ESCOLA DE PROFESSORES DO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO (1932-39): FORMANDO MESTRES SEGUNDO OS PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO RENOVADA Sonia Maria de Castro N. Lopes/ISERJ A atuação de Anísio Teixeira frente à Diretoria Geral da Instrução Pública do Distrito Federal (1931-35) representou, a nosso ver, uma tentativa de viabilizar seu projeto educacional - um sistema autônomo, público e integral de ensino - que abarcasse desde a escola primária até a universidade. A centralidade desse projeto consistia em preparar uma geração de professores adaptados às novas tendências pedagógicas e que, ao mesmo tempo, pudessem dar conta da demanda por uma educação mais sintonizada com as transformações que ocorriam na sociedade brasileira. Por sua iniciativa, a Escola Normal seria transformada em Instituto de Educação – unidade educacional composta por uma escola secundária nos moldes da reforma implementada pelo ministro Francisco Campos (decreto nº 19.890/1931), uma Escola de Professores, em nível superior, além dos campos de aplicação para as práticas docentes: a escola primária e a pré-escola. O Instituto de Educação do Distrito Federal seria o centro responsável pela formação e aperfeiçoamento dos profissionais que deveriam reger as classes de alunos da rede educacional da cidade e sua Escola de Professores constituiu-se na primeira tentativa de formar professores “primários” em curso superior no Brasil. Este trabalho remete-se ao momento de criação da instituição (1932) e a argumentação desenvolvida articula-se em torno de duas premissas : a) A criação do Instituto de Educação configurou-se como a materialização da idéia contida no Manifesto de que a formação de professores de todos os graus de ensino deveria ocorrer em cursos superiores ligados à universidade e por essa razão qualificamos a instituição como um dos “lugares de memória” privilegiados da renovação educacional no Brasil (Nora, 1993); b) Tomando por base os discursos proferidos por Anísio Teixeira e Lourenço Filho na cerimônia de inauguração do curso, identificamos neles estratégias que acabam por revelar diferentes projetos de formação de professores, fruto de apropriações distintas dos postulados do movimento da Escola Nova. Entendendo o discurso como uma tática enunciativa que opera no campo de um sistema lingüístico (Certeau, 1994), o ato de falar “coloca em jogo uma apropriação ou uma reapropiação da língua pelos locutores, instaura um presente relativo a um momento e a um lugar ; estabelece um contrato com o outro (o interlocutor) numa rede de lugares e de relações” (p. 44) A Obra-síntese da renovação educacional Se o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932) pode ser considerado, sob a perspectiva liberal, a expressão mais acabada da crença no poder transformador da educação – ganhando inclusive estatuto de marco inaugural da renovação educacional no Brasil – a administração de Anísio Teixeira parece ter sido a tentativa mais expressiva de colocar em prática as principais indicações do Manifesto, sobretudo no que se refere ao magistério, que deveria “formar o seu espírito pedagógico, conjuntamente, nos cursos universitários, em faculdades ou escolas normais, elevadas ao nível superior e incorporadas às universidades” 1 A transformação da Escola Normal, já remodelada pela reforma de 1928, em Instituto de Educação ocorreria, curiosamente, no mesmo dia da publicação do Manifesto nos principais jornais do país: 19 de março de 1932. Poucos dias antes da assinatura do decreto nº 3.810 de 19-03-1932 pelo prefeito Pedro Ernesto, Anísio, em breve carta ao interventor,2 solicitaria demissão do cargo que ocupava, em virtude de faltar-lhe “a autonomia técnica e administrativa de que necessitava e que lhe fora assegurada”, razão pela qual “após relutância” resolvera aceitar o convite para dirigir a Instrução Pública municipal. Essa comunicação, datada de 15 de marco, portanto, quatro dias antes da publicação do referido decreto, constitui-se como um indício de que se tratava de uma estratégia política desenvolvida por Anísio junto à administração do Distrito Federal, tendo em vista as resistências e oposições ao seu trabalho, bem como a urgência de colocar em prática seu plano de ação, não apenas pela proximidade do início do novo período letivo, mas talvez para fazê-lo coincidir com a deflagração do Manifesto, que a essa altura já estava pronto. A nomeação do educador baiano para a Instrução Pública do Distrito Federal fora recebida com certa hostilidade pelo magistério da cidade. Ele próprio sentia-se um “estranho”, compartilhando essa sensação com os amigos mais íntimos.3 Paschoal Lemme, em suas Memórias (1988), relata notícias veiculadas em jornais do Rio, que expressavam a resistência do professorado carioca em relação ao “pedagogo” que dirigiria a convite de Pedro Ernesto a educação da cidade que tinha o professorado mais culto do país. Talvez por isso tenha sido difícil impor os novos métodos ao campo educacional carioca, ao menos, nos primeiros meses. Daí a estratégia de pressão que precisou lançar mão para ver realizado seu objetivo de transformar a Escola Normal em Instituto de Educação e, sobretudo, criar a Escola de Professores, em nível superior, que na verdade parece ter sido o ponto de partida para a realização de um projeto mais ambicioso – a implementação de uma universidade - a Universidade do Distrito Federal (UDF) – inaugurada em 1935 e que parece ter-se constituído como a “culminância de um processo que se iniciara com a transformação ampliativa da Escola Normal em Instituto de Educação” (Mendonça, 2002, p. 30). Tal acepção nos permite argumentar que o Instituto não se configura como uma simples extensão ou aperfeiçoamento da Escola Normal, cujas raízes encontravam-se no Império, mas foi criado com o objetivo de fornecer a estrutura de que necessitava a UDF, materializando a idéia veiculada pelo Manifesto de que a formação do magistério em todos os níveis deveria ocorrer em cursos superiores ligados à universidade. Conforme assinala Mendonça, “na prática, a UDF acabou por dedicar-se primordialmente à formação de professores” pois, pelas limitações impostas pelo governo federal, “apenas puderam funcionar cursos que forneciam licença para o magistério das escolas secundárias” (p. 35) Por sua especificidade como centro irradiador de uma nova cultura pedagógica 4 que serviria de modelo para o país, qualificamos o Instituto de Educação do Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, como um lugar de memória privilegiado do movimento da renovação educacional. De acordo com Pierre Nora (1993) esses lugares encontram-se vinculados a condições materiais, funcionais e simbólicas que existem simultaneamente, sendo uma de suas características marcantes a “derrota em se tornar aquilo que quiseram seus fundadores, pois se estivéssemos ainda hoje vivendo sob seu ritmo, teriam perdido a virtude de lugares de memória” (p. 14) A direção da nova instituição caberia a Lourenço Filho, que viera de São Paulo a convite do ministro da Educação e Saúde, Francisco Campos, para exercer a função de chefe de gabinete naquele ministério. Anísio Teixeira, antes de ser convidado para a direção da Instrução Pública do Distrito Federal também trabalhara com Campos, na qualidade de assessor para assuntos relativos ao ensino secundário. Liberado pelo ministro de suas funções, Lourenço uniu-se a Anísio para alavancar o ambicioso projeto de formação de professores que teria lugar no Instituto de Educação do Distrito Federal. Em pouco menos de quinze dias organizaram aquela que seria, no dizer do professor Venâncio Filho, a “obra síntese da renovação educacional do Brasil.” 5 Magistério: arte ou técnica? No discurso de inauguração da Escola de Professores, Anísio Teixeira enfatizava suas propostas em relação ao espírito que deveria impregnar um curso superior de formação de professores. Não se tratava apenas, dizia ele, de elevar esse preparo a nível universitário com objetivo de fornecer ao professor uma cultura básica necessária à compreensão dos problemas do mundo contemporâneo. Essa cultura ampla, de base, em seu entender, não seria suficiente se sobre ela não se erguesse a “nova cultura profissional e científica do mestre.” 6 Essa nova cultura pedagógica necessária à formação dos mestres não se pautava, segundo ele, na experiência isolada de qualquer outro país. Exemplificando com os casos da Alemanha, França e Estados Unidos, assegurava que pretendeu buscar em todas essas experiências o que havia de melhor e, equilibrando as três propostas, planejou a Escola de Professores do Distrito Federal. Enquanto na Alemanha, defendia-se a formação demasiadamente científica, “como se ensinar fosse rigorosamente e estritamente uma ciência aplicada como a engenharia ou a medicina”, na França esse tipo de formação se caracterizava pela ênfase dada à cultura acadêmica, seguida de processos intuitivos de aprendizagem. Já nos Estados Unidos, a formação de professores assumia uma tendência eclética, na qual a base técnica era complementada pelos cursos de matérias - conteúdos fundamentais do ensino primárioestudadas do ponto de vista profissional, ou seja, o conteúdo integrado à sua respectiva metodologia. A Escola de Professores do Distrito Federal, portanto, apropriava-se destas três tendências, sintetizando os princípios fundamentais de cada uma delas. Na opinião do educador, equilibravam-se “as tendências audaciosamente científicas da Alemanha, as excessivamente práticas da França e Inglaterra e as tendências um tanto incertas dos Estados Unidos.” 7 Assim, o ensino na Escola de Professores não se resumiria a uma ciência aplicada com seus conhecimentos exatos e suas técnicas, tampouco seria um curso de cultura geral seguido de uma prática intuitiva e formação moral aprimorada. Essas duas tendências, ainda que aparentemente contraditórias, não se opunham na visão de Anísio e a proposta da Escola de Professores era justamente buscar a conciliação entre elas: Para Anísio, portanto, não se poderia separar o estudo das ciências da educação do estudo das matérias de ensino. O suporte científico, obtido no primeiro deveria aplicar-se ao segundo, este o núcleo fundamental do curso de formação de professores. “A ciência da educação deve ser levada ao conhecimento do aluno no curso de Aritmética, de Geografia, de História ou de qualquer outra matéria” 8, ou seja a metodologia, os processos de ensino, o como ensinar, deveriam ser estudados à luz dos referenciais teóricos da ciências da educação : a Psicologia, Filosofia, Sociologia e História da Educação e não como simples técnicas, seguindo passos pré-determinados. A Escola de Professores seria então uma escola profissional em que se forjariam os futuros mestres, levando-os a aprender e praticar diretamente as matérias que iriam ensinar. O objetivo desta escola era, conciliando as tendências citadas anteriormente, dar ao professor orientação científica no seu trabalho, sem perder, no entanto, a visão de que o magistério é, antes uma arte prática do que uma ciência aplicada. Talvez neste discurso, pela primeira vez, o criador da Escola de Professores tenha aproximado a prática docente a uma forma específica de arte. Posteriormente, essa idéia foi sendo melhor desenvolvida, como prova um documento incompleto localizado no CPDOC / FGV com o título Manuscrito sobre educação como ciência e arte. 9 Nele, Anísio questiona a concepção, existente na época, segundo a qual o ensino seria ou poderia vir a ser uma ciência aplicada análoga à medicina ou engenharia, submetendo-se a organização escolar a planos gerais de trabalho que poderiam se assemelhar aos projetos industriais modernos: um corpo de técnicos responsável pela criação, planejamento e divisão do trabalho que só chegaria ao obreiro para que este o realizasse automaticamente, sem participação alguma em seu planejamento. Ensinar, em sua concepção... (...) É uma arte, participando mais profundamente do caráter de escultura, pintura ou literatura do que da engenharia ou medicina (...) e como o seu trabalho se realiza sobre a matéria viva de uma criança, as exigências dessa arte são ainda mais delicadas do que as de qualquer outra arte. Não somente o mestre não pode ser comparado ao operário de uma organização industrial, como nem sequer pode ser considerado o fator final que conclui o trabalho. 10 A idéia de educação como ciência e arte encontrariam sua forma mais acabada nos escritos do final dos anos 1950, quando Anísio publicou na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, o artigo Ciência e arte de educar.11 Neste texto, Anísio define a educação como uma prática que não vai buscar suas regras em nenhuma ciência isolada, mas em todo o saber humano e, por isto mesmo, “será sempre uma arte em que todas as aplicações técnicas terão de ser transformadas, imaginativa e criadoramente, em algo de plástico e sensível suscetível de ser considerado antes sabedoria do que saber...”12 Para o educador, a ciência, longe de mecanizar, serviria como instrumento para oferecer aos docentes os recursos necessários à reflexão de sua prática, armando-lhes a imaginação “para seus maiores vôos e audácias” 13 Os educadores – sejam professores, especialistas de currículo, de método ou de disciplina, ou administradores- não são, repitamos, cientistas, mas artistas, profissionais, práticos ( no sentido do practioner inglês), exercendo, com métodos e técnicas, tão científicas quanto possível, a sua grande arte, o seu grande ministério.14 Evidentemente, o discurso de Anísio foi-se aperfeiçoando no decorrer dos 25 anos que o separavam daquela noite em que discursou no Instituto de Educação, abrindo os trabalhos da Escola de Professores. Contudo, a idéia de educação como prática social, mais arte que ciência, embora sem descuidar-se dos pressupostos científicos, talvez tenha sido ali, pela primeira vez, enunciada. Entre a técnica e a política Se o discurso de Anísio procurou privilegiar os princípios filosóficos – o ethos que se procurava imprimir ao curso da Escola de Professores, limitando-se a justificar a extensão do curso em nível superior pela experiência observada em outros países e pela necessidade de se conferir uma formação mais segura ao magistério, o Discurso sobre a formação do professorado,15 com o qual Lourenço Filho marca sua presença como diretor da casa na noite de inauguração da Escola de Professores, articula-se claramente em torno de dois objetivos centrais : registrar o fato como um produto da nova mentalidade em educação, expressa pelo movimento de renovação educacional, contrapondo-o às experiências anteriores de formação de professores pelo caráter técnico-profissional conferido ao curso que então se implementava, bem como assegurar espaço político para legitimar o movimento no qual se inseria. Num primeiro momento, faz um histórico sobre a formação de professores no Brasil desde o Império, período no qual as escolas normais “limitavam-se a modestos colégios, cujos programas pouco ultrapassavam as primeiras letras” para chegar às novas exigências que se impunham à preparação dos mestres primários. Portanto, diante dessa nova realidade, “começam a difundir-se as profundas transformações por que passam as idéias pedagógicas em nossos dias”. 16 Os processos de educação vão abandonando a base empírica tradicional para apoiar-se em fundamentos objetivos. Conseqüentemente, não basta ao mestre primário só o cultivo geral para que ele possa cumprir a missão social que lhe cabe, é forçoso exigir sobre a base de cultura geral suficiente, uma sólida preparação técnico-profissional. 17 (grifos nossos) Em seu entender, os processos da educação precisavam de fundamentos mais objetivos e a preparação dos mestres estaria a exigir, mais do que nunca, um maior preparo seja nas bases biológicas da educação, seja na reflexão filosófica e social. Remetia-se assim à idéia, já veiculada numa entrevista que concedera a O Jornal 18 e à discussão sobre o problema de vocação para o magistério, visto sob o prisma científico. Em sua opinião, não havia uma vocação específica, uma tendência inata “resultante do desenvolvimento de um órgão ou de uma parte do sistema nervoso”, mas reconhecia a existência de “tipos individuais de sensibilidade sobre os quais, com maior ou menor eficácia, adere uma influência social para esta ou aquela profissão”.19 Existiriam, portanto, aptidões, pois apesar de desejar ser professor, poderiam faltar ao indivíduo condições biológicas - físicas ou mentais – para essa função e somente a Escola Normal em nível superior poderia prover o preparo docente necessário à execução de todas essas funções, através dos estudos biológicos da educação associados a uma reflexão filosófica e sociológica, bem como selecionar para o magistério os mais capazes, em termos de saúde, inteligência e personalidade. Ressalta ainda a experiência por ele implementada no estado de São Paulo criando o curso de aperfeiçoamento pedagógico sobreposto ao das escolas normais, com nível universitário, mas acrescenta que “deveria caber ao Distrito Federal a iniciativa de elevar de vez ao nível universitário a preparação normal dos mestres” 20 A criação do Instituto de Educação atenderia assim a duas finalidades : a formação do professorado primário e secundário e o aperfeiçoamento do magistério em exercício, “atendendo assim a múltiplos problemas da reorganização técnico-administrativa da grande reforma de Fernando de Azevedo e os que a atual administração tão corajosamente tem enfrentado”. 21 No discurso de Lourenço são recorrentes as alusões ao passado - “dantes, imaginava-se que para ensinar bastaria saber” ; “era crença, outrora, que um processo de ensino, qualquer que fosse, pudesse ser aplicado, indistintamente, a qualquer discípulo” ; “dantes, da escola primária passava-se diretamente para os bancos de uma escola normal” . Embora afirmasse que houve, no passado, um esforço crescente na melhoria de padrões dos cursos de preparação de professores, foram a “grande reforma de Fernando de Azevedo” e “a atual administração”, as responsáveis pela implementação do grande plano para preparar mestres especializados que eficientemente atuassem no sistema público de uma grande cidade, como o Rio de Janeiro. Lourenço realizava, através de seu discurso, uma operação de “enquadramento” da memória, categoria que, segundo Pollak (1989), alimenta-se do material fornecido pela própria história. Esse trabalho consiste em reinterpretar incessantemente o passado em função dos embates do presente e do futuro, empenhando-se na coerência dos discursos que devem justificar a operação para garantir sua credibilidade.22 Na euforia pelo progresso científico e técnico, comum à época, Lourenço voltava-se ao passado de forma nostálgica e para o futuro, com esperanças. “Visando o futuro, ela (Escola de professores) pretende, desde já , atender aos problemas do presente. Cuidará, pois, sem perda de tempo, em organizar seus cursos de aperfeiçoamento para professores em exercício.” 23 E com o objetivo de marcar positivamente o seu tempo - o presente - como o momento de “maior aperfeiçoamento” na formação do magistério, remete-se ao ato de inauguração da Escola Normal da Corte, de onde recupera as figuras solenes do Imperador, da Imperatriz, dos ministros e, sobretudo, de Benjamim Constant, o primeiro diretor da antiga Escola Normal. Embora presente e passado encontrem-se na esfera da alteridade, percebe-se no discurso de Lourenço uma quase devoção pelo passado, que esquadrinhado à luz do presente, apresenta brechas através das quais se insinuam a inovação e a mudança. Segundo a interpretação de Lourenço, Benjamin Constant acreditava na educação como instrumento de transformação social, tal qual os Pioneiros, mas como sujeito individual seus esforços eram limitados, talvez porque inexistisse em sua época uma geração imbuída do desejo de transformar, uma geração munida de saberes e poderes, disposta a reverter o quadro de “atraso” em que o país se encontrava. Foi preciso que surgisse um sujeito coletivo – os profissionais da educação - para que o sonho acalentado desde o século anterior fosse, afinal, realizado. E Benjamim sonha... Para este sonho, Sr. Interventor , duas gerações de mestres e de estadistas têm concorrido, uns mais outros menos, mas só a vós coube o lance decisivo . Outros teriam passado, desdenhosos, da obra do mestre-escola e não sentindo a necessidade de elevação de sua cultura. Vós credes na educação. Vós não tendes impedido, mas antes acelerado o surto de renovação pedagógica em que se tem empenhado o magistério do Distrito Federal. Esse Instituto confia em vós. Não lhe falte o vosso decidido apoio. 24 (grifos nossos) A aproximação dos dois projetos políticos - o da reconstrução do país pela educação e o programa partidário que havia conduzido Vargas ao poder - articulavam-se no discurso de Lourenço. Eram tempos de alianças, de compromissos, de unidade e cooperação na esfera política e o Rio de Janeiro, cabeça da nação,25 vitrine do Brasil, apresentava-se como o cenário ideal dessas coalizões, diversamente do campo paulista, minado pelos arroubos de um Partido Democrático aliado às oligarquias temporariamente afastadas do poder. A marca da modernidade política expressa pela revolução de 1930 articulava-se à marca da modernidade pedagógica – a era das grandes reformas - intencionalmente pouco identificadas com as lutas partidárias travadas naquele momento, mas nem por isso menos políticas. Os principais agentes construtores dessa modernidade pedagógica movimentavam-se estrategicamente para ampliar seu espaço junto ao governo e imprimir a marca de sua obra na história da educação brasileira. Azevedo, cuja ascendência sobre o movimento renovador da educação já era reconhecida, fora afastado de suas funções no Rio de Janeiro com o desencadear do movimento revolucionário pelas ligações que possuía com o governo deposto, encontrando-se em São Paulo, com pouco espaço de manobra na esfera federal. Anísio, apesar de estranho aos meios cariocas, ocupava uma posição central na administração pública, mas fazia questão de frisar sua posição como educador, “técnico”, disposto a servir o governo pela sua competência na área educacional. Lourenço, pela legitimidade que possuía como educador reformista - experiência demonstrada na Instrução Pública do Ceará e em São Paulo - e pelo relativo descompromisso com as forças oligárquicas que se opunham ao governo provisório, talvez fosse o mais indicado e, sobretudo, o menos suspeito, para realizar a necessária costura de interesses entre o movimento dos educadores e o governo revolucionário naquele momento. Movia-se com relativa habilidade naquele campo político26 movediço no qual encontraria espaço, ainda que de forma limitada, não só para construir a memória do movimento ao qual se filiara, mas, sobretudo, para articulá-lo com a grande mudança política por que passava a nação. Erigiram-se assim, não por acaso na mesma data, dois grandes documentosmonumentos (Le Goff, 1996) da renovação educacional - o Manifesto dos Pioneiros, com repercussão nacional e um dos principais instrumentos de sua materialização : o Instituto de Educação, locus referencial da formação do magistério, instituição educacional criada para ser um cartão de visitas na cidade que se constituía como a vitrine do Brasil. Em seu discurso de posse como diretor da nova instituição, Lourenço Filho habilmente opunha presente e passado, mas não o fazia desqualificando o passado como algo reacionário, e sim valorizando uma tradição, na qual se pautava para melhor marcar a modernidade do movimento, que só se viabilizava por contar com políticos que, como seus companheiros de jornada, também pareciam acreditar no poder da educação para construir um novo Brasil. NOTAS 1 AZEVEDO, 1932. Apud XAVIER, 2002, p. 107-8. A T c 1932.03.15. CPDOC / FGV 3 Conforme carta de Anísio Teixeira a Lourenço Filho em 16-05-1931. Ref: L F c 30/31. 05. 15. CPDOC / FGV 4 Neste contexto específico, entendemos por cultura pedagógica o conjunto de práticas pedagógicas estruturadas a partir de uma visão científica, amparada nos pressupostos dos fundamentos da educação – a base científica de que se valeram os renovadores para ancorar seus novos métodos e processos de ensino. Essa nova prática social, se assim podemos chamá-la, legitimada pela ciência, acabou por gerar uma mentalidade específica que dominou o pensamento pedagógico dos anos 1930, irradiada a partir dos professores formados, particularmente, pelo Instituto de Educação do Rio de Janeiro - escola-laboratório da renovação educacional. Ver a respeito, LOPES (2003) 5 Francisco Venâncio Filho, professor da Escola Normal, depois Instituto de Educação, foi colaborador de Fernando de Azevedo na reforma de ensino do Distrito Federal por este empreendida entre 1927 e 1930. Foi também signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. A expressão do Instituto de Educação como obra-síntese do movimento da Escola Nova está contida em artigo de sua autoria publicado no periódico Arquivos do Instituto de Educação, 1945, p. 24. 6 Arquivo Anísio Teixeira. CPDOC / FGV. Ref: AT pi I.E. 1932.00.00 7 Arquivo Anísio Teixeira. CPDOC / FGV. Ref: AT pi I.E. 1932.00.00 8 Idem, Ibidem 9 Arquivo Anísio Teixeira. CPDOC / FGV. AT pi 27 / 36. 00.00 /1 10 Idem, Ibidem 11 Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 28, n. 68, out. / dez. 1957. O texto foi ainda publicado na revista Educação e Ciências Sociais: ano II, v. 2, 4-5, ago./ 1957, no livro Educação e o mundo moderno. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1977 e ainda em BRANDÃO e MENDONÇA (1997, p. 197-211). Nossas referências para o texto baseiam-se nesta última publicação. 12 TEIXEIRA, 1957. Apud BRANDÃO e MENDONÇA, 1997, p. 202. 13 Idem, p. 203 14 Idem, p. 207 15 Arquivo Lourenço Filho. CPDOC / FGV. Ref: LF pi 32.04.05 16 Idem, p. 2 17 Idem, Ibidem 18 Entrevista de Lourenço Filho.O Jornal, 22-03-1932. Arquivo Lourenço Filho. CPDOC / FGV. Ref: LF pi 32 / 00/ 00 19 Arquivo Lourenço Filho. CPDOC / FGV. Ref: LF pi 1928.10.00. Ver ainda VIDAL (2001, p. 102-5) na análise crítica que faz sobre as supostas “aptidões” para o magistério às quais se refere Lourenço Filho. 20 Arquivo Lourenço Filho. CPDOC / FGV. Ref: LF pi 32.04.05 21 Idem 22 A categoria “memória enquadrada” é utilizada por POLLAK (1989) que a toma emprestado de ROUSSO, Henri. “Vichy, le grand fossé.” In: Vingtième Siècle, 5, 1985, p. 73. No entender de Pollak, o processo de enquadramento da memória de um grupo possui limites, não pode ser construído arbitrariamente, sem justificativa, sob pena de não persuadir o público a que se destina. 23 Arquivo Lourenço Filho. CPDOC / FGV. LF pi 32.04.05. 24 Idem 25 Categoria utilizada por MOTTA (2001) para explicar a centralidade e importância política da cidade do Rio de Janeiro – então Distrito Federal – no conjunto da nação. O conceito de capitalidade adotado por MOTTA como forma de se compreender o papel simbólico desempenhado pela cidade-capital em relação ao país foi desenvolvido por G. ARGAN (1964), sendo divulgado no Brasil pela historiadora Margarida de Souza Neves (1991). Apud MOTTA, 2001, p. 17. 26 O conceito de campo político aqui utilizado fundamenta-se nas reflexões de BOURDIEU (2000, p. 164) – “o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos 2 políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de ‘consumidores’ , devem escolher, com probabilidades de malentendido tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar de produção” Referências Documentais LOURENÇO FILHO, M. B. Há uma vocação para o magistério? Arquivo Lourenço Filho. CPDOC / FGV. Ref:LF pi 1928.10.00 ______ . Entrevista ao O Jornal. Arquivo Lourenço Filho. CPDOC / FGV. Ref: LF pi 32 / 00/ 00 ______. Discurso sobre a formação do professorado. Arquivo Lourenço Filho. CPDOC / FGV. Ref; LF pi 32.04.05 PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 3810 de 19 de março de 1932. Organiza o Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Seção de Documentação da Biblioteca Geral do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro. TEIXEIRA, Anísio. Carta a Lourenço Filho. 16-05-1931. Arquivo Lourenço Filho. CPDOC / FGV. Ref: LF c 30 / 31. 05.15 ______ . Carta ao interventor Pedro Ernesto. Arquivo Anísio Teixeira. CPDOC / FGV. Ref: AT c 1932.03.15 ______ . Discurso proferido por ocasião da inauguração da Escola de Professores do Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Arquivo Anísio Teixeira. CPDOC / FGV. Ref: AT pi IE 1932.00.00 ______ . Manuscrito sobre educação como ciência e arte. Arquivo Anísio Teixeira. CPDOC / FGV. Ref: AT pi 27 / 36.00.00 / 1 VENÂNCIO FILHO, Francisco. “ Instituto de Educação do Distrito Federal” In: Arquivos do Instituto de Educação. Vol. II, nº 1, p. 19-32, dez / 1945. Bibliográficas BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. BRANDÂO, Zaia ; MENDONÇA, Ana Waleska (orgs.) Uma tradição esquecida: Por que não lemos Anísio Teixeira? Rio de Janeiro: Ravil, 1997. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1994 LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1996. LEMME, Paschoal. Memórias. Vol. 2. São Paulo: Cortez / Brasília: INEP, 1988 LOPES, Sonia de Castro. A Oficina de Mestres do Distrito Federal: História, Memória e Silêncio sobre a Escola de Professores do Instituto de Educação do Rio de Janeiro (193239). Tese e Doutorado. Departamento de Educação. PUC-Rio, 2003 MENDONÇA, Ana Waleska. Anísio Teixeira e a Universidade de Educação. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2002. MOTTA, Marly. Rio de Janeiro: de cidade-capital a Estado da Guanabara. Rio de Janeiro: FGV, 2001. NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. In: Projeto História . PUC/SP, p. 7-28, dez, 1993. POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio” In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 15, nº 10, 1992. VIDAL, Diana G. O exercício disciplinado do olhar: livros, leituras e práticas de formação docente no Instituto de Educação do Distrito Federal (1932-37). Bragança Paulista, SP: CDAPH / EDUSF, 2001. XAVIER, Libânia N. Para além do campo educacional: um estudo sobre o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932). Bragança Paulista, SP: CDAPH / EDUSF, 2002. ESCOLA DE PROFESSORES DO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO (1932-39): FORMANDO MESTRES SEGUNDO OS PRINCÍPIOS DA “EDUCAÇÃO RENOVADA” Sonia de Castro Lopes - ISERJ Diante das recentes discussões sobre a exigência de um curso de nível superior para a formação de professores da educação infantil e das séries iniciais do ensino fundamental, conforme postula a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394 / 96) busca-se neste artigo refletir à luz das questões presentes no contexto da época sobre a primeira experiência de formação de professores “primários” no Brasil em nível superior: a Escola de Professores do Instituto de Educação do Rio de Janeiro. A partir da idéia de que era preciso investir na qualidade dos cursos de formação de professores para solucionar os problemas educacionais do país, Anísio Teixeira, diretor geral da Instrução Pública do Distrito Federal, transformou em 1932 a Escola Normal em Instituto de Educação. Tratavase de um centro educacional que se compunha de pré-escola, escola primária, escola secundária e Escola de Professores, um curso em nível superior pouco depois vinculado à Universidade do Distrito Federal (UDF), também criada por Anísio em 1935. Com a criação daquela universidade, de breve existência (1935-1939), a Escola de Professores seria transformada em Escola de Educação, responsável também pela formação de professores secundários e principal razão de ser de sua proposta pedagógica. Entretanto, a extinção da UDF em 1939 e o conseqüente desligamento do Instituto de Educação do âmbito universitário, fizeram com que a formação dos professores primários voltasse a ser realizada em curso normal de nível médio. O texto em questão remete-se ao momento de criação do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, fato ocorrido na mesma data em que se deflagrou o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (19 de março de 1932). Anísio Teixeira e Lourenço Filho, importantes signatários deste manifesto serão os implementadores da nova instituição. Procuramos, nos limites deste artigo, fundamentar nossa argumentação a partir de duas premissas: a) A criação do Instituto de Educação configurou-se como a materialização da idéia contida no Manifesto de que a formação de professores de todos os graus de ensino deveria ocorrer em cursos superiores ligados à universidade. Por essa razão qualificamos a instituição como um dos “lugares de memória” da Educação Nova (Pierre Nora, 1993); b) Tomando por base os discursos proferidos por Anísio Teixeira e Lourenço Filho na cerimônia de inauguração do curso, percebemos que estavam em jogo diferentes projetos de formação de professores, fruto de apropriações distintas dos postulados do movimento da Escola Nova (Michel de Certeau, 1994). Para Anísio, o referencial científico que fundamentava o curso da Escola de Professores, longe de mecanizar, seria um instrumento que ofereceria aos futuros mestres a reflexão necessária sobre sua prática, em sua opinião, uma verdadeira arte – a arte de ensinar. Por outro lado, Lourenço Filho, na condição de diretor da casa, articula seu discurso em torno de dois eixos: registra o fato como um produto da nova mentalidade em educação, conferindo-lhe um caráter técnico-profissional e, ao mesmo tempo, procura assegurar junto ao poder público um espaço político para legitimar o movimento no qual se inseria (Bourdieu, 2000). As fontes documentais que sustentam a argumentação do trabalho foram colhidas nos arquivos pessoais de Anísio Teixeira e Lourenço Filho, localizados no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas e no Arquivo Geral do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro, onde localizamos o decreto de sua criação (Decreto n. 3.810 de 19-03-1932) e alguns periódicos publicados pela Secretaria de Educação do Distrito Federal como os Arquivos do Instituto de Educação e Boletim de Educação Pública.