Um estudo linguístico no litoral maranhense: léxico e cultura dos
pescadores da Raposa, MA
Raquel Pires Costa (UFMG)
O presente trabalho tem como objetivo apresentar os primeiros resultados da
nossa pesquisa de mestrado, a qual tem como objeto de estudo o léxico dos pescadores
da Raposa, MA.
O município de Raposa localiza-se a, aproximadamente, trinta e sete
quilômetros de São Luís, capital do estado do Maranhão. Situa-se na faixa litorânea,
num trecho da costa maranhense classificado por Feitosa (1998) como extremo
Nordeste da ilha de São Luís. Foi fundado por cearenses oriundos de Acaraú, CE, que
migraram para o Maranhão na década de 50, após uma violenta seca no local.
O interesse em realizar um estudo no âmbito lexical no Maranhão
consolidou-se quando da verificação de problemas de comunicação entre um grupo de
pescadores da Raposa e um engenheiro de pesca, no decorrer de um curso sobre
primeiros socorros para pesca em alto-mar.Observamos que além de haver um fosso
entre os falares dos pescadores e do engenheiro, há, também, uma distância entre as
culturas: cultura do engenheiro (teórica) x pescador (prática); cultura do homem letrado
x do não letrado, confirmando a assertiva de Preti (1977), de que há um fosso enorme
entre os falares urbanos e rurais.
Problemas de comunicação dessa natureza já foram destacados por BortoniRicardo (1984) e por Mendonça (1978, p. 45), em O léxico do falar caiçara de
Ubatumirim, onde o autor evidenciava a necessidade urgente do inventário lexical, visto
que o seu “desconhecimento mútuo causava uma perda de grande parte da mensagem
durante a comunicação entre o forasteiro e o falante local”.
Da mesma forma, percebemos que na Raposa os problemas de comunicação
estão associados à (in)compreensão de itens lexicais, pois, enquanto os pescadores
utilizam uma linguagem específica, o engenheiro faz uso de vocábulos característicos de
uma linguagem técnica, o que dificulta a comunicação.
Por ser, indubitavelmente, no léxico que se refletem com maior nitidez, a
diversidade de visões de mundo dos indivíduos e os seus diversificados padrões
culturais, procuraremos descrever, em nosso trabalho, as relações entre o léxico e a
realidade sociocultural dos pescadores da Raposa, as quais subsidiarão a elaboração de
um glossário, com o maior número possível de unidades lexicais do vocabulário dos
pescadores.
Este estudo se dá numa abordagem sócio-etnolinguística, buscando observar
em que medida este retrata a realidade não apenas física, mas também sociocultural, do
grupo que o utiliza, e numa perspectiva sociocultural, onde serão analisados os
componentes linguísticos e não-linguísticos, de modo a refletir o mundo de experiência
do falante, o contexto, a realidade em que vive, para atingirmos a significação das
palavras.
Por meio da língua, o homem recria a realidade, interpretando-a e repassando-a
aos demais. Aprisionado às suas estruturas, obediente às regras que lhe garantem a
intercomunicação, preserva, inconscientemente, formas tradicionais, mas, sensível às
modificações que se operam a sua volta, nela imprime suas marcas, renovando-a a cada
apelo externo.
No caso de uma língua especial - de um jargão profissional - como a da pesca,
apesar de haver pontos comuns entre as comunidades pesqueiras que se refletem em
traços em comum no vocabulário inter-regional, inerente ao âmbito social/corporativo
restrito em que é utilizada, há, por outro lado, um contexto específico a cada uma delas
e que decorre dos fatores naturais que condicionam a pesca.
O pescador tem de se adaptar ao meio em que atua, empregando uma
determinada técnica em função do tipo de pescado que ali ocorra, das características
geográficas e geomorfológicas do ambiente. A variedade vocabular (e por extensão, sua
riqueza) vincula-se à variedade da fauna aquática, ao nível de dificuldade de captura das
espécies, às condições climáticas.
Se a fala dos pescadores se constitui em memória de um passado, também
retrata, entre outros aspectos, a modernização dos meios de produção, o avassalador
movimento de unificação cultural. Isto porque, hoje, a pesca não mais é uma atividade
essencialmente passada de pai para filho, mas funciona também como um meio de
sobrevivência para as gerações mais jovens.
Realizar um estudo em nível lexical, numa perspectiva sociocultural possibilitará
que se constitua mais que um corpus para análises linguísticas, mas também um rico
acervo de informações de natureza ecológica, antropológica, sociológica e cultural.
Para Sapir (1969), o nível linguístico que mais revela o ambiente físico e social
dos falantes é o léxico. Por abrigar todas as unidades formadoras do sistema linguístico
e estas unidades, por sua vez, serem criadas a partir das necessidades linguísticoexpressivas e interesses de uma comunidade em reportar-se a novos elementos, é no
nível lexical que são registrados os costumes, ideologias e técnicas de um grupo social.
“O léxico de uma língua forma-se na História de um povo” (FIORIN, 2001, p.115).
Deste modo, o sistema lexical de um grupo “denuncia” toda a sua
organização social. Os seus elementos constitutivos, como a sua história, as
manifestações artísticas, as religiões, as atividades econômicas, os valores, as suas
práticas sociais enfim, estão refletidas no seu acervo de palavras.
Nessa perspectiva, conhecer uma cultura se assemelha a conhecer uma
linguagem, visto que ambas são realizações mentais, e, principalmente, descrever uma
cultura é como descrever uma linguagem. O objetivo das descrições etnográficas é
descrever a “gramática cultural” dos povos. (DURANTI, 2000, p. 53)
Considerando-se a estreita relação entre história da língua e história de um
grupo social, o léxico de uma língua simboliza também um patrimônio cultural, pois o
universo vocabular de um grupo sintetiza a sua maneira e a forma com que seus
membros estruturaram o mundo que os rodeia e designaram as diferentes esferas do
conhecimento.
Isquerdo e Krieger (2004, p. 11) dizem, a esse respeito:
Na historia das diferentes civilizações a palavra sempre foi mensageira de
valores pessoais e sociais que traduzem a visão de mundo do homem
enquanto ser social; valendo-se dela o homem nomeia e caracteriza o mundo
que o rodeia, exerce seu poder sobre o universo natural e antropocultural,
registra e perpetua a cultura. Assim, o léxico como repertório de palavras das
línguas naturais traduz o pensamento das diferentes sociedades no decurso da
história, razão por que estudar o léxico implica também resgatar a cultura.
O nível lexical é considerado o menos linguístico de todos os níveis da
língua devido a essa necessidade de se recorrer a elementos extralinguísticos para sua
análise:
O estudo do nome ou o estudo do léxico congrega o linguístico e o não
linguístico. Responsável por nomear e exprimir o universo de uma sociedade,
o léxico se encontra arraigado a história, tradição e costumes de um povo,
estando, por isso, em constante processo de expansão, alteração e contração.
Devido a essas características, é considerado o subsistema mais dinâmico da
língua (SEABRA, 2006, p.7).
O inventário do léxico dos pescadores, numa abordagem sociocultural,
no glossário resultante da pesquisa, poderá servir como fonte de consulta não somente
para estudiosos da linguagem e da cultura, mas também para profissionais de áreas
específicas como os engenheiros de pesca ou para qualquer pessoa que precise dialogar
com os pescadores sobre assuntos relacionados a atividade pesqueira.
Será, ainda, uma forma de salvaguarda do patrimônio imaterial da região, como
recomenda a UNESCO, na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Imaterial (2003):
Os conhecimentos e usos relacionados com a natureza e o
universo, assim como as línguas, em especial as que estão em
perigo de extinção, são os vetores do patrimônio cultural
imaterial e dos conhecimentos tradicionais. Entre as medidas de
“salvaguarda” para garantir a viabilidade do patrimônio cultural
imaterial,
figuram
a
sua
identificação,
documentação,
investigação, conservação, proteção, promoção [...]
e
revitalização.
A pesquisa poderá, outrossim, subsidiar estudos sócio-etnolinguísticos
futuros, dada a sua importância em razão de retratar fatos específicos da linguagem de
um grupo social, fornecendo valioso material para o estudo do português falado no
Brasil.
Adotamos, como referencial teórico-metodológico, a Sociolinguística
(Labov, 1972 e Milroy, 1997), a Lexicologia (Biderman, 1978, 1981, 2001), a
Antropologia Linguística (Duranti, 2000 e Hymes, 1964), a Dialetologia (Isquerdo,
2007; Cardoso, 1988). O tratamento dado por Milroy (1987) à mudança linguística a
partir das relações sociais também é de grande importância para nosso estudo, pois nos
dará o devido suporte para observarmos em que medida os pescadores interagem numa
rede mais ou menos densa e em que sentido essa interação influencia no universo lexical
por eles utilizado.
Seguindo o modelo laboviano, partimos do presente, ao coletar dados
decorrentes das entrevistas orais realizadas na Raposa, voltamos ao passado, ao
consultar dicionários do século XVIII (Bluteau) e XIX (Morais), e retornamos ao
presente para estabelecer comparações entre esses períodos. Para sistematização dos
dados coletados, elaboraremos fichas lexicográficas de análise para cada lexia. Para a
elaboração do glossário, tomaremos como base alguns pressupostos de autores
representativos da lexicologia e da lexicografia: Haensch (1982) e Barbosa (1995). Para
atestarmos se determinados vocábulos são específicos da pesca, será feita consulta em
glossários específicos da pesca (ANDRADE, 1993; MELO, 998; SANTOS, 2010).
Os primeiros resultados obtidos evidenciam aspectos históricos, sociais e
culturais da região.
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Raquel Costa