O existencialismo de Gabriel Marcel e as relações familiares na idade contemporânea r f Rubilar Tomasi O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea Rubilar Tomasi 2014 Sumário Sobre o autor .......................................................................5 Introdução ............................................................................6 1 Histórico das relações familiares................................8 1.1 A família de ontem...................................................................9 1.2 A família hoje........................................................................... 11 1.2.1 A união com o “tu” desconhecido.................................... 12 l.2.2 A falta de planejamento....................................................... 16 l.2.3 Meios de comunicação......................................................... 19 1.2.4 A modernidade e a família................................................. 21 2 A relação entre filosofia e família............................ 26 2.1 Gabriel Marcel......................................................................... 27 2.2 Mistério e problema.............................................................. 28 2.3 A família como experiência intersubjetiva................... 34 Considerações finais........................................................ 44 Bibliografia.......................................................................... 46 Sobre o autor O autor possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Imaculada Conceição (1998) e mestrado em Ética Social e Desenvolvimento Humano (Sociologia) pela Universidade Alberto Hurtado (2000). Nos anos de 2001 e 2002, atuou como professor de líderes sindicais do Programa Integrar – CUT. Entre os anos de 2002 e 2012 foi professor da rede estadual de educação, dos quais, durante seis anos, foi Diretor do Instituto Estadual Mathilde Zatar. Desde 2012, é professor de Filosofia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - Campus de Sertão, atuando em disciplinas como Filosofia, Filosofia da Educação, Gestão da Educação, História da Educação e Ética. Introdução A família está em transformação. Se analisarmos a organização familiar do passado e depois a compararmos à de hoje, vamos perceber que muitas coisas já mudaram. Essas mudanças fazem parte da vida do homem e o contato com outras culturas acaba influenciando na modificação e no surgimento de novas normas morais e, consequentemente, a organização familiar também se acaba transformando. Esse estudo mostrará algumas das transformações históricas da família, para depois vermos a sua situação da atualidade. Mostraremos que, como consequência dessas modificações, em alguns casos, muitas coisas positivas aconteceram. Porém, por outro lado, muitos problemas tornaram a vida familiar insuportável, ocasionando separações, brigas, filhos sem atenção dos pais e sem educação etc. Tendo em vista todos esses aspectos, posteriormente mostraremos o pensamento de Gabriel Marcel, procurando mostrar que suas ideias acerca das relações intersubjetivas servem como luz para o relacionamento familiar. Perceberemos que, dentro da família, não vai haver o “eu” e o “tu” e nem o “meu” e o “teu”, mas o “nós” e o “nosso”. Falar sobre família é refletir sobre a vida de todos. Uns como pais outros como filhos, uns por muito tempo outros por pouco, alguns tiveram contato somente com a mãe e, em alguns casos, por alguns minutos, pois a mãe os abandona. Em outros casos, filhos criados somente pelo pai, pelos avós, por parentes próximos. O que queremos afirmar é que todos têm ou tiveram uma família e o estudo sobre esse assunto a todos interessa, pois ela é o berço onde cada um recebe sua primeira educação, é a primeira sociedade onde geralmente estabelecemos nossas primeiras relações sociais e, principalmente, é onde o indivíduo cria o “alicerce” do seu modo de agir, sua identidade e sua personalidade. Podemos ver que, quando tocamos no assunto família, não é só o relacionamento entre os membros da família que devemos levar em conta, mas todas as relações sociais. Cabe a nós analisarmos esse processo e buscarmos saídas e alternativas para as dificuldades existentes. A família está-se transformando, assim como toda a sociedade. Os novos meios de comunicação e de informação, as mudanças morais de cada cultura e o desenvolvimento técnico e científico modificam a sociedade como um todo e, consequentemente, a família também se transforma. Com o apoio da filosofia intersubjetiva de Marcel, procuraremos criar fundamentos para o aperfeiçoamento das relações familiares e o enfrentamento dos problemas e das dificuldades que se apresentam diante da evolução da sociedade contemporânea. O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 7 1 Histórico das relações familiares A família de hoje não é a mesma de ontem e nem será a de amanhã. Se fizermos uma análise histórica, perceberemos que o relacionamento familiar passou por profundas transformações e muitas normas e valores foram deixados de lado ou tiveram sua importância reduzida. É difícil prever a família de amanhã, mas, uma reflexão sobre o tema pode ser muito útil para a atualidade. A palavra família vem do latim “famulus”, que significa um conjunto de servos dependentes de um chefe ou senhor. Nos primeiros tempos, era assim mesmo que as relações se organizava. Mas, com o passar dos anos, principalmente depois da I Guerra Mundial, o papel da mulher teve mudanças profundas, reivindicando igualdade de gênero e a autoridade do homem passou a ser questionada. Neste momento, daremos uma visão sobre a família de ontem e a família de hoje, para depois vermos algumas possibilidades para melhorar a formação da comunidade familiar realizando um estudo sobre o pensamento de Gabriel Marcel. 1.1 A família de ontem Na família nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Não podemos idealizar um modo familiar, pois a família acompanha a história, possibilitando ao indivíduo o bem-estar de que necessita. No decorrer da história, a família sofreu profundas transformações, tanto no campo físico como no moral. E, chegando aos dias atuais, percebemos que, em diferentes lugares, o ser humano, apesar de suas diferenças culturais e morais, continua unindo-se ao sexo que o atrai, criando relações familiares. Assim como na espécie humana, também entre os animais é possível encontrar distintas formas de união familiar. Há aqueles em que, após o acasalamento, a prole fica aos cuidados de um só dos genitores, geralmente a fêmea, mas também poderá ser o macho que se encarrega dos cuidados com os descendentes, como em certas espécies de peixes. Algumas espécies entre as aves vivem em família durante a época de reprodução e em bandos durante as demais épocas do ano. Os pais podem permanecer juntos aos filhotes pela vida toda, mas esses geralmente deixam os pais antes de nascerem outras ninhadas. Há também, entre os animais, famílias ampliadas (ou estendidas), nas quais os jovens ajudam a criar os irmãos. As abelhas operárias, que são filhos estéreis das abelhas rainhas, constituem entre si uma frátria ou comunidade de irmãs com funções de mútuos cuidados, de proteção e de alimentação. O homem também tem seu modo de união familiar, modificando-se no decorrer dos tempos. Na pré-história, o matriarcado era a estrutura familiar que preponde- O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 9 rava. Estudos afirmam que a forma matriarcal é uma decorrência natural da vida nômade, pois, enquanto os homens, desconhecendo ainda as técnicas próprias do cultivo da terra, tinham que sair à procura de alimentos as mulheres ficavam nos acampamentos com os filhos, que cresciam praticamente sob a influência exclusiva das mães, a quem cabia, ainda, fornecer um mínimo de estabilidade social aos núcleos familiares. A poligamia é uma forma de estruturação de família que existiu na pré-história e ainda está presente nos dias de hoje em alguns lugares do mundo. Nesse sistema, o homem pode casar-se com várias mulheres ao mesmo tempo, podendo ter filhos também com todas. A família feudal, conhecida hoje por patriarcalismo absoluto, já é uma estrutura do passado. Nessa formação, os membros da família não podiam desobedecer e nem contrariar as pessoas mais velhas. A paz deveria estar presente nessas relações, mas, em muitos casos, uma paz aparente, pois alguns membros do grupo deveriam submeter-se aos outros. Apesar de essa estrutura familiar pertencer ao passado, é possível perceber ainda hoje alguns traços desse patriarcalismo exagerado. A união por interesses econômicos, sociais e morais foi algo marcante na história do Brasil e ainda existe em alguns países. Nela, o amor fica em segundo plano e a escolha do companheiro ou da companheira é acordada pelos pais. A compra da noiva foi a forma mais primitiva de contrato matrimonial. Essa modalidade de matrimônio, onde a mulher é tratada como mercadoria, prevalece sobretudo nos famílias de organização patriarcal referidas anteriormente. Um remanescente cultural desde o consórcio em que a mulher é tida como propriedade do marido está nos costumes ocidentais de a mulher trocar o nome do pai pelo do marido (ou opor ao do pai o 10 Rubilar Tomasi deste) por ocasião do contrato matrimonial. Nos países de língua espanhola essa condição é explicitada pela partícula “de”, entre o nome próprio da mulher (seguido ou não do sobrenome de solteiro) e o sobrenome do marido, como a indicar a quem pertence doravante a nubente. (OSÓRIO, 1996, p. 29). Trataremos, na próxima parte, sobre a família de hoje, mostrando com aspectos gerais a situação da família na atualidade, seu desenvolvimento, suas transformações e também os problemas mais relevantes que estão tornando a família um lugar de discórdia. 1.2 A família hoje Ao analisamos a existência histórica da família, torna-se mais fácil o entendimento da estrutura familiar atual. Percebemos que muitas mudanças ocorreram, umas positivas outras negativas e que o conflito sempre esteve presente nessas relações. As mudanças geralmente ocorrem devido ao descontentamento ou ao conflito com um determinado modelo de agir ou de ser. Porém, essas transformações não são coesas e nem sempre ordenadas, podendo aniquilar valores importantes para uma boa relação familiar. Na atualidade, a negação do machismo, do autoritarismo do homem, os direitos das crianças e dos adolescentes e a profissionalização da mulher influenciaram profundamente nas relações familiares. Essas transformações ocorreram de forma paralela ao desenvolvimento político, ou seja, a exigência de relações democráticas, além de definir os padrões para a formação do Estado, modificou as relações pessoais. O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 11 As ideias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal. Significa que os cidadãos são sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da democracia (CHAUÍ, 2000, p. 558). Todas essas transformações modificaram profundamente as relações sociais e, consequentemente, as relações familiares. Para melhor entendermos a família nos dias de hoje, dividiremos este capítulo em quatro partes: a união com o “tu” desconhecido, a falta de planejamento, os meios de comunicação e, por fim, a modernidade e a família. 1.2.1 A união com o “tu” desconhecido Segundo Zilles, o ser humano não é somente racionalidade, ele também é sentimento, espírito e, acima de tudo, um ser misterioso como totalidade. Quando não se realiza em alguns desses pontos, o indivíduo poderá sofrer conflitos existenciais profundos que poderá comprometer a relação consigo mesmo e também as relações sociais. Muitas pessoas buscam sua realização individual na convivência familiar, mas, muitas vezes, a experiência traz consequências indesejadas devido à compreensão inadequada, por parte dos envolvidos, sobre as dimensões do relacionamento conjugal. Uma união baseada somente na atração física dificilmente será uma união estável, pois o convívio entre duas pessoas depende de muitas outras dimensões como amizade, respeito, doação e comprometimento. No entanto, uniões baseadas somente nas aparências físicas são muito frequentes na atualidade, onde a beleza física, 12 Rubilar Tomasi o status social, os apelos da mídia e as ideologias têm grande influência na vida das pessoas. O amor é confundido pela atração, e a realização do “nós” é reduzida ao egoísmo. O outro se torna um objeto de prazer e não a presença de um “outro eu”, ou seja, as relações intersubjetivas de respeito e de realização recíproca são deixadas de lado. Algo muito presente na vida familiar é o desconhecimento do parceiro ou da parceira. O outro, para mim, deve ser tomado como um ser humano, que possui seus limites, defeitos e imperfeições. Mas, em alguns casos, o outro é tomado como um ser perfeito, pronto para me fazer feliz e me proporcionar prazer, esquecendo-se de que a união é firmada no dia a dia, nas lutas, nas buscas, nas conquistas e nas derrotas. Não conheço o “tu”. No momento da união, não ocorreu a doação e, se ocorreu, não é a doação para o “tu” que o “eu” imagina. O outro é alguém próximo que me parece distante. É uma presença física cujo relacionamento caracteriza-se pela falta de confiança mútua. O indivíduo, após um breve período de união, poderá afirmar: “Não foi com esta pessoa que me casei!” Na verdade não era mesmo! No entanto, não foi a pessoa que mudou depois do casamento, mas o que faltou foi um melhor conhecimento entre ambos. O “eu” não consegue ver-se no outro, pois o outro se torna alguém estranho para mim e, em consequência, surge a desconfiança, a falta de fidelidade e a falta de clima familiar. Partindo do princípio de que não existe nenhuma pessoa igual a qualquer outra, mas de que cada um tem seus gostos, seus valores, sua personalidade e seu jeito de ser, pode-se afirmar que, na vida de um homem e de uma mulher, cada um possui seu jeito de ser. A união deveria ocorrer no momento em que o modo de ser de amO existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 13 bos é semelhante. Nesse ponto, existem dois problemas: primeiro, o de que muitas vezes esse critério não é usado, ou seja, a união ocorre somente por razões físicas e materiais. A pessoa que o “eu” escolhe como companheiro ou como companheira não se parece comigo, pois possui valores, modo de ser e personalidade diferentes ao do meu “eu”. Depois da união, percebe-se que a outra pessoa é totalmente diferente, o que é algo normal, mas, em alguns casos, entendido como um motivo para separação. Como segundo problema, tem-se que o outro, para mim, é tomado como alguém que pensa igual a mim, que tem valores e ideais iguais aos meus, ou seja, que faz tudo o que o meu “eu” quer. No entanto, não é bem assim. É essencial que as pessoas sejam parecidas, no entanto, para que a união prospere, ambos os lados devem ceder. Deve-se chegar a um consenso em que os dois exponham suas ideias, sabendo ceder para que o consenso seja alcançado de maneira tranquila, em que o que foi decidido junto seja a meta da caminhada na vida conjugal. Porém, essa esperança ilusória de encontrar alguém que pense igual a mim, poderá levar a decepções profundas, brigas conjugais, atritos, desrespeito e traições. No relacionamento entre duas pessoas, conhecer ao máximo o outro pode ser algo decisivo para o estabelecimento de uma boa relação. Porém, o ser humano ainda é um “mistério”. Podemos conhecer nosso corpo físico parcialmente, assim como conhecemos parcialmente quem nós somos e o sentido de nossa existência. Partindo desse princípio, surge a questão: “Como que o ‘eu’ irá conhecer o ‘tu’ se nem se conhece a si próprio?” O relacionamento entre dois “desconhecidos” será um grande desafio, uma grande aventura, que poderá trazer alegrias, mas também desavenças. 14 Rubilar Tomasi Essa é uma questão válida, pois, apesar da existência dessas dúvidas no casal, em alguns casos, um melhor entendimento da realidade do outro não é almejada. O conhecimento total do outro realmente é impossível, assim como é impossível que o “eu” se conheça totalmente. No entanto, muitos são os benefícios trazidos pela busca desse conhecer “impossível”. Se do outro o “eu” só conhecer seus gostos, suas roupas preferidas e suas comidas preferidas, a relação será fria e com dificuldades de ser intersubjetiva. No entanto, se ambos dialogam, com troca de ideias, com uma relação igualitária, ambos estarão se conhecendo. Quanto mais houver esse exercício intersubjetivo, tanto mais haverá o conhecimento. Não podemos afirmar que o “eu” conhece totalmente o “tu”, mas podemos dizer que o “eu” pode conhecer muito o “tu’. Quanto mais profundo for o conhecimento do outro, tanto melhor será o relacionamento entre o casal. O conhecimento do “tu”, entendido como algo infinito, só é cancelado na hora da morte. Se o “tu” for alguém desconhecido para mim, o “tu” será uma presença distante. No momento em que o outro não me parece estranho, quando conheço pelo menos parcialmente, o “eu” se vê no outro. Este talvez seja um dos maiores problemas existentes na família de hoje: o não conhecimento do outro por parte do “eu”, e o não conhecimento do “eu” por parte do outro e do próprio “eu”. Isso é uma das grandes causas dos divórcios, das constantes brigas, dos conflitos entre pais e filhos e da perda da ideia de que a família é um ambiente de paz, de descanso e de aconchego. O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 15 (...) a família falhou como forma social. Falhou porque perdeu a função tradicional de apoio e proteção ao indivíduo. Tradicionalmente, o indivíduo, diante de problemas econômicos, profissionais, pessoais ou sociais, podia recorrer a família. Hoje, para muitos, o primeiro problema é a própria família. (Teo Comunicações, 1998, p. 7). O “eu” e o “tu”, por não estarem num constante conhecer-se, tornam o relacionamento algo vago e frio e as relações intersubjetivas são profundamente comprometidas e os confrontos tornam-se rotineiros. l.2.2 A falta de planejamento A vida real de duas pessoas no casamento não deve ser confundida com as belas estórias de amor vistas em algumas novelas ou filmes. A vida do dia a dia em uma família não é somente de beijos e de abraços, de festas e de viagens. É formada também por desafios, por dificuldades, por trabalho, por doenças e por outros imprevistos. Um bom planejamento familiar fará com que essas dificuldades, quando porventura surgirem, sejam enfrentadas de forma mais objetiva e consciente. E essas mesmas dificuldades poderão ser um meio de fortalecimento do relacionamento. No campo econômico, um bom planejamento é essencial em uma união. Nesse sentido, não queremos afirmar que riqueza traz felicidade, mas as dificuldades econômicas podem interferir na vida de um casal e a priorização excessiva dos bens materiais pode afastar as pessoas, pois não sobra tempo para a convivência. A dificuldade econômica que tem como conseqüência que mais pessoas dentro da família trabalhem, diminuindo o tempo de convivência, faz com que a família se torne uma união de estranhos (Teo Comunicações, 1998, p. 7). 16 Rubilar Tomasi Toda família deve ter o momento do “estar juntos”. Isso é algo essencial na família. Esses momentos podem ser durante as refeições, nos finais de semana ou em qualquer outro horário do dia. Se faltar esse momento de comunhão, o ambiente familiar tornar-se-á “frio” e a casa passará a ser um depósito de objetos e um lugar para dormir. Por esses motivos, é de essencial importância que a família reserve um horário em que todos possam estar juntos, que o trabalho não seja uma divisória dos membros da família. Infelizmente, esse é um dos principais problemas do relacionamento familiar na atualidade. Devido aos problemas econômicos ou à obsessão pelo consumo, os membros da família preocupam-se em trabalhar onde o salário seja mais rentável, sem se preocupar com as influências e as consequências negativas na família. Não queremos aqui dizer que os problemas econômicos são ilusórios, mas sim, que o homem está envolvido em um mundo no qual, por vezes, é necessário trabalhar muito para conseguir a subsistência, mas, também, por outro lado, que os apelos pelo consumismo tornam o ser humano escravo do consumo, sempre querendo ganhar mais para poder comprar mais, esquecendo-se da importância do “estar juntos” nas relações familiares. A vida urbana talvez tenha agravado ainda mais essa situação para uma grande maioria de trabalhadores. A necessidade de percorrer grandes distâncias para chegar ao trabalho, somada a um sistema de transporte precário, impede o retorno das pessoas ao meio-dia para suas casas, além de obrigar o trabalhador a sair de casa de madrugada e a chegar tarde da noite, o que fez com que a disponibilização de tempo para a família ficasse ainda mais reduzida. A necessidade de algumas pessoas, O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 17 de trabalharem à noite e nos finais de semana, pode ser entendida como agravante dessa problemática. O planejamento das atividades laborais e o estabelecimento de prioridades pode ser decisivo para o sucesso ou para o fracasso da família. A falta de um planejamento está presente atualmente não só no campo econômico, mas também nas relações de união familiar. O impulso leva à união de duas pessoas sem conhecimento mútuo e sem planejamento. Os primeiros momentos, em muitos casos, são resumidos a dificuldades e problemas, pois não têm onde morar, onde trabalhar, para onde ir... Uma gravidez não planejada poderá ser um dos motivos a levar a uma união repentina, em que tudo precisa ser planejado às pressas. A rejeição do pai, da mãe ou dos familiares significará um agravamento considerável no planejamento e que acarretará profundas consequências à criança. Não queremos aqui defender a tese de que essa futura família será infeliz; pelo contrário, poderá ser um ambiente muito agradável, com excelentes relações, ideal para o crescimento de uma criança. No entanto, as dificuldades iniciais ou permanentes, os traumas criados e os conflitos gerados são consequência da falta de planejamento. Temos clara a complexidade acerca desse tema e também os preconceitos que ajudam a agravar a situação. Porém, campanhas de prevenção, projetos nas escolas e o diálogo dos pais com os filhos são meios eficientes para enfrentá-la. O planejamento familiar é bom em todos os sentidos. A organização é um dos fatores que possibilita uma melhor vivência entre os membros de uma família. É bom estar em um lugar onde as pessoas se encontram e há o diálogo e a paz. Por isso, não podemos nos alienar com 18 Rubilar Tomasi ideologias consumistas e mecanicistas que idealizam o consumo e o individualismo, dando importância somente para o próprio “eu”, esquecendo-se do “estar juntos”. l.2.3 Meios de comunicação Nas suas origens mais remotas, a família era independente, pois, com o trabalho de cada um, o conjunto conseguia sobreviver. Através do cultivo da terra ou da caça, os membros de uma família propiciavam o seu sustento. A espiritualidade era passada de pai para filho, pois não existiam igrejas, assim como a educação, pois não existiam escolas, tornando-se menos complexo educar os filhos, pois os mesmos geralmente faziam o que os pais lhes ensinavam. (...) desaparecimento da autarquia econômica da antiga família, que gerava numerosos filhos e cuja força de produção econômica empregava para o próprio sustento; paralelamente havia, outrora, uma autarquia espiritual, pois não existiam escolas e meios de comunicação social como hoje. Assim era fácil transmitir aos filhos a visão do mundo dos pais.” (Teo Comunicações, 1998, p. 9 e l0) Atualmente, as crianças têm acesso a muitos meios de comunicação e de educação, tornando-se uma tarefa mais complicada educar os filhos onde existem tantas influências, algumas positivas e outras extremamente negativas. A sexualidade foi objetivada e passou a ser um meio para vender mais um determinado produto, usando a nudez como mais um meio para induzir as pessoas ao consumismo. Não queremos assumir uma posição moralista, com pretensões de defender um determinado comportamen- O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 19 to moral de uma determinada cultura, principalmente quando nos referimos ao tema sexualidade. Esse é um tema complexo, cuja interpretação varia de posições conservadoras, afirmando que o sexo só poderá ocorrer após o casamento, enquanto que em outras culturas o sexo é entendido como mais uma das opções de prazer do ser humano. Essas diferenças existem devido à diversidade cultural existente, tornando-se importante entender que a pluralidade deve ser respeitada, o que não impede que críticas construtivas sejam feitas, por exemplo, com relação ao machismo e à violência contra as mulheres. Os meios de comunicação cumprem um papel importante na sociedade democrática por poderem criticar, por exemplo, situações de injustiça, de corrupção, explorações, desrespeito e a existência de normas morais preconceituosas, fundamentado suas críticas no princípio da liberdade de imprensa. No entanto, alguns programas televisivos banalizam algumas normas e princípios morais que são os pilares dessas sociedades sem uma justificação convincente. É o que acontece com o tratamento dado às relações familiares por alguns programas. A família, independentemente do modelo de formação, ainda é o melhor lugar para o crescimento, a formação e o desenvolvimento de uma criança. Mas, em alguns meios de comunicação, esse ambiente é banalizado, mostrado como uma “prisão” e que a vida conjugal somente entre duas pessoas é um modelo ultrapassado. A pessoa honesta e fiel é apresentada como uma pessoa carreta, “cafona” e pouco esperta. As traições deixam de ser consideradas atos imorais para serem consideradas um sinal de “esperteza”, sem mostrar, na maioria das vezes, as consequências dessas atitudes, como o sofrimento do casal e, principalmente, o sofrimento dos filhos, os 20 Rubilar Tomasi quais ficam no meio de conflitos irracionais, discussões acirradas, brigas com agressões físicas e, em alguns casos, até com mortes. Por isso, a liberdade de impressa deve ser sempre defendida como uma das manifestações da sociedade democrática, mas essa, necessariamente, deve estar acompanhada de responsabilidade. Além disso, é necessário ter cuidado para que os poucos momentos em que a família consegue se reunir não se resumam a um grupo de pessoas em silêncio assistindo a um programa de televisão. 1.2.4 A modernidade e a família Vivemos na era do desenvolvimento da ciência, em que o homem já conseguiu chegar até a lua, criou novas tecnologias de informação, desenvolveu a ciência e a técnica, está substituindo a força manual pela máquina etc. Mas, esse desenvolvimento científico provocou algumas mudanças que podem ser avaliadas negativamente, como é o caso das relações de trabalho, que, por sua vez, afetam diretamente o cotidiano das relações familiares. O homem, em suas origens, era o sujeito de seu trabalho, não obedecia a um patrão e nem “batia cartão”. Com seu trabalho, fazia nascer da terra o seu próprio sustento. Com o surgimento da máquina, o homem teve que aprender a controlá-la para poder trabalhar, passando a vender seu trabalho e não via mais motivos para se dedicar ao trabalho, tornando-se um objeto, mais uma peça em uma máquina. Os trabalhos coletivos são deixados de lado, surgindo o trabalho individual, em que cada um cuida de sua tarefa. O antigo provérbio “o trabalho O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 21 dignifica o homem”, neste caso, é inviável e inválido, pois, segundo Marx, o trabalho, ao invés de dignificar aliena, frustra e escraviza o homem, o qual se torna mais uma peça em uma engrenagem. Marx aborda de maneira muito crítica esse tema: Mas em que consiste, mais exatamente, a alienação do trabalho? Consiste antes de mais nada no fato de que o trabalho é exatamente ao operário, isto é, não pertence ao seu ser e, portanto, ele não se afirma em seu trabalho, mas se nega, não se sente satisfeito, mas infeliz, não desenvolve energia física e espiritual livre, mas definha seu corpo e destrói o seu espírito. Por isso, somente fora do trabalho é que o operário sente-se senhor de si; no trabalho, ele se sente fora de si. Sente-se em sua própria casa se não está trabalhando; e, se está trabalhando, não se sente em sua própria casa. O seu trabalho, portanto, não é voluntário, mas constrito: é trabalho forçado. Não constitui, assim, a satisfação de uma necessidade, mas somente meio para satisfazer necessidades estranhas. Por tudo isso, o homem só se sente livre em suas funções animais , sentindo-se como nada além de animal em suas funções humanas, isto é, no trabalho (REALE, 1991, p. 193-194). Essa racionalidade moderna que objetiva o trabalho, afetou também o meio familiar. Com a revolução industrial, o homem passou a vender sua força de trabalho e o que interessava para o empregado não era o que ele produzia, mas, sim que fizesse seu papel e ao final de mês recebesse seu salário. Nesse espírito, o homem passa a ter relações laborais envolvidas em certa obscuridade, tornando sua força de trabalho e sua vida envolvidas em um sistema comercial. Consequentemente, a família também sofre influências, tornando-se uma associação comercial, reduzida a uma associação biológica ou funcional, já que não sobra muito tempo para lazer, para integração, para afeto e para carinho, tornando a moradia um lugar para se “recuperar as energias” para 22 Rubilar Tomasi que se possa iniciar uma nova jornada de trabalho no dia seguinte. A família, que devia ser um lugar de profundas relações intersubjetivas, de descanso, de paz e de harmonia, torna-se um lugar pesado, onde muitas vezes os membros da mesma descarregam inconscientemente seus problemas e suas frustrações nos demais membros. São muitas as consequências trazidas pela racionalização da sociedade moderna e as transformações nas relações de trabalho no seio da família, mas queremos dar destaque às brigas familiares e ao uso de drogas. A) Brigas – A racionalidade exagerada e a obsessão pelo consumo fez com que os seres humanos tivessem que dedicar grande parte de sua vida para terem bons empregos e bons salários, provocando, em muitos casos, o esquecimento do lado sentimental e das relações intersubjetivas. Pelo fato de o ser humano não ser somente um ser racional, quando agimos somente de forma racional podemos perder o sentido de nossa existência, o que é de fácil percepção nas relações familiares. O indivíduo carrega consigo muitas frustrações, carências e traumas e a primeira pessoa com a qual ele briga é consigo mesma. É uma “bomba relógio” que pode explodir a qualquer momento. Perde-se o sentido do amor e o outro se torna um objeto, deixando, assim, de ser um “eu” fora de mim. Muitas vezes, essa bomba explode e as consequências são assustadoras. Marido mata sua esposa e vice-versa, filho mata os pais e brigas constantes provocam traumas que o indivíduo poderá levar consigo para o resto da vida. Os filhos, nesse caso, são os mais atingidos, com grandes possibilidades de tornarem-se pessoas revoltadas com seus pais e com o mundo. A família, que deveria ser um lugar onde os membros poderiam se ajudar para resolO existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 23 ver seus problemas, torna-se ela própria um problema. Sobre essa questão, é necessária uma profunda reflexão, pois, é um problema que está levando muitas pessoas a questionarem se realmente a vida familiar vale a pena ou se é melhor viver sozinho, estabelecendo relações passageiras e superficiais, tornando o outro como um simples objeto de prazer sem reconhecê-lo como ser humano provido de dignidade, situação que poderá ser agravada quando crianças são envolvidas. B) Drogas – Outra manifestação das carências afetivas provocadas por relações familiares com experiências negativas é o uso de drogas, e são vários os motivos que levam ao seu uso. Várias iniciativas já foram realizadas por governos ou organizações privadas para combater esse problema. No entanto, os dados mostram que a quantidade de pessoas dependentes só vem aumentando nos últimos anos, provocando consequências trágicas nas relações familiares. Muitas pessoas gostam de tomar um copo de cerveja com os amigos, um drinque depois do trabalho ou um cálice de vinho no jantar, sem isso ser considerado pelo Estado brasileiro como um vício e ou um mal a ser combatido. Apesar disso, muitas pessoas, algumas ligadas a igrejas, afirmam que o consumo de qualquer quantidade de bebida deve ser evitado. Não queremos entrar em uma discussão moral, mas queremos mostrar que a dependência alcoólica, sim, pode ser considerada um problema a ser enfrentado. O alcoolismo tem como um dos motivos a fuga da realidade vivida, caracterizada pelas desilusões e pelas carências afetivas, por frustrações profissionais, pela exclusão e pela exploração. As consequências nas relações familiares são devastadoras, como 24 Rubilar Tomasi por exemplo, violência física e psicológica, separações, traumas e até mortes. Outras drogas como a maconha, a cocaína e o craque, por exemplo, também são bastante consumidas, e essas são consideradas ilícitas. As consequências causadas pela dependência química, apesar de serem bastante difundidas por campanhas de conscientização realizadas por vários setores da sociedade, parecem não intimidar muitos usuários, assim como não estão sendo suficientes para conscientizar outras pessoas a não se tornarem dependentes. Assim como no alcoolismo, as relações familiares têm um duplo papel, podendo, por um lado, ser uma experiência negativa que leva as pessoas à dependência como um meio para fugir da realidade, mas, de outro lado, poderá ter suas relações destruídas justamente pelo fato de um de seus membros ser dependente. São esses alguns dos principais problemas que envolvem o dia a dia das pessoas e, consequentemente, a vida familiar. No próximo capítulo, estudaremos o pensamento de Gabriel Marcel, a partir do qual refletiremos sobre algumas alternativas para uma ralação familiar melhor. O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 25 2 A relação entre filosofia e família Na atualidade, existe uma supervalorização da racionalidade humana voltada para o aperfeiçoamento das técnicas, o domínio sobre a natureza e novas descobertas. Porém, é fácil perceber que, em alguns momentos, o homem deixou de lado sua subjetividade, sua dimensão existencial e as suas relações familiares. ...o objetivismo racionalista das ciências dos tempos modernos esqueceu quase totalmente o fator meramente subjetivo, ou seja, o próprio sujeito atuante e concreto. (Teo Comunicação, 1998, p. 6). Frente a essa realidade, em que a filosofia pode ajudar? Compete à filosofia falar sobre família? Uma das principais funções da filosofia é a de fazer com que o homem reflita, pense, critique e reelabore conceitos e comportamentos, tornando a análise das relações familiares uma das dimensões de reflexão da filosofia. Queremos mostrar que a filosofia de Gabriel Marcel poderá dar uma grande contribuição para a reflexão sobre a família, principalmente por abordar temas relacionados à intersubjetividade. Mas, antes de realizar este estudo, vamos conhecer melhor quem foi Marcel. 2.1 Gabriel Marcel Gabriel Marcel nasceu em Paris, no dia 7 de dezembro de 1889. Seu pai foi educado em religião católica, a qual abandonou mais tarde. Sua mãe, que faleceu quando Marcel tinha apenas 4 anos de idade, era judia. Essa experiência trágica influenciou sua filosofia, já que sempre afirmara que, apesar de sua mãe estar morta, permanecia-lhe presente de forma misteriosa. Seu pai casou-se, futuramente, com a irmã de sua mãe, a qual era judia, mas acabou convertendo-se ao protestantismo. O fato de Gabriel Marcel possuir “duas mães” (a de gestação e a de criação) influenciou na criação da ideia de visível (mãe criadora) e de invisível (mãe gestante). A experiência do invisível e da transcendência não foi influenciada somente pela perda de sua mãe, mas também pelo contato com as pessoas mortas na I Guerra Mundial, quando trabalhou na Cruz Vermelha. A intersubjetividade, tema abordado por Marcel, é outra consequência de sua infância, ou seja, por ser filho único, sentiu muito a falta de um companheiro ou de um “tu”. Já nos primeiros escritos, a importância da intersubjetividade na relação do “eu” e o “tu” é apresentada. Marcel estudou filosofia em Paris, onde se revoltou com o sistema de notas para avaliar o conhecimento. Aos 18 anos, formou-se com uma monografia sobre “As ideias metafísicas de Coleridge e suas relações com a filosofia de Schelling”. Com 20 anos, fez concurso do estado, começando a atuar como professor, mas não de maneira contínua. Teve contato direto com o drama da existência humana no período de 1914-18, quando participou como integrante da Cruz Vermelha na I Guerra Mundial. Tinha O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 27 experiências com situações transcendentais, por receber diariamente apelos de pais, esposas e filhos, por notícias de pessoas queridas que estavam na guerra, notícias que, em muitos casos não eram boas, influenciando diretamente na sua compreensão sobre a transcendência. Casou-se com Jacqueline Boeguer, em 1919, em uma igreja protestante, a qual veio a falecer em 1947. Marcel converteu-se ao Catolicismo em 1929, enquanto sua mulher tinha se convertido somente em 1944. Marcel gostava do modo como era feita a comunicação nos teatros, o que o motivou a escrever muitos romances, poesias, músicas e sobre filosofia. Não escreveu nenhum tratado sistemático, pois cedo renunciou à ideia de sistema, preferindo o contato permanente com o concreto da experiência e não elaborou fórmulas racionais. Por isso, tentou superar o idealismo usando o método Socrático, buscando a reflexão das experiências. Sua filosofia não foi muito aceita no tempo, pois as pessoas estavam em clima de guerra e não confiavam no outro. A filosofia dominante da época era o pensamento de Sartre (“O inferno são os outros”). Em 1951, Marcel esteve em Porto Alegre, pronunciando uma conferência na PUC – Pontifícia Universidade Católica. Mas, sua grande consagração tinha ocorrido em 1949 e 1950, quando foi convidado a proferir as “Gifford Lectures”, na Universidade de Aberdeen (Escócia). 2.2 Mistério e problema Desde os primeiros tempos, a família vem sofrendo grandes mudanças, adaptando-se à nova realidade social, sendo influenciada pelas novas relações de traba- 28 Rubilar Tomasi lho, pelo capitalismo, pelas novas tecnologias de informação e pelo individualismo. A racionalidade moderna, que objetiva tudo, passou também passou a ter grande influência e o outro passou a ser considerado como uma coisa, um objeto, transformando e destruindo a estrutura familiar e seus os laços intersubjetivos. Tudo isso está transformando as relações familiares, o que a princípio não chega a ser considerado um problema, pois ela sempre esteve em transformação. No entanto, o que queremos mostrar é que a racionalização de tudo pode ser considerada como algo muito negativo, pois leva o homem a perder a dimensão misteriosa da vida para entrar na dimensão obscura dos problemas. Marcel afirma que o problema é o que está diante de mim, que se opõe a mim, que pertence à ordem racional e pode ser solucionado. Há problema de tudo o que está perante mim e por outro lado, o eu entra em atividade para resolver o problema, fica fora ou aquém, como se quiser dos dados que tem de tratar e manipular para obter a solução. Dir-se-á que este eu calculador ou investigador dá origem a problemas, isto é, tem obrigação de colocar-se frente a si mesmo? Será apenas recuar a dificuldade. De qualquer modo haverá que manter um sujeito que não pode por problemas senão mantendo-se ele mesmo em espera não problemática. (MARCEL, Os homens contra o homem, p. 80). O Mistério é alguma coisa a que estou ligado totalmente, engajado, uma realidade que envolve intimamente minha existência, e o interior e o exterior de mim se tornam insignificantes. Que é, pois mistério? Por oposição ao mundo do problemático que, como disse, está diante de mim, o mistério é alguma coisa que estou ligado, não parcialmente por algum aspecto determinado e especializado, mas inteiramente enquanto realizando uma unidade que por definição nunca pode apreender-se a O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 29 si próprio e só pode ser objeto de criação e fé. O mistério faz desaparecer a fronteira entre em mim e o perante mim, que há pouco podia ser recuado, mas sem deixar de reconstruir-se a cada momento da reflexão. (MARCEL, Os Homens Contra o Homem, p. 81). Em Etrê et Avoir, Marcel faz uma distinção entre mistério e problema: O problema é algo que se encontra e cria obstáculo no caminho. Está inteiramente diante de mim. Ao contrário o mistério é algo no qual me acho engajado: sua essência não está totalmente diante de mim. É como se, nesta zona a distinção entre em mim e diante de mim perdesse a significação. (MARCEL,1968, p. 145). Marcel faz essa distinção entre mistério e problema, o que nos ajuda na percepção de que a existência do homem é um mistério e não um problema a ser resolvido ou interpretado, pois, o homem não pode ser tomado como um objeto. Por isso, veremos como o homem pode ser “tomado” como mistério e não como objeto, para depois perceber que também a família pode ser tomada como mistério. Marcel começa afirmando que o homem é um ser encarnado, ou seja, não posso afirmar que o corpo é meu e nem que não é, pois, estão juntos para formar uma unidade da minha existência, transcendendo a oposição entre corpo e alma. O “eu” está encarnado em um corpo que está aberto para o mundo e que condiciona meu ser no mundo e a encarnação não pode ser analisada, pois não é um fato, mas é um dado a partir do qual se torna possível o fato. Ser encarnado é identificar-se como corpo, afirma Marcel. 30 Rubilar Tomasi A encanação - dado central da Metafísica – é a situação de um ser que aparece a si , como ligado a um corpo. Um dado não transparente a si mesmo: oposição ao cogito. Deste corpo não posso dizer que é meu eu, nem que não é, nem que é para mim (objeto). A oposição entre sujeito e objeto é transcendida. Mas, ao contrário, se parto desta oposição tratada como fundamental, não haverá mais truque lógico para re-unir esta experiência; inevitavelmente terá passado ou foi recusado, o que é a mesma coisa. Não se deve objetar que esta experiência apresenta um caráter contingente; na verdade toda a investigação metafísica requer um ponto de par5tida deste gênero. Só pode partir de uma situação que reflete sobre si mesma seu poder compreender-se. Examinar se a encarnação é um fato; não me parece que o seja. É um dado a partir do qual um fato é possível ( o que não é verdade a partir do cogito). É uma situação fundamental que, a rigor, não pode ser dominado, rotulada e analisada. É precisamente esta impossibilidade que eu afirmo quando declaro, confusamente, que sou meu couto, ou seja, que não me posso conceber como um termo distinto do meu corpo, que se mostra numa relação determinável, Como já disse, no momento em que o corpo é tratado com o objeto da ciência, eu me exilo no infinito (MARCEL,1968, p. 11-12). Eu sou um ser que tenho corpo e alma encarnado e é impossível existir separadamente, pois a desencarnação é impossível. Devo ter consciência de que os outros também são corpo e alma encarnados e, por isso, não devo reduzi-los a objetos, mas tratá-los como mistério. O amor une-me aos outros seres e leva-me a perceber o outro como um “eu” fora de mim. No momento em que minha relação com esse “eu fora de mim” for intersubjetiva, que o meu “eu” tenha consciência de que não sou o sujeito único da relação e que não sou um ser pensante fora de um corpo e nem distante do outro, perceberemos que o “eu” e o “tu” se unem e formam o “nós somos”. Nesse momento, o meu “eu” percebe a existência do “nós” e, no encontro, nenhum capta somente a ideia do outro, mas o outro como todo. O outro passa fazer parte de mim, o O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 31 qual se torna eterno para mim. Marcel afirma que “Amar alguém é dizer: tu não morrerás. Venha o que vier, nós permaneceremos juntos.” A partir dessa ideia, percebemos o grande mistério que envolve a vida do homem e o quanto é errado, segundo Marcel, homem objetivar a si mesmo e as outras pessoas, pois ambos os sujeitos são mistério. Na família, o mistério também está presente e também pode ser confundido como problema. Em uma união, na maioria das vezes as pessoas gostam uma da outra. No entanto, inconscientemente e por motivos culturais, tomam o outro como objeto, como por exemplo, quando o homem é o chefe da família, aquele que manda, e a mulher aquela que é submissa, pois “sempre foi assim”. Outras vezes, a objetivação acontece por motivos sociais, ou seja, trabalho mecanicista e os meios de comunicação que empregam contravalores. Nesse processo, a cultura exerce grande influência pelas características de sua definição, as quais podem variar: Pode-se então dizer que a cultura é o conjunto de símbolos elaborados por um povo em determinado tempo e lugar, capacidade que inclui todas as formas de agir, pensar, desejar, exprimir sentimentos. Dada a infinita possibilidade de simbolizar, as culturas são múltiplas e variadas (ARRANHA, 1996, p. 58). O casamento não é somente a união de um “eu” encarnado com um “tu” encarnado, mas a própria união do “eu” e o “tu” é uma encarnação, tornando assim, o próprio casamento um mistério. Por que um mistério? O eu está diariamente em contato com outros “eus”, mas escolho um para unir-me. Esse “tu’ escolhido escolhe o meu “eu” e, assim, juntos, formam um “nós”. Essa união ocorreu devido a uma atração que se chama amor e esse amor que proporcionou a união é um mistério. 32 Rubilar Tomasi O que falta em muitas uniões é perceber o outro como um mistério e como alguém que faz parte de mim. É o domínio da racionalidade objetiva da modernidade, a qual leva consigo, assim como uma esteira, toda a sociedade, a educação, a criticidade, os valores, as culturas, o sexo e a família, condicionando as pessoas a um estilo de vida que as distancia de princípios como a solidariedade, o respeito, o reconhecimento e a igualdade. [...] se isso se torna a marca característica das mentalidades, se a própria razão é instrumentalizada, tudo isso conduz a uma espécie de materialidade e cegueira, torna-se um fitiche, uma entidade mágica que é aceita ao invés de ser intelectualmente apreendida (HORKHEIMER, 2002, p. 31). O esforço pelo autoconhecimento e o conhecimento do outro faz compreender que a busca pela felicidade é mútua, manifestação que poderá ser percebida se o “tu” e o “eu” reconhecerem-se como um “nós”, onde o amor e a felicidade estarão presentes, apesar dos possíveis problemas de relacionamento que possam surgir, assim como problemas de ordem econômica ou existencial. Nesse caso, as crises não são entendidas como negativas, mas como parte de um processo de transformação, já que o casal possui seu “alicerce em chão firme”, conseguindo superar os problemas e fortalecendo cada vez mais o seu relacionamento. No entanto, o casamento construído sobre “alicerce de areia” não resistirá aos problemas, surgindo grandes possibilidades de separações, sofrimento de seus membros e tragédias. O casamento é a encarnação de duas pessoas que formam um “nós”, o que possibilitará a percepção do mistério da união e do amor e ambos afirmarão: “Tu não morrerás, venha o que vier, tu e eu permaneceremos juntos”. Para se chegar a esse amor, muitos caminhos deO existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 33 vem ser trilhados, mas, quando o amor for “encarnado”, o outro será único no mundo para mim, pois ambos se cativaram. É o que falou Saint-Exupéry quando leva o pequeno príncipe a perguntar o que é cativar. A raposa responde que “é criar laços,” e logo após, dá um exemplo: Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo... (SAIT-EXUPÉRY, 2005, p. 56). Mais adiante, dá outro exemplo: Minha vida é monótona e eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha e vês, lá longe os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então serás maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo... (SAINT-EXUPÉRY, 2005, p. 56). 2.3 A família como experiência intersubjetiva A intersubjetividade é uma relação de dois sujeitos e não de um sujeito com um objeto, ou seja, uma relação de igual para igual, mas, desde os primórdios da humanidade essa relação de equidade entre o casal deixou a 34 Rubilar Tomasi desejar. Houve tempos de predominância do matriarcalismo, mas, na maior parte dos tempos, o patriarcalismo esteve presente como estrutura familiar, sendo o pai não somente o chefe da família, mas o proprietário de uma ou mais mulheres e também dos filhos. Sem dúvida, o patriarcalismo foi muito mais influente e duradouro que o matriarcalismo e, como consequência, percebe-se muito mais as características deste modelo na atualidade. A mulher de hoje já conquistou muitos espaços e já ocupa quase todas as funções exercidas por homens, apesar do preconceito e da discriminação ainda existentes, manifestando-se pela comparação dos salários que são mais baixos por uma mesma função desempenhada e o uso da beleza estética da mulher como meio para motivar a venda de um produto. Essa é mais uma manifestação do racionalismo objetivista moderno. A mulher conquistou muitos espaços na sociedade e na família, mudando suas funções, buscando aperfeiçoamento, desempenhando novas atividades e recebendo maior reconhecimento, fato que não significa que em alguns lugares ainda a mulher é tratada como propriedade masculina. Assim, também é, em alguns lugares, a relação dos pais com os filhos, em que estes devem servir, trabalhar e obedecer ao pai e os questionamentos são reprimidos com violência paterna. No entanto, tanto a mulher quanto os filhos podem ser felizes vivendo inseridos nesse sistema, mesmo sem ter essa “liberdade”, pois não têm consciência de sua liberdade devido aos costumes culturais. Na relação machista, a mulher perde a possibilidade de ser uma pessoa atuante e transformadora da sociedade e o casal deixa de ter a possibilidade de estabelecer relações intersubjetivas. O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 35 O amor dos pais para com os filhos indica o amor que os mesmos sentem entre si, no casal. Se os filhos sentem-se amados, é sinal de que os pais se amam. O filho percebe-se como alguém ligado ao passado, que seus pais são ligados a ele, que é o fruto de um amor histórico, ou seja, que não é somente consequência de um coito que levou à fecundação do óvulo com um espermatozoide, mas que é alguém que surgiu entre o amor misterioso entre duas pessoas que tem passado e história. O filho tornase membro da história e participante ativo na história de um casal com relações intersubjetivas. Na maioria das vezes, os pais preocupam-se e querem ser companheiros dos filhos, mas os costumes de sua cultura, a educação e a influência da mídia levam-nos pais a tomar decisões equivocadas com relação aos filhos. De modo geral, os pais têm boas intenções em relação aos filhos, mas, no lugar do diálogo, existem as brigas, no lugar da conscientização, as proibições e no lugar das conversas, o autoritarismo. Os filhos, nesses casos, não se percebem como fruto do amor de duas pessoas, mas como escravos em busca da liberdade e os pais, inconscientemente, tornam-se pessoas revoltadas. É claro que na relação entre pais e filhos os únicos culpados não são os pais, pois os filhos também recebem informações, são influenciados e recebem educação em escolas, igrejas, meios de comunicação, nos grupos de amizade, com influências positivas e negativas. Os conflitos entre pais e filhos geralmente são provocados por choques de geração, em que os pais querem que os filhos sejam como eles foram no passado e os filhos acham que seus pais têm conceitos ultrapassados e seus conselhos não merecem atenção. 36 Rubilar Tomasi A relação entre pais e filhos deve ser uma relação amorosa e os filhos devem sentir-se amados. Muitas vezes, os pais amam seus filhos, no entanto, por preconceitos culturais, não o demonstram e os filhos sentem-se mal na família. Para o filho sentir-se amado pelos pais, basta os pais dizerem “eu amo você”, não terem medo de abraçá-los com força, fazendo com que o mesmo se sinta como graça e que é fruto da encarnação de duas pessoas. Tendo consciência disso, o filho perceberá com maior facilidade que em certos momentos ele deve ser advertido e em outros acariciado, e, aos poucos, vai tornando-se independente, mas sua presença continua sendo essencial na família. O filho perde a noção de ser causa ou efeito e se reconhece como um mistério. Percebe-se como encarnação de corpo e alma, que é fruto da encarnação de corpo e alma e que é fruto da encarnação de seus pais. Essa relação intersubjetiva deve ser buscada no namoro, algo essencial para o conhecimento recíproco, pois são os primeiros passos para o entrelaçamento do amor. O noivado é outro momento importante, pois é o momento em que ambos assumem um relacionamento mais sério, preparando-se para o casamento. O noivado deverá ser um tempo de amor sério, de diálogo, de reflexão a dois sobre os problemas fundamentais da vida a dois. Devem se destruir as máscaras para não construir ‘castelos no ar’. Tudo isto por que há um fim a atingir. É preciso querer. A vontade deixa o país dos puros sonhos. Querer ser feliz e imaginar-se feliz são duas coisas bem diferentes. É preciso ter coragem de abrir os olhos um para o outro, mostrar a verdadeira face, a fim de ambos poderem entrever o próprio futuro. Para que o tempo de noivado se torne realmente tempo de conhecimento mútuo, é preciso que ambos saibam abrir um ao outro, seu coração e sua alma. (ZILLES, 1993, p.14). O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 37 Nos primórdios da humanidade, o homem estabelecia a união com a mulher sem nenhuma atividade de cerimônia, mas, com o surgimento das tribos e das aldeias, são realizadas as primeiras cerimônias. Na atualidade, o casamento é um momento especial para o casal, podendo a cerimônia ser religiosa ou civil, mas marcante para o casal e para todos os convidados. No entanto, o que vai determinar a felicidade do casal não vai ser o tamanho da festa e nem o nível de luxo existente na decoração ou no cardápio servido, mas, sim, a intensidade das relações intersubjetivas entre os noivos. Não é incomum escutarmos falar sobre grandes festas de casamento com gastos altíssimos, mas que duram apenas alguns meses. Após o casamento, uma relação de amor é essencial, pois ele é a “corrente” que une livremente duas pessoas. Marcel não escreveu nenhum livro sobre amor, pois não simpatiza com a ideia de sistema. No entanto, em todas as suas obras, o amor está presente. Amar alguém significa participar de sua vida, estar presente nos momentos alegres e nos tristes. Quando amo alguém, minha vida troca de centro, pois, para mim, o “eu” não está no centro de minha vida, mas o “nós”. Amamos uma pessoa apenas por aquilo que ela é e não por aquilo que ela tem, dando sentido para nossa vida e é o ato de amar o outro que dá mais sentido para nossa existência. Na vida, ser é coexistir, conviver ou ser-com-outros. Por isso o princípio metafísico fundamental não é ‘eu penso’, mas ‘nós somos’, ou seja, eu existo, na medida em que me relaciono com o outro. A intersubjetividade, segundo Marcel, é a participação amorosa. E a existência dos outros se me dá na experiência metafísica da encarnação. O outro se me dá como um “tu”, como presença. (ZILLES, 1995, p. 57) 38 Rubilar Tomasi Logo à frente, continua: A relação ‘eu-tu’ é fundamental, encontro no qual se afirmam presenças livres. Um “tu” é alguém que me está presente, que responde a meu apelo. O ‘tu’ constitui mediante um modo de presença que o introduz em minha existência. (ZILLES, 1995, p. 68) Em uma família onde há uma relação intersubjetiva, tanto o homem como a mulher poderão dar, com muito mais facilidade, um sentido para suas vidas, pois há a complementação no outro. Uma pessoa que não encontra ambiente ou pessoa para conversar, desabafar, trocar ideias e ser reconhecida poderá desenvolver muitas carências, inseguranças e traumas que poderão comprometer a formação de sua identidade. A teoria psicanalítica leva em conta sistematicamente a intuição desenvolvida acerca do valor psíquico das experiências interativas na primeira infância, na medida em que, complementando a organização das pulsões libidinosas, a relação afetiva com outras pessoas é considerada um segundo componente do processo de amadurecimento. Permite uma ilustração do amor como uma forma determinada de reconhecimento em virtude do modo específico pelo qual o sucesso das ligações afetivas se torna dependente da capacidade, adquirida na primeira infância, para o equilíbrio entre a simbiose e a autoafirmação (HONNETH, 2003, p. 163). A família tem por objetivo ser um ambiente onde pessoas compartilham seus problemas, de desenvolvimento mútuo e construção coletiva. É construir um amor que traz a liberdade, pois o “eu” é amante e é amado. Percebo o amor presente no “eu” e no “tu”, tenho o desejo de eternizar o ser amado, pois é no ângulo do amor que brota a esperança da imortalidade. O ser humano necessita de relações amorosas com o outro, pois não pode existir a não ser no plural. O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 39 O amor necessita da presença do outro, mas não necessariamente da presença física, ou seja, posso estar a vários quilômetros de distância da pessoa amada e o amor tornar essa pessoa presente para mim, da mesma forma que uma pessoa pode estar ao meu lado, mas tanto ela quanto eu não estamos sendo sinceros e honestos, tentando passar uma visão de uma pessoa que na verdade não existe. Esse outro que está em minha frente não me é presença, é o conceito de uma pessoa que não existe. Marcel esteve na I Guerra Mundial trabalhando na Cruz Vermelha e, por ter que consolar mães, noivas e demais familiares de pessoas que estavam na guerra, tentava dar esta explicação para dizer que esses entes queridos podiam tornar-se presença, descobriu que para além da objetividade a pessoa pode tornar-se presença. Tal realidade não se pode constatar de fora. A presença não se pode pensar como objeto. O ato que me une com um ser sempre tem um caráter correspondente à atividade do pensamento que deve ser concebido como criador. (ZILLES, 1995, p. 66) Em uma relação entre o “eu-tu” no casamento, tanto um como o outro devem ser uma presença na qual ambos devem estar abertos um para o outro, deixar de lado os preconceitos culturais e ter liberdade de falar sobre suas angústias e sobre seus problemas. No momento em que há essa abertura, as relações se concretizam e ambos crescem no amor. Um deve ser presença para o outro não só nos momentos felizes, mas devem estar presentes nos momentos tristes, difíceis e de dor. Quando o outro é presença para mim em todos os momentos, é sinal de que existe uma relação intersubjetiva entre o “eu” e o “tu” e que o amor está presente. O outro se torna presença, pois 40 Rubilar Tomasi estou encarnado a ele e ele a mim, formando o grande mistério da encarnação. Em uma boa relação familiar, nenhum indivíduo deve estar fechado para o outro, assim como o casal não pode fechar-se em si, mas deve estar aberto para o encontro com mais pessoas, pois a família não pode ser entendida como uma instituição isolada, mas sim, inserida em uma cultura e em uma sociedade, tornando a relação com os outros essencial. No momento em que o casal fecha-se em seu mundo, poderão surgir problemas e a resolução pode-se tornar mais complicada. Nos primeiros momentos de uma união, muitas coisas podem ser estranhas, como presença diária do outro e, geralmente, a mudança de casa e cidade onde vivia anteriormente. Com o tempo, tudo pode se acalmar e começa a se criar o ambiente familiar, onde os objetos, móveis e a casa tomam outro sentido e nos ligamos a eles, dando-nos de sensação de segurança. A casa passa a “fazer parte” do nosso ser, pois tudo que ali está tem um significado, deixando, assim, de ser um puro objeto. Muitas vezes, esse “sentir-se em casa” é comprometido, principalmente na sociedade urbana, pois nela existem grandes possibilidades de ocorrer o distanciamento do ser humano de sua vida natural. A urbanização distancia o homem sempre mais do ritmo de vida da natureza. Na cidade estações do ano, a diferença entre dia e noite pouco importam. O tempo é dividido em fragmentos rigorosamente iguais pelo cronometro. O alimento serve-se durante todo o ano, em latas de conserva nos supermercados. Assim o homem tenta libertar-se do ritmo cósmico. Assemelha seu ritmo de vida ao de uma máquina ou de um automático. Todo este desenvolvimento poderá conduzir a uma profunda desumanização, a uma traição a própria vida. (Teo Comunicações, 1998, p. 20). O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 41 Mais à frente, prossegue: É evidente que tais mudanças repercutem profundamente na vida do dia-a-dia da família. A amizade entre dois seres pode ser abalada aos poucos isolando um do outro. Quando não se tem mais tempo um para o outro, morre o amor. Instala-se uma separação entre o homem e a vida. Neste cominho a família está ameaçada em duas fontes vitais: fidelidade e esperança. (Teo Comunicações, 1998, p. 21). Certamente, essa rotina de correria e estresse da atualidade influencia na vida particular, em especial, no relacionamento familiar, pois se perdem as dimensões intersubjetivas da família por falta de tempo para seus membros estarem juntos. O “tu” deve ser tratado como liberdade e o meu “eu” deve ajudá-lo a libertar-se, pois, na medida em que o ajudo a libertar, estou-me autolibertando. Quando isso acontecer, o outro é capaz de me responder e me atender mesmo que seja em silêncio, pois o outro deixa de ser igual a todos para ser alguém especial para mim. O “eu-tu” é o encontro no qual se afirmam presenças livres. A possessão do outro, o achar que ele me pertence, que é minha propriedade, não é comportamento que leva à criação de uma relação de confiança e intersubjetiva. Pelo contrário, caracteriza-se como um comportamento que tira a liberdade do outro, tira sua autonomia e o “obriga a me amar”. As consequências desse tipo de comportamento geralmente são trágicas. Mesmo que muitas pessoas achem que falar sobre a importância do amor entre um casal é algo mesquinho, de pouca importância e careta, são essas mesmas pessoas que diariamente passam por experiências positivas ou negativas com relação ao tema. 42 Rubilar Tomasi Não existe uma receita para um bom relacionamento, pois cada família deve ter sua forma de relacionamento, mas existem caminhos que podem levar a um bom relacionamento familiar. A família está em constante transformação, mas nunca deixou de ser o principal lugar, onde as crianças crescem e se desenvolvem e muitos casais são extremamente felizes, tornando-se necessário manter as experiências positivas e aperfeiçoar as que não estão tendo resultados positivos. Em uma relação entre duas pessoas onde o amor está presente, o “eu” e o “tu” formam um “nós” que consegue ver além do horizonte, conseguem transcender, pois são pessoas que constróem juntas a sua liberdade. O sentido da vida poderá ser bem significativo quando compartilho com o “tu”, o qual o amo. O “eu” é encarnação entre corpo e alma e essa união é um mistério. O “eu” necessita do “tu” para existir e ter sentido a sua existência. Por isso, encarna-se com o “tu”, surgindo uma união que também é um mistério. A família torna-se um maravilhoso mistério. O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 43 Considerações finais Ao final desse estudo, podemos ver que o convívio familiar deve ser promovido e aperfeiçoado a cada dia que passa, pois o convívio nunca é perfeito, é algo que sempre pode ser melhorado, tendo em vista que a família está sempre em transformação. O convívio não depende somente do casal, mas também de toda uma estrutura social, sua cultura e suas ideologias. Devemos ficar atentos às consequências negativas, o individualismo e a racionalidade objetivista da sociedade moderna, pois isso poderá significar a destruição de alguns pilares que sustentam a família, lugar que, apesar de todas as críticas, ainda é o melhor ambiente para o crescimento e o desenvolvimento de uma criança. Devemos ficar atentos aos tipos de informações que adquirimos na sociedade, pois nosso modo de agir e de pensar não é definido somente nas relações familiares. É necessário desenvolvermos capacidade para analisarmos criticamente os meios de comunicação, o tipo de educação que é oferecido nas escolas, as influências culturais, os grupos de amizade e as ações dos governos. Tudo isso possibilitará a criação da capacidade de “filtrar” informações recebidas, sabendo interpretá-las e não se deixar convencer a partir de uma afirmação não fundamentada. É a formação de indivíduos capazes de julgar, de avaliar e de tomar decisões corretas, o que é de essencial importância nas relações familiares, onde os membros não se deixam enganar por apelos sociais de destruição dessas relações, pois tem a convicção do valor e da importância destas para o desenvolvimento dos filhos e para a satisfação afetiva dos pais. Tudo o que foi falado pode parecer utópico, principalmente quando analisamos a afirmação de Marcel que diz que o “eu” e o “tu” devem estar unidos a tal ponto de formar um “nós”. Realmente é verdade que, no momento de colocar essa teoria em prática, os resultados poderão ser bem diferentes e que a realização por completo de cada indivíduo dentro da família, por depender de toda uma estrutura social e um convívio individual, é difícil de ser atingida. Diante disso, não podemos desanimar; pelo contrário, devemos buscar, no dia a dia, o aperfeiçoamento, apesar de ter consciência que ela nunca será atingida completamente. Mas, em compensação, quanto mais nós buscarmos essa realização, mais realizados nós vamos nos sentir e, consequentemente, as pessoas que compõem a nossa família também se sentirão cada vez mais realizadas e felizes. O existencialismo de gabriel marcel e as relações familiares na idade contemporânea 45 Bibliografia ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da educação. São Paulo: Moderna, 1996. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000. EXUPÉRY, Antoine de Saint. O pequeno príncipe. 48. ed. São Paulo: Agir, 2005. HONNETH, Alex. 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