E D I T O R I A L Caros amigos, Pode-se cogitar sustentabilidade planetária sem segurança alimentar? Até quando os bem aquinhoados continuarão a ignorar o atual contingente de 1.020 bilhão de famintos e desnutridos? O que fazer para acabar com os milhões de toneladas de alimentos perdidos e/ou desperdiçados todos os anos – tanto nos países ricos quanto nos em desenvolvimento e nos pobres? Poderá o engenho humano suplantar o desafio de produzir mais 70% de alimentos para o sustento dos 9,1 bilhões de habitantes do planeta em 2050? O mosaico de artigos desta edição analisa a questão segurança alimentar e oferece subsídios para a tomada de posição sobre tema tão atual e vital. A atual crise alimentar não teria razão de ser se todos pudessem comprar sua ração diária de sustento calórico. Afinal, a atividade agrícola mundial produz alimentos (cereais, frutas, legumes, verduras, carne, peixe, laticínios) em volume mais do que suficiente para o total de bocas a alimentar. Por que, então, tantos famintos e subnutridos? Fome e subnutrição são crias do atual modelo de desenvolvimento via especulação financeira, eventos climáticos extremos (efeitos do aquecimento global), redução dos estoques de cereais destinados ao consumo humano, perdas e desperdícios de alimento desde os sítios de produção aos de consumo, expansão dos agrocombustíveis que competem com a agricultura de alimentos e aumento do custo dos derivados de petróleo. Terá a governança global pulso e disposição para exorcizar esses “mensageiros do apocalipse”? E o que dizer do atual apetite mundial pela carne bovina, cujo consumo crescente responde pela derrubada de florestas para criação de pastagens, pelo aumento das emissões de gases de efeito estufa (dióxido de carbono e metano) e pelo desastroso desvio de cereais da mesa humana para a ração animal? Segurança alimentar só existe quando todos têm acesso físico e econômico a alimento nutritivo e em quantidade suficiente para suprir as exigências dietéticas diárias, satisfazer as preferências alimentares e garantir uma existência ativa e saudável. Embora esse objetivo seja exequível, o futuro da segurança alimentar, como apontam os autores selecionados nesta edição, corre no fio da incerteza. Confira como os atuais desvios de rota podem ser equacionados através do consenso político global. E faça a sua parte. Helio Carneiro Editor A revista Cidadania & Meio Ambiente é uma publicação da Câmara de Cultura Telefaxes (21)2432-8961• (21)2487-4128 [email protected] www w.. c a m a r a d e c u l t u r a . o r g Diretora Editor Subeditor Regina Lima [email protected] Hélio Carneiro [email protected] Henrique Cortez [email protected] P r o j e t o Lucia H. Carneiro Gráfico [email protected] Mariana Simões Revisão [email protected] Colaboraram nesta edição Débora Carvalho Ed Miliband Eric Aplyn Jacques Diouf José Eli da Veiga Márcia Pimenta Paul Singer UNEP Verónica Calderón Visite o portal EcoDebate [Cidadania & Meio Ambiente] www w.. e c o d e b a t e . c o m . b r Uma ferramenta de incentivo ao conhecimento e à reflexão através de notícias, informações, artigos de opinião e artigos técnicos, sempre discutindo cidadania e meio ambiente, de forma transversal e analítica. A Revista Cidadania & Meio Ambiente não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos em matérias e artigos assinados. Editada e impressa no Brasil. Nº 23 – 2009 - ANO IV Capa: Refugiado eritreu no campo sudanês de Khashm el Girba Foto: Daveblume 6 A crise alimentar ambiental A crise de alimentos de 1998 fez disparar o preço de algumas commodities em 50 a 200%, projetando 110 milhões de indivíduos na pobreza e aumentando em 44 milhões o contingente de desnutridos. Conheça as causas e as soluções para este problema global. Por UNEP 12 Alimentos para o futuro 14 O Brasil e o desperdício de alimentos 20 Assim no mar como na Terra 23 O limite ecológico do mundo: onde vamos parar? 28 Transgênicos: poluição genética 30 Já somos demais? 32 Copenhage: o ponto de virada pra o clima 34 Os vetores da descarbonização Se não forem tomadas as decisões políticas e estratégicas capazes de assegurar a todos os habitantes do planeta alimento suficiente hoje e amanhã, nos arriscamos a ter a dispensa mundial perigosamente vazia no futuro imediato e crise humanitária sem precedente. Por Jacques Diouf Gigante do agronegócio e grande exportador de grãos, nosso país ocupa o décimo lugar entre as nações que precisam equacionar um problema básico de segurança alimentar: o desperdício de alimentos ao longo das cadeias produtiva e consumidora. Por Débora Carvalho A sobrepesca, a pesca acidental, a poluição das águas costeiras e oceânicas, as mudanças climáticas e a fragilidade das regulamentações internacionais para o setor pesqueiro anunciam o colapso da vida marinha e ameaçam a sobrevivência de milhões de indivíduos. Por Márcia Pimenta A sustentabilidade planetária depende da resolução das crises energética e alimentar: menos transporte devorador de energias fósseis, menos consumo de carne bovina, melhor distribuição dos alimentos e adeus ao esbanjamento consumista dos recursos terrestres. Por Paul Singer As consequências imprevisíveis da dispersão de organismos vegetais geneticamente modificadas (OGM) na natureza, na saúde humana, na economia e nos serviços dos ecossistemas já se manifestam em todo o mundo. Confira o pesadelo que apenas engatinha. Por Eric Aplyn O mundo terá 7 bilhões de habitantes em 2012, e 9,1 bilhão em 2050. Haverá espaço suficiente e recursos para garantir sobrevivência e bem-estar à toda humanidade no atual modelo econômico gerador das crises climática, alimentar e energética. Por Verónica Calderón Para o ministro de Energia e Mudanças Climáticas do Reino Unido, a COP 15 não é apenas mais uma negociação internacional. É o momento de se fazer a escolha que garanta às próximas gerações uma Terra capaz de se regenerar e se sustentar. Por Ed Miliband Vital para a mitigação das mudanças e das catástrofes climáticas, o rumo da descarbonização global será decidido pelas vias que forem abertas para os países do Segundo Mundo não ficarem na dependência de perversas transferências de tecnologia. Por José Eli da Veiga t tis ar ing hik Refugiados ambientais de Darfur - Hdptcar SEGURANÇAALIMENTAR A crise alimentar ambiental por UNEP O aumento dos preços dos alimentos nos últimos anos, após um século de preços baixos, foi o mais marcante do último século em sua magnitude, duração e na quantidade de commodities cujos preços encareceram. A crise conseqüente fez subir o custo de algumas commodities em 50 a 200%, jogando110 milhões de indivíduos na pobreza e aumentando em 44 milhões o contingente de desnutridos. O aumento no preço dos alimentos resultou em impactos dramáticos no cotidiano, com a escalada dos índices de mortalidade infantil, de subnutridos e dos que vivem na pobreza e gastam de 70 a 80% da renda diária em comida. As principais causas da atual crise alimentar são os efeitos combinados da especulação nos estoques de alimentos, dos eventos climáticos extremos, do baixo estoque de cereais, do aumento da cultura de agrocombustíveis que compete com a agricultura alimentar e os altos preços do petróleo. Embora os preços tenham sensivelmente baixado desde o pico de julho de 2008, ainda são, para muitas commodities vitais, mais elevados do que os praticados em 2004. E as tensões sobre oferta e demanda pouco mudaram nos últimos meses desde que os preços atingiram o clímax. 6 A falta de investimentos no desenvolvimento do setor agrícola teve papel crucial neste nivelamento da produtividade. É incerto que os aumentos de produtividade possam ser alcançados para manter o ritmo crescente na demanda por alimentos. Além disso, as atuais projeções do imprescindível aumento de 50% na produção de alimentos para sustentar a demanda até 2050 não levaram em conta as perdas de produtividade e de solo resultantes da degradação ambiental. O meio ambiente natural é a base da produção alimentar através da água, dos nutrientes, dos solos, do clima, das condições atmosféricas e dos insetos polinizadores e controladores de pragas. A degradação do solo, a expansão urbana e a conversão das culturas alimentares e das terras agrícolas em culturas não alimentares – caso da agricultura de biocombustíveis – podem reduzir as áreas produtoras de alimento em 8 a 20% por volta de 2050, caso não ocorram outros meios de compensação. Além disso, as mudanças climáticas começarão a se manifestar de forma crescente em 2050, podendo levar ao derretimento de vastas porções das geleiras do Himalaia, à alteração dos padrões das monções, e provocando mais inundações e secas sazonais nas terras agrícolas irrigadas da Ásia, que respondem por 25% da produção mundial de cereais. Os efeitos combinados das mudanças climáticas, degradação do solo, perdas de colheita, escassez de água e infestações por pragas podem levar a produtividade projeta- Publick16 A demanda por alimento continuará a aumentar até 2050 como resultado do crescimento demográfico, que incorporará mais 2,7 bilhões de indivíduos, e do maior consumo de carne. A produção de alimentos em escala mundial também aumentou substancialmente no último século como resultado dos crescentes aumentos de produtividade devido à irrigação,ao uso de fertilizantes e também pela expansão das terras agrícolas, embora se tenha dado pouca atenção à eficiência energética alimentar. No entanto, na última década, a produtividade dos cereais quase se estabilizou, declinando no setor pesqueiro. Para manter em 2050 a atual proporção dietética de pescado, a produção do setor aquacultura exigirá um aumento da ordem de 56%, além de novas alternativas para garantir que os estoques naturais de peixe possam alimentar a aquacultura. crise aumentou “oApreço de algumas commodities em 50 a 200%, projetando 110 milhões de indivíduos na pobreza e aumentando em 44 milhões o contingente de desnutridos. ” da para a demanda de 2050 ser mais baixa em 5 a 25%. Os preços do petróleo majorados podem elevar o custo dos fertilizantes e diminuir a produtividade mais adiante. Caso as perdas de produtividade e de área agrícola sejam apenas parcialmente compensadas, a produção de alimentos poderá se tornar até 25% menor do que a demanda em 2050. O que exigirá novas estratégias para se aumentar o aprovisionamento de alimentos. Em consequência, poderão ocorrer duas reações principais. A primeira: o aumento de custo dos alimentos resultará em subnutridos e mal-nutridos adicionais e, também, em investimentos mais altos no setor agrícola para compensar (em parte) as reduções de produtividade. A outra reação pode ser uma adicional expansão agrícola às custas de novas terras e da biodiversidade. A compensação convencional por simples expansão das terras agricultáveis em áreas de baixa produtividade alimentadas por chuva resultaria em perda acelerada de floresta, estepe e outros ecossistemas naturais, com os subseqüentes custos para a biodiversidade, perda adicional dos serviços de ecossistema e mudanças climáticas aceleradas. Mais de 80% de todas as aves e mamíferos em risco de extinção são ameaçados pelo uso insustentável do solo e pela expansão agrícola. A intensificação agrícola na Europa é a principal causa do declínio de quase 50% de aves nas terras cultivadas da região nas últimas três décadas. Levando em conta esses efeitos, calcula-se que o preço mundial dos alimentos ficará de 30 a 50% mais alto nas próximas décadas, e com maior volatilidade. Não se pode precisar até que ponto os agricultores dos países em desenvolvimento reagirão aos efeitos dos preços, às mudanças em produtividade e à disponibilidade de terra cultivável. Boa parte dos pequenos agricultores mundiais, particularmente na Ásia central e na África, sofre as consequências da falta de acesso a mercados e do alto custo de insumos como fertilizantes e sementes. A carência de infra-estrutura, de investimentos, de instituições confiáveis (por exemplo, para fornecimento de água) e a parca disponibilidade de financiamento ao pequeno produtor tornariam mais difícil o aumento da produção de alimentos nessas regiões mais necessitadas. Além disso, o comércio e a urbanização afetam as preferências do consumidor nos países em desenvolvimento. A rápida diversificação da dieta urbana não pode ser acompanhada pela cadeia produtiva alimentar tradicional no interior de muitos países em desenvolvimento. Em consequência, pode ficar mais fácil e menos oneroso importar alimentos para satisfazer a demanda por alimento diversificado do que comprá-lo em fornecedores domésticos. A crescente diferenciação regional em produção e demanda conduzirá muitos países a uma maior dependência da importação. Ao mesmo tempo, as mudanças climáticas poderiam aumentar a variabilidade na produção anual, levando futuramente a uma maior volatilidade de preço e ao subseqüente risco especulativo. Sem a intervenção da instância política, os efeitos combinados da redução de produção, maior volatilidade de preços e alta vulnerabilidade às mudanças climáticas, particularmente na África, poderiam resultar em aumento significativo do Cidadania&MeioAmbiente 7 Não obstante, ao invés de focar somente no aumento da produção, a segurança alimentar pode ser ampliada pelo aumento da oferta, via otimização da eficiência energética alimentar. Eficiência energética alimentar vem a ser a habilidade em minimizar a perda energética na cadeia alimentar – da colheita e processamento ao consumo e reciclagem. Ao otimizar essa cadeia, a oferta de alimentos pode ser ampliada com menor dano ao meio ambiente, fato semelhante ao que ocorre no setor de geração de energia. Isso pode ser conseguido, em primeira instância, com o desenvolvimento de alternativas para o cereal utilizado em ração animal – via reciclagem das sobras e dos descartes da indústria pesqueira. Esse cereal poupado poderia sustentar a demanda energética do crescimento populacional projetado em mais de 3 bilhões de indivíduos, e gerar um acréscimo de 50% na aquacultura. Em segunda instância, a mitigação das mudanças climáticas reduziria seus impactos, particularmente nos recursos de água do Himalaia depois de 2050. Além disso, uma significativa guinada para a produção mais ecológica, com reversão da degradação do solo, ajudaria a limitar a expansão de espécies invasoras, a conservar a biodiversidade e os serviços de ecossistema, e a proteger a plataforma produtiva alimentar do planeta. AUMENTAR A OFERTA DE ALIMENTO PELA REDUÇÃO DO DESPERDÍCIO Seria aconselhável investigar os processos de produção, de distribuição e os padrões de consumo para determinar a eficiência energética alimentar e a oferta potencial de alimento, e não simplesmente aumentar a produção alimentícia sem maior critério. Em muitos países, os esforços para produzir alimento da mais alta qualidade para a comercialização frequentemente resultam inúteis simplesmente porque o alimento é jogado fora. Essa realidade atinge 30 a 40% dos alimentos produzidos, industrializados, transportados, comercializados e levados para casa pelos consumidores do Reino Unido e dos EUA (Vidal, 2005). O atendimento da futura demanda global por alimento deve potencializar a eficientização das atuais áreas de produção e de processos, converter o alimento desperdiçado em ração animal e restaurar os ecossistemas que sustentam a geração de nosso alimento. 8 MUDANÇAS HISTÓRICAS E PROJETADAS NA COMPOSIÇÃO DA DIETA HUMANA E NO VALOR NUTRICIONAL O PAPEL DA MUDANÇA NA DIETA A produção global de cereais (inclusive trigo, arroz e milho) desempenha papel crucial no aprovisionamento mundial de alimentos, respondendo por aproximadamente 50% do consumo calórico humano. Qualquer alteração na produção ou na utilização de cereais para o consumo não humano terá efeito imediato no consumo calórico de grande parcela da população mundial. Como quase metade da produção cerealífera mundial é destinada à ração animal, o proporcional de carne na dieta humana influencia de modo preponderante a demanda global por alimentos (Keyzer et al., 2005). Como as projeções indicam um aumento no consumo de carne de 37,4 kg/pessoa/ano (em 2000) para mais de 52 kg/pessoa/ano, em 2050, (FAO, 2006), a demanda de cereais para a produção mais intensiva de carne pode substancialmente aumentar em mais de 50% do total da produção cerealífera (Keyzer et al., 2005). (Fonte: FAO, 2008; FAOSTAT, 2009). PERDAS DE ALIMENTOS para diferentes commodities Nos países em desenvolvimento, as perdas de alimento no campo (entre o plantio e a colheita) podem alcançar 20–40% da colheita potencial em consequência das pragas e doenças (Kader, 2005). As perdas pós-colheita variam grandemente dependendo das commodities , das regiões de produção e das estações do ano. Nos EUA, as perdas com frutas frescas e legumes são estimadas entre 2% a 23%, segundo a commodity, com uma média geral de perda de 12% entre os pontos de produção e de consumo. Fonte: Kantor et al., 1999 contingente de indivíduos desnutridos – para além dos atuais 963 milhões. O desperdício de alimento não se resume apenas ao uso ineficiente dos serviços de ecossistema e dos recursos em combustíveis fósseis usados em sua produção, mas igualmente contribui significativamente para o efeito estufa ao chegar aos aterros sanitários. Nos Estados Unidos, o desperdício orgânico é o segundo maior componente dos aterros sanitários – as maiores fontes de emissões de metano. No Reino Unido, os processos digestivos dos animais e seus excrementos liberam perto de 40% do total das emissões de metano (Bloom, 2007). Por isso, a contribuição da agricultura para a mudança climática deve ser considerada na questão do aumento da produção alimentícia global. Deve-se encorajar a mudança na percepção do desperdício de algo que precisa ser descartado para o de commodity com valor energético renovável para o setor agrícola e para a indústria alimentícia. Os governos podem prover sustentação e implementação à política ambiental através do despertar da conscientização, da inovação e da transferência tecnológica, da integração com os agricultores, e de políticas de apoio que façam avançar a administração e a reciclagem dos rejeitos da agricultura e da produção de alimentos em ração animal. Também podem promover políticas que levem em conta o valor de serviços de ecossistema para assegurar que as exigências ecológicas também sejam brindadas, tal como o volume de água nas reservas naturais para manter seu próprio funcionamento. ■ Amypalko Perda de alimento também é desperdício de água, já que grandes volumes do líquido são usados na produção do alimento perdido. Indubitavelmente, as perdas na agricultura e na indústria alimentícia são, nos países em desenvolvimento, particularmente altas entre o campo e a comercialização, sendo o desperdício (por exemplo, ingestão calórica em excesso e obesidade) mais alto nas nações mais industrializadas. A perda e/ ou a redução em outros serviços de ecossistema primários (por exemplo, estrutura do solo e fertilidade; biodiversidade, em particular as espécies polinizadoras; e a diversidade genética para futuros aprimoramentos agrícolas) e a produção de gases de efeito estufa (especialmente metano), pela decomposição do alimento descartado, são importantes para a sustentabilidade agrícola mundial a longo prazo. QUANTOS INDIVÍDUOS PODEM SER ALIMENTADOS COM OS CEREAIS DESTINADOS À RAÇÃO ANIMAL? ❚ Até 2050, 1.573 milhões de toneladas de cereais serão desviados da boca da humanidade (FAO, 2006a), dos quais calcula-se que pelo menos 1,45 milhão de toneladas será destinada à produção de ração animal. Estima-se, por baixo, que cada tonelada de cereal contenha 3 milhões de kcal. Isto quer dizer que a destinação anual de cereais para uso não alimentar humano representa 4.350 bilhões kcal. Se assumirmos que a necessidade de calorias diárias é de 3.000 kcal, aquele montante se traduzirá em aproximadamente 1 milhão de kcal/ano necessário por pessoa. ❚ A partir da perspectiva calórica, a não destinação alimentar de cereais é suficiente para cobrir as necessidades calóricas de aproximadamente 4,35 bilhões de indivíduos. Seria mais correto ajustarmos a realidade ao valor energético dos produtos de origem animal. Assumindo que todo cereal não consumido pela humanidade destina-se à produção de alimentos de origem animal; assumindo que são necessários 3 kg de cereais para produzir 1 kg de produto animal (FAO, 2006b); e que cada quilograma de produto animal apresenta metade das calorias contidas em um quilograma de cereais (mais ou menos 1,500 kcal por quilo de carne), isto significa que cada quilograma de cereal usado em ração animal renderá apenas 500 kcal para o consumo humano. ❚ Uma tonelada de cereal destinado à alimentação animal resultará em 0,5 milhão de kcal. Assim, a produção total de calorias a partir de grãos será de 787 bilhões kcal. Subtraindo esse total dos 4.350 bilhões do valor calórico dos grãos destinados à ração animal, temos 3.563 bilhões de calorias. Assim, levando em consideração o valor energético da carne produzida, a perda em calorias dos cereais destinados à alimentação ao invés do consumo humano representa a necessidade anual de calorias para mais de 3,5 bilhões de indivíduos. FONTES ALTERNATIVAS DE ALIMENTO ❚ A escolha do alimento – onde ele existe – vem a ser um complexo pool de tradições, religião, cultura, disponibilidade e possibilidade financeira. Embora alguns desses aspectos também se apliquem à pecuária e à aquacultura, a capacidade humana em alterar a fonte de alimento destinada ao gado e aos peixes é provavelmente maior do que a da mudança de hábitos alimentares pelos seres humanos, que não são tão facilmente controláveis. ❚ Como os produtos à base de cereal são crescentemente usados na ração bovina – pelo menos 35-40% de todo o cereal produzido em 2008, com projeção de alcançar quase 45-50% antes de 2050 –, se o consumo de carne aumentar (FAO, 2003; 2006) será vital encontrar fontes alternativas de alimento para substituir os cereais na ração de ruminantes e animais monogástricos. Outras fontes de vegetais fibrosos, como palha, folhas e cascas de nozes estão disponíveis em grandes quantidades. Encontrar meios de alimentar o rebanho mundial constitui um desafio fundamental (Keyzer et al., 2005). Cidadania&MeioAmbiente 9 IFRC Pecas cl Mr. Kris n Lo do n PERDA E DESPERDÍCIO DE ALIMENTOS FATOS E DADOS ESTADOS UNIDOS Nos Estados Unidos, 30% de todos os alimentos – no valor de US$48.3 bilhão (32.5 bilhões de euros) – são jogados fora a cada ano. Estima-se, igualmente, que metade da água utilizada para produzir todo aquele alimento também seja desperdiçada, já que a agricultura é a maior consumidora dentre as atividades produtivas. As perdas no setor de cultivo alcançam aproximadamente 15 a 35% em função da atividade. O setor de varejo apresenta, comparativamente, altas taxas de perda – por volta de 26% –, enquanto os supermercados surpreendentemente só desperdiçam aproximadamente 1%. Ao todo, as perdas chegam ao redor de US$90 bilhões a US$100 bilhões por ano (Jones, 2004, citado em Lundqvist et alt., 2008). ÁFRICA Em muitos países africanos, as perdas de cereais alimentícios no pós-colheita são estimadas em 25% do total colhido. Para algumas culturas menos resistentes que os cereais – frutos, verduras, legumes e tubérculos –, as perdas no pós-colheita podem alcançar 50% (Voices Newsletter, 2006). Na África Oriental, as perdas econômicas no setor laticínios devido ao desperdício pode alcançar uma média de até US$90 milhões/ ano (FAO, 2004). No Quênia, a cada ano, por volta de 95 milhões de litros de leite, no valor de US$22,4 milhões, são perdidos. As perdas acumuladas na Tanzânia atingem aproximadamente 59,5 milhões de litros de leite por ano, acima de 16% da produção leiteira total na estação seca e 25% na estação de chuvas. Em Uganda, aproximadamente 27% de todo o leite produzido são perdidos, o equivalente a US$23 milhões/ano (FAO, 2004). de rúpias em produção agrícola são desperdiçados por ano na Índia. (Rediff News, 2007, citado em Lundqvist et al., 2008). EUROPA Os domicílios do Reino Unido desperdiçam um volume estimado de 6,7 milhões de toneladas de comida todos os anos, algo em torno de um terço dos 21,7 milhões de toneladas compradas. Isto significa que aproximadamente 32% de todos os alimentos adquiridos por ano não são ingeridos, sdos quais 5,9 milhões de toneladas ou 88% são atualmente recolhidos pelas autoridades locais. A maior parte desse desperdício (4,1 milhões de toneladas ou 61%) poderia ser evitada e os alimentos consumidos se corretamente manipulados (WRAP, 2008; Knight and Davis, 2007). AUSTRÁLIA Uma pesquisa realizada pelo Australia Institute em mais de 1.600 domicílios australianos, em 2004, concluiu que no país $10,5 bilhões são gastos em artigos nunca usados ou jogados fora. O que perfaz mais do que $5,000/per capita/ano. IMPACTOS AMBIENTAIS DO DESPERDÍCIO DE ALIMENTOS ÁSIA O impacto do desperdício de alimentos não é apenas financeiro. Em termos ambientais ele conduz a: ❚ desperdício de substâncias químicas, como fertilizantes e pesticidas; ❚ mais combustível usado em transporte; e ❚ mais comida apodrecida, o que gera mais metano – um dos mais prejudiciais gases de efeito estufa (GEE) a contribuir para as mudanças climáticas. O metano é 23 vezes mais potente do que CO2 como gás de efeito estufa. As perdas com cereais e sementes oleaginosas são mais baixas, aproximadamente 10 a 12%, segundo a Food Corporation of Índia. Cerca de 23 milhões de toneladas de cereais alimentícios, 12 milhões de toneladas de frutas e 21 milhões de toneladas de legumes são perdidos a cada ano, com um valor total calculado de 240 bilhões de rúpias. Uma recente estimativa do Ministério de Processamento Alimentar indica que 580 bilhões A imensa quantidade de alimentos que vai para aterros sanitários contribui significativamente para o aquecimento global. O WRAP (Waste and Resource Action Program) estima que se o alimento não fosse descartado daquela forma, o nível de abatimento de gases de efeito estufa equivaleria à retirada de um em cada cinco automóveis das estradas do Reino Unido (WRAP, 2007). NOTA DO EDITOR Os textos deste artigo são excertos do relatório The Environmental Food Crisis, cuja leitura aconselhamos para a compreensão do estado atual da segurança alimentar no planeta. O texto integral pode ser baixado, em formato .pdf, no site http://www.grida.no/publications/rr/food-crisis Nellemann, C., MacDevette, M., Manders, T., Eickhout, B., Svihus, B., Prins, A. G., Kaltenborn, B. P. (Eds). February 2009. The environmental food crisis – The environment’s role in averting future food crises. A UNEP rapid response assessment. United Nations Environment Programme, GRID-Arendal, www.grida.no 10 SETE OPÇÕES PARA AUMENTAR A SEGURANÇA ALIMENTAR A implementação da eficiência energética garante o atalho para o aumento significativo do aprovisonamento alimentar sem comprometer a sustentabilidade ambiental. Sete opções são propostas para curto, médio e longo prazo. OPÇÕES COM EFEITOS A CURTO PRAZO 1 PARA MINIMIZAR O RISCO DE PREÇOS ALTAMENTE VOLÁTEIS, DEVE-SE FIXAR UM PREÇO REGULADOR DAS COMMODITIES E CRIAR MAIORES ESTOQUES DE CEREAL, MECANISMOS QUE AGIRIAM COMO PÁRA-CHOQUE AOS MERCADOS DAS COMMODITIES DE ALIMENTOS E AOS SUBSEQÜENTES RISCOS DA ESPECULAÇÃO NESSES MERCADOS. Isso implica a reorganização da infra-estrutura do mercado de alimentos e das instituições com o objetivo de regular o custo dos alimentos e prover redes de segurança alimentar capazes de aliviar os impactos nos custos e em sua escassez, através de transferência direta e indireta, tal como um fundo global capaz de garantir a sustentação ao microcrédito e, assim, dar fôlego à produtividade do pequeno agricultor. 2 ENCORAJAR A ELIMINAÇÃO DOS SUBSÍDIOS E DOS PROPORCIONAIS DE MISTURA AOS BIOCOMBUSTÍVEIS DE PRIMEIRA GERAÇÃO, O QUE PROMOVERIA UMA GUINADA PARA A PRODUÇÃO DE BIOCOMBUSTÍVEIS COM BASE EM DESCARTES (CASO NÃO COMPITA COM A PRODUÇÃO DE RAÇÃO ANIMAL), O QUE EVITARIA O DESVIO DAS CULTURAS ALIMENTARES PARA A DE BIOCOMBUSTÍVEIS. Isso inclui a eliminação de subsídios para as commodities agrícolas e para os insumos que exacerbam o desenvolvimento da crise alimentar, o investimento na implementação de sistemas alimentares sustentáveis e a eficiência energética alimentar. OPÇÕES COM EFEITOS A MÉDIO PRAZO 3 REDUZIR O USO DE CEREAIS E DE PESCADO NA RAÇÃO ANIMAL E DESENVOLVER ALTERNATIVAS PARA A ALIMENTAÇÃO DE ANIMAIS E DO PESCADO PRODUZIDO NA AQUACULTURA. 4 APOIAR OS AGRICULTORES NO DESENVOLVIMENTO DE SISTEMAS DE ECOAGRICULTURA DIVERSIFICADA E CONSISTENTE CAPAZES DE GARANTIR OS SERVIÇOS CRÍTICOS DE ECOSSISTEMA (SUPRIMENTO E REGULARIZAÇÃO DA ÁGUA, HABITAT PARA PLANTAS E ANIMAIS SELVAGENS, DIVERSIDADE, POLINIZAÇÃO, CONTROLE DE PRAGAS, REGULAÇÃO CLIMÁTICA), BEM COMO ALIMENTO ADEQUADO PARA SATISFAZER AS NECESSIDADES LOCAIS E DO CONSUMO. Isso pode seja conseguido numa economia “verde” com o aumento da eficiência energética alimentar através da utilização das sobras da indústria pesqueira, do recolhimento e da reciclagem das perdas e sobras do pós-colheita, e do desenvolvimento de novas tecnologias que aumentariam a eficiência energética alimentar de 30 a 50% aos níveis da produtividade atual. Também implica, quando possível, na realocação para o consumo humano do pescado atualmente direcionado à aquacultura. Isso inclui a administração do regime pluviométrico e a rotação de culturas para minimizar a dependência em insumos (fertilizantes industriais, defensivos e irrigação por aspersão), e o desenvolvimento, a implementação e o apoio a tecnologias ecológicas para os pequenos agricultores. 5 A AMPLIAÇÃO DO COMÉRCIO E O MAIOR ACESSO AO MERCADO PODEM SER ALCANÇADOS ATRAVÉS DO APRIMORAMENTO DA INFRA-ESTRUTURA E DA REDUÇÃO DAS BARREIRAS COMERCIAIS. Porém, isto não implica em mercado livre, já que a regulação dos preços e os subsídios governamentais constituem cruciais redes de segurança e de investimentos para a produção. A ampliação do acesso ao mercado também deve brindar a redução dos conflitos armados e a corrupção que impactam gravemente o comércio e a segurança alimentar. OPÇÕES COM EFEITOS A LONGO PRAZO 6 7 LIMITAR O AQUECIMENTO GLOBAL ATRAVÉS DA PROMOÇÃO DE SISTEMAS DE PRODUÇÃO AGRÍCOLA “AMIGA DO CLIMA” E DE POLÍTICAS DE USO DO SOLO EM ESCALA CAPAZ DE AJUDAR A MITIGAR AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS. CONSCIENTIZAR PARA AS PRESSÕES DO CRESCENTE AUMENTO DEMOGRÁFICO E DOS PADRÕES DE CONSUMO EM UM ECOSSISTEMA FUNCIONAL SUSTENTÁVEL. Cidadania&MeioAmbiente 11 SEGURANÇAALIMENTAR Foto:Daveblume Alimentos para o futuro A menos que sejam tomadas – já – as decisões políticas e estratégicas que assegurem a todos alimento suficiente hoje e amanhã, nos arriscamos a ter a dispensa mundial perigosamente vazia no futuro imediato. Confira o cenário preocupante que se delineia. por Jacques Diouf N as próximas quatro décadas, a população mundial crescerá 2,3 bilhões de pessoas e ficará mais rica. Satisfazer a demanda dos 9,1 bilhões de pessoas no planeta em 2050 exigirá produzir 70% mais alimentos do que hoje. Portanto, a menos que tomemos, agora, as decisões adequadas, nos arriscamos a que, amanhã, a dispensa mundial esteja perigosamente vazia. Sobretudo porque, nos próximos anos, o sistema alimentar mundial deverá enfrentar o crescente desafio da mudança climática – que pode reduzir a produção agrícola potencial em até 21% no conjunto dos países em desenvolvimento –, bem como pragas e doenças transfronteiriças mais graves de animais e plantas. 12 Ao mesmo tempo, haverá uma redução da mão-de-obra agrícola – cerca de 600 milhões de pessoas trocarão o campo pela cidade – e uma maior competição pelo uso da terra e dos recursos naturais. Nossa resposta a esses desafios determinará como poderemos alimentar o planeta no futuro. Igualmente importante é garantir que as pessoas estejam bem alimentadas hoje. Isso supõe ajudar 1,020 bilhão de pessoas subnutridas, atuando de forma decidida para erradicar a fome completa e rapidamente. Graças à Revolução Verde do século passado e dedicando 17% da ajuda internacional ao desenvolvimento a projetos agrícolas e rurais, o mundo pôde evitar a fome maciça na Ásia e América Latina nos anos 70. Ao enfrentar desafio semelhante, hoje, o caminho a seguir precisa necessariamente ser diferente. Além de impulsionar o investimento na agricultura, precisamos usar com mais eficiência a energia, os insumos químicos e os recursos naturais e focar mais nas necessidades das famílias rurais que vivem da agricultura. Nesse sentido, um desafio importante será o da água, já que precisamos ampliar a superfície irrigada usando proporcionalmente menos água. As chaves estão na captação, no armazenamento e em técnicas que melhorem a eficiência do uso da água e mantenham a umidade do solo. Os pequenos agricultores também precisam se capacitar para aprender novos métodos e tecnologias, e isso requer investimentos em educação e em extensão agrária. Muitos desses investimentos virão do setor privado e dos próprios agricultores. Mas para serem atrativos, também se deve dedicar importantes quantidades de recursos públicos à infraestrutura, à educação, à tecnologia e aos sistemas de extensão. Aparte a simples agricultura de subsistência, não faz sentido produzir alimentos a não ser que haja estradas e veículos para levá-los aos mercados, que efetivamente existam mercados e que o produto possa ser armazenado e conservado. No entanto, nem o financiamento nem as colheitas recordes serão capazes de assegurar por si só que todas as pessoas tenham acesso aos alimentos de que precisam. Se pessoas passam fome hoje, não é porque o mundo não produza comida suficiente, mas porque esses alimentos não são produzidos pelos 70% das pessoas pobres que dependem da agricultura e, paradoxalmente, não têm o suficiente para satisfazer suas necessidades básicas de alimentação. Portanto, alimentar o mundo em 2050 requererá também estratégias de redução da pobreza, redes de proteção social para produtores e consumidores e programas de desenvolvimento rural. Será necessário ter uma melhor governança e o estabelecimento de condições socioeconômicas que melhorem o acesso a alimentos. Também é importante uma reforma do sistema de comércio agrícola para que ele seja não só livre, mas também justo. Em 2050, o que comer deixará de ser um problema para muitos que já têm certa idade. Porém, considero que é meu dever, assim como é nosso dever como comunidade global, fazer tudo o que está ao nosso alcance para desterrar o fantasma da fome para sempre e assegurar que nossos filhos e netos possam comer dignamente e desfrutar de uma vida saudável. ■ Foto: FAO News Para produzir mais alimentos e de maior qualidade para uma população mais urbana, mais rica e numerosa, a agricultura torna-se cada vez mais intensiva em capital e em conhecimentos. Portanto, precisamos investir mais em pesquisa e desenvolvimento, porque praticamente todo incremento futuro da produção virá dos aumentos de rendimentos, e não do aumento da área plantada. Jacques Diouf, é diretor-geral da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). Os temas abordados por Diouf direcionaram a pauta da Cúpula Mundial sobre Segurança Alimentar, que reuniu em Roma (16 a 18/11/2009) chefes de Estados e de governo dos 192 Estados-membros da FAO. Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo (18/10/2009) e em www.ecodebte.com.br (19/10/2009). PAÍSES QUE ARRENDAM TERRAS INTERNACIONAIS PARA SUSTENTAR E GARANTIR SUA PRODUÇÃO ALIMENTAR Arrendamentos internacionais de terras agricultáveis Mil hectares Cada quadrícula representa 50 mil ha. Totais abaixo deste limite são representados por uma quadrícula. ❚ O mundo está nitidamente dividido quanto à capacitação do uso da ciência para promover a produtividade agrícola e alcançar a segurança alimentar e reduzir a pobreza e a fome. ❚ Para cada US$100 de produção agrícola, os países desenvolvidos gastam US$2,16 em pesquisa e desenvolvimento agrícola (P&D), enquanto os países em desenvolvimento gastam apenas US$0,55 (IFPRI, 2008). ❚ O total de P&D agrícola investido pelos países em desenvolvimento aumentou de US$3,7 bilhão (1991) para US$4,4 bilhão (2000) – ou seja, 1,6% anualmente (IFPRI, 2008). Tal investimento foi majoritariamente concentrado na Ásia, região onde os investimentos anuais cresceram 3,3%. Hoje, a Ásia responde por 42% do total de P&D agrícola investidos nos países em desenvolvimento (China com 18%; Índia com 10%). ❚ Na África, os investimentos em P&D agrícola recuaram 0,4%/ano. Embora o continente africano seja geograficamente grande, seu investimento em P&D agrícola é de apenas 13%. ❚ A América Latina responde por 33%, e o Brasil responde por 48% dos investimentos realizados na região. Fonte: GRAIN, 2008; Mongabay 2008. Cartógrafo/designer: Hugo Ahlenius, Nordpil. Gráfico publicado em 2009 em The Environmental Food Crisis - The Environment’s Role in Averting Future Food Crises – Link: http://maps.grida.no/go/graphic/an-increasing-numberof-countries-are-leasing-land-abroad-to-sustain-and-secure-their-food-production Cidadania&MeioAmbiente 13 SEGURANÇAALIMENTAR O investimento em tecnologia de ponta nas últimas décadas colocou o Brasil entre os países mais competitivos do agronegócio no mercado internacional, mas não foi suficiente para acabar com um problema básico: o desperdício de alimentos ao longo das cadeias produtiva e de consumo. por Débora Carvalho + Desperdício de alimento: Brasil entre os 10 C om a crise econômica internacional, a estimativa da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) é que, até o final de 2009, a América Latina deve contabilizar 53 milhões de famintos. Ao mesmo tempo, os países da região desperdiçam grandes volumes de alimentos, que seriam suficientes para alimentar toda a população carente. Para a FAO, a redução das perdas é uma solução para o aumento da oferta de comida. As causas primordiais desse prejuízo são maus hábitos de alimentação e o gerenciamento inadequado, desde o plantio até a chegada do produto à mesa do consumidor. 14 O Brasil está entre os 10 países que mais desperdiçam comida no mundo. 35% de toda a produção agrícola vão para o lixo. Isso significa que mais de 10 milhões de toneladas de alimentos poderiam estar na mesa dos 54 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza. Segundo dados do Serviço Social do Comércio (Sesc), R$ 12 bilhões em alimentos são jogados fora diariamente, uma quantidade suficiente para garantir café da manhã, almoço e jantar para 39 milhões de pessoas. O descuido percebido no processo produtivo se repete na casa das pessoas. De acordo com o Instituto Akatu, organização não- governamental dedicada a promover o consumo consciente, uma família brasileira desperdiça, em média, 20% dos alimentos que compra no período de uma semana. Em valores, isso representa US$ 1 bilhão, dinheiro suficiente para alimentar 500 mil famílias. Além das pessoas que poderiam ser alimentadas com o que vai para o lixo, desperdiçar significa prejuízo financeiro. Levantamento da Secretaria de Abastecimento e Agricultura do Estado de São Paulo mostra que todos os alimentos não aproveitados ao longo da cadeia produtiva representam 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, um rombo de R$ 17,25 bilhões de reais no faturamento do setor agropecuário. “ De acordo com um levantamento do governo de São Paulo, o volume de perdas da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), o maior mercado da América Latina, chega a 1% de tudo o que é vendido em um dia, ou seja, mais de 100 toneladas diárias no lixo. Foto: R. Motti Em 2005, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) analisou os índices de perdas do plantio à pré-colheita dos principais grãos cultivados no país, entre 1996 e 2002, tais como arroz, feijão, milho, soja e trigo. Essa pesquisa aponta que a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) estimava perdas de grãos em cerca de 10% da produção, o que correspondia a 9,8 milhões de toneladas, considerando números da safra 2000/2001. O governo promete para 2010 um novo estudo do panorama do desperdício na lavoura, o que vai ajudar na formulação de alternativas para resolver o problema. “Já havia um contrato com uma universidade federal para começar o estudo no ano passado, mas o projeto foi postergado por problemas contratuais’, explica o superintendente de Armazenagem e Movimentação de Estoques da Conab, Milton Libardoni. Segundo ele, o governo dispõe de um orçamento de R$ 500 mil para começar o trabalho e está negociando parcerias com 15 universidades em todo o Brasil para uma pesquisa de perdas, que deve ser iniciada em 2010. ” O superintendente da Conab ressalta a necessidade de conhecer o problema para combatê-lo. “As perdas existem, mas estamos usando índices estrangeiros. E o desperdício maior acontece na hora da colheita. Caminhando na roça, é visível a produção perdida’, comenta. Uma alternativa apontada pelo superintendente da Conab – muito comum nos países desenvolvidos – é o financiamento de armazéns nas próprias fazendas. Isso reduziria a manipulação do produto, que passaria a ser transportado apenas uma vez para a indústria de beneficiamento ou para o varejo. “O problema é que isso é muito caro’, afirma Libardoni. Hoje, é preciso levar a produção do campo para a armazenagem e daí para o processamento.” A falta de qualificação e tecnificação no campo foi uma realidade apontada pela pesquisa do IBGE, que avaliou as perdas agrícolas. Segundo o estudo, o prejuízo começa muito antes da perda física, relacionada ao produto que fica pelo caminho antes da comercialização. No plantio, por exemplo, foi verificado que o uso de sementes de baixa qualidade ou a escolha de variedades não recomendadas para as condições de clima da região e a falta de preparo correto do solo podem representar perdas nas lavouras antes e depois do momento de colher os produtos. Os pesquisadores apontaram, inclusive, que é na fase de colheita que ocorrem as maiores perdas e os motivos são diversos. Um exemplo é a falta de regulação, operação e manutenção adequadas das colheitadeiras ou equívocos na identificação do grau de maturação do produto. A partir dessa pesquisa, é possível observar que questões colocadas como desafios à mitigação desse desperdício ainda hoje são citadas como entraves a serem resolvidos. “Um problema também seria treinar o pessoal dos armazéns e os operadores de colheitadeiras para reduzir prejuízos”, sugere Libardoni. As dificuldades se repetem na pós-colheita. Falta infraestrutura na rede de armazenagem e no transporte da produção brasileira. Nessa fase, os estragos podem ocorrer tanto do ponto de vista físico, como da qualidade do produto. Os pesquisadores do IBGE identificaram que os danos mais expressivos se dão nas commodities, com perdas ao longo do transporte até a chegada aos portos. Segundo o Ministério da Agricultura, em 2008, o Brasil arrecadou US$ 71,9 bilhões com as exportações de produtos agropecuários. Para o consultor em Logística e Infraestrutura da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Luiz Antônio Fayet, os debates sobre o desperdício revelam a ponta de um iceberg, formado pelos fatores que minam a competitividade do agronegócio brasileiro. Ele explica que as pessoas se impressionam ao ver os grãos à beira das estradas, caídos dos caminhões, mas isso seria insignificante se comparado às perdas financeiras no carregamento de estoques. “Não existe perda zero, o prejuízo físico tem uma variação de cerca de 5%. Mas o custo e os problemas gerados pela falta de infraestrutura acarretam prejuízos muito maiores’, afirma Fayet. Segundo o IBGE, a estimativa é de que 67% das cargas brasileiras sejam deslocadas pelo modal rodoviário, o menos vantajoso para longas distâncias. Conforme estudo de viabilidade econômica dos transportes Cidadania&MeioAmbiente 15 de cargas, o modal rodoviário é o mais adequado para as distâncias inferiores a 300 km, enquanto o ferroviário o é para distâncias entre 300 km e 500 km; e o fluvial para distâncias acima de 500 km. Esse entrave se agravou ainda mais com a mudança na geografia de produção que passou das regiões Sul e Sudeste para o Centro-Norte do país. Um exemplo é o valor pago pelo frete em relação ao que o agricultor recebe pelo produto. Segundo Fayet, em 2007 um produtor de soja do município de Sorriso, Mato Grosso, recebia R$ 23 pela saca e gastava R$ 12 para levála até o porto, onde embarcaria a carga para o mercado internacional. Ou seja, o gasto com o escoamento representava mais de 50% do valor recebido pelo produtor. “Além do grão que é desperdiçado, o Brasil fica impedido de crescer e de se tornar ainda mais competitivo”, comenta. Foto: Milton Jung / CBNSP o consumo anual de vegetais é de 35 quilos por habitante. No entanto, o desperdício chega a 37 quilos por habitante/ano. “ Do total de desperdício no país, ■ 10% ocorrem na colheita; ■ 50% no manuseio e transporte dos alimentos; ■ 30% nas centrais de abastecimento; e ■ 10% ficam diluídos entre supermercados e consumidores. Segundo o pesquisador da Embrapa, Antônio Gomes, o fim desse problema tem vantagens em diferentes aspectos. “Se o Brasil reduzisse as perdas, poderia oferecer mais produtos para o mercado interno, barateando os preços, e também exportar mais, sem a necessidade de investimentos adicionais na abertura de novas fronteiras agrícolas’, argumenta Gomes. Ele afirma que o índice de perdas é maior do que se consegue calcular, basta observar a quantidade de lixo orgânico gerado nas centrais de abastecimento das grandes capitais. R$12 bilhões em alimentos são jogados fora diariamente: o suficiente para garantir café da manhã, almoço e jantar para 39 milhões de brasileiros. No Paraná, governo, iniciativa privada, universidades e entidades ligadas ao agronegócio se juntaram para trabalhar contra o desperdício. Há seis anos são organizados concursos regionais e estaduais para premiar os agricultores que apresentam os menores índices de perdas nas lavouras até a colheita. O extensionista do Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-PR), Luiz Vicentini, explica que o objetivo é estimular produtores e operadores a realizarem com mais cuidado a tarefa da colheita. A meta é chegar o mais próximo possível dos níveis de perdas aceitáveis para cada região, no caso da soja, em média uma saca por hectare. A apuração dos resultados é feita por técnicos da Emater e acadêmicos da Universidade Estadual de Maringá, que percorrem as lavouras antes e depois da colheita, contabilizando e medindo o que foi desperdiçado. Na última edição do prêmio, o ganhador perdeu menos de 5 quilos por hectare. “Mais de 30 prêmios, como carros, motocicletas e máquinas agrícolas são um estímulo para as pessoas cuidarem melhor, ajustarem as máquinas e reduzirem os prejuízos’, diz Vicentini. 16 Ele explica que a iniciativa começou em 1995, quando os organizadores da Festa da Colheita da Soja – tradicional no estado – perceberam que, além da comemoração, poderiam mobilizar os produtores. “É importante pensar nisso, porque desperdiçar significa o lucro líquido do agricultor que vai embora. E a competição tem promovido uma mudança de cultura também nos mais de 200 colhedores que trabalham nas fazendas”, ressalta o técnico. Ele lembra ainda que o concurso paranaense é um exemplo que já atraiu técnicos de outros estados produtores, principalmente do Centro-Oeste, para conhecer e levar a ideia a outros lugares. Mas o caminho do desperdício não se limita ao percurso da colheita até o transporte. Quando se fala em frutas e hortaliças, produtos mais perecíveis, as perdas são ainda maiores e ultrapassam os limites do campo, chegando ao varejo e às cozinhas brasileiras. Um estudo da FAO, de 2004, revela que o Brasil está entre os 10 países que mais jogam comida no lixo, com perda média de 35% da produção agrícola. A Embrapa Agroindústria de Alimentos realizou uma pesquisa focada nesse tipo de produtos e mostrou que o brasileiro joga fora mais alimentos do que, efetivamente, leva à mesa. Nas 10 principais capitais do país, ” De acordo com um levantamento do governo de São Paulo, o volume de perdas da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), o maior mercado da América Latina, chega a 1% de tudo o que é vendido em um dia, ou seja, mais de 100 toneladas diárias no lixo. O pesquisador da Embrapa explica que o problema começa no campo, mas culmina no varejo. Colheita incorreta, transporte inadequado, embalo dos produtos em caixas de madeira são exemplos de práticas que resultam em uma realidade preocupante: muitos produtos que saem do campo para a cidade nem chegam a ser comercializados porque se perdem no caminho. Isso significa que o custo para produzir aquele alimento foi totalmente perdido. “Muitas frutas, como laranja, abacaxi, são transportadas a granel em caminhões, que vão sacudindo na estrada e causando injúrias nos vegetais que nem chegam às prateleiras’. Antônio Gomes lembra que não existe uma cadeia de frio para distribuir esse tipo de produto. Ele argumenta que, em um país de dimensões continentais como o Brasil e com clima tropical intenso durante a maior parte do ano, seria mais adequado que frutas, legumes e verduras saíssem das lavouras direto para o resfriamento. A temperatura precisaria ser mantida em baixos níveis durante o transporte e o período de exposição no varejo, o que não acontece no Brasil. Outro problema apontado pelo pesquisador é a falta de informação dos consumidores. Não se trata apenas de saber aproveitar melhor os produtos na hora de cozinhar, mas sim da necessidade de cuidados também no momento da compra. “É preciso educar o consumidor. Se na hora de escolher o quiabo, você quebra a ponta, ninguém mais vai querer esse produto. Se, ao escolher o tomate, o cliente amassa o vegetal, é mais uma perda”, exemplifica Gomes. Em meio a tantas formas de desperdício, a alta conta gerada pelas perdas não fica diluída ao longo da cadeia. Segundo a Embrapa, agricultor e consumidor são os mais prejudicados. Isso acontece porque o investimento para produzir, manipular e transportar o alimento já foi feito. Antes do produto se perder, a rede varejista faz uma previsão de perdas e repassa tanto ao preço pago ao produtor, quanto ao que é cobrado do cliente. “O agricultor recebe menos e o consumidor paga mais. É preciso rever esse processo, porque o varejo dilui o prejuízo. Investir em produtividade tem significado também aumentar o volume do desperdício. Quanto mais produzimos, mais jogamos fora. É preciso pensar com mais seriedade em uma solução para as perdas’, lamenta o pesquisador. O Ministério da Agricultura possui uma regulamentação que classifica os vegetais e estabelece regras para manter a qualidade, mas, na prática, as normas não são cumpridas. “Governo e agentes do mercado precisam ser parceiros e fazer valer a lei”. Para o pesquisador, a mudança desse quadro passa pela qualificação de todos os envolvidos na cadeia produtiva, desde o trabalhador rural que colhe o alimento até os estoquistas e funcionários dos pontos de varejo. A redução do desperdício, no entanto, é uma preocupação séria da rede varejista. A Associação Brasileira de Supermercados (Abras), em parceria com outras entidades, faz todos os anos uma avaliação de perdas. A pesquisa mostrou que, em 2007, mais de 82% dos pontos de varejo pesquisados possuíam departamentos específicos para cuidar desse assunto e 75% deles reconheciam ter investido em soluções. O levantamento, feito todos os anos, busca identificar causas e avaliar o custo-benefício para a implantação de programas de prevenção de perdas. percentual ao final de três anos. O estudo da Abras chama atenção para o fato de as perdas de perecíveis terem reduzido em 2007, mas revela um aumento desse prejuízo com causas desconhecidas. Isso dificulta a formulação de iniciativas para combater o problema. ■ Em 2007, o índice médio de desperdício foi de 2,15% do total comercializado, desse volume 55% são produtos perecíveis. Apesar de permanecer crescendo desde 2004, o ritmo de perdas no caso específico dos perecíveis avançou apenas 0,2 ponto Débora Carvalho - Reportagem publicada pela revista Desafios, set/out 2009; pelo IHU On-line [IHU On-line é editada pelo Instituto Humanitas Unisinos (IHU) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) em São Leopoldo, RS] e pelo portal www.ecodebate.com.br (12/11/2009). NOTA DO EDITOR: A perda e o desperdício de alimentos é um fenômeno em escala mundial, fato que sinaliza a premente necessidade de se estruturar uma nova atitude frente à sustentabilidade alimentar. Com os instrumentos e as tecnologias disponíveis para tratar a questão, pode-se minimizar o imoral desperdício que só faz aumentar o crescente contingente de famintos e subnutridos em todo o planeta. O gráfico abaixo revela as proporções do problema em escala mundial. PERDAS NA CADEIA ALIMENTAR: DO PLANTIO AO CONSUMO DOMÉSTICO (ANTES DA CONVERSÃO DO ALIMENTO EM COMIDA) Colheita de comestíveis 4600 kcal Perdas na Após colheita colheita 4000 kcal Alimento p/animais Carne e laticínios 2800 kcal Perdas e desperdício na distribuição Alimento consumido 2000 kcal Campo Domicílio Após descontar as perdas, as conversões e o desperdício nos vários estágios produtivos, restam apenas 2.800 kcal disponíveis para utilização (alimentos de origem vegetal e animal). E, ao final da cadeia, uma média de 2.000 kcal – apenas 43% do potencial comestível das colheitas – são disponibilizados para o consumo. Fonte: Lundqvist et al., 2008 Cartógrafo/designer: Hugo Ahlenius, Nordpil. Gráfico publicado em 2009 em The Environmental Food Crisis - The Environment’s Role in Averting Future Food Crises – http://www.grida.no/ publications/rr/food-crisis/ – Link to website: http://maps.grida.no/go/graphic/losses-in-thefood-chain-from-field-to-household-consumption Cidadania&MeioAmbiente 17 Foto: Dude Crush SEGURANÇAALIMENTAR Assim no mar, como na terra A sobrepesca, a pesca acidental, a poluição das águas costeiras e oceânicas e a fragilidade das regulamentações internacionais rígidas para a atividade pesqueira anunciam o colapso da vida marinha e ameaçam a sobrevivência de milhões de indivíduos. por Márcia Pimenta O mito da extensão infinita dos oceanos, como acontece com as grandes áreas de floresta, promove a crença de que os recursos naturais destes ecossistemas são infinitos. Porém, mais importante do que o tamanho é a saúde do ecossistema e sua capacidade de produtividade biológica, e no caso dos oceanos, sua produtividade pesqueira. Ao explorarmos estes recursos de modo insustentável perdemos biodiversidade e dinheiro, como advertiu Sigmar Gabriel, Ministro para Meio Ambiente, Conservação da Natureza e Segurança Nuclear da Alemanha, na cerimônia de abertura da 9ª Conferência das Partes 20 da Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB, em Bonn. Segundo ele, a perda anual de espécies vegetais e animais custa 2 trilhões de Euros, ou seja, 6% do PIB mundial. Segundo a FAO – Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação – 76% dos principais recursos pesqueiros estão explorados ao máximo, sobrepescados, em colapso ou em recuperação de colapso. A vida marinha é um bom exemplo. Se nada for feito, até 2050 não haverá mais pesca comercial, segundo Gabriel. Podemos imaginar o que isto representa para o estoque de alimentos, uma vez que bilhões de pessoas dependem da pesca como fonte de proteína. A crise no setor fica evidente pela situação de estagnação da pesca extrativa mundial, em torno de 85 milhões de toneladas, ou, mesmo redução na produção, a partir de meados de 1980. A demanda crescente por barbatana coloca 21 espécies de tubarão e arraias na lista de espécies em risco de extinção, segundo estudo organizado pela União Internacional para Conservação da Natureza – IUCN. Retiradas do mar acima do nível de sustentabilidade também estão o peixe-espada, o bacalhau e o atum. Após ter sido quase extinto no Atlântico, o atum, preferido pelos que apreciam sushis e sashimis, é agora alvo dos enormes navios pesqueiros no Pacífico. Na rio. E em menos de 30 dias o próprio Lula revogou a MP, não havendo previsão para a votação do projeto de lei. Argentina, os cardumes da merluza comum, devido à falta de controle do Estado e à pesca exagerada, levaram à redução de 70% da população adulta nos últimos 20 anos. No Brasil, segundo o Programa de Levantamento Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva – REVIZEE os camarões, a sardinha-verdadeira, cações, tubarões, arraias e a corvina estão sendo capturados acima dos limites possíveis. A gestão equivocada dos recursos pesqueiros pode ser a chave para entender como chegamos a esta situação. passagem “deUmaumúnica arrastão remove A alta recente dos preços dos alimentos tende a aumentar ainda mais a pressão sobre os recursos pesqueiros que hoje se encontram sobrexplotados em todo o planeta. Mas o Brasil e o mundo não devem se aproveitar da crise mundial por alimentos para apresentar metas mirabolantes para atividade pesqueira que hoje já dá sinais de exaustão, adverte Neto. Segundo ele, a idéia é preocupante já que para viabilizar o aumento da produção corre-se o risco de promover um regime de terra arrasada, ampliando a insustentabilidade em larga escala na pesca e na aqüicultura, e potencializando impactos onde a sobrepesca não é a única agressão a que estão sujeitos os oceanos. até 20% da fauna e da flora do fundo do mar. José Dias Neto, Engenheiro de Pesca e Coordenador Geral de Autorização do Uso e Gestão da Fauna e Recursos Pesqueiros da DBFLO/IBAMA, argumenta que com o fim da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE – em 1989, houve a divisão de competências de gestão que ficou da seguinte forma: Ÿ as espécies sobrexplotadas e as ameaçadas de sobrexplotação ficaram com o Ministério do Meio Ambiente (MMA); e Ÿ as subexplotadas com o Departamento de Pesca e Aquicultura (DPA), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Assim deu-se a divisão do indivisível, já que uma espécie subexplotada hoje passa rapidamente para a lista de sobrexplotadas, como foi o caso do peixe-sapo e do caranguejo de profundidade. Hoje, a Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República (SEAP/PR) divide as atribuições com o IBAMA, mas não por muito tempo. O Professor José Angel Perez, pesquisador do Centro de Ciências Tecnológicas da Terra e do Mar (CTTMar) da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), em Santa Catarina, também acredita que “atualmente o cenário mais nocivo no que tange à gestão pesqueira do Brasil é a existência de divisão de atribuições entre SEAP e IBAMA. Essa opinião é unânime na academia e em outros setores. A questão passa a ser onde concentrar essa gestão”. ” Perez sustenta que “a academia se divide entre aqueles que querem modernizar a gestão e por isso acham que o Ministério pode oportunizar isso. E outros que temem que um Ministério fique ainda mais submetido à pressão da indústria da pesca e, por conseguinte, preocupe-se pouco com “conservação” dos estoques naturais, já muito debilitados pela sobrepesca. É uma escolha difícil. Eu me enquadro entre os primeiros, pois acho que hoje existem mecanismos de cobrança da sociedade, por exemplo, através de comitês de gestão participativa e da presença do Ministério Público de olho nas questões ambientais. Mas reconheço que os riscos dessa escolha são reais”. Neto defende que “o Brasil foi um dos pioneiros em colocar a gestão do uso dos recursos pesqueiros na área ambiental e, hoje, o mundo toda caminha para tal. Assim, seria uma pena que o Brasil desse um passo para trás”. Ele acrescenta que “os posicionamentos da SEAP têm se mostrado similares ao da ex-SUDEPE que consideravam os recursos pesqueiros como recursos econômicos”. E lembra que “colocar sob um mesmo comando as ações de fomento, promoção e apoio à cadeia produtiva, gestão do uso dos recursos ambientais e a fiscalização, é o mesmo que “colocar a raposa para vigiar o galinheiro””. Apesar de toda a polêmica, o Presidente Lula criou o Ministério da Pesca, através de MP em 30/07, e 150 vagas para o novo Ministé- PESCA ACIDENTAL E EXAUSTÃO MARINHA Também o desperdício contribui para a insustentabilidade desta atividade. Segundo o Greenpeace, a pesca acidental, ou seja, aquela que captura espécies diferentes daquela que tinha como objetivo é responsável por ¼ do total global de captura. Estes exemplares são devolvidos ao mar mortos, ou quase mortos. Uma única passagem de um arrastão remove até 20 por cento da fauna e flora do fundo do mar. As campanhas de pesca com os maiores níveis de captura colateral são as do camarão, pois mais de 80% de cada captura pode consistir em espécies marinhas diferentes do camarão, que é o objetivo. Com a vida marinha em estado terminal, os oceanos não conseguirão responder aos desafios das mudanças climáticas geradas pela concentração de gases de efeito estufa. O CO2 absorvido pelos oceanos torna o mar mais ácido, colocando em perigo os corais e corroendo conchas, esqueletos de estrela-do-mar, moluscos e outras criaturas marinhas. Nos últimos dois séculos, o mar absorveu cerca de 1/3 de todas as emissões de CO2, modificando sua composição bioquímica e tornando-se corrosivo. Para tornar o panorama mais sombrio, o aumento populacional nas zonas costeiras de Cidadania&MeioAmbiente 21 todo o mundo só tende a aumentar, principalmente em algumas regiões da Ásia, o que trará mais impactos para este ecossistema. Descarga no mar de esgotos sem tratamento, excesso de nutrientes e agrotóxicos aplicados na agricultura, despejo de lixo, além de sedimentos oriundos do desmatamento são problemas que se somam à perda de habitats costeiros como manguezais e áreas alagadas. pesca têm um custo que a princípio não se percebe. É o custo da perda da biodiversidade que, como alertou o ministro alemão, custa caro para a sociedade. Pesquisas, políticas públicas e fim dos subsídios que deslocam para além do sustentável o ponto de equilíbrio, estimulando o sobreuso das espécies ou mascarando os prejuízos da atividade pesqueira, são fundamentais AQUICULTURA: PROBLEMA OU SOLUÇÃO? Com os recursos pesqueiros sobrexplotados, as políticas públicas se direcionam para a Aquicultura, que vem aumentando sua participação na produção e no consumo mundial ao responder por 43% de todo o pescado consumido no mundo. Segundo o relatório O estado da Aquicultura e da pesca mundial/2006, da FAO, a atividade vem crescendo mais rapidamente do que qualquer outra do setor de alimentos, a uma média mundial anual de 8,8% por ano desde 1980. Mas a pressão destas atividades sobre os ecossistemas é grande! No Chile, recentemente, as fazendas de salmão foram atacadas pelo vírus da anemia infecciosa do salmão. Para combater a doença são necessárias doses maciças de antibióticos, podendo elevar a resistência aos antibióticos nos seres humanos que consomem este pescado. Além disso, a criação destes peixes carnívoros não se mostra sustentável, já que é necessário aproximadamente 5kg de peixe fresco para a produção de 900g de salmão criado em fazendas. O desenvolvimento em larga escala da cultura de camarões, em algumas áreas, resulta em degradação de áreas alagadas e manguezais, e também causa poluição hídrica, salinização do solo e das águas subterrâneas. A insustentabilidade de atividades comerciais selvagens e o papel minimalista dos governos nacionais na regulamentação da 22 Márcia Pimenta é jornalista com especialização em Gestão Ambiental, colaboradora e articulista do EcoDebate. Artigo publicado em www.ecodebate.com.br (11/10/2008). JoshBerglund19 A perda daquelas áreas torna a costa vulnerável em caso de fenômenos climáticos extremos, debilita a capacidade dos recifes de corais se recuperarem dos efeitos do aquecimento do clima e reduz a já “cambaleante” produtividade dos ecossistemas costeiros que fornecem meios de subsistência e alimento básico aos mais pobres. O mais dramático é que toda esta degradação ocorre em uma região que corresponde à área mais produtiva do oceano, ou seja, aquela até 100 km da linha costeira, a uma profundidade de cerca de 200m. para não ficarmos como expectadores passivos de um colapso anunciado em um mundo onde a fome já é uma realidade para milhões de pessoas. ■ Leilão de atum em Tsukiji, Japão, o maior mercado atacadista de peixe e frutos do mar do mundo. Foto: JoshBerglund19 PRODUÇÃO MUNDIAL DE PESCA E DE AQUACULTURA (milhões de toneladas) Aquacultura em terra Aquacultura no mar Atividade pesqueira em terra Atividade pesqueira no mar ❚ As projeções atuais para o setor da aquacultura sugerem que o crescimento do setor ocorrido anteriormente não deverá ser mantido no futuro em virtude do limitado estoque de peixe disponível no oceano para alimentar a aquacultura (FAO, 2008). ❚ Os estoques de pequenos espécimes pelágicos constituem 37% do total capturado pela atividade pesqueira. Deste montante, 90% são transformados em produtos para consumo e em óleo de peixe. E os restantes 10% utilizados diretamente na alimentação animal (Alder et al., 2008). Fonte: FAO. 2009. FishSTAT Fishery Statistical Collections Global Aquaculture Production. http://www.fao.org/ fishery/statistics/global-aquaculture-production (Accessed January 22, 2009) FAO. 2009. FishSTAT Fishery Statistical Collections Global Capture Production. http://www.fao.org/fishery/statistics/global-capture-production (Accessed January 22, 2009). Cartógrafo/designer: Hugo Ahlenius, Nordpil. Gráfico publicado em 2005 em The Environmental Food Crisis - The Environment's Role in Averting Future Food Crises – Link para o website: http:/ /www.grida.no/publications/rr/food-crisis/ Ÿ Link geral: http://maps.grida.no/go/graphic/carbon_cycle - a young O limite ecológico do mundo: Onde vamos parar? Entrevista com Paul Singer IHU ON-LINE – QUAL A RELAÇÃO ENTRE A CRISE MUNDIAL DE ALIMENTOS E A PRODUÇÃO DOS BICOMBUSTÍVEIS? Paul Singer – Estamos diante de uma crise mundial basicamente ecológica, porque não estamos conseguindo mais atender às demandas economicamente solváveis. Hoje, existem milhões de pessoas, principalmente na China, na Índia e também no Brasil, que melhoram seus padrões de vida e têm dinheiro para comer bife ao invés de arroz, e eventualmente comprar carros. Isso significa o aumento de demanda por derivados de petróleo e por alimentos. Ora, alimentos de origem animal exigem cereais. O cereal que comeríamos é dado como ração ao boi, galinha ou porco, que depois comeremos. Isso faz dobrar o gasto do trabalho humano, o uso da terra, a necessidade de água, enfim, usa-se o dobro de recursos naturais para obter o mesmo efeito – a alimentação. Em relação aos automóveis, temos uma situação conhecida em todo o mundo. Na Índia, inventaram o carro mais barato do mundo. Vivemos uma situação de demanda crescente de derivados de petróleo. O automobilismo é, provavelmente, a razão imediata do encarecimento do petróleo. Este nunca foi tão caro. O barril dele, agora, está custando U$ 126. Mas a crise também está relacionada ao encarecimento da carne, ao encarecimento dos laticínios e até dos cereais, porque eles estão sendo hoje disputados pelos ani- mais, por nós e pelos produtores de etanol, ou seja, os biocombustíveis, que têm ligação com a crise climática. Ao mesmo tempo, a crise é de alimentos e energética, porque o encarecimento do petróleo passa para os alimentos. Usa-se petróleo para mover os tratores e as máquinas que processam o que é produzido. Então, na medida em que o petróleo e, portanto, os combustíveis aumentam bruscamente de preço, também os produtos que dele dependem aumentam de preço. São duas crises que, no fundo, são uma crise só, porque não conseguimos aumentar a produção de petróleo na medida em que estamos colocando automóveis em nossas cidades. Com isso, aumenta o efeito estufa. O preço do petróleo está desse tamanho porque, pela primeira vez na história, há demanda pelos seus derivados, não tendo produção suficiente. Então, uma parte dos que querem usar o petróleo agora já não pode pagar o preço. Isso é claro no mercado: quando você tem demanda, o preço dispara. Conseqüentemente, a parte mais pobre dos demandantes é colocada para fora. Você tem uma inflação de gasolina e outros derivados de petróleo e uma inflação de alimentos que também faz a mesma coisa, ou seja, coloca para fora do mercado os mais pobres, que estão, inclusive, sujeitos à fome. Pelo que averiguei, já ocorreram motins de fome em 37 países; as pessoas se levantam contra essa situação porque não têm o que comer nem podem comprar alimentos básicos. Cidadania&MeioAmbiente 23 DESENVOLVIMENTO & CONSUMO Para o economista Paul Singer, as crises alimentícia e energética são uma só, porque o encarecimento do petróleo passa para os alimentos. Também defende a revisão da sistematização de distribuição de alimentos e afirma ser vital o desestímulo ao consumo de carnes e derivados. Pedrobiondi Carly&Arts “ Pouco tem-se investido na agricultura da pequena propriedade que é ecologicamente viável. A agricultura industrial é extremamente predatória com os recursos naturais. O uso intensivo de agrotóxicos envenena a terra, a atmosfera e a água. IHU ON-LINE – POR QUE NÃO ESSA CRISE NÃO FOI CONTROLADA ANTES DE CHEGAR AO PONTO ATUAL? P.S. – Boa pergunta! Em 1974, o Celso Furtado [1] escreveu um livro chamado O mito do desenvolvimento (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974), em que sustentava a tese de que era um mito imaginar que através do desenvolvimento econômico o mundo inteiro desfrutaria algum dia do padrão de consumo dos americanos. Ele tinha certeza, assim como embasamento, para afirmar que tal fato não aconteceria nunca. E que, portanto, o desenvolvimento não se poderia gerar por falta de recursos naturais. Ele disse isso há 34 anos. Nessa época, eu li e achei que ele teve um ataque de malthusianismo [2]. Isso porque Malthus, há 200 anos, dizia que a Terra era finita, que os recursos naturais acabariam e que o aumento da população resultaria em fome etc., na medida em que estávamos indo para além da capacidade da Terra. A tese de Malthus foi várias vezes refutada porque houve diversos avanços científicos que permitiram a utilização de recursos naturais que na época dele não existiam. Em 1974, nós acreditávamos que o Celso estava um pouco pessimista demais porque, na medida em que os recursos naturais se esgotavam, outros substitutos eram encontrados. No lugar do petróleo que está acabando, nós desenvolveríamos biocombustíveis, energia eólica, energia solar, e assim por diante. Só que o Celso estava certo e nós errados. Ele não estava sendo excessivamente pessimista. Chegou o momento em que a pressão da demanda está muito mais forte do que a capacidade de resolução propiciada pelo avanço científico através de novas tecnologias, esses impasses. IHU ON-LINE – O SENHOR AFIRMA QUE AS PESSOAS QUEREM TER O PADRÃO DE VIDA DAS PROPAGANDAS E QUE, SE PASSARMOS A CONSUMIR O QUE OS AMERICANOS CONSOMEM VAMOS ROMPER OS LIMITES DA NATUREZA. O QUE ENTÃO FAZER PARA CONTER ESSA CRISE? P.S – Quem está consumindo são os mais ricos; os outros não estão podendo consumir. Se mais gente quiser comer derivados da carne, ela irá subir mais ainda e os que tiverem menos dinheiro irão ficar de fora. Não podemos cruzar os braços e ficar chorando. Em primeiro lugar, precisamos criar condições de usar da melhor maneira possível aquilo que temos. Existem alternativas para melhorar a produção agrícola. Nesse tempo todo, no entanto, não se investiu na agricultura da pequena propriedade que é ecologicamente viável. 24 ” No mundo de hoje tem-se dois tipos de agricultura: a industrial, praticada pelas grandes empresas capitalistas, e a camponesa, que pratica uma tecnologia pré-industrial. A agricultura industrial é extremamente predatória com os recursos naturais, o que já é consenso científico. O uso intensivo de agrotóxicos envenena a terra, a atmosfera , os lençóis freáticos e os rios. Enquanto isso, a agricultura camponesa é respeitosa, pois não estraga nada. Então, nós precisamos privilegiar a agricultura camponesa, mesclando os conhecimentos tradicionais à ciência mais avançada. 1IHU ON-LINE – ACREDITA QUE A EXPANSÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR POSSA CONTER A CRISE ALIMENTÍCIA? P.S. – Exatamente. IHU ON-LINE – A CRISE ENERGÉTICA? P.S. – Para a crise energética teremos de encontrar outras soluções. Uma delas é reduzir drasticamente o número de automóveis em nossas cidades. Eles são poluentes, congestionantes e caóticos. Em São Paulo, houve um boom de automóveis. Estão vendendo a prazo: pode-se pagá-los em até oito anos. Obviamente, nenhum automóvel dura oito anos, pois, nesse meio tempo, ele desvaloriza. Enfim, é uma loucura! O fato concreto é que há uma crise de trânsito em São Paulo. A cidade não anda, tem congestionamentos o dia todo e até em lugares onde ninguém imagina existir. Há ainda a poluição pelos automóveis, algo muito grave. Precisamos oferecer transporte mais racional e compatível com a natureza. Isso significa usar o metrô, a bicicleta. Paris criou, por exemplo, ciclovias por toda a cidade. Em muitas cidades da Europa a municipalidade coloca bicicletas em pontos estratégicos, como nas estações de metrô. A pessoa sai do metrô e aluga uma bicicleta por um preço muito barato e vai até onde precisa. Além de não ser poluente, também é muito bom do ponto de vista da saúde. Para solucionar em parte a crise energética precisamos reformular inteiramente o transporte urbano, tornando-o não poluente e não criando mais consumidores vorazes de combustíveis fósseis. Por outro lado, é preciso criar, através de tributos e subsídios, um desestímulo ao consumo de carnes e derivados. É necessário tornálos mais caros ainda, e fazer com que as pessoas voltem a se alimentar de vegetais. Não há outra saída. Os governos precisam fazer isso para que os pobres possam comer. Não estou dizendo que devemos virar vegetarianos – o que seria uma boa alternativa –, mas, pelo CharlesFred Marcuslyra “ Para solucionar em parte a crise energética, precisamos reformular o transporte urbano, tornando-o não poluente, reduzindo os vorazes consumidores de combustíveis fósseis e estimulando um transporte racional e compatível com a natureza, como metrô e bicicleta. menos, não deveríamos comer carne todos os dias. Pertenço a uma classe social que come carne no almoço e no jantar. Isso não será mais possível. Acredito que, através de instrumentos tributários e com educação alimentar a população possa ter uma dieta mais compatível com a disponibilidade atual de solo. IHU ON-LINE – ACREDITA QUE A POPULAÇÃO MUNDIAL QUE NÃO ” consumidores de derivados de petróleo e fazem piorar as mudanças climáticas. É preciso reduzir todo o comércio internacional e fazer apenas comércio internacional daquilo que não pode ser produzido localmente. É um absurdo importar montanhas de coisas apenas pelo imperativo de preço. Nosso mundo está chegando ao limite ecológico. Os camponeses já perceberam isso há anos, o que já é uma reivindicação da economia solidária européia. ■ PASSA FOME JÁ SE CONSCIENTIZOU DA DIMENSÃO DESSA CRISE E DE SUAS CONSEQÜÊNCIAS? IHU ON-LINE – A CRISE DOS ALIMENTOS JÁ É SENTIDA PELA ELEVAÇÃO DE PREÇOS. MAS O QUE FAZER PARA CONTER A CRISE DE FOME? P.S. – Eu desejaria que ninguém passasse fome, o que é um direito fundamental. Deixar uma criança subnutrida é um crime. Para isso, o governo pode racionalizar os alimentos e distribuí-los de forma a que todos possam pelo menos comer vegetais. Essa é a direção para a qual devemos caminhar. Essa crise alimentar também advém do fato de os chineses, que só comiam arroz, agora comem manteiga, queijo, iogurte e carne. Só que eles são um terço da população mundial. Pensemos nisso! Os hindus também passaram a comer carne, e os brasileiros aumentaram em 70% desse consumo. Também outros países consomemmuita carne. É preciso que todos comam menos carne. A ONU será o instrumento para sairmos dessa crise. Nós teremos de transformá-la num governo mundial. IHU ON-LINE – COMO A SOBERANIA ALIMENTAR PODE CONTRIBUIR PARA CONTER ESSA CRISE? P.S. – A soberania alimentar é desejável no sentido de não se ficar na dependência de preços internacionais e de alimentos que chegam do outro lado do mundo, até porque isso é muito poluente. Hoje, o comércio internacional está exagerado, a globalização levou o comércio internacional a níveis desnecessários. Não tem sentido você importar da China brinquedos e outras coisas. Os navios que trazem esses alimentos poluem muito, são grandes bcb.org.br Paul Israel Singer é graduado em Economia e Administração pela Universidade de São Paulo (USP), onde também doutorou-se em Sociologia e obteve o título de livre-docência. É professor da USP desde 1984, além de secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego, e autor de inúmeros livros, entre os quais Globalização e desemprego: diagnósticos e alternativas (São Paulo: Contexto, 1998), O Brasil na crise: perigos e oportunidades (São Paulo: Contexto, 1999), Para entender o mundo financeiro (São Paulo: Contexto, 2000) e Economia socialista (São Paulo: Perseu Abramo, 2000). Entrevista publicada pelo IHU On-line em 16/05/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos (IHU) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) em São Leopoldo, RS] e pelo portal www.ecodebate.com.br (17/05/2008). N OTA : [1] Celso Monteiro Furtado foi um importante economista brasileiro e um dos mais destacados intelectuais do país ao longo do século XX. Suas idéias sobre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento divergiram das doutrinas econômicas dominantes em sua época e estimularam a adoção de políticas intervencionistas sobre o funcionamento da economia. Em 1946, ingressou no curso de doutoramento em economia da Universidade de ParisSorbonne, concluído em 1948, com uma tese sobre a economia brasileira no período colonial. Em 1949, mudou-se para Santiago do Chile, integrando a recém-criada Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), órgão das Nações Unidas. Na década de 1950, Furtado presidiu o Grupo Misto CEPAL-BNDES, que elaborou um estudo sobre a economia brasileira que serviria de base para o Plano de Metas do governo de Juscelino Kubitschek. Participou da criação, em 1959, da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Formação econômica do Brasil, a mais consagrada obra de Celso Furtado, foi escrita nesse ano. Em 1962, no governo João Goulart, foi nomeado o primeiro Ministro do Planejamento. Com o golpe militar de 1964, teve seus direitos políticos cassados por dez anos. Com a Anistia, em 1979, retornou ao Brasil. De 1986 a 1988, foi ministro da Cultura do governo José Sarney. Agência Estado P.S. – A população não precisa pensar. Se a carne estiver tão cara a ponto de a população não conseguir pagá-la, ela terá de achar um substituto e pode ser que a indústria encontre formas apetitosas de satisfazer a fome sem mais do que duplicar a produção de cereais. Segundo um estudo da ONU, para produzir um quilo de carne bovina são consumidos sete quilos de cereais. Precisamos reorganizar nosso consumo alimentar de maneira a que todos tenham o que comer. Cidadania&MeioAmbiente 25 . MOTORISTA LEGAL É MOTORISTA CONSCIENTE JAMAIS FALE OU MANDE MENSAGENS PELO CELULAR QUANDO ESTIVER DIRIGINDO. No trânsito é preciso ter sempre em mente o perigo que você pode causar aos outros e a si mesmo. Por isso, nada deve distrair a sua atenção. A conversa no celular pode ficar para depois. Em primeiro lugar vem a sua segurança e a de todos os passageiros. Dirija com consciência. www.eusoulegalnotransito.com.br IRRI Images SEGURANÇAALIMENTAR TRANSGÊNICOS poluição genética Não bastassem poluição ambiental, mudança climática, desmatamento, pesticidas e agrotóxicos, abelhas e insetos que polinizam e atuam no controle de pragas agora enfrentam um novo e letal desafio: as plantas geneticamente modificadas (OGM). As consequências para a natureza e para a economia já se manifestam em todo o mundo. Confira e proteja-se por Eric Aplyn O IMPACTO DOS OGMS EM INSETOS BENÉFICOS Por muitos anos, os agricultores orgânicos se valeram da bactéria Bacillus thuringiensis (Bt) para controlar algumas pragas. Com o álibi de proteger o milho, o algodão, a batata e outras culturas dos predadores, as empresas de biotecnologia se aproveitaram da descoberta dos agricultores e incorporaram segmentos do código genético do Bt no código genético de cereais, leguminosas e outras commodities. Só que tais empresas não revelam que os genes do Bt inseridos no DNA das plantas são extremamente diferentes dos do Bt original. 28 Em sua forma natural, a bactéria Bt contém uma longa proteína cristalizada que deve ser parcialmente digerida no estômago de um inseto antes de liberar a toxina ativa que esburaca o trato digestivo do inseto, matando-o. Foi esta proteína tóxica da que os biotecnólogos inseriram nas plantas. Porém, esta toxina ativa só é criada nas entranhas de certos insetos, e poucos organismos já foram a ela expostos. O efeito que pode causar a liberação indiscriminada da toxina ativa em organismos não originalmente alvo do Bt não foi pesquisado pelos criadores de plantas Bt, e os dados hoje disponíveis são alarmantes. Por exemplo, os artrópodes ápteros e hexápodes – insetos não alados da ordem Collembola – que se alimentam de fungos e de restos vegetais são ativos recicladores da natureza, constituindo agente essencial para o ciclo dos ecossistemas vegetais. Um estudo apresentado à Agência de Proteção Ambiental dos EUA indica que o milho Bt da Novartis prejudica os membros da ordem Collembola (EPA MRID No. 434635). Os insetos da ordem Neuroptera (o crisopídeo, a crisopa e outros) são os principais predadores das pragas que atacam o milho. Investigadores da Estação de Pes- quisa Federal Suíça para Agroecologia e Agricultura evidenciaram aumento da mortalidade ordem de dois-terços nas larvas dos insetos Neuropetera alimentadas com pragas criadas no milho Bt da Novartis em comparação com larvas alimentadas com milho não-transgênico (Hillbeck et al., 1998). Verificou-se que após se banquetearem com o alimento transgênico, os insetos resistentes aos efeitos tóxicos do milho BT voavam para plantas não BT, onde eram devorados pelos insetos Neuroptera que, por sua vez, sucumbiam ao venenoso BT embutido no organismo de suas presas. Desse modo prova-se que o desmantelamento da cadeia ecológica vai muito além das áreas plantadas com organismos transgênicos. Na Tailândia, país no qual foram iniciados os ensaios de cultivo do algodão Bt, da Monsanto, em 1996, a comissão encarregada de fiscalizar os campos de provas constataram a morte de 40% das abelhas durante o período de ensaio do novo algodão (Compeerapap, 1997). Infelizmente não se pôde estabelecer a conexão entre a mortalidade das abelhas e o Bt pela simples razão de que nenhuma outra informação adicional ter sido desde então disponibilizada. As empresas de biotecnologia nem consideram tais possibilidades, subestimando a probabilidade de “transferência horizontal de genes.” No entanto, pesquisa recente revelou que o fluxo de genes entre plantas de cultivo e seus aparentados selvagens pode ser mais alto que normalmente se imagina, fato que aumenta o risco de migração de sequências genéticas produzidas em laboratório para outras plantas. Ainda mais assustador é o relatório de pesquisadores da Universidade de Indiana documentando como um parasita genético que antes pertencia à família dos fermentos migrou sem explicação para outras espécies vegetais mais complexas e sem conexões com os fermentos (Palmer 1998). canola geneticamente alterada teve de ser destruído após comprovar-se que a canola-OGM polinizara plantas vizinhas. Um jornal britânico citou o sentimento do gerente de provas da Perryfield Holdings, a corporação responsável pelo ensaio: “Nós esperamos ser processados”. ■ Além disso, numerosos casos de polinização cruzada com colheitas transgênicas foram informados no último ano, especialmente no Reino Unido, onde teste-piloto com Eric Aplyn – Consultor independente e autor do artigo More Dangers of Genetically Altered Plants publicado em Synthesis/Regeneration 18 (Winter 1999). Tradução livre de Cidadania & Meio Ambiente. GENÉTICA A atual economia com base em hidrocarboneto ainda é forte e embute um novo tipo de Ameaça: a poluição genética, que ocorre quando os genes criados laboratório se incorporam em versões naturais ou cultivares da mesma planta, ou ainda em espécies aparentadas. Os perigos da poluição transgênica ainda não são totalmente percebidos e compreendidos. As pesquisas indicam que a disseminação de cultivares resistentes a herbicidas colheitas muito provavelmente gerará “super ervas daninhas” resistentes a herbicidas. Os pesquisadores também especulam a possibilidade da transferência dos genes de expressão Bt para plantas selvagens, fato que romperia seriamente os ciclos ecológicos, conferindo-lhes vantagem sobre os predadores que os mantêm sobcontrole. Hawkes, N. (1997). London Times. October 22. Hilbeck, A., Baunigartner, M., Fried, P.M. & Bigler, F. (1998). Effects of transgenic Bacillus thuringiensis corn-fed prey on mortality and development time of immature Chysoperla carnea (Neuroptera: Chrysopidae). Environmental Entomology, 27(2), 480-487. Palmer, J.D. Evolution Explosive invasion of plant mitochondria by a group I intron. PNAS 95(24):14244-14249. MORATÓRIA PARA OS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS A Academia Americana de Medicina Ambiental divulgou documento com posição sobre os alimentos geneticamente modificados, afirmando que “os produtos transgênicos representam um sério risco a saúde”, ao mesmo tempo em que pede uma moratória imediata. O jornal The Londres Times publicou que o tempo de vida das joaninhas foi reduzido à metade quando eles comeram afídeos cevados em batatas geneticamente modificadas plantadas na Escócia. As joaninhas também botaram menos ovos. POLUIÇÃO REFERÊNCIASS Compeerapap, J. (1997). The Thai debate on biotechnology and regulations. Biology and Development Monitor, 32, 13-15. A Academia pede por: Citando vários estudos realizados com animais, a Academia dos EUA conclui: “Há mais do que uma associação casual entre os alimentos transgênicos e os efeitos adversos à saúde”. No documento, a Academia ainda alerta: “Os alimentos geneticamente modificados representam um risco nas áreas da toxicologia, alergias, funções imunológicas, saúde reprodutiva, metabolismo, fisiologia e saúde genética.” ❚ Uma moratória sobre os alimentos geneticamente modificados, implementação de testes de segurança de longo prazo imediatos e etiquetação dos alimentos transgênicos. ❚ Que os médicos alertem seus pacientes, a comunidade médica e o público para evitar os alimentos geneticamente modificados. ❚ Que os médicos considerem o papel dos alimentos geneticamente modificados nas doenças de seus pacientes. ❚ Mais estudos independentes de longo prazo que comecem a juntar dados para investigar o papel dos alimentos transgênicos na saúde humana. “Vários estudos em animais mostraram que os alimentos geneticamente modificados causam danos a vários sistemas orgânicos. Com essa evidência volumosa, é imperiosa uma moratória sobre os alimentos transgênicos para a segurança de nossos pacientes e do público”, diz o médico Amy Dean, chefe do Paraná e membro do Conselho da Academia nos EUA. “Os médicos estão provavelmente vendo os efeitos em seus pacientes, mas precisam saber como fazer as perguntas certas”, diz a dra. Jennifer Armstrong, presidente da Academia. “Os alimentos geneticamente modificados mais comuns consumidos nos EUA são soja, milho, canola e óleo de algodão”. ❚ O comunicado da Academia sobre alimentos geneticamente modificados pode ser encontrado em http://aaemonline.org/gmopost.html. A American Academy of Environmental Medicine é uma associação internacional de médicos e outros profissionais dedicados a mostrar os aspectos clínicos da saúde ambiental. Mais informações são disponíveis em www.aaemonline.org. Fonte: Edinilson Takara – Agência Estadual de Notícias do Paraná. Cidadania&MeioAmbiente 29 C R I S E A M B I E N T A L Seremos 7 bilhões de habitantes no mundo em 2012 e 9 bilhões em 2050. O problema não é a fecundidade, que já está diminuindo, mas a má distribuição de recursos e a insustentabilidade do modelo de desenvolvimento gerador das crises climática, alimentar e energética. Há espaço suficiente e recursos para todos? Augustograph ? Já somos demais por Verónica Calderón E m 2050 a Terra abrigará 9,1 bilhões. A grande maioria dos novos habitantes viverá nos países pobres. Segundo cálculos da ONU, em 2050 a população espanhola será praticamente igual à de 2009, cerca de 42,8 milhões de habitantes. Muito longe do crescimento previsto para países como Níger, Somália e Uganda, cujas populações crescerão até 150% nos próximos 40 anos. do mundo, a natalidade se reduzirá pela metade. As previsões da ONU coincidem em que a tendência se manterá. Prevê-se que em 2050 a fertilidade mundial será de apenas 1,85 filho por mulher. Sem os métodos anticoncepcionais, a população mundial cresceria para 11 bilhões de pessoas em 2050. Os controles de natalidade foram fundamentais, mas não são a única solução. A população dos países desenvolvidos se manterá praticamente igual e em alguns inclusive diminuirá. Em troca, os países mais pobres do mundo terão um crescimento acelerado. Dos 2,4 bilhões de pessoas a mais que haverá no mundo em 2050, 98% viverão em países pobres. Há espaço suficiente e recursos para todos? Há mais de 200 anos, o inglês Thomas Malthus já advertia eu seu célebre “Ensaio sobre o Princípio da População” que os recursos naturais seriam insuficientes para abastecer a população mundial. As taxas de natalidade diminuíram 50% nos últimos 30 anos, e espera-se que caiam ainda mais. Inclusive nos países mais pobres 30 A pesquisadora Rosamund McDougall, diretora adjunta da ONG Fundo para uma População Ótima (OPT na sigla em inglês), adverte que “uma população de mais de 9 bilhões de indivíduos teria um impacto terrível so- bre a Terra, e não só na qualidade de vida. O volume de emissões de gases do efeito estufa tornaria impossível viver no planeta em 20503 . Quem então ocupará a Terra? A população dos 49 países mais pobres do mundo se duplicará, de 840 milhões para 1,7 bilhão de pessoas, segundo aponta o relatório “Perspectiva sobre a População Mundial”, divulgado em 2008 e elaborado pela Divisão de Pesquisa Demográfica e População Mundial da ONU. Os países desenvolvidos, em comparação, não sofrerão uma mudança significativa em sua população: de 1,23 bilhão de habitantes em 2009 para 1,28 bilhão em 2050. Inclusive Japão, Geórgia, Rússia e Alemanha perderão 10% de suas populações. O cientista e escritor britânico Fred Pearce opina que o problema não é quantos somos, mas a O consumo de uma pessoa nos EUA emite 20 toneladas de dióxido de carbono por ano; o equivalente ao de dois europeus, quatro chineses, 10 indianos ou 20 africanos. Oitenta por cento da população pagariam as consequências econômicas e ambientais do consumo de 20%. Stephen Pacala, diretor do Instituto Ambiental da Universidade Princeton (EUA), calcula que os 500 mil habitantes mais ricos do mundo – cerca de 0,7% da população atual – são responsáveis por 50% das emissões de CO2 no mundo. E a situação só fará agravar-se nos próximos anos. Pierce adverte: “O desafio é, na realidade, que os recursos sejam distribuídos de maneira mais equitativa. Os efeitos sobre o meio ambiente são extremamente difíceis de reverter através das taxas de natalidade. Mesmo se reduzíssemos a zero a fertilidade no mundo, as emissões de gases do efeito estufa deveriam diminuir pelo menos 50% até meados do século”. OS FAMINTOS DA TERRA Além dos efeitos da mudança climática, os países menos desenvolvidos enfrentam a fome, a causa direta ou indireta de 58% do total de mortes do mundo, segundo um estudo da ONU divulgado em 2004. O Instituto de Recursos Mundiais (WRI na sigla em inglês) advertiu na semana passada que em 2050 haverá mais 25 milhões de crianças desnutridas no mundo, que se somarão as 150 milhões que atualmente padecem fome. Os níveis de pobreza continuarão aumentando: entre 1981 e 2001 duplicou o número de pessoas que viviam com menos de US$ 1 por dia na África subsaariana: de 164 milhões para 316 milhões; e nos próximos 40 anos dois terços da população mundial viverão em países em desenvolvimento. O fato é que hoje 1 bilhão de pessoas (um sexto da população mundial) sofre fome. Em 2050 serão 1,7 bilhão, 18% da população prevista para então. Além da degradação ambiental, os conflitos e o baixo desenvolvimento causam a escassez de alimentos. UM Juan Falque maneira como distribuímos os recursos: “É evidente que o problema é o consumo excessivo dos países desenvolvidos e não a superpopulação dos mais pobres”, afirma. DESAFIO NADA NOVO A chamada Revolução Verde conseguiu duplicar a produção de alimentos entre 1960 e 1990. E na atualidade ainda existem 60% de terra fértil no mundo. Mas o que garante aos países pobres um desenvolvimento sustentável nos próximos anos? Pearce e Pacala concordam que um bom início é o investimento. “ Dos 2,4 bilhões de pessoas a mais que haverá no mundo em 2050, 98% viverão em países pobres. ” Os agricultores africanos empregam o equivalente a 1% do fertilizante utilizado por um agricultor em um país rico. E enquanto nos países pobres se consome uma dieta baseada em vegetais, os ricos consomem comida (carne) que come vegetais. Para produzir um quilo de carne são necessários pelo menos 10 quilos de pasto. Um americano médio consome 120 quilos de carne por ano, enquanto nos países em desenvolvimento a média é de 28 quilos. A falta de tecnologias que desenvolvam a agricultura nos países menos desenvolvidos e os efeitos da crise econômica global pioram as circunstâncias. Para Pacala: “A cooperação marcaria uma diferença significativa. As crises de fome se devem na maioria das vezes ao fraco desenvolvimento dos países e a uma produção insuficiente.” A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO na sigla em inglês) advertiu, em 2008, que o gasto anual em alimentos importados nos países mais pobres poderia representar quatro vezes mais do que em 2000. Observa o relatório: “Para os consumidores mais pobres, que aplicam 60% de seus recursos em alimentação, o aumento significa um golpe brutal em seus orçamentos.” A FAO também salienta que para combater a fome o mundo deveria produzir, em 2050, 70% mais alimentos do que hoje. Em 2008, um relatório do Ministério do Desenvolvimento britânico calculou que a redução da fome no mundo exigiria pelo menos 900 milhões de libras (cerca de 987 milhões de euros) para garantir o desenvolvimento e as tecnologias necessárias ao favorecimento da agricultura nos países mais pobres. O orçamento da FAO, em 2008, foi de US$ 870 milhões. Em 2009, subiu ligeiramente para US$ 930 milhões. Ao comparar a cifra com os US$ 700 bilhões que o governo americano destinou para evitar a quebra do banco de investimentos Bear Stearns, as hipotecárias Freddie Mac e Fannie Mae e a seguradora AIG em setembro do ano passado, o orçamento mundial dedicado a combater a fome representa apenas 2% dessa cifra. Os líderes reunidos na cúpula do G20 realizada em Pittsburgh em setembro passado concordaram em destinar cerca de US$ 2 bilhões em ajudas para combater a fome no mundo, mas um estudo publicado pelo Instituto Internacional para Pesquisa de Políticas Agrárias em outubro indica que é insuficiente. Gerard Nelson, um dos autores do relatório, adverte: “São necessários pelo menos US$ 7 bilhões ao ano para a pesquisa agropecuária e a melhora da infraestrutura rural nos países. Se a política que privilegia os lucros perseverar, as consequências serão desastrosas”, A prioridade para resolver a fome, uma grave consequência da má distribuição de recursos no mundo, também não é nova. Em 1972, numa entrevista a Dick Cavett sobre as consequências da superpopulação, John Lennon foi claro ao definir o primeiro passo: “Temos comida e dinheiro suficientes para alimentar a todos. Há espaço suficiente e alguns até vão para a lua”. ■ O artigo de Verónica Calderón foi publicado originalmente no jornal espanhol El País e em www.ecodebate.com.r (09/11/2009). Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves Cidadania&MeioAmbiente 31 Copenhague: o ponto de virada para o clima por Ed Miliband T endo chegado a uma cidade sitiada por pessoas e papéis, já tenho certeza de uma coisa: Copenhague não é apenas mais uma negociação internacional. É um momento de escolha crucial para todos nós. E estou certo de que faremos a escolha certa. Independentemente do sucesso das negociações, o mundo será muito diferente até o meio deste século. Nossas escolhas determinarão como serão essas mudanças. Podemos escolher o futuro que queremos para nós e nossos filhos ou podemos deixar que escolham um futuro menos positivo e mais sombrio. Se formos bem-sucedidos no combate às mudanças climáticas, o mundo terá sido transformado pelos nossos esforços. Nações terão trabalhado juntas para reduzir suas emissões de carbono. Teremos construído um sistema de energia neutro em carbono com novos empregos e novo crescimento. Teremos criado um variado leque de tecnologias de baixo carbono. Nossas economias terão mais segurança energética. A cooperação terá vencido as rivalidades. Se falharmos, o mundo já estará vivendo um aumento de temperatura de 2ºC. E estará irreversivelmente destinado a um aumento de 4ºC e além. O mapa que o MetOffice (1) lançou recentemente mostra que mundo inimaginável será este com enchentes e secas tornando água e alimento escassos para centenas de milhões de pessoas. A competição por recursos terá vencido a cooperação. Essas são as escolhas que temos de fazer em Copenhague. Temos a tecnologia e, apesar da recessão, a transformação 32 necessária do nosso sistema de energia é factível. A questão é se teremos vontade política coletiva suficiente. As apostas não poderiam ser mais altas para a humanidade. Por isso, Gordon Brown (2) foi o primeiro de 130 líderes a confirmar sua presença em Copenhague. Estamos entrando na segunda semana de negociação e ainda há muito a fazer. A essência do acordo é clara. Ele precisa refletir a responsabilidade do mundo industrializado pelo carbono que já foi emitido. Mas é importante também olhar adiante as emissões que virão do crescimento dos países emergentes. Países industrializados devem concordar em diminuir suas emissões. A União Europeia foi a primeira a colocar uma oferta ambiciosa na mesa. E nós agora temos ofertas substanciais dos maiores países desenvolvidos, com Estados Unidos, Japão, Noruega e Rússia anunciando propostas. As economias emergentes também precisam ser claras quanto às ações que irão realizar para evitar emissões de carbono. Isso já está acontecendo: Brasil, China, Indonésia, África do Sul e a República da Coreia já anunciaram o que irão fazer. Nossa tarefa em Copenhague é assegurar que todas essas ofertas se combinem para colocar o mundo no caminho para manter o aquecimento global em menos de 2ºC. Juntos, precisamos esticar nossas ofertas e colocar mais na mesa. O Reino Unido está fazendo o esforço. Fomos o primeiro país a definir metas de redução com força legal, uma diminuição de 34% até 2020 em relação aos níveis de 1990 e um corte de 80% até 2050. O Reino Unido ainda Independentemente do sucesso das negociações, o mundo será muito diferente até o meio deste século. fará mais como parte da União Europeia. Como o primeiro-ministro disse na terçafeira, estamos fazendo o possível para que a UE aumente sua oferta para 30%. Países industrializados também precisam apresentar propostas de financiamento de curto e longo prazo para a criação de um fundo de ações para que o mundo em desenvolvimento possa se adaptar às mudanças climáticas ou reduzir suas emissões. Essa quantia deve chegar a US$ 100 bilhões em 2020. Isso tem o potencial de levar o crescimento de baixo carbono aos países pobres, tirando milhões da pobreza. Há muitos assuntos importantes a serem discutidos, mas no coração do acordo está isto: os países desenvolvidos precisam reduzir emissões, os emergentes devem agir e o financiamento deve acontecer. A não ser que isso seja acordado, haverá pouco progresso em outras questões. Para completar a escolha, um acordo político entre os líderes mundiais em Copenhague deve levar a um acordo com força legal no mais tardar até meados de 2010. Política, sempre nos lembra, é a arte do possível. Sucesso em Copenhague precisa mais do que isso. Precisamos reunir vontade política suficiente para expandir o reino do possível. É isso que liderança política significa. Está em nosso alcance, precisamos apenas segurar. ■ (1) MetOffice – Organismo para previsão de condições meteorológicas e de mudanças climáticas para o Reino Unido e mundo (www.metoffice.gov.uk/ (2) Gordon Brown – Primeiro-ministro britânico. Ed Miliband, mestre em economia pela London School of Economics, é o ministro de Energia e Mudanças Climáticas do Reino Unido. Cidadania&MeioAmbiente 33 Ovejero1 P O N T O - D E - V I S T A Os vetores da descarbonização O rumo da descarbonização global será influenciado pelas vias que forem abertas para que os países do Segundo Mundo não sejam dependentes de perversas transferências de tecnologia. por José Eli da Veiga S e tratados entre quase 200 nações fossem realmente decisivos, o mundo estaria muito mais seguro do que ao término da Guerra Fria. Porém, já são 40 os países com potencial nuclear, embora não passassem de meia dúzia quando foi adotado o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (NPT). Que chegou a ter 187 adesões até a retirada da Coreia do Norte, em 2003. “Mutatis mutandis”, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) tem 189 países signatários, mas também não passam de 40 os responsáveis por mais de 90% das emissões de carbono. E praticamente todos estão no G20, a melhor instância de governança global, que junta 15 das maiores economias do mundo às 27 da União Europeia, além da participação ex-officio do FMI e do Banco Mundial. Então, se o G20 foi incapaz de chegar a um acordo sobre o regime climático a vigorar em 2012, pouco se pode esperar da algaravia que rábulas de 196 nações promoverão em Copenhague de 7 a 18 de dezembro. Pior: mesmo na hipótese da mais grata surpresa, o precedente da ameaça de um inverno nuclear permite supor que ela não impediria o longuíssimo verão carbônico decorrente da dependência de energias fósseis. Prognóstico pessimista? Muito pelo contrário. Ele só realça que os vetores dos processos geopolíticos reais vão muito além de acordos globais. A biosfera não teria sobrevivido se dependesse só de respeito ao velho NPT. De modo similar, a descarbonização continuará por outras razões, seja qual for o desfecho da cúpula climática de Copenhague. 34 A predisposição a se engajar na transição ao baixo carbono tem sido primordialmente determinada pela preocupação de cada nação com a sua própria segurança energética e pela confiança que pode ter em sua capacidade científico-tecnológica para aproveitar as oportunidades já vislumbradas da próxima onda longa de desenvolvimento do capitalismo. Processo cada vez menos influenciado pelos setores econômicos e segmentos sociais que serão perdedores com o inexorável encarecimento da emissão de carbono. Algo que parece valer para todos, inclusive para os grandes emissores da semiperiferia, como é o caso do Brasil. Todavia, ao contrário do que ocorre no Primeiro Mundo, os chamados emergentes não têm como confiar na geração própria das inovações necessárias à descarbonização. Por isso, ainda vêm nessa transição mais sacrifícios ao seu crescimento econômico do que possíveis vantagens competitivas em novos negócios e novos mercados. A ressalva é importante, pois, dos 20 países que mais contribuíram em termos absolutos para o aumento de 60% das emissões globais de 1980 a 2006, entre 12 e 15 são emergentes, a depender de como se classifique os tigres Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura. Somente cinco são indiscutivelmente do pequeno clube dos ricos: Estados Unidos, Japão, Austrália, Espanha e Canadá. Por isso, o que mais influenciará o rumo da descarbonização global serão as vias que forem abertas aos países desse Segundo Mundo para que não fiquem na dependência de perversas transferências de tecnologia. Que possam, ao contrário, se beneficiar de esquemas de cooperação na mon- tagem de seus próprios sistemas de ciência, tecnologia e inovação. A China tem mostrado muita clareza sobre essa prioridade, principalmente em seus entendimentos bilaterais com os EUA. Certamente devido à sua imensa dependência do carvão e por precisar muito da energia nuclear, busca saídas das mais pragmáticas para uma equação energética muito difícil de ser resolvida em uma sociedade cuja economia não pode crescer menos de 8% ao ano. Ao contrário do Brasil, onde a evolução da atitude governamental só evidencia a ausência de estratégia nacional. Em grande parte resultante do comodismo induzido por uma das mais limpas matrizes energéticas do mundo. E também, é claro, por divergências ministeriais que refletem clivagens entre os segmentos mais organizados da sociedade civil. Muito outros argumentos em favor dessa tese – de que pouco importa o desfecho da COP 15 para a transição ao baixo carbono – estão no livro “Mundo em Transe: Do Aquecimento Global ao Ecodesenvolvimento”, a ser lançado na Livraria Cultura (São Pulo) exatamente no início do segundo tempo da pelada de Copenhague: dia 14/12. ■ José Eli da Veiga – Professor titular da Faculdade de Economia (FEA) e orientador do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP; pesquisador associado do “Capability & Sustainability Centre” da Universidade de Cambridge. Autor do livro “A Emergência Socioambiental” (Senac, 2007) e co-autor, com Lia Zatz, de “Desenvolvimento Sustentável, que Bicho É Esse?”. Artigo publicado no jornal VALOR (09/06/2009). Recomendamos visita à página do autor na web: www.zeeli.pro.br Cidadania&MeioAmbiente 35 36