e que estavam, contudo, muito fora do
alcance das matérias de uma Constituição (FAUSTO, 2008, p. 288).
Jorge Miranda, notável constitucionalista português, ao
elaborar um extenso histórico dos sistemas constitucionais mais
proeminentes de todo o mundo, dedica uma seção do seu estudo
ao constitucionalismo brasileiro. Esse autor, ao fazer sua análise
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
301
da evolução histórica das constituições brasileiras, afirma que o
período que se estende desde 1930 até a Constituição atual apresenta algumas notas características, alguns traços essenciais, que
o autor reúne em três grandes aspectos: 1) evolução com soluções
de continuidade e com frequentes crises político-militares; 2)
sucessão, quase alternância de governos autoritários e de governos liberais e democráticos; e 3) proliferação de constituições (5
constituições desde 1934, contra 2 apenas desde a independência
até este ano) (MIRANDA, 2002, p. 148).
De fato, a história do surgimento do poder constituinte originário, isto é, da necessidade de imposição de uma nova ordem
constitucional, vem sendo acompanhada por quadros de grande
turbulência, que trazem consigo a marca das revoluções. O Brasil,
na condição de um país de dimensões continentais, que teve sua
formação étnica e cultural marcada por intensa miscigenação,
assim como uma formação política e econômica fincada numa
posição de subordinação e dependência (seja do ponto de vista da
colonização, seja no âmbito do subdesenvolvimento), não poderia
ter o histórico de sua formação jurídico-normativa constitucional
isenta dos influxos da complexidade social que o caracteriza
historicamente.
Esta constatação traz, de imediato, uma importante consequência para a análise que propomos no presente trabalho. Se
todos os atos políticos e jurídicos, porque linguísticos, comportam (ou até mesmo exigem) uma abordagem crítica que leve
em consideração sua dimensão ético-política, tanto mais o será
a Carta Magna de 1988. Isso porque esse documento de índole
normativa de status superior possui como traço marcante de sua
formação, conforme o percurso histórico aqui apontado procurou
demonstrar, o confronto de forças e vontades opostas, a presença
de disputas por poder fincadas em realidades históricas, enfim, a
luta pela hegemonia dos sentidos (FERREIRA, 2007).
Ela pode ser considerada, portanto, uma produção cultural,
tanto quanto a decisão política fundamental, que se consubstancia
em texto e que atribui fundamento de validade para as demais
normas do ordenamento jurídico. Uma das justificativas para a
necessidade de uma incursão pela história diz respeito ao interesse
de se afirmar, neste trabalho, a dimensão sociológica, culturalista
e histórica do discurso jurídico-normativo, dos textos de lei. Todos
eles, ao mobilizarem sentidos, ingressam na perigosa trama do
discurso e se inscrevem no fluxo da luta hegemônica ou das lutas
por representações.
Breves considerações sobre o valor social
e jurídico das constituições
Segundo Bonavides (2001, p. 205): “o poder constituinte é
essencialmente um poder de natureza política e filosófica, vinculado ao conceito de legitimidade imperante numa determinada
302
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
época”. As constituições tais como as conhecemos hoje surgem
enquanto fruto de uma reivindicação revolucionária principalmente da classe burguesa, no século XVIII, para reposicionar esta
legitimidade de que fala Bonavides − legitimidade de “constituir”
e dar as feições do Estado-nação. Para a burguesia, essa legitimação situava-se não mais nas duas titularidades clássicas – a
divina e a monárquica –, mas deveria ser entregue à nação, em
um primeiro momento, e ao povo, posteriormente, com o advento
das sociedades democráticas.
Para o constitucionalismo moderno, o chamado neoconstitucionalismo, a Constituição nas sociedades contemporâneas
assume um valor normativo supremo, um status de superioridade,
que não consiste em uma “verdade” inerente às constituições,
mas sim em um valor social, político e ideológico, construto moldado na história de sua evolução, pelo empenho em aperfeiçoar
os meios de controle do poder, em prol do aprimoramento dos
suportes da convivência social e política. No presente da história,
pode-se falar em superioridade constitucional, subordinação a
ela de todos os poderes por ela constituídos, o que se manifesta
exemplarmente nos mecanismos atuais de controle de constitucionalidade (MENDES & BRANCO, 2011, p. 61).
Não se tolera a produção de norma contrária à Constituição,
porque isso seria usurpar a competência do poder constituinte.
Este, sim, passa a ser a voz primeira do povo, condicionante
das ações dos poderes por ele constituídos. A Constituição
assume seu valor mais alto por sua origem – por ser o fruto
do poder constituinte originário (Ibidem, p. 55).
Dessa forma, podemos esboçar, neste ponto da discussão,
um quadro preliminar do valor social e jurídico das constituições oferecido pelo Direito Constitucional. Atualmente, nos
ordenamentos jurídicos dos países de regimes políticos de índole
democrática, as Constituições caracterizam-se por seu status superior. Elas possuem supremacia por consubstanciarem o ideal
máximo de representatividade e de expressão da vontade do povo,
considerado o titular do poder constituinte, isto é, do poder de
“constituir” o Estado, dar as feições da ordem que se sobreleva à
nação. Para Bonavides (2001):
Nas formas democráticas a Constituição é tudo: fundamento
do Direito, ergue-se perante a Sociedade e o Estado como valor
mais alto, porquanto, de sua observância deriva o exercício
permanente da autoridade legítima e consentida. Num certo
sentido a Constituição aí se equipara ao povo cuja soberania
ela institucionaliza de modo inviolável. E o povo, em sua potencialidade, numa acepção política mais genérica, deixa de ser
unicamente o elemento ativo e militante que faz nas urnas, de
modo direto, e nos parlamentos, pelas vias representativas, a
vontade estatal, para incluir em seu raio de abrangência toda
a nação como um corpo de ideias, sentimentos, opiniões e
valores (BONAVIDES, 2001, p. 206).
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
303
Além disso, o regramento constitucional se caracteriza
pela absorção de valores morais e políticos, sobretudo em um
sistema de direitos fundamentais autoaplicáveis. Tudo isso sem
prejuízo de se reafirmar contemporaneamente a ideia de que o
poder deriva do povo, que se manifesta ordinariamente por seus
representantes. Toda essa carga simbólica de supremacia e ideal
de representação compõe o quadro contemporâneo de status das
Constituições, como ícone máximo dos princípios democráticos
e de efetivação da justiça. “A esse conjunto de fatores vários autores, sobretudo na Espanha e na América Latina, dão o nome
de neoconstitucionalismo” (MENDES & BRANCO, 2011, p. 62).
Somando-se a essa realidade, e como consequência dela,
tem-se proliferado nas maiores democracias do mundo um fenômeno de valorização cada vez maior das Cortes Constitucionais,
as Cortes Supremas na chefia do Poder Judiciário, que possuem,
entre outras atribuições, a nobre tarefa de zelar pelo ordenamento
jurídico e pela “guarda da Constituição”. O crescente desprestígio
dos órgãos de representação político-democrática, impulsionado principalmente pelos frequentes escândalos de corrupção,
reflete-se em uma onda de supervalorização dos meios judiciais.
A análise linguística e socialmente orientada do texto
constitucional aqui empreendida pretende, entre outras reflexões,
questionar o ideal de máxima representatividade que a Constituição Federal de 1988 tem ostentado desde seu surgimento até os
dias de hoje. Nossas considerações recaem, portanto, sobre a problemática que o discurso da representatividade jurídica instaura, a
partir do panorama fornecido pelas noções de gênero e estrutura
genérica oriundas da ADC. Em outras palavras, que estratégias
são mobilizadas para a estruturação genérica de um discurso de
representatividade dos anseios do povo na Constituição Federal
de 1988? Que vozes estão presentes na construção desse discurso?
Quais as estratégias de linguagem postas em cena no desenho
das feições do Estado de direito brasileiro? Que representações
são mobilizadas? Que exclusões esse discurso legitima?
Significado acional e ADC: o gênero discursivo
normativo constitucional em questão
A Análise de Discurso Crítica é uma abordagem dos fenômenos linguísticos que engloba diversas vertentes, dentre as
quais a Teoria Social do Discurso (TSD), de Norman Fairclough,
é uma das mais proeminentes. Dada sua notável aceitação e divulgação entre as abordagens críticas da linguagem, tornou-se
comum a referência ao pensamento faircloughiano como ADC,
prática que, como se pôde perceber em momentos anteriores, está
sendo adotada neste trabalho. Desse modo, quando mencionamos
ADC neste trabalho, estamos nos referindo à perspectiva proposta
por Fairclough.
304
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
Fairclough (2003) assevera desde o início de seu trabalho
que sua proposta de abordagem crítica da linguagem tem um
direcionamento interdisciplinar. Sua compreensão do discurso
como um momento de práticas sociais, dialeticamente interconectado a outros elementos, tem como uma de suas consequências
mais notáveis oferecer um ponto de vista privilegiado acerca
das questões de linguagem para estudiosos das diversas áreas
das ciências sociais. Em muitas dessas áreas – e o Direito não se
diferencia nesse aspecto – frequentemente ocorre o confronto com
questões de linguagem e a necessidade de trabalhar com materiais
de linguagem, tais como, no caso do Direito, textos escritos, como
o são os textos normativos que compõem o ordenamento jurídico.
Para operacionalizar sua proposta analítica, Fairclough parte
dos postulados da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) de Halliday (1978), que são apropriados com o intuito de alcançar uma
abordagem dos aspectos materiais dos textos profícua para os fins
da ADC. Na obra Analysing Discourse (2003), Fairclough realiza
uma articulação teórica entre as macrofunções de Halliday e os
conceitos de gênero, discurso e estilo, para adotar, ao invés das
funções da linguagem, três tipos de significados: o acional, o representacional e o identificacional. Esses três tipos de significados
dizem respeito a três principais maneiras de o discurso figurar no
interior de práticas sociais: como modos de agir (significado acional), como modos de representar (significado representacional) e
como modos de ser (significado identificacional) (RAMALHO &
REZENDE, 2006, p. 59).
Empreendemos uma análise do gênero discursivo normativo constitucional, tomando como instância de análise a
Constituição brasileira vigente. Foi adotado o ponto de vista do
significado acional, isto é, as formas particulares de ação social
por meio dos textos no interior das práticas sociais. Nas palavras
de Fairclough, gêneros constituem o aspecto especificamente
discursivo de modos de ação e interação no decorrer de eventos
sociais (FAIRCLOUGH, 2003, p. 65).
Enquanto modo do discurso que figura em práticas sociais,
isto é, como uma faceta da ordem de discurso, um gênero pode
ser definido como um mecanismo articulatório que controla o
que pode ser usado e em que ordem. Assim, quando se analisa
um texto em termos de gênero, focaliza-se a configuração e a
ordenação do discurso em termos das práticas sociais articuladas
para sua produção. Dentre as categorias analíticas empregadas
por Fairclough para o estudo dos gêneros, destacamos a estrutura
genérica.
Inicialmente, a abordagem da estrutura genérica de um
texto pressupõe a consciência da volatilidade dos gêneros quando
abordados in concreto, seu grau de estabilização relativo. Pressupõe que as propriedades de gêneros concretos variam de diferentes maneiras: em escala de atuação, em grau de estabilização
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
305
e homogeneização, em níveis de abstração etc. (RAMALHO &
REZENDE, 2006, p. 62-63).
Dessa forma, ao analisar textos concretos segundo a perspectiva do significado acional, antes de se analisar gênero, analisamos
a estrutura genérica, isto é, o modo de articulação dos diferentes
gêneros presentes e ausentes no uso abordado em particular, de
maneira a perceber como o discurso estudado atua no interior
das práticas em que se insere, como ele figura no seio das lutas
hegemônicas, com tendência para a estabilização e naturalização
de representações e identidades, ou em direção à mudança.
Essa reflexão é muito cara ao Direito e à abordagem do
discurso jurídico. Isto porque o Direito sempre conviveu com a
perene contradição entre a necessidade de estabilização de seus
institutos e categorias – tendo em vista sua inclinação finalística
de estabelecimento de uma ordem, da imposição de um ordenamento – e a igual exigência de dinamicidade, com vistas a
acompanhar as mudanças ocorridas no todo social. O ideal da
ordem jurídica seria refletir a ordem social, em termos mesmo
especulares. E, para muitos juristas e operadores do Direito em
geral – por uma ingenuidade indefensável ou por uma disposição
volitiva condenável –, esse constitui o ideal sempre perseguido
ou, pior ainda, alcançado.
A abordagem de um texto em termos de gêneros nos leva
a pensar o modo como a forma linguística interioriza e contribui
para ações sociais e interações em eventos sociais. A partir dessa
constatação, pode-se avaliar um texto particular a partir da escala de atuação do gênero empregado nele. Alguns gêneros são
relativamente locais em escala, outros podem ser considerados de
escala global (FAIRCLOUGH, 2003, p. 65-66). Dessa forma, podese refletir, acerca do texto normativo constitucional, em termos de
qual seria sua escala de atuação e como esse aspecto influenciaria
o modo de (inter)ação entre os participantes do evento discursivo
em questão, isto é, o Legislador, os cidadãos e o ordenamento
jurídico pátrio.
Além disso, a abordagem da estrutura genérica nos leva a
refletir acerca da mudança de gêneros e da combinação de gêneros.
Como já mencionado anteriormente, não há que se trabalhar com
uma tipologia fixa de gêneros do discurso, e sim com a constatação
de que gêneros particulares são frutos de combinações de gêneros
pré-existentes. O discurso, situado no nível das práticas sociais,
caracteriza-se por uma cadeia de eventos (prática), que envolve
uma cadeia ou rede de formas comunicativas diferentes, que irão
caracterizar uma cadeia de gêneros (FAIRCLOUGH, 2003, p. 66).
A análise da cadeia de gêneros constitui mais um passo do estudo
da estrutura genérica de um discurso concreto.
Dessa forma, Fairclough (2003, p. 66) aponta passos fundamentais para o procedimento do estudo da estrutura genérica
de um texto:
306
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
M E N D E S , G . F. ;
FORSTER JÙNIOR, N.
J. Manual de redação da
presidência da república. 2
ed. Brasília: Presidência
da República, 2002.
1
a) Análise da cadeia de gêneros;
b) Análise da mistura de gêneros em um texto particular;
c) Análise de gênero individual em um texto particular:
c.1) Atividade;
c.2) Relações sociais;
c.3) Tecnologia de comunicação.
Cada um desses passos representa um nível de abordagem
da estrutura genérica; do mais amplo ao mais restrito. Para o
estudo da Constituição Federal, texto de natureza normativa
que, por um lado, apresenta traços formais tão propensos à regularidade e à objetividade; e, por outro, mobiliza, evoca e busca
reunir representações sociais tão instáveis quanto às vicissitudes
contingenciais da sociedade que lhe cumpre regulamentar, a
abordagem da estrutura genérica poderá ser muito frutífera para
lançar considerações relevantes acerca do modo de funcionamento
desse discurso no contexto das práticas sociais que o envolvem.
No caso do discurso que fornece ocasião para o empreendimento analítico ora em curso, pode-se dizer que os padrões
composicionais bastante rígidos e a forte pressão pela estabilização
e objetivação das representações postas em cena são marcas que
interpelam o analista ao primeiro olhar. O discurso jurídico-normativo constitucional emerge de instituições fortemente tendentes
à fixidez. De fato, a própria estruturação do texto, seu modo de
organização e sistematização já prenunciam essa disposição à
permanência.
Procuramos demonstrar neste trabalho que, a par da escolha
por formas rígidas de estruturação dos textos jurídicos normativos, não é possível esvaziar o sentido ideológico que se radica
no interior dessas formas. Ao contrário, até mesmo a escolha
por formas de estruturação tão estáveis e homogêneas contribui
decisivamente para compreender a norma jurídica constitucional
como um produto ideológico. “O domínio do ideológico coincide
com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes.
Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico.
Tudo que é ideológico possui um valor semiótico” (BAKHTIN/
VOLOSHINOV, 2004, p. 32).
Uma marca preliminar dos padrões de estruturação rigorosos diz respeito ao fato de que todo texto normativo produzido no
Brasil precisa obedecer à sistemática de organização de matérias
expressa no “Manual de Redação da Presidência da República”1,
distribuindo-se em: livros, títulos, capítulos, seções, subseções,
artigos, incisos, parágrafos, alíneas.
É parte da proposta analítica desenvolvida neste trabalho
combalir as estruturas do esqueleto firme em que se apoiam as
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
307
representações mobilizadas nos textos jurídico-normativos, especialmente na redação constitucional; e desvelar o encadeamento de
valores, o estabelecimento de fronteiras, as assimetrias e disputas
por poder que estão presentes na Constituição, assim como estão
presentes em qualquer outro texto com inscrição sócio-histórica;
e, mais que isso, reclamar atenção séria para essa problemática, a
fim de situar as questões éticas e políticas no centro e no princípio
dos estudos da linguagem e, porque não dizer, na dogmática e
na ciência jurídicas.
Fairclough (2003), no interesse de traçar o caminho das pedras a ser seguido pelo analista, realizou um escalonamento do
grau de estabilização dos gêneros do discurso, sugerindo uma
útil diferenciação entre gêneros situados, gêneros deslocados ou
desencaixados e pré-gêneros. Tais espécies genéricas, apresentadas em nível crescente de abstração e generalização, constituem
instrumentos indispensáveis para o desvelamento da cadeia de
gêneros presente em um texto particular. A análise da cadeia de
gêneros diz respeito justamente à identificação das espécies genéricas presentes em um texto, dentro dessa escala apresentada
por Fairclough (2003). Portanto, trata-se de saber quais gêneros
situados, quais gêneros desencaixados e quais pré-gêneros encontram-se presentes no texto em estudo.
Essa tarefa é indissociável do segundo passo no percurso
analítico da estrutura genérica: a análise da mistura de gêneros
em um texto particular. Isto porque, se o primeiro movimento
consiste em identificar, o segundo consiste em avaliar como tais
gêneros encontram-se relatados no texto em estudo. Trata-se de
saber como os gêneros encontram-se combinados, se de forma
competitiva, hierárquica, alternada, ou justaposta.
Tendo como base a Constituição, pode-se dizer que o gênero
situado em questão é o gênero normativo, o texto de lei, com os
traços básicos que já foram mencionados aqui. No que diz respeito aos pré-gêneros, a análise adquire novo impulso. O texto
constitucional, dada sua finalidade de dar as feições do Estado
de direito, apresenta um pré-gênero principal que o atravessa de
ponta a ponta: a descrição. Basicamente, o texto descreve quais os
termos da ordem jurídica que se sobreleva à sociedade brasileira,
lança os atributos, as características, e define os institutos que irão
sustentar a ordem da nação.
A par de ser o mais proeminente, a descrição não é o único
pré-gênero que compõe a cadeia de gêneros no discurso constitucional. Articulada à descrição, encontra-se também a injunção.
A estrutura genérica do texto constitucional caracteriza-se por
uma mescla de descrição e injunção, em que a primeira apresenta
clara proeminência e manifesta-se no uso de verbos impessoais,
de formas sintáticas de oração sem sujeito ou de processos de
indeterminação.
308
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
Descrição
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil [...]
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição.
Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados
os seguintes preceitos [...]
Injunção
Art. 1º [...] Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição.
Art. 5º [...] II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei;
Art. 5º [...] XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
Art. 4 º [...] Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a
integração econômica, política, social e cultural dos povos da América
Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de
nações.
Como se pode observar pelos trechos apontados, há uma
diferença, mesmo que tênue, entre as construções linguísticas
dos dois conjuntos de textos apontados. No primeiro caso, em
geral, são formas sintáticas de orações sem sujeito ou de sujeito
indeterminado. No segundo, há sempre um sujeito que “age” nas
estruturações sintáticas das orações: “o povo”, “ninguém”, “todos”,
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“a lei”, “a República Federativa do Brasil”. São as formas de ação do
Estado sobre a sociedade, sua relação com o seu outro, os cidadãos.
Na análise da mistura de gêneros, portanto, o aspecto de
maior relevância – que atravessa toda a estruturação genérica do
discurso jurídico constitucional – é o grau de estabilização e homogeneização das formas, emblemático do impulso em direção
à fixidez.
O último passo no percurso analítico da estrutura genérica,
a análise do gênero individual, proporciona considerações nesse
mesmo direcionamento. O estudo do gênero individual empregado em um texto particular inclui a abordagem de três aspectos:
atividade, relações sociais e tecnologias de comunicação. Passemos
ao estudo desses aspectos, tendo por base a prática discursiva
constitucional.
Já foi mencionado que os eventos sociais dizem respeito a
atividades acima de tudo, tanto em seu aspecto discursivo como
não discursivo. Por conta disso, uma distinção preliminar entre
eventos sociais em que a atividade de natureza discursiva predomina, em comparação com outras nas quais o discurso, embora
presente, constitui elemento secundário apresenta desmembramentos importantes. Esta primeira distinção já se nos apresenta
frutífera para a abordagem crítica do discurso jurídico tomado
como base para nossa análise: o texto normativo, isto é, a lei (tomada em sentido amplo); o gênero normativo em geral, do qual
a Constituição é uma espécie.
Qual seria, cumpre questionar, a predominância de atividade nos eventos sociais em que a lei é posta em xeque? Seria a
atividade discursiva? De fato, a lei é primordialmente, e originalmente, discurso (e esta afirmação traz consigo desdobramentos
muito importantes). Constitui a lei um texto ou um conjunto de
textos, uma série ordenada e sistemática de textos que são lidos,
escritos, pronunciados, proferidos, remetidos, distribuídos, aplicados. Sob esse ponto de vista, incontestavelmente, a lei é discurso.
O raciocínio nessa direção nos faria afirmar a predominância da
atividade discursiva no que diz respeito aos gêneros normativos.
Contudo, a atividade predominante no discurso jurídico
normativo não é a mesma do discurso jurídico dos operadores do
direito, por exemplo. A lei exerce um papel muito específico no
seio da sociedade, possui, por esse motivo, um poder diferenciado,
força cogente e inescusável. A lei se sobrepõe às relações sociais,
regendo-as, impondo-lhes limitações, fronteiras (para usar uma
expressão mais familiar aos estudos culturais e, portanto, capaz
de lançar nova luz sobre o modo como o discurso jurídico “age”
sobre a sociedade).
Estas fronteiras demarcadas pelos dispositivos de lei, aqui
em questão os dispositivos constitucionais, não são sugeridas ou
apontadas, são impostas realmente. Impostas, por constituírem
fruto de um processo legislativo legítimo, previamente autorizado
310
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
pela lei ou pela constituição, que tem sua fonte de legitimidade
no povo e que se realiza por meio de um sistema republicano
democrático representativo. Para além de questionar essa representatividade política – noção que constitui objeto de inúmeros
estudos em diversos ramos do conhecimento: Ciência Política,
Teoria do Estado, Ciência Jurídica, Ciências Sociais, entre muitos
outros –, o presente trabalho propõe questionar a representatividade discursiva, isto é, o discurso que constitui a base para todo
esse processo.
A questão da predominância de uma ou outra atividade é
importante nesta discussão porque pode ser muito esclarecedora
da atitude ética de quem se debruça sobre o problema. Isto porque
afirmar categoricamente que predomina a atividade de natureza
jurídica – afinal a Constituição não é discurso, simplesmente, como
as demais produções culturais humanas; ela é, na verdade, uma
ordem positiva, que traduz, reflete a ordem social – implica uma
postura objetivista de compreensão seja do direito, seja do discurso, seja da ordem social. Implica pressupor uma ordem natural,
posta como necessária, que pode ser simplesmente transposta
para o texto da lei, já que é anterior à linguagem.
É possível traçar um paralelo entre os propósitos de atividade da Constituição, enquanto gênero individual aqui tratado,
com a análise da mistura de gêneros outrora feita. Segundo esta,
o pré-gênero descritivo surge em proeminência no texto constitucional, combinado com ocorrências narrativas de menor destaque.
A estruturação genérica possui, portanto, um direcionamento
privilegiado para a exposição, descrição e enumeração dos termos
de uma ordem: a ordem jurídica constitucional brasileira. Em termos de gênero e escolhas de linguagem, o Estado de direito não
é “construído” discursivamente, mas sim “descrito”, representado
(em termos especulares).
Um tipo de orientação como esta poderia nos dirigir, de
imediato, ao entendimento de que o propósito comunicativo encontra-se privilegiado no nosso gênero de estudo. Afinal, trata-se
de dizer, de comunicar aos interessados, os cidadãos, o povo,
como é o Estado, quais suas características. Queremos, contudo,
desenvolver aqui uma compreensão voltada justamente para o
contrário. Pretendemos demonstrar que a construção do discurso
constitucional se dá em meio a possibilidades de escolhas éticas,
da mesma maneira que qualquer outra forma de discurso, tendo
em vista que as decisões de sentido não seguem uma lei natural,
sendo tão somente o resultado de elementos contingenciais que
definem uma configuração hegemônica específica e constituem
um momento particular das lutas por representações. Os significados mobilizados não são verdades pré-existentes à linguagem,
mas empreendimentos de representação que se manifestam em
estratégias de linguagem como estas aqui analisadas do ponto de
vista da estrutura genérica. O propósito da atividade no gênero
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311
constitucional aqui em estudo é muito mais estratégico, porque
dirigido à legitimação de formas de controle social por meio do
discurso.
O segundo aspecto da análise do gênero individual diz
respeito ao estudo das relações sociais que são travadas entre os
sujeitos envolvidos na prática discursiva em questão. Em conformidade com o raciocínio que vem sendo desenvolvido até aqui
se pode facilmente constatar um elevado grau de hierarquia e
distanciamento social entre os sujeitos envolvidos no processo.
Constitui um traço marcante na configuração discursiva dos textos normativos – e, neste aspecto, da Constituição, em particular,
em função do seu status diferenciado em meio ao ordenamento
jurídico – a afirmação da força institucional de que promana o
discurso, em detrimento daqueles que a ele se submetem. Há
um sujeito autorizado e detentor da voz, que não torna possível
o diálogo.
Nessa linha de raciocínio, atinge-se, por fim, o último aspecto do estudo dos gêneros individuais, as tecnologias de comunicação. Dentro da classificação proposta por Fairclough (2003),
seria possível enquadrar a prática do discurso constitucional
como comunicação unidirecional não mediada. Unidirecional
porque não oferece ocasião para o diálogo entre as partes – pelo
menos não um diálogo imediato. Não mediada porque, a priori,
não consiste em um discurso especializado para tecnologias de
comunicação mais elaboradas.
Esta simples classificação é, contudo, problemática, como
toda taxionomia. Isso porque os meios de comunicação institucional têm se diversificado muito em função da oferta de novas
formas de transmissão de informação. Exemplos disso são as duas
leis recentemente sancionadas no Brasil, pela presidenta Dilma
Rousseff, voltadas para aprimorar a transparência dos atos da
administração pública em relação a seus usuários, os cidadãos:
a lei de acesso à informação (Lei nº 12.527/2011) e a lei que cria
a comissão da verdade (Lei nº 12.528/2011). Tem-se construída,
portanto, uma ponte de acesso para a promoção de um diálogo
entre indivíduos e instituições na contemporaneidade, que pode
e deve ser merecedor de atenção renovada por parte dos críticos
da sociedade e do discurso.
Hoje, a Constituição pode ser acessada através da internet
a qualquer momento e, da mesma forma, os atos institucionais
que dizem respeito a ela. Os impactos da mediação sobre a ordem do discurso jurídico constitucional na atual sociedade da
informação constitui uma temática possível e relevante para
prováveis pesquisas. As proposições de Emendas à Constituição,
nas Casas do Congresso Nacional, estão disponíveis ao domínio
público por meio da internet e da televisão. O julgamento acerca
da constitucionalidade das leis e atos normativos pelos membros
da Suprema Corte brasileira são televisionados em tempo real
312
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
para todo o país. Além disso, a comunicação rápida e livre por
meio das redes sociais tem sido um portal de acesso à intervenção social e política, sinalizando a formação de um novo tipo de
protagonismo político do povo.
Trata-se, como se pode observar nas considerações feitas
aqui, de uma problemática extremamente complexa, que pode
se submeter a análises com vários direcionamentos. Pelo que foi
exposto, pode-se perceber que o desvendamento do modo de estruturação genérica da Constituição tem muito a contribuir para
a compreensão de como esse discurso atua em meio às disputas
por poder e representação, principalmente no que concerne às
escolhas linguísticas que antecedem os padrões rigorosos de
composição empregados nesse texto, em função do seu ideal de
objetividade.
Não se deseja, com tais palavras, questionar propriamente
o princípio democrático – embora este fosse, talvez, um desejo
legítimo – da possibilidade de intervenção do povo sobre a determinação da ordem das leis. Trata-se de descortinar o exercício
do poder por meio do discurso, materializado em escolhas linguísticas como essas.
Conclusão
Pelas considerações até aqui esboçadas, foi possível perceber
que a visão de gêneros operacionalizada na ADC é especialmente
marcada pela mobilidade e dialogicidade. Não há que se trabalhar com uma tipologia fixa dos gêneros, uma vez que as formas
de ação e interação por meio dos textos no interior das práticas
sociais são tão voláteis quanto ao contexto sociocultural no qual
elas ocorrem.
Há uma relação de proximidade dialética muito forte entre
gêneros e práticas sociais, “de tal modo que mudanças articulatórias em práticas sociais incluem mudanças nas formas de
ação e interação, ou seja, nos gêneros discursivos” (RAMALHO
& REZENDE, 2006, p. 62), da mesma maneira que a mudança
genérica pode contribuir para a mudança social por meio do
discurso. Resumidamente, portanto, no âmbito do significado
acional, os gêneros constituem formas de ação por meio do discurso, modos pelos quais discursos agem no interior das práticas
sociais concretas.
A análise dos dados demonstra que o desvendamento do
modo de estruturação genérica da Constituição tem muito a
contribuir para a compreensão de como esse discurso atua em
meio às disputas por poder e representação, principalmente no
que concerne às escolhas linguísticas que antecedem os padrões
rigorosos de composição empregados nesse texto, em função do
seu ideal de objetividade.
As escolhas que antecedem a conformação genérica dos
textos da Lei em geral – isto porque muitas das reflexões apliNiterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
313
cam-se à Lei em sentido amplo – e da redação constitucional
em particular, tomada no presente estudo como exemplo mais
emblemático e, porque não dizer, problemático, das ocorrências
destacadas, refletem e refratam um posicionamento ideológico e
um direcionamento político claramente ancorados nos anseios
do contexto histórico e social em que foram geradas. Mais que
isso, tais ocorrências trazem impressas em si marcas sensíveis
da disparidade das posições de poder dos sujeitos envolvidos
no processamento desse discurso, assim como os rastros da luta
hegemônica travada entre eles.
Uma das considerações importantes a serem lançadas pelo
presente estudo diz respeito ao entendimento de que o Estado
de direito, os elementos que o constituem, as regras que regem
seu funcionamento são construções sócio-histórico-discursivas,
facetas de processos sociais mais amplos. Por esse motivo, a investigação crítica da problemática de sua discursividade reclama de
forma precípua a consideração da dimensão ético-política desse
empreendimento de linguagem. É na persecução desse olhar sobre
a formação discursiva da ordem jurídico-normativa constitucional
brasileira que se centra este estudo, procurando compreender as
fronteiras estabelecidas na edificação dessa ordem, as escolhas
que antecedem a construção dos objetos de linguagem, suas
implicações sociais, por intermédio da investigação linguística.
Para além desses objetivos, a orientação crítica da proposta
de Análise do Discurso de linha faircloughiana relaciona-se ao
seu ideal transformador. Assim, é notadamente no caráter emancipatório da disciplina que se acentua sua orientação crítica. Para
o estudo de práticas simultaneamente sociais e discursivas tão
complexas, tais como a prática jurídica – especificamente neste
estudo a prática jurídico-normativa constitucional –, este horizonte
oferecido pela ADC pode constituir um contributo indispensável.
Segundo esse horizonte, a linguagem nos convida continuamente
a intervir nela, com o fim de desvelar posicionamentos ideológicos,
relações de dominação e esquiva, disputas por poder, que são
travadas em seu interior. A proposta de intercâmbio dialógico
entre estruturas e eventos, pela via das práticas, proporciona
uma postura revolucionária acerca da linguagem, como espaço
privilegiado de intervenção sobre a sociedade, potencialmente
geradora da transformação social.
Abstract
The study proposed here turns to the construction of normative constitutional legal discursive
genre, from its ideological dimension, seeking to
understand how the use of particular linguistic
forms contributes to establishing and sustaining
relations of domination within and outside spe314
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
ech (Thompson, 2009). It takes as theoretical
reference the ADC’s understanding of discourse
as a moment of social practices, dialectically
interconnected with other elements. Besides
ADC, this study seeks to develop a dialogue with
transdisciplinary research historical context in
which it was gestated our current Constitution,
the Constitutional Law and the General Theory
of the State, especially when it comes to social and
legal constitutions value in contemporary. For the
operationalization of the analysis just outlined, we
take as an instance discursive analysis the 1988
Federal Constitution, legislation that opens the
normative rule of Brazilian law, as well as we
adopt by reference the discussion that Fairclough
(2003) does about the notion of actional meaning
and the analytical category generic structure.
Keywords: Critical Discouse Analysis; actional
meaning; generic structure; Federal Constituition.
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Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
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Vozes, 2009.
316
Niterói, n. 34, p. 299-316, 1. sem. 2013
A biopolítica dos corpos
na sociedade de controle
Regina Baracuhy (UFPB)
Tânia Augusto Pereira (UFPB)
Resumo
Neste artigo, refletimos sobre a biopolítica do corpo através dos efeitos de sentidos produzidos pelos
mecanismos de saber/poder no discurso do cuidado
de si e sobre como os dispositivos disciplinares e de
controle agem sobre o corpo apresentado na mídia.
Palavras-chave: biopolítica; corpo; controle.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 317-330, 1. sem. 2013
Palavras introdutórias
Com base nas concepções foucaultianas sobre a normatização do corpo, discutiremos aqui sobre o corpo inserido nas
sociedades disciplinar e de controle. O que Foucault compreendeu
por corpo não é sistematizado facilmente. Mesmo assim, podemos
extrair, especialmente a partir de Vigiar e Punir, o significado atribuído ao corpo em sua obra. Para isso, expomos, primeiramente,
algumas relações entre corpo e poder disciplinar. Em seguida,
discutimos o corpo dentro da sociedade de controle, abordando
questões discutidas na contemporaneidade, dentre as quais a
exposição espetacularizada do corpo na mídia.
Para Foucault, o corpo é ao mesmo tempo um invólucro e
uma superfície que se mantém ao longo da História. Ao contrário
do sujeito que não existe a priori, que é constituído nas relações de
poder-saber, o corpo em Foucault preexiste como superfície e é
transformável, moldável por técnicas disciplinares. Em algumas
das inúmeras entrevistas dadas por Foucault, ele afirmou que,
embora estivesse preocupado em fazer uma história do sujeito
moderno, ou seja, uma história da subjetivação, ele também estava
preocupado com a história do corpo. Deste modo, concomitantemente à história do sujeito moderno, Foucault fez uma história
política do corpo. Essa preocupação foucaultiana com o corpo tem
dado interessantes frutos. Vários trabalhos exploram a ação que
sofre o corpo pelas técnicas de poder presentes em instituições
como escolas, hospitais, prisões, dentre outras. As influências das
ideias foucaultianas podem ser encontradas em estudos históricos e em abordagens sobre o corpo na sociedade contemporânea
(COURTINE, 2008; VIGARELLO, 2006).
A modernidade trouxe consigo todo um conjunto de procedimentos discursivos e institucionais sobre a educação do corpo.
Grande parte da obra foucaultiana foi dedicada a compreender
um sistema de exercícios corporais que seriam a própria expressão
do poder na modernidade. Para Foucault, o corpo é a peça central
sem a qual o poder não tem condições de ser exercido. Segundo
ele, modernidade e “disciplinarização” do corpo são correspondentes. Ao descrever o funcionamento da sociedade moderna,
ele desvendou o funcionamento de uma série de dispositivos
disciplinares, presentes no interior das instituições, que tomaram
o corpo como objeto de sua ação.
Foucault considera o sujeito histórico e constituído pelos
acontecimentos discursivos e práticos. Ele problematiza a questão
do sujeito em sua relação com o saber-poder, relaciona o poder à
construção do verdadeiro de uma época e mostra que a verdade
é uma construção histórica. O autor relaciona também o poder ao
corpo, visto que sobre o corpo são impostas proibições e obrigações
dos sujeitos, tornando-o alvo de controle exercido cotidianamente
na vida dos sujeitos.
318
Niterói, n. 34, p. 317-330, 1. sem. 2013
No século XX, segundo Foucault (2005, p. 301), é relevante
a importância da Medicina, “dado o vínculo que estabelece entre
as influências científicas sobre a população e sobre o corpo”. A
Medicina é um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre
o corpo e sobre a população e que tem efeitos disciplinares e
regulamentadores. A norma é o que pode tanto se aplicar a um
corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se
quer regulamentar.
Vista por Foucault como uma tecnologia de poder, a biopolítica vai implantar mecanismos que têm funções bem distintas
das funções que eram as dos mecanismos disciplinares. Nos
mecanismos implantados pela biopolítica,
“vai se tratar, sobretudo, é claro, de previsões, de estimativas
estatísticas, de medições globais [...]; de intervir no nível daquilo que são as determinações desses fenômenos gerais [...].
Vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai ser preciso
encompridar a vida; vai ser preciso estimular a natalidade”
(FOUCAULT, 2005, p. 293).
O poder repressor e punitivo, descrito por Foucault, dá lugar
à regulamentação da vida, tem a capacidade de produzir alguma
coisa relacionada à sua manutenção, de acordo com a liberdade
de escolha do sujeito. É a dimensão biopolítica da sociedade de
controle, uma forma de poder que rege e regulamenta a vida,
assimilando-a e reformulando-a. Trata-se do poder da vida e não
sobre a vida.
O aparecimento do biopoder sobre o homem enquanto ser
vivo gera um poder contínuo, científico, que é o poder de fazer
viver. Tudo isso originou duas séries: 1) corpo-organismo (disciplina no corpo individual); 2) população– processos biológicos
(regulamentação da vida e da morte). Na opinião de Foucault,
o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez
mais o direito de intervir para fazer viver, e na maneira de
viver, e no ‘como’ da vida, a partir do momento em que, portanto, o poder intervém, sobretudo nesse nível para aumentar
a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas
deficiências [...] (FOUCAULT, 2005, p. 295).
Ao governar os sujeitos para que tenham uma vida melhor,
com saúde e mais longa, a biopolítica faz com que eles produzam
mais para a sociedade. O sujeito tem que ser saudável para que seja
produtivo socialmente. Desta forma, o poder também é positivo.
Na atualidade, é possível identificar a sobreposição de três
dispositivos de poder na sociedade. O primeiro deles, magistralmente descrito por Foucault no livro Vigiar e Punir, é o disciplinar.
Ele incide sobre a otimização do corpo em termos de um sistema
de recompensas em vista de condutas almejadas e de vigilância
e correção, para a prevenção ou correção de comportamentos
indesejáveis. Ele ainda pode ser observável em instituições seNiterói, n. 34, p. 317-324, 1. sem. 2013
319
miabertas como escolas, empresas, hospitais, como também nas
famosas instituições de confinamento, caso dos manicômios e
prisões. Ao se dirigir à superfície corporal, esses dispositivos
proporcionam uma ortopedia moral e a constituição de um indivíduo normalizado segundo os imperativos morais e até mesmo
mercadológicos.
O segundo dispositivo é o da segurança, que promete
atuar na preservação e no cuidado da vida de uma população
biologicamente determinada exigindo, em troca, a restrição de
suas liberdades, a obediência a suas normativas e o pagamento
adequado de seus impostos. Essa proteção em função dos riscos e
perigos internos ou externos possui um elevado ônus, posto que,
muitas vezes, está embutida a anuência dos cidadãos à atuação
extralegal do Estado e de seus mecanismos diante de outras populações potencial ou realmente consideradas perigosas.
O terceiro é aquele dispositivo que não incide, principalmente, no corpo ou, enfaticamente, na vida biológica, mas opera
ao nível do controle das mentes, suas aspirações e desejos. Em sociedades mais desenvolvidas, entre as quais o declínio do trabalho
material é acompanhado da ascendência do trabalho imaterial,
a planta industrial é sucedida da ampliação das organizações
transnacionais, muitas delas virtuais, como o Google, cada vez
mais as mentes estão em conexão entre si. Daí ser fundamental
a criação de sonhos e desejos, dominar e controlar a arte do possível, delimitar as situações nas quais pensamos atuar livremente
e assim por diante.
Importante é salientar que esses três dispositivos atuam
conjuntamente, ainda que seja possível mostrar que no recrudescimento da industrialização houve atuação enfática da disciplina;
na formação e consolidação dos Estados nacionais, a acentuada
operacionalidade do dispositivo da segurança; e nas sociedades
pós-industriais e de serviços, marcadas pela decisiva influência
da realidade virtual engendrada pela automação dos processos
industriais e dos imperativos midiáticos sobre a política e as ideologias, a predominância dos dispositivos de controle.
Corpo e poder disciplinar
A sociedade disciplinar se instaura a partir do início do
século XVIII (FOUCAULT, 2005), compreendendo todos os
dispositivos que regulam hábitos e comportamentos, com objetivos de assegurar a obediência às instituições disciplinares
que organizam o campo social. As estratégias utilizadas pela
sociedade disciplinar eram centradas no corpo. As tecnologias
disciplinares se destinavam a todos os sistemas de vigilância ou
instituições disciplinares: a prisão, a fábrica, o asilo, o hospital, a
escola, entre outras. Foucault assinala que, no século XIX, o poder
assume outro paradigma – o biopoder –, que se caracteriza como
um poder exercido por máquinas que organizam o “cérebro e os
320
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A noção de espetáculo, desenvolvida por
Guy Déb ord (19 97 ),
p er m ite -nos re f le t i r
sobre a natureza das
representações de corpo na sua apresentação contemporânea. O
corpo contemporâneo
ocupa um lugar central,
e nas mídias se torna
mais explicitamente um
corpo-espetáculo, esta
construção se articula
fortemente com o consumo: é o surgimento do
corpo-mercadoria. E o
espetáculo é o momento
em que a mercadoria
ocupa totalmente a vida
social (DEBORD, 1997).
1
corpos”, um poder responsável não só pelo corpo individual, mas
pela vida da população. O poder que toma por objeto a vida em
duas funções nas sociedades modernas: “a ‘anatomo-política’ e
a ‘biopolítica’ e as duas matérias nuas, um corpo qualquer, uma
população qualquer” (DELEUZE, 1992, p. 80).
Foucault interpretou o corpo como uma superfície para o
exercício de relações de poder, como um “caminho” para a subjetivação. Na opinião de Dreyfus e Rabinow (2010, p. 125), “um
dos maiores empreendimentos de Foucault foi sua habilidade em
isolar e conceituar o modo pelo qual o corpo se tornou componente essencial para a operação de relações de poder na sociedade
moderna”.
Para o filósofo francês, o corpo também é uma interpretação
dependente de determinado “olhar”, ou seja, o corpo terá diferentes valores, dependendo de quem olha e do lugar de onde ele é
olhado. Assim, o valor do corpo depende do lugar que ele ocupa.
Essa percepção de Foucault (2007) sobre o corpo pode ser ilustrada
com a análise que ele faz da tela de Velásquez “As meninas”, no
início do livro As palavras e as coisas. Essa tela retrata o próprio
Velásquez pintando um quadro e algumas pessoas ao seu lado
observando o modelo que está posando para o pintor, mas que, no
entanto, não aparece na tela. Simultaneamente, o artista não pode
ver a si mesmo e o objeto de sua representação. Da mesma forma,
só podemos olhar para nosso próprio corpo através do olhar do
outro e foi assim que Velásquez se retratou, através do olhar do
outro. Com isso, Foucault (2007) afirma que todo olhar “já é uma
interpretação”, uma posição, um lugar de poder.
Que relação pode ser estabelecida entre o corpo e a análise
foucaultiana sobre a tela de Velásquez? O corpo é sempre uma
interpretação e o olhar interpretativo que o sujeito lança sobre
seu corpo depende do olhar lançado pelo outro sobre esse mesmo corpo. Na contemporaneidade, a busca incessante da mulher
pela imagem de um corpo “perfeito” reside no desejo de capturar o olhar do outro para o seu corpo. Tendências exibicionistas
alimentam as novas modali­dades de construção do corpo, numa
“espetacularização do eu1”, que visa à obtenção de um efeito: o
reconhecimento nos olhos do outro e, sobretudo, o cobiçado fato
de ser visto. Nesse contexto, a subjetivi­dade é estruturada em
função da superfície visível do corpo, que se torna um espaço de
criação e um campo propício para a expressão do que cada um é.
Os processos de subjetivação, por meio das relações de poder-saber, como descritas e analisadas por Foucault, atuam sobre
o corpo do indivíduo através de técnicas disciplinares, ou seja, por
meio do disciplinamento e governo do corpo. As novas formas
de subjetivação cada vez mais se relacionam com os modelos
idealizados de corporeidade. O culto à magreza e a rejeição dos
corpos fora dos padrões dominantes se engajam aos discursos
contemporâneos de disciplinamento e de controle dos corpos
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321
femininos como forma de reafirmar as relações de poder. Assim,
possuir um corpo magro, atualmente, está relacionado, também,
à questão simbólica do “poder”.
Portanto, a sociedade do consumo e do espetáculo, na qual as
imagens de mulheres belas, felizes e bem-sucedidas estão sempre
em “cartaz”, produz um cenário perfeito para que o sujeito feminino deseje transformar seu corpo para corresponder ao desejo
cultural e assim garantir um lugar no palco desse espetáculo e
atrair o olhar do outro.
Os dispositivos disciplinares contemporâneos utilizam a
vigilância fundada em saberes racionais e normativos. Estes “saberes” sempre visam uma maior eficiência do corpo, mais saúde,
bem-estar, longevidade etc. Isso torna a vigilância algo desejado
e não desprezado. Esta é uma grande astúcia da sociedade de
controle: o poder controlador passa a ser desejado como algo
positivo e prazeroso.
Foucault reforça a produtividade do poder e afirma que ele
não é sinônimo de repressão, nem pode ser visto como um produto
exclusivo do Estado. Segundo o filósofo,
se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas
por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se apenas se
exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele
é forte, é porque produz efeitos positivos no nível do desejo
[...] e também no nível do saber. O poder, longe de impedir o
saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o
corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e
escolares (FOUCAULT, 2008, p. 148-9).
Na afirmação seguinte, a ideia da positividade do poder é
reforçada por ele:
Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder
em termos negativos: ele ‘exclui’, ‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’,
‘abstrai’, ‘esconde’. Na verdade, o poder produz: ele produz
realidade; produz campos de objetos e rituais de verdade. O
indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam
nessa produção (FOUCAULT, 2009, p. 161). [Grifos do autor]
O micropoder não tem uma ação exclusivamente negativa,
ele pode ser também exercido de forma construtiva. Positivamente,
ele produz comportamentos e corpos através de classificações,
normatizações e adestramentos. Podemos exemplificar a produtividade do poder com a questão do corpo. Provavelmente, em
nenhuma época se falou tanto em corpo como na contemporaneidade. São manuais de conduta, de como alcançar um corpo
propagado espetacularmente pela mídia. Há um grande aparato
científico em torno do corpo. No campo dermatológico, muitos
jovens, desde os 20 anos, visitam regularmente o dermatologista
para evitar os efeitos do envelhecimento. Assim, as rugas que
surgiriam aos 50 anos são prevenidas precocemente. Ao serem
322
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incentivados a praticarem determinados comportamentos, estes
jovens produzirão corpos plenamente previsíveis e adestrados.
Apesar das vantagens dos saberes normativos, não podemos
ignorar o objetivo desses saberes de produzir “corpos dóceis”; corpos submetidos a um regime de poder. Segundo Foucault (2009,
p. 118), “esses métodos que permitem o controle minucioso das
operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas
forças e lhes impõem um relação de docilidade-utilidade, são o
que podemos chamar as ‘disciplinas’”.
No livro Vigiar e Punir Foucault (2009) expõe o funcionamento do “modelo carceral” na sociedade contemporânea de forma
mais explícita. Ele resgata o Panoptikon2, estrutura arquitetônica
idealizada pelo filósofo e jurista inglês Bentham (1748-1832), para
simbolizar o poder disciplinar. As disciplinas se manifestam em
sua forma pura e originária na prisão, especialmente na utopia
benthaminiana da prisão perfeita, em que o regime de vigilância ocorre de modo ininterrupto e invisível. Dessa maneira, os
prisioneiros não sabem “quando” estão sendo vigiados e por
isso comportam-se constantemente como se estivessem sendo
vigiados. Neste aspecto reside a genialidade e a perversidade do
sistema panóptico: mesmo que nenhum vigia esteja na torre, os
prisioneiros agem como se estivessem sendo vigiados.
Na concepção de Foucault, o panóptico é o dispositivo que
melhor caracteriza o poder disciplinar posto ser ele pensado
como um sistema arquitetural constituído de uma torre central
e um anel periférico que permite a quem se posiciona no centro
visualizar tudo e a todos sem que seja visto. Isso faz com que
aqueles que são vigiados tenham sempre a sensação de que estão
sendo observados, de modo que se pode chegar ao momento em
que a consciência da vigilância faz com que seja desnecessária
uma vigilância extensa e objetiva. O panóptico de Bentham seria
“o princípio geral de uma nova ‘anatomia política’ cujo objeto e
fim não são a relação de soberania, mas as relações de disciplina”
(FOUCAULT, 2009). Princípio este que, ao aplicar o mecanismo da
disciplina, possibilita a construção de um novo tipo de sociedade
que se alinha a um modo de aplicação disciplinar. Como bem
discrimina Foucault, temos duas imagens da disciplina.
Edifício circular em
que cada prisioneiro
ocupa uma cela, totalmente visível para quem
estiver na torre de vigilância situada no centro
da construção. Os vigilantes da torre podem
ver tudo sem ser vistos
pelos prisioneiros nas
suas celas.
2
Num extremo, a disciplina-bloco, a instituição fechada, estabelecida à margem, e toda voltada para funções negativas: fazer
parar o mal, romper as comunicações, suspender o tempo.
No outro extremo, com o panoptismo, temos a disciplina-mecanismo: um dispositivo funcional que deve melhorar o
exercício do poder tornando-o mais rápido, mais leve, mais
eficaz, um desenho das coerções sutis para uma sociedade que
está por vir. O movimento que vai de um projeto ao outro, de
um esquema da disciplina da exceção ao de uma vigilância
generalizada, repousa sobre uma transformação histórica: a
extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo
dos séculos XVII e XVIII, sua multiplicação através de todo
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o corpo social, a formação do que se poderia chamar grosso
modo a sociedade disciplinar (FOUCAULT, 2009, p. 184).
Baseado no panoptismo, o poder disciplinar estabelece
uma nova forma de exercício de poder: a vigilância invisível que
permite classificar, qualificar e punir. Ao se debruçar sobre as
radicais modificações de um poder soberano para as sutis técnicas de poder disciplinar, a partir do século XVII até o século XIX,
Foucault mostra como o sujeito deixa de ser supliciado e passa a
ser assujeitado ao poder soberano.
A maneira como o poder se transforma entre o final do século XVIII e início do século XIX, ou seja, término da sociedade
monárquica e começo da sociedade estatal objetiva governar tanto
os indivíduos, através de procedimentos disciplinares, quanto a
população em geral. O nascimento da biopolítica ocorre no sistema
do Liberalismo, um exercício do governo que busca maximizar
seus efeitos e reduzir seus custos. Através de uma tecnologia de
poder, a governamentalidade tem como foco a população, conjunto
de indivíduos que são controlados com o objetivo de assegurar
uma melhor gestão da força de trabalho dentro da sociedade
capitalista (REVEL, 2005).
Em torno das disciplinas impostas ao corpo-máquina e do
controle regulador no corpo-espécie desenvolveu-se a organização
do poder sobre a vida. Na opinião de Machado (2008), o poder
disciplinar age por meio da inscrição dos corpos em determinados
espaços, do controle do tempo sobre eles, da vigilância contínua e
da produção de saber através das práticas de poder. Nas palavras
de Machado, a disciplina é “uma técnica, um dispositivo, um
mecanismo, um instrumento de poder [...]. É o diagrama de um
poder que não atua no exterior, mas trabalha o corpo dos homens,
manipula seus elementos, produz seu comportamento [...]” (p. 17).
No século XX, segundo Foucault (2005, p. 301), é considerável
a importância da Medicina, “dado o vínculo que estabelece entre
as influências científicas sobre a população e sobre o corpo”. A
medicina é um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre
o corpo e sobre a população e que vai ter efeitos disciplinares e
regulamentadores. A norma é o que pode tanto se aplicar a um
corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se
quer regulamentar.
Ao governar os sujeitos para que tenham uma vida melhor,
com saúde e mais longa, a biopolítica faz com que eles produzam
mais para a sociedade. O sujeito tem que ser saudável para que
seja produtivo socialmente. Desta forma, o poder também é positivo. Na sociedade monárquica, o poder emanava de uma única
pessoa, o rei, e a questão central era a morte. O rei decidia quem
iria morrer e não se questionava esse poder que era dado apenas
a ele. Na sociedade atual isso não acontece. Hoje, os governantes
querem preservar a vida. A governabilidade gira em torno da
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longevidade dos sujeitos. Não é à toa que a população mundial
alcançou o patamar de 7 bilhões de habitantes. Há uma política
globalizada para preservar e, consequentemente, prolongar a vida.
Isso faz com que os sujeitos sejam produtivos por mais tempo e
também consumam cada vez mais.
Além do princípio da disciplina, ele descreveu a modernidade por meio de outro conceito, o de biopoder, também fundamental para que se possa abordar o corpo na modernidade. A
disciplina recortou o corpo na sua individualidade para a reprodução dos exercícios e a produção dos corpos dóceis, enquanto
o biopoder tomou o corpo no conjunto da população, exercendo
um exercício de governo da vida por meio do controle dos nascimentos, das mortes, das práticas sexuais, além da moradia, da
instrução, do trabalho, tomando os corpos em conjunto e aplicando-lhes as leis e normas (FOUCAULT, 2005, p. 293). Tanto quanto
para as disciplinas, o nascimento do “corpo organismo” também
foi fundamental para o aparecimento do biopoder, que tomou o
conjunto dos corpos dando-lhes a face de uma população. Assim,
a disciplina sobre os corpos individuais e o biopoder como um
poder sobre a vida das populações compuseram, conjuntamente,
todo um arsenal de aparatos dentro das instituições que sustentaram a sociedade moderna e uma forma específica de governo,
chamada por Foucault de governamentalidade, que funcionou
até bem pouco tempo. Nos anos 80, ele afirmou que estávamos
deixando de ser modernos e anunciou que o próximo século seria
deleuziano.
Corpo e sociedade de controle
Na contemporaneidade, a maior atenção dedicada ao corpo
e às práticas relacionadas a ele apenas reforça e solidifica seu
controle e dominação. É paradoxal a relação entre corpo e poder:
quanto maior a atenção sobre o corpo, maior é o controle sobre ele.
Na tentativa de compreender a crise da modernidade podemos seguir a sugestão de Foucault, isto é, recorrer às análises
de Deleuze sobre a “sociedade de controle”. Para o autor, Foucault
demonstrou que os limites temporais do modelo disciplinar estavam claramente demarcados e que este havia entrado em crise na
segunda metade do século XX. Deleuze (1992) demonstra a crise
disciplinar por meio da crise dos modos de confinamento como
a prisão, o hospital, a fábrica, a escola e a família.
Do ponto de vista do autor, os confinamentos da disciplina
eram moldes produtores de subjetividades, ao passo em que os
controles são uma “modulação”, isto é, uma moldagem que pode
ser transformada continuamente, produzindo uma situação
flexível da subjetividade que é a chave do controle. As antigas
instituições, como a fábrica, o hospital, a prisão e a escola se
transformaram em empresas, modificando a gramática que havia
sido produzida pela sintaxe disciplinar, que se torna obsoleta na
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sociedade de controle. Ao analisarem o conceito deleuziano de
sociedade de controle, Negri e Hardt (2004) consideram que a sociedade de controle pode também ser compreendida como uma
intensificação das disciplinas.
O corpo e a vida são matéria farta para o exercício da disciplina e do biopoder, produzindo corpos dóceis, na sociedade
disciplinar. A sociedade de controle, como um novo modelo de
sociedade ou como a intensificação das disciplinas, também tem
o corpo como substrato de sua produção subjetiva. O que é o corpo no interior da sociedade de controle? Neste contexto há uma
intensificação dos controles sobre o corpo, traduzidos em uma
ampliação e transformação da biopolítica.
Trata-se do surgimento da ideia de que há corpos que podem
desaparecer para que outros possam viver seguramente, em um
mundo controlado pelas novas modalidades tecnológicas. Por
outro lado, há também novas formas corporais de resistência e
transgressão, as quais se apropriam das novas tecnologias e das
artes, por exemplo. Uma gestão autônoma da vida e do corpo
é uma empreitada transgressora no interior das tecnologias de
controle. Para Deleuze, “os anéis da serpente são ainda mais complicados que os buracos da toupeira” (DELEUZE, 1992, p. 225-6).
No século XX, passamos de uma sociedade disciplinar para
uma sociedade de controle. Para Deleuze, a sociedade midiática é
uma sociedade de controle. Essa sociedade aperfeiçoou as técnicas
de controle, que agem quase despercebidas, de modo bastante
natural, de maneira sutil, principalmente na publicidade. Na escola, por exemplo, uma técnica de controle é a lista de frequência,
que verifica cotidianamente a presença ou não dos alunos na sala
de aula. Na opinião do autor, o controle é mais nefasto do que a
disciplina. Assim, o século XX foi disciplinador e o século XXI é
controlador.
Atualmente, há um discurso mercantil, de base econômica
e mercadológica, na mídia, que leva o sujeito a consumir comida
calórica (fast food) para que seja necessário o uso de produtos
ligth e/ou diet, ou então fazer plásticas para ter o corpo cultuado
na publicidade desses produtos. Há um investimento político
dos corpos nos anúncios publicitários do tipo “como perder 7cm
em 10 dias”, “emagreça 5 quilos em dois meses”. Assim, o sujeito
é controlado sem perceber. Ele vai fazendo transformações no
corpo para entrar na ordem do discurso midiático: “seja magro!”.
Esse discurso reafirma o ponto de vista de Foucault (2008, p. 147):
“encontramos um novo investimento que não tem mais a forma
de controle-repressão, mas de controle-estimulação: ‘Fique nu...
mas seja magro, bonito, bronzeado!’”
Não se restringindo mais aos círculos institucionais, as
disciplinas refinaram-se, expondo-se como táticas flexíveis de
controle e indiciando, conforme Deleuze (1992, p. 216), a reformulação das sociedades disciplinares em sociedades de controle, “que
326
Niterói, n. 34, p. 317-330, 1. sem. 2013
funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo
e comunicação instantânea”. Com esta transição, intensificou-se
uma biopolítica, que, de acordo com Revel (2005, p. 27), “representa
uma grande Medicina Social‟ que se aplica à população a fim de
governar a vida”, a fim de impor as formas de “bem-estar social”,
inserindo a vida no campo do poder.
O biopoder, segundo Gregolin (2007, p. 19-20), “materializa-se no governo de si: o sujeito deve autocontrolar-se, modelar-se
a partir das representações que lhe indicam como deve (e como
não deve) ser o seu corpo”. Isso remete ao que Foucault denomina
governamentalidade, o governo de si e do outro por meio de técnicas
que produzem identidades.
Há uma moldagem do corpo, que ocorre como uma tática
flexível de controle, caracterizando, conforme Deleuze (1992, p.
216), a transição da sociedade disciplinar para a sociedade de
controle. A mídia exerce esse controle contínuo, intensificado por
uma biopolítica, que se repete sem cessar. O corpo é concebido
como “uma realidade biopolítica” (FOUCAULT, 2008), como alvo
de uma política de “controle-estimulação” que objetiva trabalhá-lo,
produzi-lo, expondo aos sujeitos as maneiras de pensar e de agir
“adequadas” para a sociedade e incitando-os à interiorização e à
incorporação destas convenções idealmente construídas.
As novas tecnologias de gerenciamento da vida e do corpo
são corolários de transformações profundas na forma de produção de conhecimento sobre a vida. Com o advento da Biologia
Molecular e das biotecnologias, o conceito de vida se transformou
em um código a ser desvendado, o DNA. A partir dessa nova
categorização da vida, o corpo passou a ser a decorrência de um
conjunto de informações que devem ser melhoradas e reproduzidas (ORTEGA, 2008).
Assim, a nova gestão do corpo é a administração do corpo
saudável, construído por meio de uma alimentação cientificamente balanceada, exercícios físicos controlados, o controle do
estresse e da felicidade, específicos para cada singularidade
molecular. O controle genético do corpo ainda faz parte de um
conjunto de análises futurológicas, embora já existam como rotina
em consultórios médicos os exames de detecção de certos tipos
de cânceres, como, por exemplo, um tipo específico de câncer
de mama. Na presença de marcadores genéticos em exames de
sangue, algumas mulheres já realizaram mastectomização preventiva, isto é, a extração das mamas como prevenção, em nome
da saúde perfeita. A ideia do risco para a saúde e para o corpo
saudável começa a tomar contornos importantes para o biopoder,
na medida em que o cuidado para com a vida, já pensado por
Foucault como definidor da modernidade, se desloca em virtude
da tecnologia.
A biopolítica incidirá sua ação no seu objeto de regulação
política: a população. A conduta agora não é mais do homem
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como indivíduo disciplinado, mas da população como contingente
economicamente regulada. O efeito disso será a construção de
uma sociedade que trabalha suas tecnologias de poder no sentido
de fazer da ação coletiva, uma rentabilidade cada vez maior. No
final do século XIX e início do século XX, o Estado preparou, com
toda a sutileza e aprendizado das antigas formas de poder, o que
estamos vivenciando cada vez mais no tecido social e dentro de
um processo inconsciente: mais do que disciplinar e vigilante, a
sociedade se caracteriza por um controle virtual do indivíduo e
da população. As novas tecnologias do século XXI (audiovisuais,
internet, cartões de crédito etc.), empreendendo o deslocamento
das relações de poder para o campo virtual, caracterizam a nova
forma do poder: a sociedade de controle.
Ao ponderar sobre esse tipo de sociedade, Gregolin afirma
que
na sociedade de controle (que se desenvolve nos limites da
modernidade), os mecanismos tornam-se cada vez mais
“democráticos”, cada vez mais interiorizados pelos sujeitos:
esse poder é exercido por máquinas que organizam o cérebro
(redes de informação) e os corpos (em sistemas de bem-estar,
atividades monitoradas etc.) (GREGOLIN, 2007, p. 18).
Segundo Deleuze, não vivenciamos mais apenas o confinamento e a vigilância, que sequestram a vida do indivíduo e da
massa à qual ele pertence, mas o controle, que modula ilimitadamente a vida. Hardt e Negri (2004) caracterizam a sociedade de
controle como um cenário propício e indispensável para a formação e o desenvolvimento do arquétipo representado pela figura
do Império e de toda a sua sistemática de regulação e justificação.
Para os autores, a sociedade de controle deve ser entendida
como aquela (que se desenvolve nos limites da modernidade
e se abre para a pós-modernidade) na qual mecanismos de
comando se tornam cada vez mais ‘democráticos’, cada vez
mais imanentes ao campo social, distribuídos por corpos e
cérebros dos cidadãos. [...] A sociedade de controle pode [...]
ser caracterizada por uma intensificação e uma síntese dos
aparelhos de normalização de disciplinariedade que animam
nossas práticas diárias e comuns, mas, em contraste com a
disciplina, esse controle estende bem para fora os locais estruturados de instituições sociais mediante redes flexíveis e
flutuantes (HARDT e NEGRI, 2004, p. 42-3).
Palavras finais
A imagem do corpo se tornou imprescindível, de modo
que podemos afirmar que hoje o eu é o corpo. A subjetividade foi
reduzida ao corpo, sua imagem, saúde, juventude e longevidade.
O predomínio da dimensão corporal na constituição identitária
permite sugerir, como fez Ortega (2005), a existência de uma
“bioidentidade”. Como afirma o autor, se, por um lado, para
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construir a “bioidentidade”, é preciso se submeter a uma bioascese,
ou seja, adequar o corpo às normas científicas existentes sobre a
saúde, os exercícios físicos, a longevidade, a nutrição; por outro,
é preciso ajustar o corpo às normas e padrões da sociedade do
espetáculo. Não possuímos uma visão pura do nosso próprio
corpo, mas somente uma “interpretação” acerca dele, bem como
dos outros corpos.
Assim como se modificam historicamente as condições
concretas de produção social, política e econômica dos corpos,
mudam-se de forma igualmente histórica as condições da sua
estetização. É redundante afirmar que as concepções e padrões
estéticos se transformam ao longo da história. Basta notar que
o século XX foi muito rico em diversidade estética, fazendo,
literalmente, desfilar na passarela da mídia sucessivas modas,
recorrências, variados padrões corporais e também tecnologias,
muitas delas médicas, de produção e modelagem dos corpos segundo uma estética corporal que se modifica historicamente. Não
é o corpo que muda ao longo do tempo, mas sim o nosso olhar/
discurso sobre ele.
Abstract
In this paper, we reflect about the biopolitics of
the body through the effects of meanings produced
by the mechanisms of power / knowledge in the
discourse of self-care and how the disciplinary and
control devices act on the body presented in media.
Keywords: biopolitics; body; control.
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se embelezar, do renascimento aos dias de hoje. Tradução Léo
Schlafman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
330
Niterói, n. 34, p. 317-330, 1. sem. 2013
A pequena família guineana:
abordagem discursiva do continuísmo
histórico num discurso
pela independência
Beatriz Adriana Komavli de Sánchez (UERJ)
Resumo
O propósito deste trabalho é analisar o discurso
oficial pela independência da Guiné Equatorial
pronunciado por um mandatário espanhol,
representante do ditador Francisco Franco, no
12 de outubro de 1968. Esse pronunciamento
faz parte de uma pesquisa maior que se propõe
a explicitar a noção de Hispanidade. O 12 de
outubro, data da chegada de Cristóvão Colombo
na América, conhecida como ‘descoberta’ da América, foi justamente escolhido pelas autoridades
guineanas daquele momento para comemorar a
independência da jovem nação africana. A essa
peculiaridade soma-se o fato da Guiné Equatorial
ser a única nação africana que tem como língua
maioritária oficial o espanhol. Guiados pela visão
dialógica bakthiniana, adotamos como marco teórico a Análise do Discurso (AD) que considera
os estudos enunciativos. Observamos uma rede
de filiações identitárias que se tecem entre a Mãe
pátria e a ex-colônia africana. A instância subjetiva que se manifesta num tom de exaltação está
em consonância com um continuísmo histórico
no que diz respeito à língua espanhola e a valores
morais perpassados pela religião cristã. Isso se faz
patente sobre tudo na reescritura do processo da
colonização espanhola.
Palavras-chave: pequena família; independência;
Guiné Equatorial; Análise do Discurso; Hispanidade.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013
Introdução
Este trabalho tem como objetivo analisar um documento
histórico, o discurso oficial de 12 de outubro de 1968 pronunciado
pela independência da Guiné Equatorial. Esse pronunciamento
faz parte de uma pesquisa maior que se propõe a explicitar a noção de Hispanidade. Consideramos o discurso apresentado um
achado no decorrer de nossa pesquisa historiográfica, não só no
sentido de algo encontrado, resgatado da memória institucional,
mas também e, sobretudo, pela conotação de riqueza, uma vez que
à força da data da ‘descoberta’ da América soma-se o fato muito
curioso, peculiar, de ter sido escolhida pelas próprias autoridades
guineanas daquele momento justamente para proclamar a independência dessa nação africana. Além disso, esse tipo de discurso,
com essas formações discursivas relativas à língua, à religião e
aos valores morais nos pareceu de reaparição tardia uma vez
que na América, a partir de 1950, esses pronunciamentos sofrem
um apagamento frente ao avanço do multiculturalismo como
movimento político. O interesse é redobrado na medida em que
a Guiné Equatorial é a única nação africana que tem como língua
majoritária oficial o espanhol, fato muito pouco conhecido até
pelos próprios hispano-falantes e estudantes de língua espanhola
como LE. Esclarecemos que além do espanhol são línguas oficiais o
francês, em segundo lugar desde 1998, e o português, em terceiro,
desde 20/07/2012. Ressaltamos que estas línguas são segundas
em relação a outras nativas tais como o fang e o bubi, entre outros
grupos étnicos. Por si só esses dados instigam o interesse de um
estudo, mas em nosso caso as repercussões foram redobradas
na medida em que nos levou a constatar regularidades e, como
consequência do anterior, nos possibilitou repensar critérios de
recorte de nossa investigação.
Marco teórico
Passamos, então, a expor algumas considerações sobre o dia
festivo, comemorativo pelo 12 de outubro. Essa data vigente no
calendário oficial espanhol e em muitos países hispanofalantes
tem sido objeto de ressignificações ao longo do tempo. Esse fato,
por si só, indica que o/s sentido/s tem/têm se deslocado. Os discursos pelo ‘Dia da Raça’, ‘Dia da Hispanidade’, vigoraram com
força entre finais do século XIX e a primeira metade do século
XX e respondem a circunstâncias históricas e políticas muito particulares. Esses discursos oficiais, pronunciados por presidentes
ou altos mandatários do governo, tratavam de um âmbito não
de objetos materiais senão de dependências simbólicas e de parentesco. Esse vínculo exaltado com a ‘mãe pátria’ foi tão relevante
que se materializou não só em outros domínios associados, tais
como nas políticas educativas e nos posicionamentos políticos
das Academias de Língua e Letras da América de aquela época,
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Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013
como na criação de uma bandeira da raça, hinos e numa série de
práticas sociais.
Atualmente, a construção de um arquivo com estes pronunciamentos se nos apresenta como uma tarefa instigante e
desafiadora. Sua leitura, sua descrição hoje, provoca um efeito de
raridade que, segundo Foucault ([1969]1995), faz com que pertençam a um espaço privilegiado, “entre a tradição e o esquecimento”,
uma vez que o regime de enunciabilidade tem mudado:
A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa
atualidade, trata-se da orla do tempo que cerca nosso presente,
que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que
fora de nós, nos delimita. A descrição do arquivo desenvolve
suas possibilidades (e o controle de suas possibilidades) a
partir dos discursos que começam a deixar de ser os nossos.
(idem, p. 150-151)
A visão dialógica de Bakthin e a Análise do Discurso de
linha francesa que considera os estudos enunciativos ajudarão a
destacar algumas marcas linguísticas da rede de filiações identitárias que se teciam entre a Espanha e as ex-colônias materializadas nos discursos oficiais pelo 12 de outubro.
O gênero pronunciamento é assim caracterizado por Daher
(2000):
No gênero pronunciamento político, o enunciador costuma
anunciar de forma explícita a quem se dirige, embora possa
dirigir-se a muitos outros destinatários que não os diretamente
anunciados, valendo-se de outros recursos. Estes direcionamentos podem ser recuperados nos discursos por meio de
diferentes marcas linguísticas.
Outra particularidade desse discurso político presidencial é a
de que o enunciador tem garantido pelo poder do cargo empírico que ocupa o direito ao pronunciamento - já que seu papel
social assim o autoriza e legitima. A certeza de um auditório
no qual se incluem não só os destinatários explicitamente
designados por ele em seu discurso, mas uma multiplicidade
de “ouvintes” é outra marca importante desses discursos.
(DAHER, 2000, p. 86)
Foucault, em sua arqueologia, afirma que os limites do enunciado são os outros enunciados com os quais se pode estabelecer
um espaço de correlações, na medida em que tratam do mesmo
domínio de objetos, e mais ainda: “não há enunciado que, de uma
forma ou de outra, não reatualize outros enunciados” ([1969]1995,
p. 113). Essa relação não só é possível de ser estabelecida com
outros enunciados passados como também condiciona, inaugura,
um leque de relações possíveis futuras. Aqueles enunciados renegados são reformulados por Maingueneau (2008, p. 37) em termos
de ‘interdito’ de um discurso, do ‘dizível faltoso’. Esses vínculos
conformam um jogo enunciativo que é preciso examinar.
Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013
333
Nesta aproximação destacamos o processo designativo
que conforma, desenha objetos de discurso. Esse processo compreende estratégias de substituição, de paráfrases, de sinonímia,
etc, criando, por um lado, a ilusão de uma equivalência entre as
palavras e, por outro, a estabilização do referente. Esse processo
funciona simultaneamente descrevendo e qualificando. Orlandi
(apud KARIM, 2001, p. 83-108) refere-se a dito mecanismo em termos de reescritura. Para a autora, a reescritura é um mecanismo
constitutivo da linguagem que nos possibilita nomear algo ou
alguém de modos diferentes, parafraseando-o. Do conflito, da
tensão que subjaz entre a paráfrase (o mesmo) e a polissemia (o
diferente), surge o sentido como efeito.
Para melhor entender e contextualizar nossa aproximação
ao processo de descolonização africana, recorremos aos aportes
de Anderson ([1983] 2011), obrigatórios para compreender o surgimento de uma nação. Em sua clássica obra de referência para
os estudiosos das ciências sociais, Anderson (idem, p. 32) assim
define o conceito de nação, guiado por uma visão antropológica:
“uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo
intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”. “Imagina-se” e não “inventa-se”, uma espécie de fraternidade horizontal que atravessa todos os integrantes que, sem se conhecerem,
conformam esse conceito moderno aglutinante que se materializa
em práticas.
Anderson, no capítulo 6, intitulado ‘A última onda’, aborda
de maneira geral o surgimento das nações nos territórios coloniais
na África e na Ásia. Afirma que nos novos estados da segunda
pós-guerra “um enorme número dessas nações veio a ter línguas
oficiais europeias, ...herança do nacionalismo oficial imperialista”
(p. 164-5). O autor afirma que a criação e difusão de instituições
de ensino possibilitou a formação de quadros de funcionários e
intelectuais bilíngues que seriam os dirigentes das novas nações.
Aventuramo-nos a pensar que nesse aspecto a jovem Guiné não
foi exceção nessa ‘última onda’ de surgimento de nações.
Uma festa compartilhada pode cumprir a função de afiançar, também, laços culturais. A propósito das festas nacionais,
Tateishi (2005, p. s/d) aponta dois tipos de celebrações da memória
pública: “a que insiste na continuidade da nação desde o passado
histórico, e a que celebra a nação moderna a partir da ruptura
com o passado”.
Conflitos internos na Espanha adiaram a definição de
uma data comemorativa nacional até que as celebrações pelo IV
Centenário da Descoberta da América em 1892, logo a perda em
1895 de Cuba e de Porto Rico em 1898, o crescente expansionismo
dos Estados Unidos na América, a tentativa fracassada no norte
da África e os regionalismos internos aceleraram a necessidade
de reatar laços com as ex-colônias americanas, agora estimadas
como ‘filhas’ sob um novo prisma da política externa, cujo pro334
Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013
pósito era recuperar um prestígio perdido. Para isso, seguindo a
Tateishi (2005), a mãe pátria recorre a seu passado exaltando-o. A
coincidência da data com o dia festivo religioso da Virgen del Pilar,
aliada à ideologia dessa hispanidade, mostrou-se muito eficaz
para consolidar a data comemorativa: “trata-se assim de pôr de
manifesto a pureza moral da nacionalidade espanhola: a categoria
superior, universalista, de nosso espírito imperial, da Hispanidade, (...) defensora y missioneira da verdadeira civilização, que
é a Cristiandade” (VALLS, 1999 y ABÓS, 2003, apud TATEISHI,
2005, p. s/d). No entanto, a festividade só ganha estatuto legal no
9 de janeiro de 1958. Segundo o mencionado autor, a festa do 12
de outubro na Espanha não se encaixaria em nenhum dos dois
tipos apontados no parágrafo anterior. Nesse sentido é coincidente
com Juliá (1990) que, em seu artigo jornalístico Vieja nación, fiesta
imperial, assim qualifica esta comemoração “festa impossível da
nação espanhola”.
Se é imperial, se é impossível para Espanha, como qualificá-la para as ex-colônias? Na América, a proposta, feita pela
União Ibero-Americana em 1912, de adotar a data do 12 de outubro
como Dia da Raça foi rapidamente acolhida por muitos governos.
Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez, a partir da organização
política das comunidades indígenas, pelo decreto no 2028 de 10
de outubro de 2002, rebatiza a data que atualmente celebra o Dia
da resistência Indígena. Mais próximo temos o decreto 1584/2010
sobre feriados nacionais e dias não laboráveis da atual presidente
argentina, Cristina Kirchner, quem assim redesigna a data: Dia
do Respeito à Diversidade Cultural. Como qualificá-la quando essa
data que celebra também um outrora império é escolhida por
dirigentes da nascente nação africana para celebrar a independência, justamente a ruptura com um passado? Não restam muitas
opções; trata-se, então, de celebrar um continuísmo.
Para entender esses deslocamentos de sentido, é mister considerar que até a metade do século XX predominou uma maneira
única, monolítica, de entender a unidade cultural de cada nação
que dá lugar, na segunda metade desse século, ao multiculturalismo. Heymann (2007, p. 16-17) aponta que, em escala mundial,
esse processo foi motivado: pela desagregação da União Soviética,
pela descolonização da África, pela constituição de novos blocos
econômicos (UE e Mercosul), pelo processo de globalização e pelos
movimentos migratórios. Grupos inteiros que tinham permanecido no esquecimento, neste caso os descendentes que restaram
das diversas comunidades indígenas, lutaram pelos seus direitos
e reivindicaram seu lugar na memória agora transformada em
valor, um dever moral de reconhecer múltiplas identidades, tal
como aponta Heymann (2007). Consideramos então que é esse
novo regime de enunciabilidade que nos possibilitará a descrição
discursiva.
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335
Contextualização do discurso
Pág i n a of icia l do
Governo da República
da Guiné Equatorial:
ht t p://w w w.g u i neaecuatorialpress.com/
Consulta realizada em
15/11/2012.
1
336
É indispensável fazer um percurso histórico, nem que seja
sucinto, para melhor entender as condições de produção do pronunciamento objeto deste trabalho. Com essa finalidade destacamos alguns fatos relevantes que foram pesquisados pela internet,
já que nos defrontamos com a inexistência de obras ou artigos
sobre a história da Guiné Equatorial em importantes bibliotecas
universitárias. Esse apagamento da história é muito significativo.
Durante a segunda metade do século XV o território da atual
Guiné Equatorial foi objeto de interesse da Coroa Portuguesa
para o comércio de escravos. Em 1777 Espanha e Portugal assinam o Tratado de São Ildefonso pelo qual passa a ser possessão
espanhola. Em 1827 Espanha autoriza a exploração para a Coroa
Britânica. Em 1861 para colonizar e retomar o controle, Espanha
envia pela força um contingente de cubanos. Logo após a perda
de Cuba em 1895 e de Porto Rico em 1898, últimos bastiões do
poderio espanhol, cresce o interesse pelo território africano. Na
Conferência de Berlim realizada em 1888, as nações imperiais europeias repartem o território e a fatia que corresponde a Espanha
diminui. Essa redução acentua-se com o Tratado de Paris em 1900.
Durante a Primeira Guerra Mundial e a Guerra Civil Espanhola
cresce o interesse colonizador, são criadas instituições educativas
e há investimento sanitário. Um ministro espanhol visita pela
primeira vez a colônia em 1948, agora rentável pela produção
e exportação de café e de madeiras. O primeiro movimento
insurgente Monalige (Movimento de Liberação da Guiné) tem
aparição em 1952. Em 1959 a colônia passa a ser considerada uma
região espanhola e a população passa a ter os mesmos direitos
que os colonos. Quatro anos após ganha o status de autonomia.
Todas essas bondades não foram suficientes e as Nações Unidas
continuaram pressionando para fixar uma data para a libertação
do território guineano. Em 1967 uma conferência institui-se no
intuito de criar uma Constituição. A partir dela há liberdade para
a criação de partidos políticos e livre expressão de ideias, fato
curioso, pois esses eram diferenciais com relação ao território
espanhol daquela época, sob o poderio franquista. Das primeiras
eleições surge Francisco Macías Nguema como presidente, fruto
de uma coligação governamental. Foram as próprias autoridades
que escolheram a data do 12 de outubro para celebrar a sua independência. Logo após, a jovem nação independente passa por um
período negro, coincidente com a época das ditaduras sofridas
em vários países. Macías se adjudica plenos poderes, suspende
a constituição de 68, a população sofre com derramamento de
sangue e terror, e até ordena a queima de bibliotecas, como nos
velhos tempos do nazismo1.
O atual e segundo presidente da Guiné Equatorial é Teodoro
Obiang Nguema Mbasogo, no poder desde 1979. A página oficial
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do governo, logo embaixo da portaria, apresenta assim o país: Um
país cujo desenvolvimento cresce dia a dia. O brasão de armas tem o
lema Unidade, Paz, Justiça. É o país africano com maior PIB per
capita e seu índice de desenvolvimento (IDH) é 0,538, ainda distribuído de forma muito desigual. Esse crescimento em grande parte
se deve à produção e exportação de petróleo e gás desde 19902.
Aproximações ao discurso de 12 de outubro de 1968
Dado s ob t ido s de
h t t p ://w w w. b r a s i le s col a.com/ge og rafia/guine-equatorial.
ht m Con su lt a r ea l izada em 16/11/2012.
3
Dada a extensão do
discurso não o apresentamos em anexo. Remetemos o leitor a http://
e s .w i k i s o u r c e . o r g /
wiki/Discurso_del_12_
de_octubre_de_1968_
por_la_independencia_
de_Guinea_Ecuatorial
Consulta realizada em
06/04/2012.
4
(1) A pr udê ncia do
Caudilho da Espanha; (2)
Uma data histórica exemplar: 12 de outubro; (3) A
independência da Guiné
Equatorial, no marco da
emancipação africana; (4)
Problemas e esperanças da
nova etapa; (5) A obra da
Espanha na Guiné; (6) O
início da descolonização;
(7) A Guiné Equatorial
não está sozinha; (8) Língua espanhola; (9) Harmonia racial; (10) Guiné
independente e Espanha.
2
A sessão foi realizada no Salão do Trono do Palácio Presidencial em Santa Isabel de Fernando Poo, no dia 12 outubro
de 1968. Foi pronunciado pelo representante do chefe do Estado
Espanhol, Francisco Franco, o Ministro de Informação e Turismo,
encarregado de Assuntos Exteriores, D. Manuel Fraga Iribarne,
ante o presidente da República da Guiné Equatorial, D. Francisco
Macías3. Para nosso pesar, nossas buscas pelo discurso do primeiro presidente guiné-equatoriano foram infrutíferas.
O discurso divide-se em dez tópicos e tem uma extensão de
sete páginas. Apresentamos os títulos desses tópicos numerados
esclarecendo que a nossa tradução de todos os fragmentos citados
se encontram nas notas finais: (1) La prudencia del Caudillo de España;
(2) Una fecha histórica ejemplar: 12 de octubre; (3) La independencia de
Guinea Ecuatorial, en el cuadro de la emancipación africana; (4) Problemas y esperanzas de la nueva etapa; (5) La obra de España en Guinea;
(6) La puesta en marcha de la descolonización; (7) La Guinea Ecuatorial
no está sola; (8) Lengua española; (9) Armonía racial; (10) Guinea independiente y España4.
Como em todo discurso, outras vozes comparecem de
maneira mais ou menos explícita, direta ou indiretamente, para
conformar sua malha. Apresentamos essas vozes seguidas de
números entre parênteses que indicam a localização nos tópicos
acima numerados. São estas as marcas de heterogeneidade discursiva: o então vice-presidente do governo espanhol, o Almirante
Carrero Blanco (6); um lema (‘o melhor índio é o índio morto’);
um historiador (Toynbee) e o filósofo mexicano José Vasconcelos.
Ressaltamos que essas três últimas vozes são trazidas no tópico
(9) Harmonia racial. A título de interdiscurso são lembrados: duas
sessões da Conferência Constitucional celebrada no Ministério
de Assuntos Exteriores Espanhol, presididas por Fernando María
Castiella; um referendum e duas eleições (6); as Nações Unidas e
a Organização da Unidade Africana (7).
Chamaram em especial nossa atenção as designações relativas a Francisco Franco e à colonização espanhola. Apresentamos a
seguir um levantamento não exaustivo do processo de reescritura
desses e de outros objetos do discurso. Destacamos que no tópico
(1) o Ministro Iribarne insta que se renda homenagem a Franco.
Já a colonização espanhola é designada em outros termos. Em
todo o discurso só há uma ocorrência da palavra descolonização
no subtítulo (6).
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337
Francisco Franco: A
prudência do Caudilho da
Espanha; Sua Excelência o
Chefe do Estado espanhol;
sua previsão; sua prudência; a altura de suas ambições e a firmeza de seus
propósitos; o generalíssimo
Franco, o homem clarividente e veraz; a decisiva
parte; o artífice com vocês
da prazerosa e esperançosa
realidade (1); nosso Chefe
de Estado (10).
6
A colon i zação da
Guiné: uma obra (1); uma
história que acaba; o início de uma longa e difícil
empresa; a incorporação
ao Cristianismo e à Civilização um vasto cenário
geográfico e um enorme
conjunto de povos dispares;
uma “Política de Missão”
(2); a obra providente da
Espanha ao longo de quase
dois séculos de vida em
comum (4); A obra da Espanha na Guiné; sua presença nestas terras; nossos
missionários; a doutrina
redentora do Cristianismo;
uma enorme força moral;
a possibilidade de entrar
num âmbito de ideias e
de conceitos; o acesso ao
mundo da civilização cultural e técnica; a primeira
etapa –etapa fundacional e
transcendental -da presença da Espanha na Guiné
(5).
7
Espanha: o seio da
Espanha (2); a cujos filhos
(8).
8
A independência da
Guiné: o nascimento de
um novo Estado (1); outra
história que começa; uma
nova filha emancipada da
tutela materna, uma nova
nação independente (2);
neste momento histórico;
o berço desta nação que vai
nascer (3); neste momento
transcendental (4); a independência destas terras
(6); a aparição de uma
nação soberana cuja Constituição (8); uma nação
independente, encarregada
de realizar seu próprio
destino; o Estado nascente;
o momento da separação
jurídica e política entre a
Espanha e a República da
Guiné Equatorial; o primeiro dia na história livre
da Guiné Equatorial (10).
9
A língua espanhola:
o vínculo mais forte; a
segunda do mundo pelo
número de nações e de
gentes que a cultivam li5
338
Francisco Franco: La prudencia del Caudillo de España; Su Excelencia el Jefe del Estado español; su previsión; su prudencia; la
altura de sus miras y la firmeza de sus propósitos; el Generalísimo
Franco, el hombre clarividente y veraz; la decisiva parte; el artífice
con vosotros de la gozosa y esperanzadora realidad (1); nuestro Jefe
del Estado (10)5.
A colonização da Guiné Equatorial: una obra (1); una historia que
acaba; la iniciación de una larga y difícil empresa; la incorporación
al Cristianismo y a la Civilización un vasto escenario geográfico y
un enorme conjunto de pueblos dispares; una “Política de Misión”
(2); la obra providente de España a lo largo de casi dos siglos de vida
en común (4); La obra de España en Guinea; su presencia en estas
tierras; nuestros misioneros; la doctrina redentora del Cristianismo;
una enorme fuerza moral; la posibilidad de entrar en un ámbito de
ideas y de conceptos; el acceso al mundo de la civilización cultural y
técnica; la primera etapa –etapa fundacional y transcendental –de
la presencia de España en Guinea (5)6.
Espanha: el seno de España (2); a cuyos hijos (8)7.
A independência da Guiné Equatorial: el nacimiento de un nuevo
Estado (1); otra historia que comienza; una nueva hija emancipada
de la tutela materna, una nueva nación independiente (2); en este
momento histórico; la cuna de esta nación que va a nacer a la independencia (3); en este momento transcendental (4); la independencia
de estas tierras (6); la aparición de una nación soberana cuya Constitución (8); una nación independiente, encargada de realizar su propio
destino; el Estado naciente; el momento de la separación jurídica y
política entre España y la República de Guinea Ecuatorial, el primer
día en la historia libre de Guinea Ecuatorial (10)8.
A língua espanhola: el vínculo más fuerte; la segunda del mundo
por el número de naciones y de gentes que la cultivan literaria y
coloquialmente; su segunda lengua de cultura; su lengua para la
relación universal, la que les abre las puertas del mundo; el precioso
legado de un idioma universal; un lazo; la lengua española como su
idioma oficial(8)9.
A grande família: una gran familia de pueblos, de distintas razas y
en varios continentes, compañía segura y leal; esa gran familia, unida
entre sí por lazos de comunidad y no de sociedad, historia común, el
mismo Dios en el mismo idioma, de la vida idéntico sentido transcendente; los lazos de esta familia, lazos familiares; lazos flexibles, cambiantes en lo contingente, inconmovibles en la intimidad, de profunda
identificación; en el seno de esta familia, que es una familia vuestra,
entrañablemente acompañados; el día de la gran fiesta familiar, el Día
de la Hispanidad (7); doscientos millones de hispanoparlantes (8)10.
A pequena família: otra pequeña familia, una familia restringidísima que es la inmediatamente nuestra; nuestros dos pueblos; cuyos
lazos; vuestra mejor compañía, unos estrechos lazos de amistad, de
ayuda mutua, de relación constante (10)11.
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Continuação notas 9,
10 e 11.
terária e coloquialmente;
sua segunda língua de
cultura; sua língua para
a relação universal, a que
abre as portas do mundo;
o preciosos legado de um
idioma universal; um laço;
a língua espanhola como
seu idioma oficial(8).
10
A grande família: uma
grande família de povos, de
distintas raças e em vários
continentes, companhia
segura e leal; essa grande
família, unida entre si por
laços de comunidade e
não de sociedade, história
comum, o mesmo Deus
no mesmo idioma, da vida
idêntico sentido transcendente; os laços desta
família, laços familiares;
laços flexíveis, mutáveis no
contingente, incomovíveis
na intimidade, de profunda
identificação; no seio desta
família, que é uma família de vocês, intimamente
acompanhados; o dia da
grande festa familiar, o
Dia da Hispanidade (7);
duzentos milhões de hispanofalantes (8).
11
A pequena família:
uma outra pequena família, uma família restringidíssima que é a imediatamente nossa; nossos dois
povos; cujos laços; vossa
melhor companhia; uns
estreitos laços de amizade,
de ajuda mútua, de relação
constante (10).
Resolvemos designar o enunciador que depreendemos deste
discurso como ‘enunciador bom missionário’, seguindo a lógica
imperialista exposta, se a própria colonização só é designada e
assumida em termos de uma política de missão, ‘a obra’ só está
completa com a emancipação dos filhos que agora civilizados e
cristãos não mais dependem da sua tutela. A tentativa renegadora
é tão forte que só verificamos uma única ocorrência da palavra
descolonização no subtítulo (6).
Nesse sentido nos chamou a atenção uma série de negativas
que merecem um comentário na medida em que são condizentes
com a tentativa de silenciar um passado imperial e, pelo signo
religioso, transformá-lo numa obra missionária. Trata-se das
seguintes negações polêmicas:
a) Porque Espanha não praticou jamais uma política misericordiosa, de exploração econômica, de manutenção do nativo no terror, na
ignorância e na doença. (3)
Não há condições, não temos colocado a vossa independência o
menor marco. (10)
c) Nem a Espanha nem os espanhóis sentiram-se nunca alheios,
indiferentes ou superiores àqueles povos com os que conviveram e aos
que incorporaram à civilização ocidental e cristã. (10)
Consideramos que (a) e (c) refutam argumentos contrários
à colonização de detratores não identificados, enquanto (b) possivelmente responde tanto a pressões internas da Monalige quanto
externas, exercidas pelas Nações Unidas e outras organizações
africanas.
Considerações finais
As aproximações ao discurso de 12 de outubro de 1968 pela
independência da Guiné Equatorial mostraram-se muito profícuas
por vários motivos. Mais uma vez confirmamos que a noção de
hispanidade que se depreende dessa materialidade linguística se
afasta da definição ampla e vaga encontrada nos dicionários. Ao
mesmo tempo verificamos a insistência da exaltação da língua
espanhola e de valores morais sob o signo do cristianismo, sem
distinção de continentes. Essas formações discursivas atravessaram mares e deixaram uma impronta nos territórios colonizados
pela coroa espanhola.
Sob a visão espanhola daquela época, há uma grande família
conformada por todas as nações cristãs, de língua espanhola e
com idêntico sentido transcendente, um vínculo horizontal que
superaria as fronteiras geográficas. Há também ‘outra pequena
família’, esta pequena família é a guineana e é pequena porque
aponta aos vínculos bilaterais entre a Espanha e a jovem nação
africana. Além disso, repetimos, é a única no continente africano
que tem o espanhol como língua oficial majoritária. É tão pequena
que quase é invisível até para os próprios hispanofalantes, hispanistas e alunos de espanhol como língua estrangeira.
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339
Com este trabalho também confirmamos mais uma vez que
a data de 12 de outubro serviu de cartaz político para a Espanha
resgatar um prestígio internacional perdido. A hispanidade de
finais do século XIX e da primeira metade do XX foi fortemente
marcada pelo conservadorismo e na Espanha pelo nacional-catolicismo de Franco. Nesse sentido coincidem vários autores como
Glozman (2008), González (2005) e Tateishi (2005).
Para finalizar apontamos que desde a segunda metade do
século XX o multiculturalismo começa a se projetar como movimento político e esfarela e dessacraliza, por assim dizer, uma
visão monolítica de língua e de cultura.
Abstract
The purpose of this work is to analyze the official
speech given by a Spanish authority, representative of the dictator Francisco Franco, in October
12 of 1968, which was related to the independency
of the Equatorial Guinea. This pronouncement
is part of major research proposed to explicit the
notion of Hispanicity. October the 12th, day of the
arrival of Christopher Colombus in America, also
known as the “discovery” of America, was chosen
by Guinean authorities of the time to celebrate
the independency of the new African nation. An
additional peculiarity of the Equatorial Guinea is
its uniqueness as the only African nation to have
Spanish as the main official language. Guided by
the dialogical bakthinian vision, we adopt as our
theoretical standpoint the Discourse Analysis
(DA), which takes into account enunciative studies. We observe a net of identity affiliations that
is interweaved between the Mother Nation and
the African ex-colony. The subjective instance
that is manifested in an exaltation tone is in
concordance with a historical continuism with
respect to the Spanish language and the moral
values steeped by the Christian religion. This is
mostly observed in the rewriting of the process of
Spanish colonization.
Keywords: small family; independency; Equatorial Guinea; Discourse Analysis; Hispanicity.
REFERÊNCIAS
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre
a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. 2a
reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
340
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DAHER, Maria C. F. G. Discursos presidenciais de 1o de maio: a trajetória de uma prática discursiva. Tese de doutorado em Linguística
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FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 4a ed. Rio de Janeiro:
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GLOZMAN, M. La Academia Argentina de Letras y el peronismo
(1946-1956). Anclajes XIII, 2008, p. 129-144.
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Disponível em: http://elpais.com/diario/1990/07/19/internacional/648338411_850215.html. Acesso 08/04/2012.
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na Folha de S. Paulo. In: Sociedade e Discurso. Campinas: Pontes;
Cáceres, MT: Unemat, 2001.
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Niterói, n. 34, p. 331-341, 1. sem. 2013
341
Resenhas
Foi “análise de discurso”
que você disse?
Silmara Dela Silva
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Foi “análise de discurso” que você disse? “Análise de discurso: Michel Pêcheux.” Textos selecionados por Eni Puccinelli Orlandi. Campinas-SP:
Pontes Editores, 2011.
Acontece que tem sido qualificado como “análise de discurso” toda
prática que deriva seja do campo das leituras de arquivo (desde que
corpora sejam constituídos), seja do campo da análise linguística do
“fio do discurso” (desde que esse “fio” ultrapasse as fronteiras da
frase). (PÊCHEUX, 2011, p. 147)
Falar de Michel Pêcheux (1938-1983) é, sem dúvida, falar
de um teórico que não se esquivou dos desafios de seu tempo.
Como filósofo, trouxe em seus escritos a reflexão sobre a epistemologia e os limites da ciência, questionando fronteiras entre
disciplinas. Como analista de discurso, propôs o estudo de um
novo objeto – o discurso – contemplado por uma teoria discursiva que se questiona sobre a materialidade dos sentidos e, desse
modo, constitui-se no entremeio, no espaço em que a linguagem
se inscreve na história.
Ler Michel Pêcheux é, ao mesmo tempo, deparar-se com a
sua densa reflexão teórica e com a angústia de se fazer ciência – e
ciências humanas – em seu tempo. Mas é também, sem nenhuma dúvida, constatar a relevância e a atualidade de seu pensamento, e a coragem de sua proposta teórica que, ao inscrever-se
no entremeio, coloca questões para diferentes campos do saber,
desloca sentidos aceitos como evidentes, abala certezas diante do
positivismo científico.
É um panorama do pensamento de Pêcheux, exposto em
alguns de seus escritos entre meados da década de 1960 e início de
1980, que encontramos na obra “Análise de discurso: Michel Pêcheux”,
organizada pela professora Eni Puccinelli Orlandi, publicada pela
Pontes Editores no final de 2011. A obra, que está em sua terceira
edição, reúne textos menos conhecidos do autor francês, alguns
deles publicados postumamente. Como bem sintetiza Orlandi em
sua apresentação do livro, são textos menos conhecidos porque
foram “publicados em revistas de pouca circulação, ou apresentados em colóquios e mesmo em jornais.” (2011, p. 14).
São textos menos conhecidos, mas não menos relevantes
para a compreensão do pensamento de Michel Pêcheux: nesse
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 345-349, 1. sem. 2013
Michel Pêcheux foi
pesquisador do Departamento de Psicologia
no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), o centro nacional
de pesquisas na França.
1
346
conjunto de 18 escritos, vemos a marca da inquietação teórica, da
“inquietação do discurso”, como afirma Denise Maldidier (2003),
ao relatar o percurso de Pêcheux na formulação de sua teoria do
discurso. São textos que trazem a marca da reflexão sobre a linguagem que se faz, a cada momento, por uma tomada de posição,
como nos diz o próprio Pêcheux ([1983] 1990).
Apresentar este conjunto de textos é, antes de mais nada,
um desafio: em razão da intensa reflexão teórica que neles se
materializa, qualquer tentativa de síntese será sempre redutora.
Ainda assim, dizer sobre eles é uma necessidade frente ao cenário
atual em que o fazer pesquisa em ciências humanas em geral e,
em particular, em linguística, apresenta-se ainda marcado por
dificuldades e limitações muito semelhantes àquelas constatadas
por Pêcheux em seu texto “As Ciências Humanas e o ‘Momento
Atual’” (1969), um dos artigos que compõem este livro.
Dizer sobre esta obra é também uma necessidade diante do
cenário da própria análise de discurso na atualidade. Como nos
adverte Pêcheux, no fragmento de mais um dos textos do livro –
“Leitura e Memória: Projeto de Pesquisa” (1990) –, que trouxemos
como epígrafe para esta resenha, são inúmeras as práticas de
análise que reivindicam para si a chancela da análise de discurso, ainda que nem todas essas perspectivas trabalhem, de fato, a
relação entre linguagem, sujeito e historicidade na constituição
dos efeitos de sentido. É diante dessa aparente perda das origens,
desse esquecimento com relação ao que de fato constitui o objeto
discurso, que retomar a leitura de Pêcheux e de sua proposta
teórica configura-se como um gesto necessário e urgente também
no “momento atual”.
Como seria impossível discorrermos adequadamente sobre
o conteúdo dos 18 artigos que compõem a obra nesta breve reflexão, propomos apresentá-la a partir da organização dos escritos
que a compõem em três eixos temáticos que, a nosso ver, sintetizam esse conjunto de reflexões pecheutianas. São eles: i) a reflexão
sobre a ciência e o fazer científico; ii) a reflexão sobre a linguagem
e a sua relação com a teoria do discurso; iii) a proposta de uma
teoria do discurso e a abordagem de noções que constituem o seu
quadro teórico.
No primeiro eixo temático, a que chamamos a reflexão sobre
a ciência e o fazer científico, estão os escritos que materializam a
preocupação do filósofo Michel Pêcheux com as ciências humanas, de um modo geral, e com as especificidades e limites de seus
campos de atuação, quais sejam as ciências sociais e a psicologia
social, em particular.1 É nesse eixo temático que incluímos seis
artigos de Pêcheux, a saber: “Reflexões sobre a Situação Teórica
das Ciências Sociais e, Especialmente, da Psicologia Social”, texto
assinado sob o pseudônimo Thomas Herbert, de 1966; “Nota Sobre
a Questão da Linguagem e do Simbólico em Psicologia”, escrito em
parceria com Françoise Gadet, Claudine Haroche e Paul Henry,
Niterói, n. 34, p. 345-349, 1. sem. 2013
O livro de Françoise
Gadet e Michel Pêcheux
foi publicado na França
em 1981, com o título La
langue introuvable. No
Brasil, A língua inatingível: o discurso na história
da linguística tem a sua
primeira publicação em
2004.
2
em 1982; “As Ciências Humanas e o ‘Momento Atual’”, de 1969;
“Posição Sindical e Tomada de Partido nas Ciências Humanas e
Sociais”, de 1976; “Foi ‘Propaganda’ Mesmo que Você disse?”, de
outubro de 1979; e “As Massas Populares são um Objeto Inanimado?”, de 1978.
Para além dos questionamentos sobre a ciência, que tomamos como eixo norteador, nesse primeiro conjunto de artigos
vemos, de fato, uma variedade de questões sendo contempladas,
que incluem desde análises de práticas e dizeres correntes à época,
das quais destacamos as considerações de Pêcheux sobre as propagandas governamentais, no artigo “Foi ‘Propaganda’ Mesmo
que Você disse?”, até a reflexão sobre a prática militante e o posicionamento teórico, em “Posição Sindical e Tomada de Partido
nas Ciências Humanas e Sociais”. Entretanto, o caráter inovador
dessas reflexões de Pêcheux está em considerar a relação de todas essas práticas com a linguagem. Como nos diz Orlandi, em
sua apresentação da obra, a partir de Pêcheux, “sabe-se que nada,
nenhum campo de conhecimento, é indiferente à linguagem.”
(2001, p. 12, grifo da autora).
A reflexão sobre a linguagem é o ponto alto de um segundo
conjunto de textos que encontramos nesta obra. Nesse segundo
eixo temático, a que chamamos a reflexão sobre a linguagem e
a sua relação com a teoria do discurso, incluímos cinco textos,
que são: “Há uma via para a Linguística Fora do Logicismo e do
Socilogismo?”, escrito em parceria com Françoise Gadet, em 1977;
“A Língua Inatingível”, entrevista de Pêcheux e Françoise Gadet
por ocasião do lançamento do livro “A língua intangível” ([1981],
2004),2 que seria publicada apenas em 1991; “A Aplicação dos
Conceitos da Linguística para a Melhora das Técnicas de Análise
de Conteúdo”, de 1973; “Análise Sintática e Paráfrase Discursiva”,
escrito em parceria com Jacqueline Léon, em 1980, e publicado
em 1982; e “Efeitos Discursivos ligados ao Funcionamento das
Relativas em Francês”, de 1981.
Desse segundo conjunto, destacamos o diálogo dos dois
primeiros textos com a obra “A língua inatingível”, de Pêcheux e
Gadet ([1981], 2004), na reflexão acerca de uma nova via para a
linguística e os estudos de linguagem, para além dos extremos
que sempre pautaram os estudos linguísticos, que são o estudo da
forma ou o estudo das determinações sociais sobre o linguístico, e
o deslocamento da análise discursiva em relação à hermenêutica,
especificamente abordada no texto “A Aplicação dos Conceitos da
Linguística para a Melhora das Técnicas de Análise de Conteúdo”.
Justamente como a via para além do logicismo e do sociologismo, e como um modo de se pensar o sentido para além
do conteúdo é que se configura a proposta teórica da análise de
discurso de Michel Pêcheux. Na relação entre o estudo da forma
e as suas implicações para o discurso se centram os outros dois
artigos que incluímos nesse eixo temático, que tomam como ob-
Niterói, n. 34, p. 345-349, 1. sem. 2013
347
jeto, respectivamente, a análise sintática e as orações relativas em
francês, de uma perspectiva discursiva.
Como podemos observar, a reflexão de Michel Pêcheux
sobre a linguagem já se faz, desde o seu início, a partir de um posicionamento teórico que não pressupõe a imaginária neutralidade
do cientista, mas a posição de teórico, o lugar do fazer científico
como um lugar dentre outros. É nesse lugar que Michel Pêcheux
institui a posição de analista de discurso.
A apresentação da perspectiva teórica da análise de discurso e algumas considerações sobre o seu quadro teórico são
o cerne do terceiro eixo temático em que organizamos os textos
desta obra. Nesse caso, temos sete textos, a saber: “Língua, ‘Linguagens’, Discurso”, de 1971; “Especificidade de uma Disciplina
de Interpretação (A Análise de Discurso na França)” e “Sobre os
Contextos Epistemológicos da Análise de Discurso”, publicados
apenas em 1984; “Análise de Discurso e Informática”, de 1981;
“Leitura e Memória: Projeto de Pesquisa”, publicado somente
em 1990; “Ideologia – Aprisionamento ou Campo Paradoxal?”,
de 1982; e “Metáfora e Interdiscurso”, também com publicação
póstuma, em 1984.
Os textos que compõem este último eixo temático em muitos
pontos dialogam com as obras mais clássicas de Pêcheux, que
apresentam a análise de discurso por ele proposta em diferentes
momentos, dos quais podemos mencionar “Análise Automática
do Discurso” ([1969] 1997a), “Semântica e discurso: uma crítica à
afirmação do óbvio” ([1975] 1997), e “O discurso: estrutura ou
acontecimento” ([1983] 2008). Além de apresentar o traçado geral
da análise discursiva, nesse conjunto de textos, Pêcheux aborda noções teóricas fundantes, como ideologia, interdiscurso e
metáfora.
O nosso gesto de divisão dos artigos que compõem este livro em três eixos temáticos, de fato, é apenas um dentre os vários
gestos de leitura possibilitados por esses escritos, bem como pela
obra de Pêcheux como um todo. No conjunto desses textos, questionar o lugar da ciência e as suas fronteiras não se faz sem uma
preocupação com a linguagem que, por sua vez, é fundante para
a proposta da análise de discurso enquanto disciplina. Falar em
Michel Pêcheux e de seus escritos, como já nos advertia Orlandi
(2008), é levar em conta o entremeio, esse lugar de fronteiras
móveis, de reconhecimento de questões que ficam e que sempre
retornam, porque estão sempre já-lá.
Ao apresentar essa coletânea de produções de Michel Pêcheux, traduzida por pesquisadores ligados à análise de discurso
no Brasil, Eni Orlandi destaca essa organização como sendo mais
uma de suas homenagens a Pêcheux, cujas ideias chegaram ao
Brasil, no início da década de 1980, justamente trazidas por ela.
De fato, é também de Orlandi e do grupo de pesquisadores da
análise de discurso que se desenvolveu no Brasil, a partir da leitura
348
Niterói, n. 34, p. 345-349, 1. sem. 2013
de Pêcheux, a tradução de praticamente a totalidade das obras de
Pêcheux que temos hoje publicadas no país.
A organização e publicação de “Análise de discurso: Michel
Pêcheux” é, sem dúvida, mais uma homenagem a Pêcheux, mas,
como nos lembra Orlandi (2011), não é a única. A homenagem a
Michel Pêcheux se presta no dia a dia dos analistas de discurso
em atuação nas diversas instituições de ensino e pesquisa brasileiras, que estabelecem com a teoria discursiva uma relação
teórica consistente. Como afirma Orlandi, na apresentação da
obra que organiza: “... não se ‘recebe’ simplesmente um autor.
Estabelece-se uma relação com a obra deste autor, sempre a partir
de uma posição nossa em nossa tradição de reflexão e na história
do conhecimento que produzimos no Brasil.” (2011, p. 13).
É por isso que diante da interrogativa que trouxemos para
o título desta resenha, parafraseando o título de um dos artigos
de Pêcheux que compõem esta coletânea, podemos responder: é
“análise de discurso” sim que dissemos. Análise de discurso que
se constitui a partir da leitura dos textos fundadores de Michel
Pêcheux, parte deles reunidos nesta obra. Contudo, uma análise
de discurso que continua a escrever a sua história, sem deixar
de considerar aquilo que é próprio ao discurso, esse seu objeto: a
relação com a linguagem, com os sujeitos, com a ideologia.
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Elizabeth Chaves de Mello. Campinas-SP: Pontes Editores, 2004
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hoje. Tradução de Eni Puccinelli Orlandi. Campinas-SP: Pontes
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Michel Pêcheux. Textos selecionados por: Eni Puccinelli Orlandi.
Campinas-SP: Pontes Editores, 2011. p. 11-20.
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acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. 5 ed. Campinas-SP:
Pontes Editores, 2008. p. 7-9.
PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução
de Eni P. Orlandi. 5 ed. Campinas-SP: Pontes Editores, 2008 [1983].
______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
Tradução de Eni P. Orlandi et al. 3 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997 [1975].
______. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F.;
HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso. Tradução
de Bethania Mariani et al. 3ª ed. Campinas: Editora da Unicamp,
1997a [1969]. p. 61-161.
Niterói, n. 34, p. 345-349, 1. sem. 2013
349
Gumbrecht: latência na história
José Luís Jobim (UFF)
GUMBRECHT, Hans Ulrich. After 1945: Latency as Origin of the Present. Stanford:
Stanford University Press, 2013.
Na leitura do novo livro de Hans Ulrich Gumbrecht, duas
dimensões chamam a atenção: uma diz respeito à forma, outra
ao conteúdo.
No que diz respeito à forma, é importante assinalar que se
trata de uma obra que não segue estritamente o padrão de textos
acadêmicos, com um enunciador distanciado de terceira pessoa.
Em After 1945: Latency as Origin of the Present, há também um enunciador que é narrador-personagem, produzindo opiniões em
primeira pessoa. De fato, no livro convivem os dois tipos de enunciador, e o leitor atento já pode perceber isso a partir do sumário:
lá se podem encontrar formulações mais tradicionais, como pares
opositivos (No Exit / No Entry; Bad Faith / Interrogations; Derailment
/ Containers) ou titulações que parecem remeter a elaborações
conceituais (Forms of Latency), mas também se apresenta a voz de
um narrador-personagem em primeira pessoa (Unconcealment of
Latency? My Story with Time). Este narrador-personagem produz
um efeito de subjetividade confessional e reflexiva. A reflexão
não serve apenas para ilustrar alguma argumentação produzida,
mas ganha extensão e densidade, ao dialogar intensamente com
a teorização que se elabora, mesmo contra o desejo de Gumbrecht, que declara: “Não tive intenção de desenvolver, ilustrar ou
aplicar nenhuma “teoria” (muito menos “método”) – entretanto
muito do meu trabalho com o problema existencial tirou proveito
e dependeu do pensamento de muitos predecessores, colegas e
estudantes.”
O efeito de subjetividade confessional ganha verossimilhança não somente nas suas menções mas também nas suas omissões,
como a de nomes de personagens que se relacionam com o narrador-personagem. Como exemplo do primeiro caso, podemos citar
os familiares; como exemplo do segundo, o de Hans Robert Jauss
(citado pela relação funcional como ex-orientador, não pelo nome).
O resultado final da mistura do texto “objetivo” com o
“subjetivo” é interessante, porque há uma certa direção de sentido conduzindo o leitor a entender as conclusões a que chega o
narrador-personagem na parte final do livro como relacionadas
à argumentação “objetiva” anteriormente produzida.
Quanto à estruturação do conteúdo, ao elaborar uma descrição de algumas situações culturais da década de 1945-1955,
procurando depreender a stimmung (o clima, a atmosfera sóGragoatá
Niterói, n. 34, p. 351-354, 1. sem. 2013
cio-cultural) daquele período, Gumbrecht, entre outras coisas,
seleciona um universo de autores e textos que ele interpreta como
sendo instâncias comprobatórias da existência dos topoi por ele
organizados em pares nos capítulos da obra, como títulos. Esses
pares designariam uma direção de sentido disseminada amplamente. Por exemplo, em relação ao par No Exit / No Entry (sem
entrada/ sem saída), Gumbrecht afirma: “O desespero de não ser
capaz de sair e o desespero de não ser capaz de entrar (…) são
onipresentes em textos da década seguinte ao fim da segunda
guerra mundial – não somente em textos daquelas culturas cujas
nações participaram nas ações militares.”
Como a escolha dos autores e obras é feita em função de uma
demonstração da existência de lugares-comuns, configurados nos
pares que dão título a capítulos, o repertório de textos escolhidos
para análise segue essa lógica, e é bem eclético quanto ao gênero
e à qualidade. No caso dos textos mais próximos dos estudos
literários, a seleção abrange autores mais valorizados pela tradição recente, como Becket, Camus, Faulkner, Gottfried Benn, Paul
Celan, Bertolt Brecht, Boris Pasternak, Francis Ponge, Jean-Paul
Sartre, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, e autores que
só são lidos por professores de literatura como dever profissional,
como Giovannino Guareschi, Yuri Triponov, Luis Martín-Santos.
No entanto, há também textos filosóficos, matérias de jornal, cartas. De fato, Gumbrecht não entra na questão do mérito (ou da
ausência dele) no universo textual abordado, já que faz dele um
uso demonstrativo, por assim dizer.
Ao tematizar a situação do pós-guerra, ele a interpreta como
“global”, porque envolveria uma rede de desafios, preocupações
e encaminhamentos de soluções que afetariam não somente as
nações mais intensamente envolvidas no conflito, mas também
outras, como o Brasil. Alguns contornos daquela situação, segundo ele, ainda estariam presentes hoje, mas a percepção disso não
seria a mesma do passado.
Gumbrecht desenvolve bons argumentos para sustentar que
os temas, provocações e tarefas daquele período não eram percebidos então como novos ou surpreendentes, mas como problemas
recorrentes, derivados de tempos anteriores. Ele aponta a emergência de um sentimento crescente de impaciência e frustração sobre
a escassez de soluções à vista, e considera isso como resultado
da ausência de novas respostas a antigas perguntas. Claro, nem
sempre se conhece a abrangência do que pode vir a ser articulado
como pergunta (ou como resposta), e o livro busca, entre outras
coisas, tematizar a situação de latência, conceito chave no livro:
“Em uma situação de latência e na presença de um clandestino nós estamos certos de que algo (ou alguém) tem uma
articulação material, que significa que requer espaço. Obviamente,
não somos nem capazes de dizer exatamente de onde vem essa
certeza nem onde o que está latente poderia precisamente estar. E
352
Niterói, n. 34, p. 351-354, 1. sem. 2013
porque não estamos familiarizados com a identidade do objeto ou
pessoa latente, não temos garantia de que poderíamos reconhecer
o latente se em algum momento aparecesse. Evidentemente o que
está latente pode muito bem modificar-se enquanto permanece
indetectável. No entanto, o mais importante é que não temos razão
para acreditar – nenhuma razão sistemática, pelo menos – que
aquilo que uma vez se tornou latente vai algum dia se mostrar
ou tornar-se completamente esquecido.”
O narrador-personagem argumenta que a vida de sua geração foi marcada pela expectativa e pela esperança de que algo
“latente” viria à tona e se mostraria, permitindo aos membros
dessa geração escaparem da longa sombra de um Stimmung cuja
origem nunca foram capazes de identificar. Essa expectativa e
esperança de um desvelamento da latência e, por consequência,
de um sentimento geracional de “redenção” nunca teria sido
preenchida.
Gumbrecht considera que aquilo que emergiu depois de
1945 não poderia realmente ser chamado de “latência”, embora
fosse possível descrever como Stimmung, isso é, tanto como uma
atmosfera abrangente quanto como um clima experimentado
subjetivamente: “Recordar-se de Stimmungen pode dar a certeza
retrospectiva de que algo negligenciado, ignorado, e algumas
vezes mesmo perdido teve um impacto decisivo na vida de um
momento histórico – e frequentemente continua a ser parte do
que compõe cada presente subsequente.”
O uso do termo cronótopo (criado por Bakhtin para configurar o tempo em correlação com o espaço e uma weltanschauung inserida em determinada forma), para designar uma certa construção de sentido do tempo, foi uma opção interessante também,
porque remete a um tempo significativo, ainda que efetivamente
venha a significar coisas diferentes. E o que veio a significar, para
o narrador-personagem?
Em suas próprias palavras, ele declara: “Cresci com a expectativa de que um dia alguma coisa se tornaria clara, alguma
coisa que eu não sabia – que eu acreditava não saber ainda – o
que era.” Ao resumir, então, sua experiência com o cronótopo de
sua geração, o narrador-personagem elabora sobre o seu passado
e de sua geração:
“Então minha história com o tempo (e, de novo, eu assumo
que não foi somente minha história individual) foi uma expectativa constante e constantemente frustrada de que algo crucial
se mostrasse – e o esforço de uma vida inteira para adaptar as
visões de futuro e passado a esse ciclo repetido de expectativas
e frustrações.”
Por outro lado, o modo de dar sentido ao tempo será, na
visão do narrador, diferente para seus netos do que foi para ele,
porque o futuro não será mais experimentado como um horizonte
de possibilidades a partir das quais se podem fazer escolhas,
Niterói, n. 34, p. 351-354, 1. sem. 2013
353
mas como uma multiplicidade de ameaças vindo em direção
do ser humano. A exaustão de recursos naturais do planeta e
o aquecimento global, frutos da ação humana no passado, não
são algo que pode ser deixado para trás, mas, isto sim, algo que
invade o presente dos netos do narrador. Um presente cada vez
mais alargado de simultaneidades, em que, inclusive por causa
das tecnologias cada vez mais desenvolvidas de armazenamento
de dados, nada é deixado de lado.
Com um presente que se alarga cada vez mais, surgiria a
impressão de que nos encontramos em um momento de estagnação, e de que o tempo não seria mais agente de mudança,
mas, se não é possível mais deixar nada para trás, também não é
possível descartar completamente o cronótopo anterior: “... meus
netos podem continuar a usar e reciclar os conceitos do velho
cronótopo – embora ele não mais corresponda ao comportamento
cotidiano deles dentro das dimensões modificadas do passado,
futuro e presente.”
Ponto a ser destacado, segundo o narrador, é como o novo
cronótopo do presente estendido se relaciona com um período de
latência na década posterior à segunda guerra mundial:
“Parece uma hipótese plausível que o período pós-guerra
de latência foi uma primeira ruga no correr sem obstáculos do
‘tempo histórico’, isto é, uma primeira ruga no ‘tempo histórico’
como um cronótopo cujas três condições chave de deixar o passado para trás, atravessar um presente de mera transição e entrar
no futuro como um horizonte de possibilidades tinham sido tão
consideradas como garantidas por gerações anteriores que elas
confundiam essa topologia específica com o ‘tempo em si’ ou com
a ‘história em si’”.
Refletindo criticamente sobre a geração que passou por isso,
o livro de Gumbrecht é uma contribuição marcante para uma
melhor compreensão do passado e de seus efeitos no presente e
na imaginação sobre o futuro.
354
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Organizadores
deste número
BETHANIA MARIANI
Com Pós-doutorado pela Stanford University (USA), é professor associado IV da Universidade Federal Fluminense (UFF), bolsista 1C
do CNPq (com projeto em vigor entre 2011 e 2014); entre 2008/2011
recebeu bolsa Cientista do Nosso Estado pela FAPERJ. É parecerista ad hoc do programa PROCIENTISTA da UERJ, e, também, atua
como parecerista para FAPERJ, FAPESP, FAPEMIG, CNPq, CAPES,
UNESB, PUCCAMP, UNICAMP, dentre outras instituições. É membro da ABRALIN, da ALED e integra Comitê Editorial de Revistas
Científicas. É especialista em Análise do Discurso, em História
das Ideias Linguísticas e em Psicanálise. Coordena o Laboratório
Arquivos do Sujeito (www.uff.br/LAS) que tem parceria com laboratórios nacionais e internacionais. Além das atividades de docência, pesquisa e orientação, foi chefe de departamento em três diferentes períodos. Constituiu e coordena o Grupo Teorias do Discurso
(GTDIS). Coordena o projeto Divulgação Científica em Análise do
Discurso: investigação e inovação (FAPERJ, 2013/15). Além de artigos em revistas científicas e capítulos de livros, publicou vários livros, dos quais citamos dois, estes em parceria com outros pesquisadores, Discurso e... e Discurso, arquivo e..., ambos publicados pela
FAPERJ (2012).
VANISE MEDEIROS
Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com
estágio de doutorado-sanduíche na Universidade Paris 3 (França com
bolsa CAPES), é professor adjunto III, com dedicação exclusiva, da
Universidade Federal Fluminense (UFF), atuando na área de Letras
(graduação e pós-graduação), com ênfase em Linguística, Análise
de Discurso e História das Ideias Linguísticas. Coordena a Linha
2 (Teorias do texto, do discurso e da interação) da Pós-Graduação
em Estudos de Linguagem. É bolsista 2 do CNPq e Jovem Cientista
do Estado pela FAPERJ. Integra e coordena com Bethania Mariani o
Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS), com parcerias com os laboratórios Corpus (UFSM) e EL@DIS (USP-Ribeirão Preto). É membro
do grupo de pesquisa interinstitucional GTDIS (Grupo de Teoria do
Discurso). Publicou vários artigos, capítulos de livro e livros. Dentre
suas mais recentes publicações estão os livros Ideias Linguísticas: formulação e circulação no período JK (2011) e Discurso e... (2012) em parceria com Bethania Mariani, o livro Discurso, arquivo e... (2012), com
Bethania Mariani e Silmara Dela-Silva, e o livro Dois campos em (des)
enlaces: discursos em Pêcheux e Lacan (2013) em parceria com Bethania
Mariani e Lucília Maria Abrahão e Sousa.
Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013
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Colaboradores
deste número
AMANDA E. SCHERER
Pós-doutorado pela Université de Rennes 2 (França), é professor associado IV da Universidade Federal de Santa Maria. Tem experiência
na área de Linguística, com ênfase em Análise do Discurso, atuando
principalmente em História das Ideias Linguísticas e Sujeito entre
Línguas. Atualmente, coordena o Projeto Internacional Apprendre la
citoyenneté par lécole pour pratiquer dans une société démocratique entre a
Université de Franche-Comté (França) e a Universidade Federal de
Santa Maria (Brasil), financiado pelo PESI (Partenariat Educatif de
Solidarité Internationale), como também coordena juntamente com a
Prof.ª Verli Petri as parcerias institucionais entre o Laboratório Corpus
(UFSM), o Labeurb (Laboratório de Estudos Urbanos/Unicamp) e o
Projeto PALADIS (UNESP/São José do Rio Preto). Dentre os vários
textos publicados, citamos A História e o Político na Produção Científica
sobre a Linguística: um exemplo do Fundo Documental Neusa Carson em
parceria com Verli Petri, na Revista Fragmentum (2013), e o livro
Discurso: circulação, fragmentação e funcionamento pela autora organizado, editado pelo PPGL de Santa Maria (2007).
ANGELA BAALBAKI
Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), mestre em Letras também pela mesma universidade
e doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
é professor assistente de Linguística da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Desenvolve pesquisas na área de Análise
de Discurso de linha francesa, e coordena o projeto de pesquisa
Divulgação científica: análise discursiva de estudos da linguagem em periódicos dos séculos XIX e XXI. É autora, entre outros, do artigo Análise
discursiva de revista de divulgação científica: o lugar da memória do futuro, na Revista do GEL, em 2012, e do livro Linguística III, organizado
em parceria com Silmara Dela-Silva et alii, publicado pela Fundação
CECIERJ (2013).
ARACY ERNST-PEREIRA
Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), possui mestrado e doutorado em Linguística e Letras
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Realizou estágio pós-doutoral na Universidade de Paris III,
Sorbonne-Nouvelle. É professor titular da Universidade Católica
de Pelotas (UCPEL), atuando no Programa de Pós-Graduação em
Letras. É membro do LEAD (Laboratório em Estudos em Análise de
Discurso) e pesquisadora na área de Análise do Discurso. É autora,
entre outros, de O Casaco de Arlequim. Uma reflexão sobre a semântica proposta por Michel Pêcheux, publicado em Estudos da Língua(gem) (Vitória
da Conquista Edições, 2005), e do livro Linguagens. Metodologias de ensino e pesquisa, organizado em parceria com V. Leffa, publicado pela
EDUCAT/Pelotas, RS (2012).
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BEATRIZ ADRIANA KOMAVLI DE SÁNCHEZ
Possui graduação em Fonoaudiologia e em Psicologia pela
Universidad de Buenos Aires (UBA), graduação em Letras PortuguêsEspanhol pela Universidade Estácio de Sá (UNESA), especialização
em Espanhol Instrumental para Leitura, e mestrado em Linguística
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Trabalha no
Centro de Cultura Anglo-Americano. Desde março de 2010, é professor assistente no Setor de Espanhol da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Atua na especialização de Espanhol Instrumental
para Leitura. É doutoranda no Programa em Estudos de Linguagem
da Universidade Federal Fluminense (UFF/CAPES), na linha de pesquisa Teoria do Texto, do Discurso e da Interação. Tem experiência
na área de Linguística, com ênfase em Análise do Discurso. Dentre
suas produções, está O projeto LICOM/LETI: um grande espaço que convida à reflexão, texto publicado nos Anais do XIV Congresso Brasileiro
de Professores de Espanhol (Niterói, 2013).
BELMIRA MAGALHÃES
Com Pós-Doutorado em Análise de Discurso pelo Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, atua
como professor associado IV na Universidade Federal de Alagoas
(UFAL), nos cursos de Ciências Sociais e Letras, na graduação e na
pós-graduação. Suas pesquisas e produções são desenvolvidas nas
áreas de Análise do Discurso Político; Literatura e Estudos de Gênero.
Seus trabalhos têm ênfase nos estudos sobre ideologia e inconsciente, história, política, gênero, literatura e sociedade. Atualmente, coordena o Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da
UFAL. Dentre suas publicações, citamos as mais recentes, seu livro
Contradição Social e Representação do Feminino, publicado pela Edufal
(Maceió, 2011), e seu artigo Discurso, ideologia, inconsciente no livro
Discurso e.... organizado por Bethania Mariani e Vanise Medeiros, publicado pela Viveros de Castro Editora Ltda. (2012).
BRUNO DEUSDARÁ
Professor adjunto de Linguística (Instituto de Letras/UERJ) e de
Língua Portuguesa e Literatura Brasileira (Instituto de Aplicação
Fernando Rodrigues da Silveira/UERJ). Atua no Programa de Pósgraduação em Letras (área de concentração em Linguística) do ILE/
UERJ. Doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ), e mestre em Letras, área de concentração em Linguística, pela UERJ. Atuou como professor I de Língua
Portuguesa da rede pública estadual do Rio de Janeiro e como professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do Centro Federal
de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). Suas
áreas de interesse são Análise do Discurso, Estudos Enunciativos,
Pesquisa-intervenção, Interface linguagem e trabalho, Produção de
subjetividade, Práticas intersemióticas e Ensino de língua materna.
É autor, entre outros, de Trajetórias em Enunciação e Discurso: conceitos
Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013
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e práticas, livro organizado em parceria com V. Santanna, publicado
pela Claraluz (São Carlos, 2007).
DÉCIO ROCHA
Possui mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-RJ), D.E.A. em Sciences du Langage pela
Université Paris III Sorbonne-Nouvelle (França), doutorado em
Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e estágio pós-doutoral
na Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente é professor
associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde
trabalha com Linguística, Linguística Aplicada e Análise do Discurso
(Graduação e Pós-graduação no Instituto de Letras) e Francês (na
Educação básica do Instituto de Aplicação. É autor, entre outros, de
Cartografias em análise do discurso: rearticulando as noções de gênero e cenografia, publicado na DELTA (PUC-SP, 2013), e de Perspectiva foucaulltiana, capítulo do livro Texto ou discurso? organizado por Beth
Brait et alii (Contexto, 2012).
ERCÍLIA ANA CAZARIN
Graduada em Letras pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras
de Santo Ângelo e pela Faculdade de Formação de Professores
e Especialistas de Educação de Camaquã, bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Santo Ângelo. Possui
mestrado e doutorado em Letras, na área de Teorias do Texto e do
Discurso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
É membro do LEAD (Laboratório em Estudos em Análise de
Discurso), pesquisadora na área de Análise do Discurso, e professora
no Programa de Pós-Graduação da Universidade Católica de Pelotas
(UCPEL). Publicou os livros Heterogeneidade discursiva: relações e efeitos de sentido do discurso-outro no discurso político de L. I. Lula da Silva
(1998) e Identificação e representação política: uma análise do discurso de
Lula (2005), ambos pela Editora Unijuí. É uma das organizadoras dos
livros Ensino e aprendizagem de línguas: língua portuguesa (Ed. Unijuí);
Práticas discursivas e identitárias: sujeito e língua (Editora Nova Prova,
Porto Alegre); Língua, escola e mídia: en(tre)laçando teorias, conceitos e
metodologias (Editora da UPF, 2011).
EVANDRA GRIGOLETTO
Doutora em Teorias do Texto e do Discurso pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), é professora de Língua Portuguesa
do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, atuando nas linhas de pesquisa Análises do Discurso e Análises de
Práticas de Linguagem no Campo de Ensino. Em suas pesquisas,
tem-se dedicado às questões relacionadas ao funcionamento do
discurso midiático, analisando especialmente diferentes discursividades inscritas no espaço virtual. Publicou O Ensino a Distância e as
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Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013
Novas Tecnologias: o funcionamento do discurso pedagógico nos Ambientes
Virtuais de Aprendizagem, na Revista Eutomia (UFPE, 2011), e coorganizou o livro Discursos em rede: práticas de (re)produção, movimentos de
resistência e constituição de subjetividades no ciberespaço, publicado pela
Editora da UFPE (2011).
FABIELE STOCKMANS DE NARDI
Doutora em Teorias do Texto e do Discurso pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (2007), é professora de Língua Espanhola do
Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, atuando nas linhas de pesquisa Análises do Discurso e Análises de Práticas
de Linguagem no Campo de Ensino. Em seus projetos, tem-se dedicado especialmente às questões que tratam a relação entre língua,
cultura e identidade no âmbito das teorias do discurso. É coorganizadora do livro Discursos em rede: práticas de (re)produção, movimentos de
resistência e constituição de subjetividades no ciberespaço, publicado pela
Ed. Universitária – UFPE (Recife, 2011), e de Foucault com Pêcheux: entre a estrutura e o acontecimento, publicado no livro Foucault com outros
nomes: Lugares de Enunciação organizado por Pedro de Souza et alii,
publicado pela Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa
(2009).
FÁBIO SAMPAIO DE ALMEIDA
Doutorando em Linguística Aplicada pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Letras, na área de Linguística, pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é professor de Língua Espanhola do CEFET-RJ UnED Petrópolis. Tem experiência na área de Linguística Aplicada, com ênfase em Estudos do
Discurso e Pragmática. Dentre seus textos publicados, temos A prática do concurso público para professores: uma seleção para o trabalho? publicado no livro Trajetórias em Enunciação e Discurso: Práticas de Formação
Docente, organizado por Maria Del Carmen Daher et alii (2009).
FERNANDA SURUBI FERNANDES
Mestre em Linguística pela Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT), pesquisadora do centro de Estudos e Pesquisa em
Linguagem/CEPEL. Participa do Grupo de Estudos em Análise
de Discurso (GEAD), do Departamento de Letras, e do Grupo de
Estudos Marxiano (Gemarx), do Departamento de Direito, ambos da UNEMAT. Atualmente é professora do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (IFMT) e professora na Universidade do Estado de Mato Grosso. Tem experiência na
área de Linguística, com ênfase em Análise de Discurso. Dentre suas
publicações, estão O corpo na relação trabalho X prazer, na Revista Rua
(Labeurb/UNICAMP) (2013), e A Incompletude, o Real e a Contradição
em Diferentes Materialidades Sobre a Imagem Feminina, no livro Redes
Discursivas: a língua(gem) na pós-graduação, organizado por Olimpia
Maluf-Souza et alii, editado pela Pontes (2012).
Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013
359
FREDA INDURSKY
É licenciada em Letras pela UFRGS. Possui Licence en Lettres - Faculté
des Lettres et Sciences Humaines de Besançon; Maîtrise en Lettres Faculté des Lettres et Sciences Humaines de Besançon. Doutora em
Ciências da Linguagem pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Professora titular, aposentada, atua como professora
convidada junto ao Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ministrando disciplinas e
orientando mestrandos e doutorandos cujos projetos se inscrevam na
Linha de Pesquisa Análises Textuais e Discursivas, onde sua pesquisa também está inscrita. Publica em periódicos científicos nacionais e
internacionais. Autora e organizadora de vários livros e capítulos de
livros. Dentre eles, foi reeditado o livro A fala dos quartéis e as outras
vozes pela Editora da UNICAMP (2013), e, em parceria com Solange
Mittmann e Maria Cristina L. Ferreira, organizou o livro Memória e
História na/da Análise do Discurso, publicado pela Mercado de Letras
(2011).
GRECIELY CRISTINA DA COSTA
Possui mestrado e doutorado em Linguística pela Universidade
Estadual de Campinas. Durante seu doutoramento, realizou um estágio de pesquisa (doutorado sanduíche) na Université de Paris XIII
(França). Atualmente, é professora do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Linguagem e coordenadora do Núcleo de Pesquisas
em Linguagem (NUPEL), da Universidade do Vale do Sapucaí
(UNIVÁS). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em
Análise de Discurso. Dentre suas publicações, temos Linguagem e
Historicidade, livro organizado em parceria com Débora Massmann
publicado pela Editora RG (2013), e Denominação: um percurso de sentidos entre espaços e sujeitos, artigo publicado na Revista Rua (2012).
HELSON FLÁVIO DA SILVA SOBRINHO
Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Alagoas
(UFAL), participou como professor convidado no Programa de Pósgraduação em Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da UFAL
na Linha de pesquisa Sociedade, Identidade e Pensamento Social.
Lecionou a disciplina Análise do Discurso no curso de Especialização
em Linguística e Literatura Brasileira na Academia Alagoana
de Letras (2006-2008). Atualmente é professor de Linguística,
Análise do Discurso na Faculdade de Letras da UFAL (Graduação
e Pós-Graduação). Também atua no Curso de Especialização em
Gerontologia Social da Faculdade de Serviço Social da UFAL. Tem
experiência nas áreas de Linguística, Análise do Discurso (AD),
Sociologia e Educação, dedicando-se principalmente aos temas
Discurso, Língua, Velhice, Sociedade, Mídia e Educação. É membro
do Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística
(PPGLL-UFAL) e do Colegiado da Graduação em Letras; atua ainda
no Comitê Assessor de Pesquisa e Pós-Graduação da UFAL. Dentre
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Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013
suas publicações estão o livro Análise do Discurso: fundamentos e prática do qual foi um dos organizadores, e o livro Discurso, Velhice e
Classes Sociais, ambos publicados pela Edufal (Maceió, 2009 e 2007,
respectivamente).
JOSÉ LUÍS JOBIM
Com pós-doutorado na Stanford University (USA), atualmente é professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e
professor associado IV da Universidade Federal Fluminense (UFF). É
consultor ad hoc para avaliação de pós, qualis e auxílios da CAPES, parecerista ad hoc do CNPq, da FAPERJ e da FAPESP, e referee/peer reviewer da Agenzia Nazionale di Valutazione del sistema Universitario
e della Ricerca (ANVUR, Itália), e membro do Advisory Board de
Harvard. É Cientista do nosso Estado pela FAPERJ. Seu projeto atual
visa a uma análise crítica dos fundamentos alegados por produtores
de textos (literários, teóricos, críticos) dos séculos XX e XXI sobre sua
própria escrita, considerando questões como o estatuto da autoria; as
diferentes perspectivas sobre os (novos e antigos) suportes da escrita;
as textualidades do agora. Dentre os vários artigos e livros publicados, recentemente destacam-se A crítica literária e os críticos criadores
no Brasil e Literatura e cultura: do nacional ao transnacional, ambos os livros publicados pela Editora da UERJ (2012 e 2013, respectivamente).
LUCIENE JUNG DE CAMPOS
Graduada em Psicologia pela PUC-RS, mestre em Organizações
e Recursos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) e doutora em Estudos da Linguagem: Teorias do
Texto e do Discurso também pela UFRGS, é professora do Centro de
Ciências Humanas e do Programa de Pós-graduação de Mestrado em
Turismo na Universidade de Caxias do Sul (UCS). É pesquisadora
do CNPq com ênfase em Psicanálise, Análise do Discurso e Análise
Institucional. É também psicanalista. Dentre suas publicações, encontram-se a organização do número da Revista Organon – Autoria
nas entre-linhas editada pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul em 2012, e o artigo O Museu é o Mundo: Intervenção na Cidade e
Estranhamento do Cotidiano nos Fluxos Urbanos, publicado no v. 4 da
Revista Rosa dos Ventos (UCS, 2012).
LUCÍLIA MARIA ABRAHÃO E SOUSA
Com doutorado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/
USP) e livre-docência em Ciências da Informação e da Documentação
pela mesma instituição, é docente com dedicação exclusiva no Curso
de Graduação em Ciências da Informação e da Documentação e no
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, ambos da FFCLRP/USP;
professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciência,
Tecnologia e Sociedade da UFSCAR. É bolsista 2 do CNPq e parecerista ad hoc do CNPQ e FAPESP, além de membro da ABRALIN,
Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013
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ALED, ALFAL, GEL e GT de Análise do Discurso da ANPOLL. É
especialista em Análise do Discurso. Coordena o Grupo de Pesquisa
Discurso e Memória: movimentos do sujeito, e o E-L@DIS (Laboratório
Discursivo – sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimentos), financiado pela FAPESP. Publicou vários livros, além de artigos em
revistas científicas e capítulos de livros. Dentre seus textos mais recentes estão o livro que organizou com Amanda Scherer, Língua, museu e patrimônio (2013), e o que organizou com F. Galli, De fragmentum
a mosaico (2012).
MARCHIORI QUEVEDO
Possui licenciatura em Letras pela Universidade Federal de Pelotas
(UFPel), especialização em Linguística Aplicada pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e mestrado
em Letras pela Universidade Católica de Pelotas (2012). Atualmente é
doutorando em Letras pela UCPel. É membro do LEAD (Laboratório
em Estudos em Análise de Discurso) e pesquisador na área de
Análise do Discurso. Professor de ensino básico técnico e tecnológico do Instituto Federal Sul-rio-grandense de Educação, Ciência e
Tecnologia. Publicou Análise da prova de redação (vestibular da UFPel
2002) em livro organizado por W. B. Brauner Analisando Provas
Interdisciplinares e Dissertativas – Processo Seletivo verão 2002, publicado pela Editora da UFPel (Pelotas, 2004).
MARIA CLARA GOMES MATHIAS
Doutoranda em Linguística Aplicada no Programa de Pós-Graduação
em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará (UECE);
mestre em Linguística por este mesmo programa; advogada e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFCE); e licenciada em Letras pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Participa, como membro, do Grupo de Pesquisa de Estudos de Mídia
e Tensões Sociais no Contemporâneo (GEMTES/UECE) e do Núcleo
Interdisciplinar de Estudos em Pragmática (NIPRA/UECE). Tem
experiência na área de Linguística, com ênfase em Estudos Críticos
da Linguagem. Atualmente desenvolve trabalhos interdisciplinares voltados para a investigação do discurso jurídico e sua política
de representação. Publicou, em parceria com R. Ferreira, Significado
Representacional e Pós-Marxismo: a Construção Interdiscursiva do Estado
de Direito Brasileiro na Constituição da República e a Possibilidade de um
Modelo Constitucional Agonístico, nos Anais eletrônicos do III Simpósio
Nacional e I Simpósio Internacional de Discurso, Identidade e
Sociedade – Dilemas e Desafios da contemporaneidade (III SIDIS,
2012, Campinas-SP).
MARIA CRISTINA GIORGI
Possui graduação em Letras Habilitação Português Espanhol pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2002), graduação em Letras
Habilitação Português Espanhol pela Universidade do Estado do Rio
362
Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013
de Janeiro (2002), mestrado em Letras pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (2005) e doutorado em Estudos da Linguagem
pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é professora titular do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da
Fonseca dos ensinos Médio e Técnico e na Pós-graduação de Relações
Étnico-raciais. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em
Análise do Discurso, atuando principalmente nos seguintes temas:
análise do discurso, gênero de discurso, intertextualidade, formação
docente, concurso público, ensinos médio e técnico, questões étnico-raciais. É autora de vários artigos em periódicos, capítulos de livros
e livros na área da AD, entre os quais se destaca a obra Trajetórias em
enunciação e discurso:práticas de formação docente, em coautoria.
MARIA DO SOCORRO PEREIRA LEAL
Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Piauí
(UFPI), mestrado e doutorado em Letras pela Universidade Federal
Fluminense (UFF) na área de Análise do Discurso. É professora do
curso de Letras da Universidade Federal de Roraima (UFRR), atualmente atuando na graduação e na pós-graduação. Em 2009, ganhou
o edital para a publicação de dissertação da Editora da UFRR, pela
qual publicou o livro Raposa Serra do Sol no discurso político roraimense
(2012). É membro do Grupo de Teoria do Discurso (GTDis), vinculado ao Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS), coordenado pela Prof.ª
Bethania Mariani, do Departamento de Ciências da Linguagem da
Universidade Federal Fluminense (UFF). É coorganizadora do livro
Estudos de linguagem e cultura regional: vertentes poéticas e linguísticas,
publicado pela Editora UFRR (Boa Vista, 2013).
MARIA ONICE PAYER
Mestrado e doutorado em Linguística pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp). Atuou como Pesquisadora no Laboratório
de Estudos Urbanos do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade
(Labeurb/Nudecri/Unicamp). É professor titular na Universidade
do Vale do Sapucaí (UNIVÁS) em Pouso Alegre (MG), onde trabalha
no Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem (CAPES/
MEC) e nos cursos de Pós-graduação Lato Sensu e de Graduação em
Letras. Exerceu nesta Universidade a coordenação de Pesquisa da
área de Ciências Humanas, e participa de funções administrativas
em conselhos diversos. É parecerista da CAPES e FAPESP, Editora
da UNB e membro de Conselhos Editoriais de periódicos da Área,
em IES públicas e privadas. Coordenou o GT de Análise de Discurso
da ANPOLL, no qual atualmente é coordenadora da linha de pesquisa Subjetivação e Processos de Identificação. É membro regular
de Associações de Pesquisa. Publicou os livros Memória da Língua.
Imigração e Nacionalidade (Ed. Escuta) e Educação Popular e Linguagem
(2a. ed., Ed. Unicamp), além de muitos capítulos de livros, artigos
em periódicos especializados e anais de congressos da área. Orienta
pesquisas em nível de pós-graduação e graduação. Lidera no CNPq
Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013
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o Grupo de Pesquisa Discurso, Memória e Processos de Subjetivação, trabalhando com a relação Sujeito/Língua(s) e pesquisando sobre a memória discursiva sobretudo em contextos de imigração, a identificação com as línguas, leitura e escrita, mídia e subjetivação na sociedade
contemporânea. Atualmente também faz formação em Psicanálise.
MARIE-ANNE PAVEAU
Professora de Linguística na Universidade de Paris 13 Sorbonne
Paris Cité (França), membro do Centro de Estudo de Novos Espaços
Literários (Cenel), a pesquisadora desenvolve trabalhos articulando
discurso, contexto e cognição social. Dentre os temas a que se dedica estão os contextos e dados culturais, o corpo, os objetos e os ambientes cognitivos, normas éticas e linguísticas, filosofia do discurso.
Também desenvolve pesquisas sobre história e epistemologia das ciências da linguagem. Em destaque está a formulação da noção de pré-discurso encontrada no livro Les prédiscours. Sens, mémoire, cognition,
publicado por Presses Sorbonne Nouvelle (Paris, 2006).
NÁDIA PEREIRA DA SILVA GONÇALVES DE AZEVEDO
Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), fonoaudióloga pelo Instituto Brasileiro de Medicina
de Reabilitação (IBMR, Rio de Janeiro), especialista em Patologias da
Linguagem (UNICAP), especialista em Linguagem pelo Conselho
Federal de Fonoaudiologia (CFFa), mestre em Fonoaudiologia pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente
é professor adjunto II da Universidade Católica de Pernambuco, atuando na Graduação em Fonoaudiologia e como coordenadora, professora e pesquisadora no Programa de Pós-graduação stricto sensu
em Ciências da Linguagem. É líder, juntamente com a Prof.ª Fátima
Vilar de Melo, do grupo de pesquisa do CNPq Linguagem, Distúrbio
e Multidisciplinaridade, tendo como áreas predominantes: Linguística,
Letras e Artes. Teve aprovado projeto, como coordenadora, no Edital
Universal do CNPq, intitulado Sommercamp: Terapia intensiva da gagueira em adolescentes e adultos no Recife-Pernambuco-Brasil, em que trabalharam também os Professores Jörg Mussman e Maria do Carmo
Oliveira, da Universidade de Giessen, Alemanha. É autora, entre
outros, de Fonoaudiologia e pedagogia especial em um sistema escolar inclusivo na Alemanha, em parceria com Joerg Mussman, publicado em
Educação em Revista (UFMG, 2012).
OLIMPIA MALUF SOUZA
Possui mestrado e doutorado em Linguística pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é professor titular no
Departamento de Letras da Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT), pesquisadora em grupo de pesquisa da Universidade
Federal Fluminense (UFF), pesquisadora em grupo de pesquisa da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É coordenadora
do projeto de extensão Análise de discurso: aspectos teóricos e práticos,
364
Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013
do Departamento de Letras; e colaboradora do Grupo de Estudos
Marxianos (GEMARX), do Departamento de Ciências Jurídicas.
Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise do
Discurso. Publicou em coautoria O corpo na relação trabalho x prazer
na Revista Rua (Labeurb/Nudecri/Unicamp, 2013), e coorganizou o
livro Discurso, Sujeito e memória publicado pela Pontes (2012).
REGINA BARACUHY
Possui doutorado em Linguística e Língua Portuguesa pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP),
e mestrado em Língua Portuguesa pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). Atualmente é professor associado I da Universidade
Federal da Paraíba nos Programas de Graduação no Departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV) e no Programa de Pósgraduação em Linguística (PROLING). Desenvolve e orienta pesquisas na área de Análise do Discurso. É autora de livros na área de Análise
do Discurso, tais como: Práticas Discursivas Contemporâneas: Corpo,
Memória e Subjetividade (2011) e Práticas Discursivas Contemporâneas 2:
Corpo, Identidade e Mídia (2012). Também é Líder do Grupo de Pesquisa
Círculo de Discussões em Análise do Discurso (CIDADI), além de orientar Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) no Curso de Graduação
em Letras Virtual (EAD).
RUBERVAL FERREIRA
Professor adjunto do Curso de Letras e do Programa de PósGraduação em Linguística Aplicada (PosLA) da Universidade
Estadual do Ceará (UECE). É graduado em Letras pela Universidade
Estadual do Ceará/FAFIDAM, mestre em Linguística pela
Universidade Federal do Ceará (UFCE) e doutor em Linguística
pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual
de Campinas(IEL/UNICAMP). Realizou Estudos Doutorais Livres
na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris (França)
como pesquisador convidado. É membro do GT Práticas Identitárias
em Linguística Aplicada da ANPOLL e da Associação Brasileira de
Linguística (ABRALIN). É coordenador do Grupo de Estudos de Mídia
e Tensões Sociais no Contemporâneo (GEMTES), e um dos fundadores
do Centro de Estudos em Pragmática, ligado ao Programa de Pósgraduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do
Ceará (UECE). Atua nas áreas de Semântica e Pragmática, Estudos
do texto/discurso e Mídia. É autor do livro Guerra na Língua: Mídia,
Poder e Terrorismo (EDUECE, 2007) e coautor dos livros Políticas em
Linguagem: Perspectivas Identitárias (São Paulo: Editora Mackenzie,
2006), Linguagem e Exclusão (Uberlândia: Editora da UFU, 2010),
Tópicos em Lexicologia, Lexicografia e Terminologia (Fortaleza: UFC,
2006), Fortaleza e suas Tramas: Olhares sobre a Cidade, e A Civilização
Francesa Revisitada (Fortaleza: EDUECE, 2010).
Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013
365
SILMARA DELA SILVA
Professor adjunto II da UFF, no Departamento de Ciências da
Linguagem, atuando na graduação e nos programas de pós-graduação em Estudos de Linguagem (Instituto de Letras) e em Mídia e
Cotidiano (Instituto de Arte e Comunicação Social). É pesquisadora do Laboratório Arquivos do Sujeito (www.uff.br/LAS) e os seus
estudos têm como foco a análise dos discursos da/sobre a mídia.
Atualmente coordena o projeto de pesquisa Mídia, sujeito e sentidos: o
discurso midiático na constituição do sujeito urbano brasileiro, financiado
pela FAPERJ, e publicou, dentre outros, A análise de discurso e a formação do jornalista, na Revista Entremeios (2013), e organizou o livro
Ler e fazer análise de discurso, em parceria com Vanise Medeiros et alii,
publicado pela FAPERJ/UFF (2013).
SIMONE DE MELLO DE OLIVEIRA
Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM) e doutorado em Linguística pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), com estágio de doutorado-sanduíche na École Normale Supérieure de Lettres et Sciences Humaines
de Lyon (França) (Convênio Capes/Cofecub). Atualmente é pesquisadora do Laboratório Corpus, bolsista PNPD/CAPES; membro do
corpo editorial da revista Letras da UFSM; e publicou, entre outros,
O funcionamento da autoria nos blogs de divulgação científica, na revista
Linguagem em (Dis)curso (2011).
TÂNIA AUGUSTO PEREIRA
Doutora em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), dentro da linha de pesquisa Discurso e Sociedade, e mestre em Letras pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), é professora efetiva no Departamento de Letras e Artes da Universidade
Estadual da Paraíba (UEPB). Desenvolve pesquisas no campo da
Linguística inseridas na área da Análise do Discurso de linha francesa. É autora, entre outros, do livro Práticas discursivas contemporâneas
2: corpo, identidade e mídia, em parceria com R. Baracuhy et alii, publicado pela editora Marca de Fantasia, em 2012, e de O corpo gordo
na revista Veja: uma análise discursiva, publicado na Revista Signum:
Estudos da Linguagem (2013).
VERLI PETRI
Pós-doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é
professor adjunto da Universidade Federal de Santa Maria UFSM,
com estudos concentrados em Teorias do Texto e do Discurso, atuando nas áreas de Análise de Discurso, Ensino de Língua Estrangeira,
Língua Portuguesa, Discurso literário, Constituição do sujeito,
Narratividades Urbanas, Instrumentos Linguísticos e História das
Ideias Linguísticas. Atualmente é tutora do Grupo PET (Programa
de Educação Tutorial) do curso de Letras da UFSM, coordenadora acadêmico-científica do Laboratório Corpus (PPGL), bem como
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Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013
orienta trabalhos de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da mesma instituição.
Publicou, entre outros, Gramatização das línguas e instrumentos linguísticos: a especificidade do dicionário regionalista na Revista Língua e
Instrumentos Linguísticos (2012), e coorganizou o livro Análise de discurso em perspectiva: teoria, método e análise, publicado pela Editora da
Universidade Federal de Santa Maria (2013).
ZÉLIA MARIA VIANA PAIM
Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM), tem experiência na área de Letras, atuando principalmente em Língua Portuguesa, Análise de Discurso, Linguística,
Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa, História das Ideias. É
professora em Disciplinas Complementares de Graduação (DCG) na
Universidade Federal de Santa Maria. Publicou, entre outros, As relações de força constitutivas dos percursos de produção de sentidos: o relato de
viagem no século XVI, na Revista Interfaces (2012).
Niterói, n. 34, p. 355-367, 1. sem. 2013
367
UNIVERSIDADE
FEDERAL FLUMINENSE
Instituto de Letras
Revista Gragoatá
Rua Professor
Marcos Waldemar
de Freitas Reis, s/nº
Campus do Gragoatá Bloco C - Sala 518
24210-201 - Niterói - RJ
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Telefone: 21-2629-2608
Normas de apresentação de trabalhos
1 A Revista Gragoatá, dos Programas de Pós-Graduação em Letras
da UFF, aceita originais sob forma de artigos inéditos e resenhas
de interesse para estudos de língua e literatura, em língua portuguesa, inglêsa, francesa e espanhola.
2 Os textos serão submetidos a parecer da Comissão Editorial, que
poderá sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo.
3 Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e
8 páginas, no caso de resenhas. Devem ser apresentados em duas
cópias impressas sem identificação do autor, bem como em CD,
com título do artigo em português e em inglês, indicação do autor,
sua filiação acadêmica completa e endereço eletrônico no programa
Word for Windows 7.0, em fonte Times New Roman (corpo 12, espaço duplo), sem qualquer tipo de formatação, a não ser:
3.1 Indicação de caracteres (negrito e itálico).
3.2 Margens de 3 cm.
3.3 Recuo de 1 cm no início do parágrafo.
3.4 Recuo de 2 cm nas citações.
3.5 Uso de sublinhas ou aspas duplas (não usar CAIXA ALTA).
3.6 Uso de itálicos para termos estrangeiros e títulos de livros e
períodicos.
4 As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre
parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em
caixa alta; vírgula; data da publicação; abreviatura de página (p.) e
o número desta. (Ex.: SILVA, 1992, p. 3-23).
5 As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão
ser apresentadas no final do texto.
6 As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do
texto, obedecendo às normas a seguir:
Livro: sobrenome do autor, maiúscula inicial do(s) prenome(s), título
do livro (itálico), local de publicação, editora,data.
Ex.: SHAFF, Adan. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
Artigo: sobrenome do autor, maiúscula inicial do(s) prenome(s), título
do artigo, nome do periódico (itálico), volume e nº do periódico, data.
Ex.: COSTA, A.F.C. da. Estrutura da produção editorial dos periódicos
biomédicos brasileiros. Trans-in-formação, Campinas, v. 1, n.1,
p. 81-104, jan./abr. 1989.
Gragoatá
Niterói, n. 34, p. 367-366, 1. sem. 2013
Normas
Gragoatá
7 As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa
reprodução gráfica. Deverão ser identificadas, com título ou legenda, e designadas, no texto, de forma abreviada, como figura (Fig. 1,
Fig. 2 etc).
8Os originais serão avaliados a partir dos seguintes quesitos:
8.1 adequação ao tema;
8.2 originalidade da reflexão;
8.3 relevância para a área de estudo;
8.4 atualização bibliográfica;
8.5 objetividade e clareza;
8.6 linguagem técnico-científica.
9 A responsabilidade pelo conteúdo dos artigos publicados pela Revista Gragoatá caberá, exclusivamente, aos seus respectivos autores.
10 Os colaboradores terão direito a dois exemplares da revista. Os
originais não aprovados não serão devolvidos.
Próximos números
Número 35
Tema: Textualidades contemporâneas de ruína e resistência
Organizadoras: Maria Lúcia Wiltshire e Sonia Torres
Prazo para entrega dos originais: julho de 2013
Ementa: Ficções do pós-humano: Subjetividade humana como construção em ruínas, mundo pós-ideológico, colapso de fronteiras, zonas de deslizamento ontológico, da
alegoria e do estranho, onde o conflito humanismo vs. pós-humanismo é travado.
O pensamento utópico (distópico, ecotópico, e-tópico, heterotópico, religioso) e
crise da tecnotopia na modernidade tardia; fusão de temporalidades, ecologia
não-antropocêntrica, visão não-logocêntrica do saber; regimes de produção,
reprodução e legitimação da arte.
Número 36
Tema: Estudos de linguagem e ensino
Organizadoras: Beatriz Feres, Mariangela Rios de Oliveira e Telma Pereira
Prazo para entrega: dezembro de 2013
Ementa: O ensino de língua materna e de língua estrangeira no Brasil e os estudos linguísticos: interfaces, contribuições e desafios. Aproveitamento dos resultados
de pesquisa na área dos estudos de linguagem para o ensino /aprendizagem de
línguas.
370
Niterói, n. 34, p. 369-372, 1. sem. 2013
Normas
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General Instructions for Submission of Papers
1. The Editorial Board will consider both articles and reviews in the
areas of language and literature studies, in Portuguese, English,
French and Spanish.
2. In considering the submitted papers, the Editorial Board may
suggest changes in their structure or content. Papers should be
submitted in CD, with the title both in Portuguese and English,
author’s identification, academic affiliation and electronic address,
together with two printed copies, without author’s identification,
typed in Word for Windows 7.0, double-spaced, Times New Roman
font 12, without any other formatting except for:
2.1 bold and italics indication;
2.1 3cm margins;
2.3 1cm indentation for paragraph beginning;
2.4 2cm indentation for long quotations;
2.5 underlining or double inverted commas (NEVER UPPERCASE)
for emphasis;
2.6 italics for foreign words and book or journal titles.
3. Papers should be no more than 25 pages in length and reviews no
more than 8 pages.
4. Authors are required to resort to as few footnotes as possible,
which are to be placed at the end of the text. As for references in
the body of the article, they should contain the author’s surname
in uppercase as well as date of publication and page number in
parentheses (eg.: JOHNSON, 1998, p. 45-47).
5. Bibliographical references should be placed at the end of the text
according to the following general format:
Book: initial’s author’s pre name(s) in uppercase, author’s surname,
title of book (italics), place of publication, publisher and date.
(eg.: ELLIS, Rod. Understanding second language acquisition. Oxford:
Oxford University Press, 1994).
Article: author’s surname, initial’s author’s pre name(s) in uppercase,
title of article, name of journal (italics), volume, number and date.
(eg.: HINKEL, Eli. Native and nonnative speakers’ pragmatic
interpretations of English texts. TESOL Quarterly, v. 28, n° 2, p. 353376, 1994).
6. Tables, graphs and figures should be identified, with a title
or legend, and referred to in the body of the work as figure, in
abbreviated form (eg.: Fig. 1, Fig. 2 etc.)
Niterói, n. 34, p. 369-372, 1. sem. 2013
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Normas
Gragoatá
7. Papers should contain two abstracts (a Portuguese and an English
version), no more than 5 lines in length. In addition, between 3 to 5
keywords, also in Portuguese and in English, are required.
8. Originals will be evaluated from the following items:
8.1 appropriateness to the theme;
8.2 originality of thought;
8.3 relevance for the study area;
8.4 bibliographic update;
8.5 objectivity and clarity;
8.6 technical-scientific language
9. The responsibility for the content of articles published in the
journal Gragoatá sole discretion of their respective authors.
10. Authors, whose articles are accepted for publication, will be entitled
to receive 2 copies of the journal. Originals will not be returned.
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Niterói, n. 34, p. 369-372, 1. sem. 2013
PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL
Título conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br)
após a implementação de um Programa Socioambiental
com vistas à ecoeficiência e ao plantio de árvores referentes
à neutralização das emissões dos GEE´s – Gases do Efeito Estufa.
Esta revista foi composta na fonte Book antiqua.12
Impresso na Editora e Papéis Nova Aliança Ltda-Me.,
em papel Pólen Soft 80g (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa)
produzido em harmonia com o meio ambiente.
Esta edição foi impressa no outono de 2014
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revista gragoatá 34 - Universidade Federal Fluminense