INSTITUTO DE EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO(1932-45):FRAGMENTOS DA
MEMÓRIA REVISITADA
Sonia Maria de Castro Nogueira Lopes - ISERJ
“Por mais afastados no tempo que pareçam os
acontecimentos de que trata, na realidade, a História
liga-se às necessidades e às situações presentes nas
quais esses acontecimentos têm ressonância” 1
Introdução
Há sete décadas fazendo parte da paisagem e da memória coletiva2 da cidade, essa construção
seduz e povoa o imaginário não só de ex-alunos e professores, mas de uma significativa parcela da
população carioca de gerações mais antigas, trazendo à lembrança um momento mágico de nosso
passado, identificado com o que se convencionou chamar de “anos dourados”.
Não cheguei a viver os “anos dourados” do Instituto, mas testemunhei certamente seus
últimos anos de agonia. Minha turma, a de 1968, seria a última a ter ingresso automático nos quadros
do magistério primário do antigo Estado da Guanabara. Lembro-me da comoção que isto nos causou,
dos debates acirrados pela imprensa e TV em torno dessa questão, enquanto assistíamos ao ensino
público render-se às investidas das escolas privadas. Contudo, a sensação que nos invadia era ainda a
de provisoriedade. Nutríamos na época, a esperança de que tudo poderia voltar à antiga ordem. Em
dezembro daquele ano, às vésperas da formatura, nosso sonho acabou...
Meu reencontro com o Instituto ocorreria trinta anos depois quando tive a oportunidade de
participar do projeto de implementação do Curso Normal Superior naquela instituição, já
transformada em Instituto Superior de Educação pelos dispositivos da nova LDB / 963. Pelo fato de
estar trabalhando com História da Educação, interessei-me em organizar o evento comemorativo do
centenário do educador Anísio Teixeira, que acabou trazendo à tona uma série de reflexões sobre o
momento político vivenciado tanto no âmbito da administração do antigo Distrito Federal quanto a
nível nacional, representado pelo movimento de 1930, que podemos caracterizar como um ponto
vigoroso de inflexão nas práticas políticas alicerçadas durante a primeira República4. No bojo do
processo de mudanças que vinha se desenhando ao longo dos anos 20, a demanda social por
educação adquiria centralidade nas políticas públicas voltadas para a inclusão das camadas populares
no projeto político que se estabeleceu para o Brasil5.
1
CROCE, B. La storia come pensiero e come azione , 1938, p.5) , apud LE GOFF, 1996, p. 24
Utilizamos a categoria memória coletiva conforme concepção de HALBWACHS, 1990
3
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n° 9394 de dezembro de 1996, artigos 62 e 63.
4
LOPES, 1999
5
NAGLE, 1974
2
O ideário da Escola Nova e o papel desempenhado pelos intelectuais da Educação a ela
vinculados encontraram, ao menos num primeiro momento, um espaço para se integrar a esse projeto
que começava a se estruturar a partir de 1930. Exatamente nesse ano, inaugura-se o prédio do
Instituto de Educação, cuja criação encontra-se imbricada a um conjunto de transformações que
definiriam os novos rumos da política educacional no país.
Por ocasião da organização do evento comemorativo, pude constatar, com certa surpresa, um
total desconhecimento das condições em que o Instituto fora criado, além da confusão em torno da
data da sua fundação, manifestados pela maioria do corpo docente, o que nos conduziu à
organização de um projeto de pesquisa sobre a memória do Instituto de Educação, no qual
privilegiamos particularmente a década de 1930 e parte da década de 40, recorte justificado não só
por ser este o período da memória fundante da instituição, mas também pela relativa segurança em
relação ao contexto político, particularmente trabalhado durante o meu curso de Mestrado 6.
Nos arquivos da instituição, encontramos leis, decretos, regimentos internos, programas,
grades curriculares, fichas de matrícula de ex-alunas, que nos possibilitaram reconstituir parte
daquele passado desconhecido. Aos poucos, o emaranhado de dados começou a fazer sentido, apesar
das muitas peças isoladas, aparentemente inúteis ou estranhas, que insistiam em nos desafiar. Parte
do resultado desses primeiros esforços será relatada neste artigo, para o qual também concorreram
com indescritível presteza os depoimentos, muitas vezes emocionados, das antigas alunas, todas
bastante idosas, mas incrivelmente lúcidas e orgulhosas por poderem colaborar, através de suas
lembranças, para o desvendar de tantas dúvidas e incertezas. Exibiram-nos, generosamente os seus
guardados: álbuns de formatura, fotografias das amigas, de antigos professores, diplomas, boletins,
recortes de jornal amarelados, enfim todo um acervo que conservaram durante décadas, e que, para
sua surpresa, possuía agora um valor inestimável.
As décadas de 1950/60 são registradas pela maioria dos integrantes do corpo docente do
Curso Normal Superior como o momento marcante da história do Instituto que, no seu entender, tem
“122 anos de tradição na formação de professores”.7 Percebe-se, através dos depoimentos, que a
identidade do Instituto de Educação confunde-se com a da antiga Escola Normal do Império,
enquanto a memória construída pelos pioneiros da Educação Nova, por ocasião da criação do
Instituto, é quase ou totalmente ignorada. De certa forma, é compreensível que os entrevistados,
antigos alunos naquelas décadas, identifiquem esse período como o mais significativo da instituição,
entretanto, é no mínimo curioso que, ao longo de sua permanência na escola, não tenham tomado
conhecimento da história de sua criação e das experiências ali desenvolvidas durante a década de
6
7
LOPES, S. C. Lourival Fontes: as duas faces do poder. Dissertação de Mestrado em Historia Política. UERJ/ 1998.
LOPES, S. C. Relatório de pesquisa do Projeto Memória ISERJ ( 2000)
1930. Como se explica o esquecimento dessa memória? Essa questão vem adquirindo centralidade
em nossa pesquisa. Evidentemente, este artigo não tem a pretensão de respondê-la, apenas aponta
caminhos, tentando deslocar nosso olhar para algumas pistas que talvez nos permitam reconstruir
uma versão dos fatos, conscientes de que cada época fabrica a sua própria representação do passado.
Fragmentos de memória: lembranças de uma geração
Uma das lembranças mais vivas no espírito daqueles que passaram pelo Instituto de Educação
em qualquer época, diz respeito às manifestações festivas. Tomemos a festa como alicerce para nela
ancorar as lembranças que o Instituto evoca em seus antigos alunos e professores a partir da data
magna da instituição, o 5 de abril, dia em que se comemora o seu aniversário e tem lugar a cerimônia
de incorporação dos novos alunos, evento só comparável à tradicional festa do adeus, na qual as
normalistas se despedem do colégio8.
A palavra latina commemorare significa lembrar, possuir uma memória comum em relação a
um determinado acontecimento. Toda comemoração supõe festejos, e toda festa, pelo seu caráter
repetitivo, quase sempre anual, traz em si a ilusão de que o passado insistentemente celebrado, tornese de alguma maneira mais real, mais próximo de nós, deixando de ser aquele “país estrangeiro” de
que nos fala Lowenthal (1998). “Não existe festa sem reminiscência”, diz com muita propriedade
Mona Ozouf (1976, p. 217), exatamente porque a festa traduz, no seu simbolismo, a sensação de
unidade e pertencimento necessária à identidade do grupo. Num belo capítulo de seu livro Mitos e
mitologias políticas, Girardet (1987) também discorre sobre o desejo da unidade que se apodera dos
homens e os conduz ao ato da festa, simbolizada pelo banquete,“a refeição tomada em comum,
consagração e representação visível da comunhão dos corações e das almas” (p. 142).
O calendário festivo de uma instituição reflete a sua memória e esclarece de que maneira os
senhores dessa memória desejam vê-la perpetuada. As festas existem para estabelecer a
correspondência de um tempo remoto com um tempo presente, são rituais que evocam a tradição,
explicam as nossas origens, criam vínculos onde há hiatos, evitam discursos conflituosos, desvios de
interpretação, lacunas. Cuidadosas em relação ao cerimonial, apoiam-se em suportes materiais como
hinos, bandeiras, legendas, vestimentas, símbolos que lhes garantam credibilidade. “A festa é uma
dócil maquinaria, pronta para ser montada e desmontada num abrir e fechar de olhos, tendo em
vista as necessidades da causa” ( Ozouf, op. cit. p. 224)
Considerando a relevância das comemorações para o estudo que pretendemos desenvolver,
partiremos delas para tentar interpretar, na fronteira entre memória e história, os acontecimentos que
8
A última festa do adeus transcorreu em dezembro de 2000, pois com a extinção do Curso Normal a nível médio, a
comemoração teria perdido o seu sentido.
nos foram relatados pelas antigas alunas. Através de suas narrativas, observamos também várias
formas de entender o mundo, imbricadas em uma complexa rede onde se cruzam dimensões diversas
de tempos e espaços, lembranças e esquecimentos, objetos físicos e simbólicos, memórias de gênero
e memórias de geração, a ponto de não distinguirmos se as lembranças são mesmo pessoais ou se
foram incorporadas de outras pessoas. De qualquer forma, como enuncia Bosi (1994), “o grupo é
suporte de memória se nos identificamos com ele e fazemos nosso o seu passado” (p. 417)
Alda Gomes de Carvalho orgulha-se de ter sido aluna da primeira turma de professores formada
pelo Instituto de Educação, em 1934. Veio da Bahia menina e em 1928 prestou concurso para a
antiga Escola Normal, cujo curso compunha-se de 4 anos, realizados após a conclusão dos estudos
elementares.
“Quando eu fiz o concurso, a Escola Normal era no Estácio, na rua Joaquim Palhares.
Depois é que eu fui para o Instituto de Educação, na rua Mariz e Barros. Isso já foi em
1930, houve aquela cerimônia toda, ali no pátio do chafariz, tudo muito organizado. (...)
O dia eu não lembro... Também já é pedir demais, não é? Mas não era em abril, 5 de
abril não me diz nada. Outubro sim, era um mês muito importante para o Instituto em
que se fazia a comemoração do aniversário da escola, o dia não sei ao certo (...) A minha
turma começou no sistema antigo, mas em 1932 houve uma adaptação de estudos e nós
ingressamos na Escola de Professores que o Anísio Teixeira criou, porque nessa época o
Instituto se tornou uma unidade, entende? Havia desde o Jardim de Infância até a Escola
de Professores. Anísio Teixeira levava muito contra, mas ele dizia que era necessário e
levou avante. Era um homem de muito saber que dava valor ao magistério”9
Marília Marques da Costa, como suas cinco irmãs, estudou para ser professora, porque
segundo ela “naquele tempo era só o que se podia ser”. Formada na turma de 1937, exibe com
orgulho o diploma expedido pela Universidade do Distrito Federal, que lhe dá direito de ganhar “um
dinheirinho a mais por causa do curso superior”.
“Eu queria mesmo era ser médica, mas não podia... Aí entrei para a Escola Normal no
início de 1930. Nesse mesmo ano se deu a mudança para o prédio novo. Era a época da
revolução, sabe? A diretoria foi avisada de que viriam uns soldados do Rio Grande do Sul
para se instalar no primeiro prédio público que encontrassem vazio, o prédio que estava
vazio era o Instituto de Educação que ainda não tinha sido inaugurado. Então foi feita a
mudança, em menos de uma semana e fomos para o Instituto. Isso aconteceu em outubro,
no final do mês, eu acho, mas não lembro o dia...(...) Não tenho a menor idéia dessa festa
de 5 de abril, mas a de outubro era uma festa cívica, sabe, muito singela. Todos formados
no pátio, compareciam algumas autoridades, mas ficavam lá em cima... (...) Não lembro
de Anísio Teixeira, ele era político, não é? Da cúpula... Mas lembro muito de Lourenço
Filho, nossso diretor, ele percorria as salas, falava muito das mudanças que estavam
ocorrendo no Instituto, explicava porque nós tínhamos que estudar mais”10
Marion Villas Boas Sá Rego é a mais jovem do grupo. Entrou para a escola secundária do
Instituto de Educação no início de 1938 e formou-se em 1944. Nessa época, não havia mais a Escola
9
Trecho da entrevista concedida por Alda Gomes de Carvalho ao Projeto de Memória do ISERJ em 19/ 9/ 2001
Trecho da entrevista concedida por Marília Marques da Costa à autora em 2/10/2000
10
de Professores e o Instituto já fora desvinculado da Universidade do Distrito Federal. Marion passou
cinqüenta e dois anos de sua vida no Instituto, chegando à direção geral em 1988.
“Na época da Reforma Capanema eu já estava a 5ª série da escola secundária. Aí tudo
mudou, porque começou o curso ginasial de 4 anos e o normal de 3 anos. Nossa 5ª série
foi aproveitada como 1° ano normal e eu só fiz mais dois anos. (...) “Não me lembro na
época de aluna de comemorarmos o dia 5 de abril, a festa era em 12 de outubro, que era o
dia do aniversário do colégio, mas parece que alguém andou pesquisando a história da
antiga Escola Normal e descobriu que ela havia sido fundada em 5 de abril, aí
começaram a comemorar essa data, mas o dia 12 de outubro permaneceu no calendário
de eventos como o dia da normalista, que era próximo ao dia do mestre. Era uma semana
inteira de festas... (...) Havia muitas festas cívicas no Instituto na minha época de aluna,
mas a maior de todas era a Parada da Raça realizada no campo do Vasco, quando nós
cantávamos regidas pelo Maestro Villa Lobos. Aquela época, como você deve saber, era o
auge do nacionalismo ” 11
Cada geração tem de sua cidade, de seu bairro, ou de sua escola, a memória de
acontecimentos que permanecem como pontos referenciais de sua história. Daí entendermos geração
não somente como um conjunto de pessoas da mesma faixa etária que viveu na mesma época, pois a
noção de idade só tem sentido se for relacionada a um grupo social ideologicamente circunscrito na
comunidade nacional, “um grupo detentor de uma memória coletiva , balizada pelos mesmos
episódios, pontuada pelos mesmos pontos fortes que são aqueles das experiências coletivas vividas
simultaneamente” ( Girardet, 1983, p. 263). O grupo de uma mesma geração possui, portanto,
mentalidade específica forjada por um acontecimento marcante. Na visão de Pierre Nora (1993), a
geração se constitui em lugar de memória,
“pelo seu conteúdo demográfico, portanto material; por ser funcional, na
medida em que garante, ao mesmo tempo, a cristalização da lembrança e sua
transmissão e simbólica por definição, visto que caracteriza por um
acontecimento ou uma experiência vividos por um pequeno número uma
maioria que deles não participou” (p.22)
O episódio marcante dessa geração parece ter sido a “revolução” de 30 e seus
desdobramentos, que Marília perfeitamente articulou com o momento de inauguração do novo prédio
da Escola Normal, cuja construção foi o grande marco da administração de Fernando de Azevedo em
sua gestão frente à Instrução Pública do Distrito Federal, obra com a qual monumentalizou o seu
projeto reformista. Alguns anos depois, o autor de A Cultura brasileira, voltaria a referir-se a essa
reforma como o ponto culminante do movimento renovador. “Foi por essa reforma que uma
verdadeira revolução se operou no país, (...) que se despertou, no Brasil, a consciência educacional
e se inaugurou uma nova política de educação” (Azevedo, 1958, p. 157).
Inaugurada em uma data particularmente emblemática, a nova Escola Normal parecia
incorporar o estado de compromisso entre a velha e a nova ordem, reproduzindo assim a face política
do momento e a própria ideologia do movimento escolanovista, cuja proposta reformista pouco
11
Trecho da entrevista concedida por Marion Villas Boas ao Projeto de Memória do ISERJ em 31/10/2001
tempo depois consubstanciada no Manifesto dos Pioneiros apresentava contradições flagrantes, até
mesmo pela diversidade de matizes ideológicos que abrigava.12
O projeto educacional de Azevedo trazia a marca do liberalismo elitista13, sua concepção
conservadora da educação percebia a perpetuação das tradições como um freio social capaz de
conduzir a mudança dentro da ordem. Para ele, a formação das classes dirigentes e a educação das
massas seriam duas faces de um único problema, de cuja solução dependia a estabilidade da estrutura
social e o equilíbrio político das instituições (Azevedo, 1931, p. 105). A fonte conformadora de seu
pensamento é a obra de Durkheim e a busca da unidade e do consenso são as marcas registradas do
projeto azevediano, para quem a escola seria uma instituição democrática à medida que possibilitasse
a mobilidade social, estabelecendo uma hierarquia pela competência. Na perspectiva dos liberais
igualitaristas, que tinham como referência o pensamento de Anísio Teixeira, a escola deveria ser
única, renovada, voltada para o trabalho, para a experiência, aberta a todas as camadas sociais com o
objetivo de construir uma nova sociedade ( Teixeira, 1997).
Na verdade, essa tensão é um indício da modernidade, em que referências múltiplas, muitas
vezes contraditórias, permitem a coexistência da tradição com o novo. Na concepção de Gilberto
Velho (1994), essa é uma das marcas da sociedade moderna, na qual pode-se identificar “a existência
de diferentes visões de mundo e estilos de vida” (p. 97).
A individualização, própria dessa
sociedade, faz com que a memória dos indivíduos adquira maior relevância social e a noção de
projeto parece estar vinculada à idéia do indivíduo-sujeito14, a partir da consciência e valorização de
uma individualidade singular. Seria a consciência dessa singularidade baseada na memória que
possibilitaria aos sujeitos formular e conduzir seus projetos.
Talvez pela certeza de que a memória é imprecisa e fragmentada, os indivíduos tentem
articular as suas idéias e ações a projetos que lhe confiram identidade. Fernando de Azevedo
empenhou-se em construir a memória da Escola Nova com uma dedicação de missionário, tentando
conferir ao movimento uma identidade própria. Seu projeto de educação, de cunho marcadamente
elitista foi negociado com os mais progressistas em prol da unidade necessária ao Movimento dos
Pioneiros, cujo Manifesto, seria por ele redigido. Na carta que escreve a Anísio em fevereiro de 1932,
buscando adesões para o movimento, isso torna-se claro:
“Nesse momento de confusão é preciso definirmos a nossa posição,
estabelecendo os nossos princípios fundamentais e o nosso programa de
12
Sobre as discussões historiográficas a respeito da Escola Nova ver BRANDÃO, Z. “A historiografia da Educação na
encruzilhada” in SAVIANI (1998), ver também CUNHA, L. A . “Apresentação” in TEIXEIRA, A (1997)
13
As categorias “liberalismo elitista” e “liberalismo igualitarista” que utilizo no texto foram criadas por CUNHA, L. A
. (1980).
14
A noção de projeto aqui tratada é a de SCHUTZ, A . Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Apud VELHO, op. cit. , p. 101
reconstrução educacional (...) Não desanime, não esmoreça, meu caro...(...)
Estou aflito por você, por nós, pelos nossos ideais.” 15
Como nos lembra Velho, o projeto é o instrumento básico de negociação da realidade com o
outro, seja ele individual ou coletivo. Ele existe como “meio de comunicação, como maneira de
expressar e articular interesses objetivos, sentimentos, aspirações para o mundo” ( op. cit., p. 103).
Partindo da idéia de que a memória é fragmentada e a construção da identidade depende da
organização desses fragmentos, será o projeto que dará sentido e estabelecerá a continuidade entre as
partes.
Na memória discente de Alda , a figura de Anísio Teixeira ocupa um lugar de destaque por ser
o criador da Escola de Professores a que ela se refere com orgulho. A idéia de unidade conferida ao
Instituto também não escapou a sua percepção, uma vez que ali foram implementadas além da escola
secundária, uma escola primária e o Jardim de Infância que serviriam como campos de aplicação para
os futuros professores.16 A Escola de Professores seria pouco tempo depois, articulada à
Universidade do Distrito Federal criada em 1935, sendo também responsável pela formação
pedagógica dos professores secundários formados naquela universidade.17
É interessante também a impressão que Alda conservou de Anísio como “um homem de grande
saber”, na verdade, o filósofo que pensou a educação à luz dos ensinamentos de John Dewey, daí
possuir uma visão mais prospectiva, mais voltada para a mudança. No seu entender, a designação
“escola nova” fora útil no início da campanha dos Pioneiros, marcara posição, mas deveria ser
abandonada. Por que não “escola progressiva”, indagava ele? O termo progressiva, em sua opinião,
seria mais preciso, pois indicaria uma escola em permanente mudança.18 A orientação que obteve de
Dewey e que divulgou na década de 30 baseava-se na idéia de que a verdadeira educação seria
aquela capaz de libertar, através de um movimento progressivo, a capacidade individual para fins
sociais mais amplos e só um regime democrático poderia realizar essa tarefa (Teixeira, 1997).
Dois indivíduos, dois projetos, diferentes modos de significar a educação, que por sua vez,
entrecruzavam-se com tantos outros, mais técnicos, mais poéticos, mais ingênuos, mais críticos, com
marcas ideológicas mais ou menos acentuadas e que, por vias transversas, tendiam a se conciliar, de
alguma forma, num projeto único e negociado, cujo objetivo comum era a luta pela obrigatoriedade
de uma escola pública, laica e gratuita.
15
Apud VIANA FILHO, 1990, p. 57
Essas modificações na estrutura da Escola Normal foram implementadas pelo decreto 3810 de 19 / 3/ 1932
17
Arquivos do Instituto de Educação, vol. I , n°. 3, março/ 1937.
18
TEIXEIRA, A . ( 2000, p. 25) A obra de Anísio Teixeira a que nos referimos “Pequena introdução à filosofia da
Educação” foi publicada pela primeira vez em 1934. A edição com a qual trabalhamos foi lançada por ocasião do
centenário de nascimento do educador (2000).
16
Se a imagem de Anísio é tão presente para Alda, torna-se ausente para Marília, alguns anos
mais jovem, fato justificado pelo afastamento do educador da vida pública em 1935. Em sua memória
adquire centralidade a figura de Lourenço Filho, para ela o verdadeiro construtor do Instituto de
Educação. Na verdade, coube-lhe a função de “dar forma” às mudanças estruturais operadas por
Anísio Teixeira na instituição edificada por Fernando de Azevedo. Sua participação no Movimento
tem sido secundarizada, em detrimento dos outros dois, mas na memória da instituição, foi quem
deixou marcas mais profundas. Em primeiro lugar, devido à presença física, pois foi diretor da casa
entre 1932 e 1937. Além disso, sua Introdução ao estudo da Escola Nova escrita em 1930 tornou-se a
cartilha do movimento, com ampla divulgação, tornando-se leitura obrigatória em quase todos os
cursos normais e pedagógicos do país, embora fosse muitas vezes criticada, por
sua visão
reducionista e estritamente técnica do escolanovismo19.
Durante sua gestão, organizou a publicação dos Arquivos do Instituto de Educação, anuário
destinado a divulgar os relatórios das atividades administrativas, pedagógicas e culturais, contando
com a colaboração de vários professores que se dispunham a relatar as práticas e pesquisas ali
realizadas. À tarefa de diretor, Lourenço acrescentou o seu empenho em erigir a memória da
instituição, registrada através desses Arquivos, verdadeiros lugares de memória, porque além de
materiais, possuíam simultaneamente características funcionais e simbólicas ( Nora, op. cit.).
Percebendo a importância de seu cargo e a instabilidade do momento em que vivia talvez tenha
cultivado essa memória como um dever, com um sentido de pertencimento, segredo da própria
identidade individual e coletiva. Incomodava-o tremendamente o fato de alguém referir-se ao
Instituto pelo nome da instituição que o precedera. Escola Normal era uma expressão que condenava:
“Pois não se estava realizando uma verdadeira revolução? Métodos e nomes antigos indicam uma
resistência ao progresso.”20
Nos Arquivos, que foram publicados regularmente entre 1935 e 1937, há referências regulares
à Escola de Professores, experiência que durou poucos anos, pois com o advento do Estado Novo, a
Universidade do Distrito Federal foi reestruturada, sendo vários estabelecimentos de ensino
transferidos para a Universidade do Brasil, com exceção de alguns, e entre eles o Instituto de
Educação, que Anísio havia implantado com o objetivo de formar o magistério primário em nível
superior21. De acordo com Mendonça (1993, p. 63) , “o processo de transformar a antiga Escola
19
Ver a respeito NUNES, 2000, p. 191-4.
Conforme BRITO, Mário de. “Lourenço Filho e o Instituto de Educação” (1959, p. 72)
21
O § único do artigo 1 do Decreto-Lei 1.063 de 20-01-1939 que “dispõe sobre a transferência de estabelecimentos de
ensino da Universidade do Distrito Federal para a Universidade do Brasil” estabelecia o seguinte: “Ficam excluídos dos
estabelecimentos de que trata este artigo o Instituto de Educação, o Departamento de Artes e Desenho e o Departamento
de Música, bem como o curso de formação de professores primários, o curso de orientadores de ensino primário, o curso
de administradores escolares e os cursos de aperfeiçoamento da Faculdade de Educação”. Apud MENDONÇA, 1993.
20
Normal em escola de nível superior para melhor aperfeiçoamento do magistério foi completamente
revertido”.
Na Biblioteca do Instituto de Educação, há uma significativa ausência de exemplares dos
Arquivos entre 1937 e 1945. Após a publicação de março de 1937 (vol. I, número 3) a revista só
reaparece em 1945 (vol. II número 1) e, a partir daí, surgem exemplares esparsos referentes aos anos
de 1949, 1950, 1956 e 1960. É possível que a coleção esteja incompleta, mas a ausência de
publicações durante o período do Estado Novo é, no mínimo, sugestiva.
Marion foi aluna do Instituto entre 1938 e 1944, portanto, sob um outro contexto, pleno de
reformas e modificações no currículo escolar22, características da política educacional implantada
pelo ministro Gustavo Capanema. Em seu depoimento são recorrentes as lembranças à Festa da
Raça, realizadas no estádio de São Januário no início do mês de setembro, onde as normalistas
marchavam, ao lado de outros estudantes diante do presidente da República ou participavam dos
corais regidos pelo maestro Villa Lobos. Nesse período, as jovens mestras passaram a incorporar a
ideologia autoritária do projeto nacionalista, acreditando que poderiam, através do seu trabalho,
incorporar socialmente as massas iletradas, conferindo-lhes dignidade e cidadania.
Na entrevista, Marion nos indica, sem muita certeza, a possibilidade do acontecimento do 5 de
abril ter sido “pesquisado” durante os anos 40, talvez na mesma época da criação do hino pelo
maestro Vieira Brandão23 e do Centro Cívico Benjamin Constant, cuja inauguração solene foi
presidida pelo presidente Getúlio Vargas24, que aliás, foi o paraninfo da turma de 1943.25 Entretanto,
o primeiro registro oficial dessa festa só aparece numa publicação de 1954, remetendo a origem do
Instituto de Educação à antiga Escola Normal da Corte, inaugurada por D. Pedro II em 1880, daí os
“122 anos de tradição” de que tanto se orgulha o atual corpo docente.26
Aparentemente um detalhe sem importância, essa festa pode ser reveladora de uma intenção
deliberada em comprometer a identidade do Instituto enquanto espaço do novo, obra do movimento
da reconstrução educacional, cujo projeto não conseguira se acomodar ao espírito autoritário do
período pós 1935, ou pode ter sido construída no sentido mesmo de reforçar a identidade da
instituição, conferindo-lhe tradição justamente a partir de um momento crítico. Ao que tudo indica,
estamos diante do que Hobsbawm ( 1984) definiu como “tradição inventada”, ou seja, “práticas de
22
LOPES, S. Grades curriculares dos anos 40. In Relatório de Pesquisa do Projeto Memória do ISERJ, (mimeo),
2000.
23
A letra do hino foi composta posteriormente pelo professor Ismael de França Campos, já falecido. Depoimento da
professora Marion Villas Boas à autora em 31/10/2001.
24
“ No Instituto de Educação do Rio de Janeiro é fundado mais um centro cívico”. Cine-jornal brasileiro, volume 1, n°
143, 1940. Apud GARCIA, N. J. Estado Novo: ideologia e propaganda política. São Paulo: Loyola, 1982, p. 131.
25
Conforme depoimento de Nilza da Silva Camargo à autora em 19/10/2001. Professora formada em 1943, Nilza nos
exibiu sua fotografia de formatura, na qual se encontra o presidente Getúlio Vargas.
natureza ritual ou simbólica, que visam inculcar certos valores e normas de comportamento através
da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação a um passado histórico
apropriado” (p. 9).
Voltar-se para tempos remotos, retornar às origens, são meios utilizados em momentos de crise
profunda que buscam no passado esperança e coragem para superar os momentos difíceis, além de
infundir nos indivíduos um sentimento de orgulho por compartilharem um passado de glórias e
tradições. A identidade da instituição seria fortalecida a partir dessa idealização, que por não possuir
fundamentos objetivos tornou-se um mito, como o dos “anos dourados”, laboriosamente construído a
ponto de ser incorporado como senso comum. Não sabemos ao certo em que momento a tradição do
5 de abril foi recuperada, mas a entrevista de Marion e a primeira história do Instituto de Educação
nos oferecem pistas. O acidente factual passa despercebido, interessa pouco, porém é importante
avaliar a sua repercussão e o modo como foi assimilado e transformado no complexo jogo da
memória e do esquecimento.
Considerações finais : A memória como dever
Em dezembro de 1945 uma outra festa marcaria a história do Instituto de Educação. Na
ocasião, o professor Francisco Venâncio Filho, conhecido signatário do Manifesto e amigo particular
de Fernando de Azevedo, acabara de assumir a direção-geral e seu empenho em registrar a
homenagem que os professores prestam a Azevedo pode ser demonstrado pela publicação de um
número particularmente interessante dos Arquivos27, levando-se em conta a época e as circunstâncias
em que foi produzido. Nele constatamos a existência de quatro artigos que se referem ao movimento
da Escola Nova, além do relato dos discursos de vários professores saudando o criador da instituição.
Um destes discursos, proferido pela professora Iva Waisberg, formanda na turma de 1934 e na
época professora de Psicologia do curso Normal, faz uma alusão direta ao silenciamento dos docentes
em relação às experiências dos Pioneiros no Instituto.
“Estaríamos proibidos de sentir júbilo e não teríamos força para manifestá-lo se a doce,
inebriante e quem sabe curta liberdade, não tivesse revivido entre nós. Mas veio, e dure o que
durar, sorvamo-la ansiosamente porque talvez venhamos a precisar de toda coragem para um
novo silêncio. Foi essa aragem de liberdade que me fez aceder imediatamente ao desejo que
Venâncio Filho manifestou de ouvir a geração de discípulos de Fernando de Azevedo – nosso
pioneiro, nosso mestre, amigo caríssimo que se tornou, apesar do convívio entrecortado de
longas ausências. (...) Mas a quem devemos a estrutura moral e profissional que nos permitiu
atravessar a noite da confusão unidos pelo mesmo vínculo profundo de uma formação
espiritual? Devemo-la aos pioneiros da educação, a Anísio Teixeira, Sampaio Dória, Roquette
26
SILVEIRA, Alfredo Balthazar da. História do Instituto de Educação. Distrito Federal: Oficinas Gráficas da
Secretaria Geral de Educação e Cultura, 1954, p. 141.
27
Arquivos do Instituto de Educação, vol. II , n° 1. , dezembro de 1945.
Pinto, Delgado de Carvalho, Almeida Júnior e à frente de todos, como um paladino, esteve o
nosso homenageado de hoje.” 28
Venâncio Filho e o homenageado também proclamam em seus discursos a “lucidez
transformadora de Anísio Teixeira” e o empenho de Lourenço Filho em tornar concreto, ainda que
por pouco tempo, o ideal de educação dos Pioneiros naquela instituição. Sob o ponto de vista
político, os pioneiros foram, de alguma forma, os vencidos no embate travado contra os segmentos
conservadores que acabaram se articulando ao projeto educacional autoritário, sobretudo após 1935.
Até então, o projeto governista havia conseguido arbitrar essas disputas com habilidade, pois via com
bons olhos a política educacional defendida pelos profissionais da educação, que uma vez exorcizada
de seu conteúdo “excessivamente democrático”, poderia servir aos seus propósitos, colaborando no
arrefecimento da questão social. Mas a unidade do movimento, pela qual Azevedo tanto se
empenhara, estaria seriamente comprometida a partir das prisões, exílios forçados, cooptação, e
tantos outros processos de esfacelamento aos quais o grupo foi submetido.
A cerimônia especial em que se homenageava Fernando de Azevedo no Instituto de
Educação celebrava o fim da “noite da confusão” imposta pelo Estado Novo, que acabava de ser
extinto.
Aproveitando-se da “doce e inebriante liberdade”, os sobreviventes e seguidores do
movimento renovador tentavam reanimá-lo, talvez sem se dar conta de que o mesmo já não era
sentido coletivamente, daí sua preocupação em reestruturá-lo através do discurso, na tentativa de
recuperar, de forma nostálgica, a unidade que se perdera.
Segundo Pierre Nora (op. cit.), “quanto menos a memória é vivida interiormente, mais ela
tem necessidade de suportes exteriores e de referências tangíveis de uma existência que só vive
através delas” (p. 14), sendo uma das características dos lugares de memória justamente “a sua
derrota em se tornar aquilo que quiseram seus fundadores, pois se estivéssemos ainda hoje, vivendo
sob seu ritmo, teriam perdido a virtude de lugares de memória” (p. 23).
De qualquer forma, ainda hoje lá estão nossos homens-memória a personalizar os espaços que
lhe foram dedicados, indiferentes a quem lhes desconhece a história, alheios às especulações dos
historiadores ansiosos em encontrar inspiração para suas pesquisas. Fernando de Azevedo com seu
auditório, Lourenço Filho na antiga sala da Congregação, Venâncio Filho e sua fotografia perdida
entre tantos outros diretores e interventores que
passaram pela instituição e Anísio Teixeira,
emprestando seu nome ao Pavilhão da Escola Primária, inaugurado somente na década de 1960.
Caberá aos historiadores a tarefa de revisar essa história, olhando-a sob diversos prismas, conferindolhe novos matizes, numa tentativa sincera de compreendê-la, pois como nos adverte Jacques Le Goff
(1996 , p. 31) “os fatos são, por vezes, menos sagrados do que se pensa”.
28
Homenagem a Fernando de Azevedo. In Arquivos do Instituto de Educação, dezembro de 1945, p. 94
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