492 ANÁLISE ESTATÍSTICA E DE DINÂMICA NÃO-LINEAR DOS INTERVALOS R-R DE ELETROCARDIOGRAMAS DE INDIVÍDUOS SAUDÁVEIS E INDIVÍDUOS COM CHAGAS Raquel Cintra Rosa (Uni-FACEF) Antonio Carlos da Silva Filho (Uni-FACEF) 1 INTRODUÇÃO A dinâmica do sistema fisiológico humano pode ser esquematizada, de um certo ponto de vista, como na figura abaixo: Fig. 1. Transporte de O2 e CO2 pelo organismo humano usando o sistema circulatório. O coração tem um papel central nesta dinâmica. Ele é o responsável pela circulação das substâncias químicas, incluindo os gases O2 e CO2, através do organismo. Ele realiza esta tarefa através de um intrincado sistema de contrações comandado por impulsos elétricos, o que pode ser visualizado na figura a seguir: 493 Fig. 2. A onda P representa despolarização atrial, o complexo QRS significa despolarização ventricular e a onda T traduz a repolarização ventricular. Os registros elétricos das polarizações e repolarizações podem ser obtidos através do eletrocardiogram (ECG). Um caso típico está exemplificado na figura abaixo: Fig. 3. Eletrocardiograma de um indivíduo normal. Os picos verticais correspondem à onda R e a distância temporal entre eles é o intervalo R-R. Os valores dos intervalos sucessivos R-R podem ser visualizados como nos gráficos da figura 4 a seguir: 494 Fig. 4. Uma seqüência de intervalos R-R, colocados como uma função seqüencial dos números inteiros positivos. 2 MATERIAIS E MÉTODOS Através do estudo das propriedades estatísticas e dinâmicas das séries temporais dos intervalos R-R, pode-se tentar caracterizar o sistema em questão, com vista a várias finalidades: descrição dos estados, diagnóstico diferencial, compreensão da dinâmica, etc. Este trabalho diz respeito à tentativa de diferenciar séries de indivíduos normais das de indivíduos chagásicos a partir séries cardíacas dos intervalos R-R, colhidas na posição deitado. O principal parâmetro a ser analisado, ao lado de todos os parâmetros de estatística descritiva habituais (média, variância, coeficiente de correlação, etc.) será o passo da reconstrução, obtido através da função de aucorrelação. A função de autocorrelação mede o grau de correlação de uma variável, em um dado instante, consigo mesma, em um instante de tempo posterior. Ela permite que se analise o grau de irregularidade de um sinal. Pode ser definida como a razão entre a autocovariância e a variância para um conjunto de dados: 495 Colocados em um gráfico, os valores da função de autocorrelação apresentam-se como os da figura 5: Fig. 1. Função de autocorrelação. (a) Sinal periódico; (b e c) sinal quasiperiódico; (d) sinal caótico ou estocástico. Uma das utilidades da função de autocorrelação é na determinação do passo da reconstrução para se obter o atrator caótico, caso haja algum presente. Esta determinação é baseada no teorema de Takens, que estabelece as condições para a construção de vetores ξi m-dimensionais a partir de uma única variável no tempo {xi}, onde xi = x(ti) e i=1,2,...,N. Em cada vetor ξi , x(ti) é sua primeira coordenada, x(ti+p) a segunda, e x(ti+(m-p)) a última coordenada, onde p é o passo 496 dessa construção. Os valores m são procurados como valores crescentes e sucessivos (m = 2,3,...). Um ótimo estimador de p é aquele que indica, aproximadamente, o tempo de descorrelação da série, ou seja, p deve ser tal que 1 C ( p ) = C ( 0) 2 O correlograma é um gráfico de ACF(k) em função de k. Já o passo da reconstrução (p), é o menor valor de k que faz com que ACF(k) < K, com K = 0.5 OU 1/e. Correlograma é o gráfico colocado na figura abaixo, para vários valores utilizados na série onde foram feitos os cálculos: 3 RESULTADOS A pesquisa ainda está em andamento. Numa primeira fase, usamos as séries R-R colhidas, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, para os indivíduos dos dois grupos, normais e chagásicos, na posição deitada. Calculamos variáveis estatísticas descritivas e, 497 também, calculamos a função de autocorrelação. Os intervalos R-R foram calculados a partir dos eletrocardiogramas. Os dois grupos de indivíduos tinham as seguintes características antropométricas: Tabela 1. Características antropométricas dos voluntários saudáveis estudados (n = 21): Idade Altura Peso Sup. Voluntário (anos) (cm) Média 32,42 176,38 76,90 1,93 SD 7,18 9,03 12,92 0,19 (Kg) Corp. (M2) Tabela 2. Características antropométricas dos voluntários chagásicos estudados (n = 24): Voluntário Idade Altura (anos) (cm) Peso Sup. (Kg) Corp. (M2) Média 35,92 168,58 67,39 1,77 SD 9,84 5,85 7,63 0,11 A análise estatística descritiva foi feita para as séries coletadas dos dois grupos, nas posições deitada e sentada. Apresentamos, aqui, os resultados para o grupo chagásico na posição deitada: Tabela 3. Estatística Descritiva para os indivíduos chagásicos na posição deitada Variável C1 C2 C3 C4 C5 C6 C7 C8 C9 C10 C11 C12 C13 C14 N 900 831 921 816 852 1214 783 1033 950 793 1031 1547 960 881 Média 1,0003 1,0835 0,98007 1,1032 1,0568 0,74302 1,1502 0,87227 0,94898 1,1350 0,87355 0,58400 0,93806 1,0212 EP Med 0,00145 0,00120 0,00174 0,00141 0,00177 0,000398 0,00194 0,00274 0,00142 0,00311 0,00121 0,000708 0,00133 0,000950 Méd Ap 1,0011 1,0844 0,98413 1,1021 1,0599 0,74376 1,1492 0,86346 0,94747 1,1403 0,87450 0,58227 0,93865 1,0208 DP 0,0436 0,0345 0,05293 0,0403 0,0517 0,01385 0,0544 0,08800 0,04378 0,0876 0,03885 0,02783 0,04116 0,0282 CVar 4,35 3,19 5,40 3,65 4,90 1,86 4,73 10,09 4,61 7,72 4,45 4,77 4,39 2,76 Min 0,8417 0,9625 0,78125 0,9917 0,8562 0,70625 0,9917 0,83126 0,78125 0,8396 0,75209 0,51875 0,78333 0,9396 Q1 0,9708 1,0625 0,95833 1,0750 1,0297 0,73750 1,1271 0,85625 0,92084 1,0948 0,85417 0,56667 0,91251 1,0021 498 C15 C16 C17 C18 C19 C20 C21 C22 C23 C24 718 931 889 1148 1006 861 1138 967 829 665 Variável C1 C2 C3 C4 C5 C6 C7 C8 C9 C10 C11 C12 C13 C14 C15 C16 C17 C18 C19 C20 C21 C22 C23 C24 Mediana 1,0021 1,0833 0,98958 1,1000 1,0646 0,74375 1,1479 0,86458 0,94375 1,1521 0,87917 0,57917 0,93958 1,0187 1,2563 0,96667 1,0042 0,77917 0,89792 1,0417 0,79375 0,93124 1,0854 1,3542 1,2532 0,96685 1,0023 0,78557 0,89592 1,0454 0,79157 0,93084 1,0859 1,3516 Q3 1,0333 1,1042 1,01667 1,1271 1,0917 0,75417 1,1708 0,87083 0,97083 1,1917 0,89583 0,59584 0,96458 1,0396 1,2958 0,97709 1,0438 0,81459 0,91042 1,0771 0,80209 0,96249 1,1146 1,3729 0,00215 0,000470 0,00201 0,00156 0,000638 0,00322 0,000463 0,00136 0,00140 0,00135 Max 1,1167 1,1896 1,09375 1,2333 1,1687 0,76875 2,3021 1,74790 1,25834 1,3417 1,59375 0,72292 1,16041 1,1229 1,4104 1,00000 1,1979 1,51668 0,94584 2,1708 0,82708 1,03959 1,2187 1,4479 1,2542 0,96716 1,0023 0,78369 0,89646 1,0410 0,79205 0,93116 1,0862 1,3532 0,0577 0,01436 0,0600 0,05272 0,02025 0,0946 0,01563 0,04242 0,0404 0,0348 Amplitude IQR 0,2750 0,0625 0,2271 0,0417 0,31250 0,05834 0,2417 0,0521 0,3125 0,0620 0,06250 0,01667 1,3104 0,0437 0,91664 0,01458 0,47709 0,04999 0,5021 0,0969 0,84167 0,04166 0,20417 0,02917 0,37708 0,05208 0,1833 0,0375 0,3875 0,0834 0,08958 0,01876 0,3583 0,0813 0,85210 0,06250 0,12708 0,02916 1,3438 0,0750 0,08750 0,02084 0,24585 0,06250 0,2500 0,0562 0,2917 0,0396 4,61 1,48 5,99 6,71 2,26 9,05 1,98 4,56 3,72 2,58 Assim -0,27 -0,37 -1,22 0,39 -0,94 -0,84 12,09 9,35 0,80 -0,97 5,75 1,19 -0,13 0,28 -0,27 -0,35 -0,03 4,74 -0,41 6,93 -0,47 -0,12 -0,07 -1,15 1,0229 0,91042 0,8396 0,66458 0,81875 0,8271 0,73958 0,79375 0,9688 1,1562 1,2125 0,95833 0,9625 0,75209 0,88125 1,0021 0,78125 0,90000 1,0583 1,3333 Curtose -0,04 0,59 1,79 0,00 1,39 -0,05 257,29 87,06 4,06 1,06 113,87 2,82 1,57 0,21 0,21 0,18 -0,00 61,67 -0,11 73,43 -0,17 -0,20 0,09 4,61 Passo 2 1 7 5 1 122 2 1 3 3 15 7 4 5 5 42 4 2 2 2 12 6 2 4 Os indivíduos foram nomeados C1, C2, até C24. Os gráficos para o passo da reconstrução, considerando janelas de 300 pontos e varrendo a série com estas janelas, iniciando no primeiro ponto da série e terminando no (n-300)-ésimo ponto (ponto de início da última série), são como o gráfico abaixo: 499 20 18 16 14 12 10 8 6 4 2 0 100 200 300 400 500 600 700 Fig. 7. Gráfico, para um dos indivíduos chagásicos, do passo móvel para janelas de 300 pontos. Neste caso, o passo máximo é igual a 20. Os resultados para os indivíduos normais são semelhantes na forma, mas não nos valores. Apresentamos, a seguir, os valores máximos do passo, onde CD = Chagas deitado e ND = Normal deitado, já colocados em ordem crescente: ND 10 3 CD ND 1 1 10 3 25 8 2 1 35 34 4 2 38 53 4 2 46 * 5 2 CD ND 53 * 6 2 12 3 68 * 13 5 16 5 18 5 ND 20 5 6 3 22 5 7 3 9 3 9 3 CD CD Os resultados acima também receberam um tratamento estatístico, fornecendo os seguintes valores estatísticos: Tabela 3. Parâmetros estatísticos para os valores máximos dos passos móveis Variável Média EP Med MedAp DP CD 18,29 3,60 16,82 17,61 310,22 96,29 1,00 6,00 ND 7,19 2,74 5,11 12,55 157,46 174,51 1,00 2,00 Variável Mediana Var CoefVar Q3 Max Ampl IQR Assim Min Q1 Curtose CD 11,00 24,25 68,00 67,00 18,25 1,50 1,69 ND 3,00 5,00 53,00 52,00 3,00 3,18 9,92 Já preparamos os dados e chegamos aos primeiros resultados para os indivíduos chagásicos na posição sentada. A menos dos passos, os resultados estatísticos para estas séries são os seguintes: Tabela 4. Estatística Descritiva para os indivíduos chagásicos na posição deitada Variável C1 C2 C3 C4 C5 C6 C7 C8 C9 C10 C11 C12 C13 C14 C15 C16 C17 C18 C19 C20 C21 C22 C23 C24 N 481 524 534 483 508 593 439 577 574 408 496 929 527 408 396 545 520 610 571 505 604 627 462 379 Variável C1 C2 Mediana 1,0083 0,90625 Média 1,0011 0,91609 0,89930 0,99353 0,94378 0,80931 1,0938 0,83444 0,83462 1,1752 0,96655 0,51787 0,91101 1,1726 1,2102 0,87962 0,92324 0,78802 0,84137 0,95081 0,79476 0,76649 1,0373 1,2660 Q3 1,0292 0,93541 EP Med 0,00198 0,00250 0,00163 0,00190 0,00287 0,00227 0,00284 0,00239 0,00166 0,00419 0,00391 0,00101 0,00169 0,00258 0,00270 0,000621 0,00147 0,00154 0,00122 0,00158 0,000526 0,00117 0,00248 0,00209 Max 1,1250 1,88336 Méd Ap 1,0021 0,91264 0,90108 0,99589 0,94420 0,81105 1,0926 0,83045 0,83437 1,1795 0,95951 0,51507 0,90878 1,1735 1,2117 0,87865 0,92373 0,78628 0,84159 0,95048 0,79524 0,76552 1,0351 1,2677 DP 0,0434 0,05717 0,03766 0,04177 0,06462 0,05519 0,0596 0,05733 0,03982 0,0845 0,08706 0,03069 0,03873 0,0520 0,0538 0,01450 0,03354 0,03809 0,02923 0,03556 0,01294 0,02936 0,0532 0,0406 Amplitude IQR 0,3208 0,0562 1,11044 0,04791 CVar 4,34 6,24 4,19 4,20 6,85 6,82 5,45 6,87 4,77 7,19 9,01 5,93 4,25 4,44 4,44 1,65 3,63 4,83 3,47 3,74 1,63 3,83 5,13 3,21 Assim -0,61 9,47 Min 0,8042 0,77292 0,76458 0,80209 0,73750 0,69167 0,9542 0,78333 0,68750 0,8875 0,69792 0,46667 0,80833 0,9729 1,0167 0,85625 0,80417 0,45208 0,76250 0,82292 0,72916 0,70833 0,9333 1,1167 Q1 0,9729 0,88750 0,87917 0,97501 0,90625 0,74583 1,0667 0,82292 0,81042 1,1359 0,94375 0,49792 0,88750 1,1417 1,1755 0,86875 0,90417 0,76667 0,82084 0,92917 0,78750 0,74375 0,9995 1,2417 Curtose 1,54 156,37 501 C3 C4 C5 C6 C7 C8 C9 C10 C11 C12 C13 C14 C15 C16 C17 C18 C19 C20 C21 C22 C23 C24 0,90417 0,99792 0,94375 0,83750 1,0979 0,83126 0,83333 1,1896 0,96041 0,51250 0,90833 1,1708 1,2146 0,87292 0,92500 0,78541 0,84167 0,94584 0,79583 0,76458 1,0250 1,2687 0,92500 1,01667 0,98333 0,85208 1,1167 0,83750 0,85833 1,2354 0,97292 0,52917 0,92708 1,2062 1,2479 0,88959 0,94584 0,80417 0,86458 0,97187 0,80209 0,78541 1,0646 1,2937 0,98126 1,08958 1,53543 0,88959 2,1021 1,62083 0,96458 1,3500 1,94584 0,75209 1,06458 1,3000 1,3333 0,92084 1,02916 1,14791 0,98333 1,04793 0,82500 0,86875 1,1958 1,3687 0,21667 0,28750 0,79793 0,19792 1,1479 0,83750 0,27709 0,4625 1,24792 0,28542 0,25625 0,3271 0,3167 0,06459 0,22499 0,69582 0,22084 0,22500 0,09584 0,16041 0,2625 0,2521 0,04583 0,04167 0,07708 0,10625 0,0500 0,01458 0,04792 0,0995 0,02917 0,03125 0,03959 0,0646 0,0724 0,02084 0,04166 0,03751 0,04374 0,04271 0,01458 0,04166 0,0651 0,0521 -0,75 -1,18 1,25 -0,55 10,98 12,82 0,02 -0,92 9,67 2,13 1,02 -0,30 -0,45 1,03 -0,24 0,80 0,04 0,23 -0,86 0,53 0,71 -0,58 0,77 3,71 13,46 -1,32 187,36 171,32 1,06 0,92 101,86 8,56 2,63 0,96 0,17 0,11 0,37 22,57 0,26 0,60 2,77 0,09 -0,12 0,71 4 ANÁLISE E CONCLUSÃO Estamos finalizando os resultados para os indivíduos saudáveis na posição deitada. Calcularemos, por último, os passos restantes. O objetivo é comparar os valores dos passos nos dois grupos, nas duas posições, a fim de verificar se há alguma diferença significativa nos valores que possa ser utilizada como auxiliar no diagnóstico médico entre saúde e doença. BIBLIOGRAFIA FERRARA, N. F. e DO PRADO, C. P. C. Caos – Uma Introdução. São Paulo: Edgard Blücher Ltda., 1994. 402 p. GRASSBERGER, P. e PROCACCIA, I. Measuring the strangeness of strange attractors, Physica 9D, 189, (1983). HANSELMAN, Duane; LITTLEFIELD, Bruce. Matlab 6 – Curso Completo. São Paulo: Prentice Hall, 2003. 676 p. 502 MONTEIRO, Luiz Henrique Alves. Sistemas Dinâmicos. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2002. 527 p. PRESS, William H. Numerical Recipes. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. 818 p. SCHUSTER, H.G. Deterministic chaos: an introduction, Verlagsgesellschaft, (1981). SILVA, E. et al, Design of a computerized system to evaluate the cardiac function during dynamic exercise, Phy. Med. 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