O ESPAÇO DA REGULAMENTAÇÃO DOS PLANOS E SEGUROS
DE SAÚDE NO BRASIL: NOTAS SOBRE A AÇÃO DE
INSTITUIÇÕES GOVERNAMENTAIS E DA SOCIEDADE CIVIL
Autores: Anete Maria Gama (*); Carlos Otávio Ocke Reis (**); Isabela Soares
Santos (***) e Ligia Bahia (****)
Palavras Chave: Planos e Seguros de Saúde; Agência Nacional de Saúde
Suplementar; Agenda da Regulamentação da Assistência Médica-Hospitalar
Suplementar; Setor de Assistência Privada à Saúde.
Resumo: O artigo analisa o processo de regulamentação da assistência
médica suplementar no Brasil, buscando compreender o escopo da Lei n.º 9.656/98
e ação de instituições direta e indiretamente envolvidas com a produção de normas
e regras para o funcionamento dos planos e seguros de saúde. Examina-se algumas
das práticas de elaboração de instrumentos legais relativos a assistência médica
suplementar de instituições dos Poderes Judiciário e Legislativo, bem como de
outros órgãos governamentais do Executivo afora a ANS, e de entidades
profissionais. Tal produção de normas para os planos e seguros de saúde ocorre em
paralelo à atuação da ANS, desafiando esta instituição em função das diferenças
conceituais de saúde e direito à saúde dos usuários, relativas a garantia e restrição
de coberturas. Conclui-se que a tônica pragmática da Lei n.º 9.658/98 e seus
sucedâneos restringem o protagonismo da ANS no processo de condução e
implementação da regulação da assistência médica suplementar.
(*) Mestranda em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da
Fundação Oswaldo Cruz (ENSP / FIOCRUZ)
(**) Doutorando do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (IMS / UERJ) e Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA)
(***) Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação
Oswaldo Cruz (ENSP / FIOCRUZ)
(****) Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da
Fundação Oswaldo Cruz (ENSP / FIOCRUZ) e Professora da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ).
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Title: The regulation of the Health Plans and Insurance in Brazil: the
action of the non-governamental institutions and de organized civil society.
Key words: Health Plans and Insurances; Agência Nacional de Saúde
Suplementar; Regulation of the Health Plans and Insurance.
Abstract: This article analyses the process of regulation of the insurance sector of
health care in Brasil, seeking to understand the scope of Law n.º 9.656/98 and the action of
institutions directly and indirectly involved with the production of norms and rules for the
function of health plans and insurances. Various practices of elaboration of the legal
instruments relative to supplementary medical assistance of institutions of Judiciary and
Legislative power are examined, as well as other Executive government departments with the
exception of ANS, and of professional entities. This production of norms for health plans and
insurances occur in parallel to the action of ANS, challenging this institution with respect to
the different concepts of health and the rights of the users, relative to the guarantee and
restriction of health cover plans. The conclusion is that the pragmatic essence of Law n.º
9.656/98 and its consequences limit the prime function of the regulator institution, ANS, in the
process of conduct and implementation of the regulation of supplementary medical
assistance.
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Introdução
O intenso destaque da mídia às iniciativas da Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), expressas na Medida Provisória n.º 2177-43, de julho de 2001,
de padronizar “coberturas regionalizadas” e “portas de entrada” para o acesso dos
clientes de planos privados aos especialistas, bem como a subsequente retirada
dessas proposições pelo próprio Ministério da Saúde, tem merecido interpretações
antagônicas. Para uns o corporativismo dos médicos, as lacunas de informação
sobre a realidade assistencial do País, associadas ao poder de mobilização de
determinados grupos de prestadores interessados no provimento de serviços,
especialmente de diagnose, impediram o avanço do processo de regulação do
mercado de planos e seguros de saúde. Outros ponderam que a legitimação de
coberturas reduzidas e o processo autoritário de decisão da ANS questionaria a
razão de ser da Lei n.º 9.656/98 e o próprio Poder Legislativo. E aduzem que as
mudanças propostas pela ANS tampouco seriam isentas de pressões, pois elas
atenderiam os interesses de expansão das operadoras de menor porte.
Apesar de decorridos três anos de vigência da legislação sobre a
regulamentação dos planos e seguros de saúde, os conflitos entre as intenções da
ANS, as empresas de assistência médica suplementar, os prestadores de serviços e
os consumidores ainda conservam um caráter eminentemente econômico. Tal limite
reduz o debate às disputas entre os interesses meramente econômicos dos que
propugnam a ampliação das coberturas bem como o daqueles que propõem sua
redução, gerando sucessivos impasses não avançando proposições e práticas para
o aperfeiçoamento da regulação (Abrasco, 2001).
Entre os estreitos marcos que delimitam as concepções e as práticas de
regulação da assistência médica suplementar da ANS, transbordam iniciativas do
Congresso Nacional, de outras instâncias governamentais e de entidades da
sociedade civil, visando estabelecer normas relacionadas com a operação de planos
e seguros de saúde. Portanto, às interrogações sobre as tendências da
regulamentação, no que diz respeito as dimensões assistenciais e econômicofinanceiras, adicionam-se questões sobre o protagonismo da ANS na condução e
implementação de uma intervenção governamental unificada sobre a assistência
médica suplementar.
Porém, é certo que o deslocamento do descrédito e da contradição com
qualquer medida de intervenção governamental, desde o início dos debates sobre a
regulamentação aos atuais questionamentos das ações da ANS, sinaliza uma
mudança na agenda e na prática de uma parte dos atores envolvidos com a
assistência suplementar. A decisão de criar a ANS representou, senão uma
superação definitiva da disputa sobre a institucionalização da regulamentação das
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operadoras de planos e seguros de saúde, ao menos, o fortalecimento da
autoridade, das atribuições e das responsabilidades do Ministério da Saúde em
relação ao da Fazenda. Contudo, a Lei n.º 9.656/98 e os demais instrumentos legais
dela derivados nem sempre são os referenciais utilizados por instituições públicas e
privadas que atuam diretamente ou indiretamente com a assistência médica
suplementar.
As razões que justificam a reinterpretação da regulação dos planos e
seguros de saúde em espaços institucionais exteriores à ANS são extremamente
complexas, mas podem ser agrupadas em duas principais categorias. Um primeiro
grupo de normas diz respeito às tensões relativas ao escopo da regulação. Isto é, a
normatização de relações entre os agentes que integram a assistência médica
suplementar não abrangidas ou apenas formalmente mencionadas pela legislação
específica das operadoras de planos e seguros de saúde. O segundo conjunto
refere-se às interpretações de conflitos envolvendo a assistência médica
suplementar primordialmente baseadas em outros instrumentos legais, tais como a
Constituição de 1988 e o Código de Defesa do Consumidor de 1990. Ou seja,
parecem não reconhecer ou atribuir à Lei n.º 9.656/98 e seus sucessores um status
de provisoriedade e de pouca importância.
Esse paralelismo na produção e alteração das normas de regulação da
assistência suplementar é pouco conhecido. Os poucos trabalhos disponíveis acerca
do tema debruçam-se sobre as regras emanadas pela ANS. Contudo, considera-se
que o exame, ainda que limitado de algumas manifestações da participação de
outras instâncias na normatização dos planos e seguros de saúde contribua para
avançar a reflexão sobre limites e possibilidades da regulamentação da assistência
médica suplementar.
O presente trabalho, objetiva apresentar um levantamento de normas sobre a
assistência médica suplementar que foram geradas independentemente e, por
vezes, contraditórias àquelas da ANS. Para tal, foram consultados a literatura
disponível e os registros dispersos da produção normativa de instituições do Poder
Judiciário, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Congresso
Nacional e Conselho Federal de Medicina. Em função da inexistência de registros
sistemáticos e unificados sobre os instrumentos normativos produzidos fora da ANS,
as regras e jurisprudências aqui expostas resultam de esforços dos autores para
reunir e analisar as informações que se seguem.
1. A Lei n.º 9.656/98 e os Dilemas da ANS
Desde o final dos anos 80 a regulamentação da assistência médicahospitalar suplementar vem integrando a agenda governamental. Em 1989, a
Superintendência de Seguros Privados do Ministério da Fazenda (SUSEP / MF)
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defendia a necessidade da regulamentação do setor, e reclamava para si a função
regulatória da oferta e comercialização da assistência médica suplementar.
Acreditava-se que a intensificação da disputa entre as operadoras de planos e
seguros de saúde por clientes e o crescimento do volume financeiro das transações
seriam atraentes para as grandes seguradoras do mercado internacional. Neste
sentido, visando estabelecer um padrão de competição favorável à entrada do
capital econômico, a regulamentação se restringia aos aspectos econômicofinanceiros. Essa pauta contendo proposições para a contenção do aumento abusivo
de preços dos prêmios, pagamento de impostos pelas empresas médicas
(medicinas de grupo e cooperativas de trabalho médico) e, sobretudo, a abertura do
segmento à participação do capital e empresas estrangeiras, permanecerá até a
década de 1990.
Assim, o intuito inicial da regulamentação do mercado de assistência médica
suplementar direcionava esforços para tornar viável a entrada do capital
internacional, através da remoção de obstáculos como a comercialização de planos
com coberturas restritas e preços baixos por pequenas empresas, e a prática de
monopólio das cooperativas médicas em cidades do interior.
Apresentava-se como solução o estabelecimento de regras econômicofinanceiras que controlassem a entrada das empresas de assistência à saúde no
mercado e combatessem organizações que tendiam a criar monopólios no mercado,
além do atual contra a evasão fiscal proveniente do status jurídico filantrópico de
muitas empresas que operam no setor.
Entretanto, a transformação da regulamentação em projeto de Lei discutido
no Congresso Nacional, somada a fatores como o aumento do número de denúncias
de negação de atendimento e o aumento abusivo de preços e a falência da Golden
Cross que ocuparam as páginas da grande imprensa, foram fatos determinantes
para a efetiva regulamentação do setor, cujo primeiro grande marco normativo foi a
promulgação da Lei n.º 9.656, de 1998.
Essas demandas orientaram a formulação dos primeiros projetos de Lei
sobre a operação de planos e seguros no Congresso Nacional. A absorção das
questões assistenciais fez com que se questionasse a adequação da SUSEP à
implementação de regras de proteção e garantias assistenciais, avançando
propostas para que a regulamentação fosse regida pelo Ministério da Saúde.
A entrada na agenda de debates das questões assistenciais suscitou a
conformação de alianças opostas em torno da extensão das coberturas. Enquanto
os órgãos de defesa do consumidor e as entidades médicas defendiam a ampliação
das coberturas, e propugnavam que a Lei a ser elaborada se impusesse contra as
cláusulas de negação de atendimento dos contratos dos planos e seguros de saúde,
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as operadoras que comercializavam assistência suplementar, especialmente as de
menor porte, que defendiam coberturas mais restritivas.
Enfim, a Lei n.º 9.656/98 foi aprovada pelo Congresso incorporando a
ampliação da cobertura dos contratos de prestação de assistência médica e
hospitalar, bem como os aspectos de regulamentação da situação econômicofinanceira das empresas de planos e seguros de saúde. Antes da Lei n.º 9.656/98
não havia cobertura mínima definida para os planos e seguros de saúde, sendo esta
estabelecida unicamente pelos contratos firmados entre a operadora e o
consumidor. Consequentemente, o que se observava eram os mais variados tipos
de exclusões de cobertura e negação do acesso à serviços médico-hospitalares. As
operadoras tendiam a excluir de seus contratos as doenças crônicas e
degenerativas, doenças infecciosas, doenças preexistentes, doenças mentais,
tratamentos de alto custo, além de impor limitações para utilização de
procedimentos e dias de internação, e de idade para acesso e permanência no
plano.
A criação de legislação específica não só homogeneizou os contratos de
planos e seguros de saúde, como ampliou a cobertura assistencial destes. Em
temos de cobertura estas representaram as modificações mais significativas: não foi
mais permitida a exclusão de patologias, nem a limitação de números de
procedimentos ou dias de internação; estão cobertos os transplantes de rim e
córnea, e as doenças mentais. Em relação às condições dos indivíduos foi ampliado
o acesso aos portadores de doenças e lesões preexistentes (DLP) e aos idosos. No
caso dos primeiros, os clientes têm a opção de cumprir cobertura parcial temporária
(CPT) pelo prazo máximo de dois anos, onde não estão cobertas as internações e
os procedimentos de alta complexidade referentes a DLP, ou pagar um acréscimo
na mensalidade do plano para ter cobertura imediata. Em relação a idade, a
operadora não pode mais recusar o cliente em razão da idade.
Entre outras mudanças efetuadas na Lei n.º 9.656/98, a primeira Medida
Provisória atribuiu ao Ministério da Saúde funções da regulamentação que
anteriormente estavam destinadas à SUSEP.
Nesse contexto, o Ministério da Saúde mobiliza atores e interesses presentes
no mercado de medicamentos e na assistência médica suplementar, e cria duas
instituições voltadas à defesa dos direitos dos consumidores de insumos e planos de
saúde: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a Agência Nacional
de Saúde Suplementar (ANS).
Mas a marca de origem da regulamentação, indiscutivelmente vinculada aos
projetos elaborados por técnicos do Ministério da Fazenda voltados ao
estabelecimento de padrões para a expansão do segmento, impregna a legislação,
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propondo, inclusive, a mercantilização das interfaces dos planos e seguros de saúde
com o Sistema Único de Saúde (SUS), através do ressarcimento dos serviços
prestados. Sendo, portanto, os serviços públicos considerados como mais uma
“opção” para os clientes de planos e seguros a serem remunerados segundo a
lógica privada.
Assim, o processo de regulamentação tem como marcos iniciais: 1) a
redução do conceito de saúde ao de assistência médico-hospitalar e o de boa saúde
à maior quantidade e possibilidade de escolha dos prestadores de serviços; 2) a
crença na necessidade de intervenção governamental para incrementar o mercado,
dotando-o de mecanismos competitivos e um certo menosprezo pelas instâncias
legislativas.
Uma síntese do painel de dispositivos legais está exposta no quadro em
Anexo, no qual se destacam, em termos das alterações e tentativas de mudanças na
Lei n.º 9.656/98, um dos dilemas da ANS: a ampliação e restrição das coberturas. As
dificuldades para decifrá-lo, em meio aos constrangimentos impostos pela própria
legislação, que resulta na criação da ANS, não incidem da mesma maneira sobre
determinadas instituições que passam a canalizar demandas e gerar normas para os
planos e seguros de saúde.
2. O Protagonismo da ANS em Questão
As repercussões das ações da ANS em espaços institucionais diretamente
envolvidos com a regulamentação, mas não contemplados pela legislação,
estimulam a proliferação de novas regras. Como a ANS não dispõe de instrumentos
normativos relativos às relações entre as operadoras e os prestadores de serviços,
as tentativas de fixar padrões para a regulação destas relações adquirem destaque
na agenda das entidades profissionais, de outras empresas prestadoras de serviços
e até mesmo do Congresso Nacional.
Durante o primeiro semestre de 2001, o Conselho Federal de Medicina
(CFM) publicou duas resoluções referentes às relações entre seus profissionais e as
operadoras de planos e seguros de saúde. A Resolução CFM n.° 1.614, de 2001,
tenciona assegurar a autonomia do médico assistente, evitando a interferência das
empresas de assistência médica suplementar, por seus médicos auditores, na
definição das condutas terapêuticas e diagnósticas. E a Resolução CFM n.° 1.616,
de 2001, voltada principalmente a garantir a estabilidade dos vínculos entre
médicos-pacientes e operadoras de planos e seguros de saúde.
Um outro “vazio normativo”, relativo aos convênios entre os hospitais
universitários públicos e as operadoras de planos e seguros de saúde, vem sendo
ocupado no plano legal pela iniciativa do Congresso Nacional e no operacional pelo
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Ministério Público. O projeto de Lei n° 449 em tramitação no Congresso Nacional, de
autoria do Senador Lúcio Alcântara do PSDB do Ceará sugere a alteração da Lei
Orgânica da Saúde para que os hospitais universitários possam destinar até 25%
dos seus leitos aos clientes de planos e de seguros de saúde. Os resultados da
abertura das alas particulares destinadas aos clientes das operadoras de planos e
seguros de saúde dos hospitais da Universidade de São Paulo (USP) e da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vêm sendo monitorados pelo
Ministério Público.
Por outro lado, as solicitações de inclusão de empresas privadas de
prestação de serviços, como por exemplo, as de home care, na órbita de
abrangência da regulação do setor de assistência médica suplementar, a princípio
objetos da ANVISA, parece derivar do senso comum segundo o qual a ANS é
responsável pelo “sistema de saúde privado”. Além disso, contabilizam-se inúmeras
iniciativas dos hospitais privados visando o posicionamento da ANS diante dos
atrasos de pagamentos, glosas e redução dos valores das tabelas de remuneração
praticados pelas operadoras de planos e seguros de saúde.
Uma das conseqüências da conjugação de tendências como a mobilização
de outros espaços institucionais para a elaboração de normas sobre as relações
entre prestadores de serviços e operadoras de planos e seguros de saúde, bem
como das concepções confusas sobre sistema privado de saúde e assistência
médica suplementar, é a fragmentação e difusão de ações regulatórias da ANS em
direção a outros espaços institucionais.
O segundo grupo de iniciativas de normatização da assistência médica
suplementar extra-ANS diz respeito à garantia de cobertura assistencial aos
consumidores. Como se sabe, o Poder Judiciário vem sendo acionado pela clientela
de serviços públicos e de planos e seguros privados de saúde para garantir o
acesso a medicamentos, atendimento médico e serviços hospitalares. A composição
desta demanda é diferenciada, pois a clientela dos serviços públicos, em geral,
requer o acesso a medicamentos importados e de alto custo e os da assistência
médica suplementar tendem a solicitar o acesso e cobertura de despesas referentes
à hospitalização.
As justificativas para a concessão de liminares favoráveis aos consumidores
ignoram, via de regra, os preceitos da Lei n.º 9.656/98. Consultando a jurisprudência
sobre planos e seguros de saúde organizada por Fux (2000) especialmente a
sancionada após a legislação específica de regulamentação dos planos e seguros
de saúde, verifica-se que entre 66 resoluções coletadas em São Paulo e no Rio de
Janeiro, apenas 3 mencionam a Lei n.º 9.656/98. Observa-se, ainda, que a
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disposição do Judiciário em intervir na garantia do direito à saúde se justifica pela
própria Constituição.
Como afirma um advogado, compete ao Poder Judiciário zelar pelo
cumprimento pelo dever imposto pela Constituição de 1988:
A saúde é um direito público subjetivo e possui característica
marcadamente individual. Daí que todas as garantias
individuais concernentes a direitos fundamentais são
legítimas na busca da efetivação do direito à saúde (...). Aqui
estamos diante de um Estado interventor, e, também diante
da primazia da ação estatal positiva e jamais da inércia e,
conectando-se à idéia de um direito social da saúde (como
efetivamente também o é) (Schwartz, 2001).
Resoluções de diversas instâncias do Poder Judiciário corroboram o
empenho de juizes e desembargadores em interpretar como cláusulas abusivas a
negação de coberturas assistenciais em diferentes circunstâncias. Seja na recusa
dos prazos de limitação para internação estabelecidos por determinados contratos
de planos e seguros de saúde ...
(...) é abusiva a cláusula que limita o número de dias de
internação já que ninguém pode saber quando ficará doente
e por quanto tempo (...) Se o contrato de saúde não exclui a
moléstia da qual é portadora a beneficiária, e que exige
internação por prazo imprevisível, não se pode impor
cláusula que a obrigue a deixar o hospital em plena doença
(...) (Apud Fux, 2000)
Seja nas decisões baseadas na importância do ato médico para o bem estar
dos pacientes:
Em se tratando de cirurgia destinada a implantação de uma
placa de platina, devido a fratura de fêmur, sofrida por
senhora contando com mais de setenta anos de idade,
portanto, de cuja realização depende a sobrevida da
segurada, é ineficaz cláusula contratual que exclui da
cobertura a prótese por configurar exagerada vantagem em
favor da empresa seguradora, uma vez que se verifica
restrição dos direitos inerentes à natureza do contrato, de tal
modo ampla, que se torna extinto seu objeto, ante provável
morte da paciente (Apud Fux, 2000).
Ou ainda em considerações que incluem um debate sobre o caráter
mercantilista das operadoras de planos e seguros de saúde:
Conclui-se pois que os contratos de saúde não podem ficar
sujeitos à livre vontade das empresas prestadoras de
serviços de saúde, geridas sempre com o intuito de trilhar os
caminhos do lucro, muitas vezes exagerados, o que prejudica
a razão de ser do contrato de saúde, já que tantas são as
restrições à prestação de serviços. Invoca a requerida o art.
199 da Constituição da República, argumentando que presta
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um serviço privado de saúde, como atividade de natureza
econômica e que, portanto, submete-se às regras próprias de
mercado, aduzindo ainda que vivemos num país capitalista.
Todavia há que se ponderar que esse capitalismo deve ser
exercido sem exageros ou maiores abusos, respeitando-se o
direito do consumidor e da função social de todos os meios
de propriedade (Juizado Especial Cível- Relações de
Consumo, Poder Judiciário do Estado de Minas Gerais,
1999).
Outra instituição que vem desempenhando um importante papel na definição
de regras objetivas para a concorrência no mercado de planos e seguros de saúde,
é o CADE. Atualmente, o principal foco de atuação desta instituição, no que tange a
assistência médica suplementar, vincula-se aos processos contra a “unimilitância”
praticada por uma parte das cooperativas de trabalho médico (Unimed’s). A despeito
da Lei n.º 9.656/98 “vedar às operadoras impor contratos de exclusividade ou de
restrição à atividade profissional”, o CADE questiona, não somente a legitimidade e
a autonomia de cada cooperativa singular para definir seu estatuto, mas sobretudo o
caráter empresarial das Unimed’s. Após um inventário de atividades das Unimed’s,
tais como instalação de hospitais, farmácias e laboratórios bem como a presença de
duas empresas privadas a Unimed Participações e a Seguradora Unimed no
complexo Unimed e ainda o patrocínio de times de futebol, o CADE conclui que a
conduta da Unimed é lesiva ao mercado e deve ser melhor averiguada:
(...) para que se possa definir o real âmbito de atuação do
Sistema Unimed e de suas empresas-coligadas com vistas a
concluir se deve o Conselho Administrativo de Defesa
Econômica, após todas as fases processuais, com provas e
contraditório devidamente instalados declarar estarmos
diante de uma COOPERATIVA DE TRABALHO MÉDICO ou
frente a um COMPLEXO EMPRESARIAL MERCANTILISTA,
verificando-se, assim, se estamos diante, inclusive da
necessidade, ou não de terem sido apresentados os atos e
contratos que deram origem ao referido e supracitado
“complexo empresarial” (CADE, 2000).
Esse recente e difuso processo de produção de normas, voltadas a
regulamentação dos planos e seguros de saúde, remete a ANS imensos desafios..
A tônica pragmática que predominou na elaboração e implementação da Lei n.º
9.656/98 não é a que parece predominar em todas as outras instâncias de decisão.
As decisões do Poder Judiciário e do CADE estão amparadas em legislações mais
abrangentes e buscam, claramente, a defesa dos direitos à saúde e a regularização
das situações mercantis da assistência médica suplementar. No limite, tais marcos
regulatórios mais ampliados colidem e ultrapassam a centralidade da ANS no
processo de regulação da assistência médica suplementar. Algumas das
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11
perspectivas da ANS, como aquelas voltadas a padronizar coberturas, ou mesmo as
que se destinam a estabelecer regras para o monitoramento da situação econômicofinanceira das operadoras, estabelecidas com base em um processo de negociação
restrito e sob a concepção de uma possível neutralidade do órgão regulador frente
às operadoras e aos consumidores, não são as mesmas que orientam a ação de
outras instituições envolvidas com a regulamentação.
3. A Ampliação da Agenda da Regulamentação
Os problemas da regulamentação do segmento de planos e seguros de
saúde privados no Brasil acima expostos sugerem o aprimoramento do debate de
qual deve ser o modelo da regulamentação brasileiro. Um deles é como garantir à
população o acesso à serviços de saúde, que está associado, entre outras coisas, à
estrutura da rede de serviços de saúde. Enquanto o SUS preconiza a hierarquização
da rede de serviços, ordenando-a pela complexidade de suas ações, o foco dos
serviços da assistência médica suplementar se dá na atenção secundária e terciária
à saúde, inexistindo, portanto, uma política de saúde que integre esta oferta de
serviços à demanda por cuidados à saúde nos três níveis de atenção à saúde.
Desde o início da década de 1970, quando começou a se utilizar o conceito
de “campo da saúde” para a reforma do sistema de saúde canadense1, até os dias
atuais em que a Promoção da Saúde é vista como um conceito que propõe diretrizes
para o modelo de assistência à saúde de uma população, a idéia de que é
necessária a “integração dos componentes promocionais, preventivos e curativos
dos serviços de saúde em apoio à atenção primária da saúde” (Ferreira & Buss,
2001: 260) tem sido cada vez mais aceita não só nas comunidades acadêmicas,
como nos órgãos governamentais, orientando a elaboração de programas e de
ações de saúde, como pela sociedade civil2.
Os princípios de Promoção da Saúde de documento elaborado na Oficina
Regional da Organização Mundial de Saúde (OMS) para Europa, que a define como
o “processo que permite às pessoas adquirir maior controle sobre sua própria saúde
e ao mesmo tempo melhorá-la” (Gentile, 1999) devem ser analisados juntamente
com o documento elaborado pelo Conselho Nacional de Saúde para o Simpósio
Regulamentação dos Planos de Saúde realizado juntamente com o Congresso
Nacional, recomendando que o ponto de partida para o aperfeiçoamento do
processo de regulamentação dos planos de saúde seja a “adequação da assistência
médica supletiva aos referenciais do Sistema Único de Saúde”.
1
Conceito proposto em 1974 por Marc Lalonde, então ministro da saúde do Canadá, para fundamentar a reforma
do sistema de saúde canadense orientada pela associação da tecnologia ao planejamento e pela idéia de que a
análise do custo benefício das ações de saúde deve ser feita de modo contextualizado, isto é, ampliando a esfera de
análise da rede de serviços para todo o contexto da saúde (Gentille: 1999).
2
Na década de 1990 iniciou-se o debate entre a corrente da Promoção da Saúde e a da Saúde Populacional.
Enquanto aquela se referencia pelo fator estilo de vida, esta dá ênfase na necessidade de existência indicadores que
comprovem o alcance dos resultados das ações de saúde (Ferreira & Buss, 2001).
11
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Ou seja, sugere a necessidade de investimento na reconstrução de um
modelo de Sistema de Saúde brasileiro que preserve as diretrizes de eqüidade,
universalidade e integralidade do Sistema Único de Saúde, adequando a elas a
política de saúde que orienta a regulamentação do setor de saúde suplementar. Esta
idéia é legitimada pela noção de Direito à Saúde, ou seja, a concepção da saúde
como direito social da população.
Há iniciativas que induzem à suposição de que a regulamentação do setor
vive uma contradição de modelo regulatório, pois no mesmo ano em que a ANS
retira a alteração da Lei n.º 9.656/98 pela Medida Provisória n°. 2177-43, contendo
uma proposta inacabada de mudança do modelo dos planos de saúde, foi
implantado o Sistema de Informações dos Produtos3 que solicita às operadoras
informações acerca da assistência prestada aos beneficiários que permitirão a
geração de indicadores de saúde e econômico-financeiros, possibilitando em alguma
medida, a avaliação da assistência prestada.
A falta de capacidade do Poder Executivo de implantar um consenso em
torno do desenho da política regulatória tem levado a uma sistemática reedição de
Medidas Provisórias desde a promulgação da Lei n.º 9.656, de 1998, sob a guarda
da ANS. Entretanto, a sociedade brasileira necessita que a regulação deste setor
seja pactuada em bases democráticas, para o quê o Congresso Nacional e a
sociedade civil organizada devem se pronunciar sobre a criação de uma Lei que
esteja em harmonia com o conceito ampliado de saúde para regular o setor de
planos privados de assistência à saúde.
4. Referências Bibliográficas
Ø ABRASCO (2001) Boletim Abrasco: Informativo da Associação Brasileira de Pós
Graduação em Saúde Coletiva. n° 82, jul/set
Ø Bahia, L. Padrões e mudanças nas relações público privado: planos e seguros
saúde No Brasil. Dissertação de Doutorado. Escola Nacional de Saúde Pública,
1999.
Ø Brasil (1995). Plano Diretor da Reforma do Estado. Brasília. DF.
Ø Brasil. Câmara de Deputados – Lei n.º 9.656 de 03 de 06 de 1998. Brasília, DF
Ø Brasil. Medida Provisória N0 1976-25 de 06 de abril de 2000-07-04. Brasília. DF
3
Sistema foi implantado pela RDC n.º 85 de agosto de 2001.
12
13
Ø Brasil. Ministério da Saúde. ata das Reuniões da Câmara de Saúde Suplementar
de 24.08.98, 31.08.98, 21.12.98, 18.01.99, 22.02.99, 27.04.999, 24.05.99 e
29.06.99. Brasília. DF.
Ø Brasil, Agência Nacional de Saúde Suplementar, Resoluções de Diretoria
Colegiada e Resoluções Setoriais.
Ø Brasil. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Resoluções do CONSU N0 01 a 14 de
04.11.98.Brasília. DF.
Ø Brasil. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Resoluções do CONSU N0 15 a 19 de 25/03/99.
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Ø Brasil. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Resoluções do CONSU N0 20 e 21 de 07/04/99.
Brasília. DF.
Ø Brasil. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Resoluções do CONSU N0. 22 e 23 de
28.10.99. Brasília. DF.
Ø Fux, L. (2000) Tutela de urgência e plano de saúde. Rio de Janeiro: Editora
Espaço Jurídico.
Ø MINISTÉRIO DA SAÚDE (2001). Gestão Municipal De Saúde: Textos Básicos.
“Promoção da Saúde: Estratégia para o desenvolvimentos sustentável”, de
Rocha, Sônia Regina de Oliveira & Rodrigues, Eugênia Maria Silveira. Pp 265 –
268.
Ø MINISTÉRIO DA SAÚDE. (1999). Revista Promoção da Saúde, Ano 1, n.º 01.
“Promoção da Saúde”, de Gentile, Marilena.
Ø
MINISTÉRIO DA SAÚDE. (2001). Gestão Municipal De Saúde: Textos Básicos.
“Atenção Primária e Promoção da Saúde”, de Ferreira, José Roberto & Buss,
Paulo Marchiori. Pp.255 – 263.
Ø
MINISTÉRIO DA SAÚDE. (2001). Simpósio Regulamentação dos Planos de
Saúde, 28 e 29 de agosto de 2001. Conselho Nacional de Saúde.
Ø Schwartz, G. (2001) Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica.
Porto Alegre: Livraria do Advogado.
13
15
5. Anexo: Quadro de Acompanhamento da Regulamentação dos Planos e Seguros de Saúde no Brasil
Temas
Lei 9656/98 aprovada no Senado
Federal e modificada pela 1ª MP
Outras MPs e Resoluções
MP43
Brechas e questionamentos
sobre a regulamentação
Plano ou seguro referência não
Contratos
antigos
com
Admite
COBERTURA
Procedimentos admite a exclusão de doenças, inclui coberturas restritas continuam vigentes possibilidade
odontologia.
comercialização
/Eventos
Judiciário
dá
sentenças
favoráveis aos consumidores em
relação a cobertura de planos
antigos
Limite
Utilização
Judiciário dá sentenças
favoráveis aos consumidores em
relação a cobertura de planos
antigos
a
de
de
Permite a oferta de planos só
Exclusão
da
assistência planos com coberturas
para atendimento ambulatorial, ou só odontológica do Plano referência
vinculadas
a
para internação hospitalar.
disponibilidade
de
serviços regionais, e a
serem regulamentados
pela ANS.
Admite a
possibilidade
direcionamento do
acesso aos serviços de
assistência médica
hospitalar
Sem limite
Sem Alteração
Sem alteração
de
Idades
Proibição da exclusão de
Admite aumento diluído para Sem alteração
idosos. Variação do valor do plano para >s de 60 anos em contratos antigos
em função da idade, exceto para os
beneficiários com mais de sessenta
anos
Extensão de cobertura para
Sem Alteração
Sem Alteração
desempregados e aposentados
Condição
sócioocupacional
Condição
saúde
de
Matéria regulamentada é
campo do Direito trabalhista
do
Operadoras são obrigadas a
Regulamenta os procedimentos Sem Alteração
aceitar portadores de doenças e lesões de alta complexidade passíveis de
pre-existentes
(DLP),
com
a exclusão, durante o cumprimento de
possibilidade de estabelecimento de 2 CPT para os casos de DLP.
anos de cobertura parcial temporária
(CPT) - não há rol regulamentando os
procedimentos não cobertos durante a
CPT
Carência de 300 dias para
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parto; 180 dias
procedimentos
para
os
demais
Regulamenta
a
cobertura,
somente, para transplantes de córnea e
Inclui
a
cobertura
para rim.
transplantes, a ser regulamentada
posteriormente.
deverão
constituir Sem Alteração
Padrão
de Medicinas de Grupo, Cooperativas, Seguradoras
Autogestões e Seguradoras
seguradoras especializadas em saúde.
Competição
Empresas
Abrangidas
pela Lei
Ministério da Saúde/ CONSU
CONSU
presidido
pela Sem alteração
Locus
Câmara
de
Saúde
Suplementar/ Gabinete Civil
regulatório
Conselho
Nacional
de
Seguros
Privados/
SUSEP/
Ministério
da
Criação da ANS
Fazenda
Ressarcimento
de
Ressarcimento somente
Ressarcimento
procedimentos
hospitalares
ou procedimentos hospitalares
ao SUS
ambulatoriais, em valores não inferiores
aos praticados pelo SUS e não
superiores aos praticados pelos planos
e seguros
Veda às Unimed’s a imposição
Sem alteração
Prestadores de
de contratos de exclusividade para os
Serviços
médicos (unimilitância)
Entrada
do
Capital
Estrangeiro
Autoriza
Sem alteração
de Sem alteração
Sem alteração
Autogestões e cooperativas
questionam o cumprimento de
pontos da Lei
Ações na justiça contra o
ressarcimento, por parte das
operadoras e por gestores
municipais e estaduais
A lei não abrange os prestadores
de serviço.
O CFM edita norma
descredenciamento de médicos
pelas operadoras.
Aprovada legislação sobre a
dupla porta de entrada dos
hospitais universitários.
Sem alteração
o
Fontes: Redação Final do Susbstitutivo ao Projeto de Lei n 4.425-D de 1994 da Câmara dos Deputados (Relatório Deputado Pinheiro Landim), 1997 e Parecer da Comissão de
Assuntos Sociais do Senado (Relatório do Senador Sebastião Rocha), 1997; Lei 9656/98 e suas MPs; Resoluções do CONSU e da Diretoria Colegiada ANS
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o espaço da regulamentação dos planos e seguros de saúde