Para início de conversa: um Grupo de Pesquisas e Estudos sobre GÊNERO, SEXUALIDADES E POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS?1 A fila da direita é das meninas e a da esquerda é dos meninos. Muita gente já passou por essa divisão na escola. A diferenciação por sexo começa desde cedo e contribui para uma divisão ou exclusão de grupos que pode durar a vida toda. As características físicas e os comportamentos esperados para meninos e meninas são reforçados, às vezes, de forma inconsciente, nos pequenos gestos e práticas do dia a dia.2 Desde o momento da concepção de uma criança, já somos tomados (as) por uma forte indagação: qual será o sexo dela? Será menino ou menina? Essa pergunta não é casual, pois demonstra que, antes mesmo de nascerem, os seres humanos são rotulados, classificados e colocados em duas “caixinhas” separadas. Numa delas ficam as pessoas do sexo masculino e, na outra, as do sexo feminino. E isso, que poderia ser um mero detalhe de nossas vidas, acaba por se tornar um elemento fundamental, em torno do qual praticamente se traçará o destino de todo indivíduo. Convidando para buscar algumas respostas (e muitas outras indagações) Corpo e sexo nos remetem diretamente aos conceitos de mulher e homem. Basta pensar o sexo de homens e mulheres, separados, para nos perguntar: Quem somos? Mulheres são “naturalmente” mais retraídas e afetivas; os homens são, em decorrência da natureza, mais agressivos e dominadores? É possível justificar as desigualdades políticas, sociais entre os homens e as mulheres usando como critério a diferença física? Na escola, ter pênis ou vagina, responde pelo desempenho superior de meninos em relação às meninas em provas de matemática? Ou se é mulher e feminina, ou se é homem e masculino? 1 Profa. Dra. Maria Cristina Cavaleiro. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “GÊNERO, SEXUALIDADES E POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES”. UENP/Cornélio Procópio/ 2010. 2 O Estado do Paraná. Disponível em: www.parana-online.com.br/ editoria/mundo/ news/ 221001/. Acesso em: maio de 2009. 1 Em nossa sociedade, as diferenças entre homens e mulheres são comumente remetidas ao sexo, às características físicas, tidas como naturais e imutáveis e concebidas a partir de concepções apoiadas na biologia. Esse modo de compreensão da realidade é reforçado tanto pelas explicações encontradas nas ciências biológicas e na medicina como pela família e pela escola. Contudo, ao respondermos a tais indagações, evocamos mais do que a biologia, pois são construções culturais que determinam posições na estrutura de poder ordenando relações. Portanto, chegar a essa acepção significou percorrer um longo caminho de formulação na linha do tempo, engendrando e produzindo diferentes abordagens consubstanciadas na distinção entre sexo e gênero. Gênero: um conceito e uma categoria de análise De acordo com Joan Scott (1994, 1995, 1998) gênero é uma categoria de análise histórica, um referencial teórico que permite a compreensão do universo das relações sociais e, particularmente, das relações entre mulheres e homens, entre homens e entre mulheres, na medida em que a oposição biológica cede lugar à trama das relações de poder que dela decorre, carregando a carga cultural e histórica e suas transformações no tempo e no espaço. Vale dizer que não se trata de abandonar a atenção às estruturas e instituições, mas se busca compreender o que elas significam para poder então entender como elas funcionam. 3 Trata-se de utilizá-lo analiticamente como categoria social, ou seja, um instrumento capaz de explicar uma determinada face das relações sociais, assim como classe e raça/etnia. O gênero é constituído por relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, essas relações, por sua vez, constituem-se no 3 Vale esclarecer que gênero não é sinônimo de “luta da mulher por seus direitos”. Antes de tudo, gênero é tido como um conceito, uma categoria que permite entender melhor as representações sociais de masculino e feminino na prática social. Joan Scott esclarece que são as feministas americanas que usam pela primeira vez a categoria de gênero com o objetivo de fortalecer o caráter social das relações entre os sexos e refutar o até então determinismo biológico que estava implícito nos termos “sexo” e “diferenças sexuais” (ver SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e Realidade. vol.16, n.20, Porto Alegre, 1995. pp.5-22) 2 interior de relações de poder. Assim, gênero significa que “o saber a respeito das diferenças sexuais” é sempre relativo. Seus usos e significados “nascem de uma disputa política e são meios pelos quais as relações de poder – de dominação e de subordinação – são construídas” (SCOTT, 1994: 12). Portanto, o gênero é a organização social da diferença sexual, porém ele não reflete ou implementa diferenças fixas e naturais entre homens e mulheres, uma vez que se trata de “um saber que estabelece significados para as diferenças corporais”. (SCOTT, 1994: 13). Dessa maneira, essa ferramenta teórica parece ser potencialmente fértil para os estudos das ciências sociais em geral, e da educação em particular. Pelas lentes do gênero, é possível historicizar, isto é, considerar o contexto de produção e as modificações em cada momento histórico. Uma vez que tais relações entre os sexos envolvem a distribuição de bens, de direitos e deveres, bem como o acesso às posições de mando e obediência, as imagens e significados associados a homens e mulheres refletem nas masculinidades e nas feminilidades e realizam, na prática – concretamente na vida social – os mecanismos de poder vigentes numa dada sociedade. Podendo-se, assim, compreender que as construções culturais, que definem parâmetros para os homens, influem sobre o comportamento e as identidades das mulheres e viceversa. Nestas construções estão configuradas as masculinidades e as feminilidades que abrangem todas e cada uma das esferas da vida do ser humano. Hoje no Brasil, as discussões sobre equidade de gênero têm prioridade no Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2001) e no Plano Nacional de Políticas para Mulheres (PNPM) (BRASIL, 2004).4 A equidade de gênero pressupõe o processo de ser justo com as mulheres e com os homens. Portanto, para a garantia da equidade de gênero é preciso frequentemente adotar medidas para compensar as desvantagens históricas e sociais que impedem que mulheres e homens desfrutem de oportunidades iguais. Podemos destacar o papel central da educação, pois embora minoritário, o mau rendimento escolar de meninas ainda reforça o preconceito 4 BRASIL. Plano Nacional de Educação - PNE. Ministério da Educação. Brasília: Inep, 2001. ______. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2004. 3 segundo o qual as mulheres não devem fazer parte dos espaços de construção do saber. A reprovação dos meninos é percebida como “algo natural”, “coisas de moleques”, “coisas da idade”, “rebeldias”; a das meninas, como sinal de “burrice” e “incompetência”, “não têm jeito para os estudos”, o que evidenciaria que elas “não dão para a coisa”, restando-lhes “o lugar do não-saber: o trabalho doméstico” (ABRAMOWICZ, 1997: 52). Se o conceito de gênero, tal como se põe aqui, desafia algumas das estruturas milenares sobre as quais as sociedades foram historicamente construídas, cabe indagar: como esse processo de produção das relações de gênero se articula com a construção das sexualidades? Sexualidade: produto da construção social A Organização Mundial da Saúde, desde 2002, destaca a referência da sexualidade ao processo de construção das relações sociais, experimentada por meio de pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, condutas e práticas. Essa abrangência também ganhou sentido no bojo dos movimentos feministas dos séculos XIX e XX, já destacados, que colocaram sob avaliação o determinismo biológico que utilizava a idéia de sexo associada exclusivamente à reprodução. Contribuiu para tal processo o debate internacional provocado pela epidemia da AIDS. Nesse contexto, a polêmica sobre a relação entre biologia e cultura tem por base a defesa ou a condenação do caráter dual da espécie humana – representado pela fêmea e pelo macho – e da dualização generalizada das funções sociais. Reitera-se a idéia de que tanto o sexo quanto a sexualidade e o gênero devem ser compreendidos como construções e relações sociais, variáveis de uma sociedade para outra. Como nos lembra Maria Luiza Heilborn (1999), a cultura é a responsável pela transformação dos corpos em entidades sexuadas e socializadas, por intermédio de redes de significados que abarcam categorizações de gênero, de orientação sexual, de escolha de parceiro. A sexualidade, compreendida como produto da construção social, resulta da interação do mundo interno e externo, da subjetividade e da organização social. Ao adotarmos tal perspectiva que busca desnaturalizar esse domínio, e argumentamos pela construção social do 4 sexual, consideramos que essa dimensão humana não é natural, não é inata e nem universal em sua forma de expressão. Algo mais do que simplesmente o corpo biológico, a sexualidade que ele comporta não nasce com as pessoas, é uma atividade social, um constructo histórico e cultural. A fisiologia e a morfologia do corpo proporcionam as condições prévias para a sexualidade humana, mas não governam as formas de expressão e as experiências da sexualidade. Compreende-se assim que a socialização que o exercício da sexualidade demanda está intimamente relacionada ao modo como as relações de gênero estão organizadas em um determinado contexto, pois homens e mulheres são modelados socialmente de maneiras muito variadas. Nesse processo intervêm as representações sociais profundamente entranhadas no modo de conceber a sociedade, na produção de discursos e nas próprias práticas sociais. Gênero, sexualidades e políticas educacionais: muita (con) fusão O que dizer dos incessantes investimentos que circulam no âmbito da escola, nos imaginários, nas regras, tons de interação, entre outros, que colocam em ação, cotidiana e repetidamente, as diferenças entre os sexos socialmente impostas pelas relações de gênero? Nos pátios, nos corredores, a menina deve ouvir e responder constantemente aos comentários de professores e professoras sobre por que não se comporta como “mocinha”? Corrigem-se jeitos de falar, vestir, agir, sentir e desejar de meninos e meninas, garotos e garotas. São os dispositivos pedagógicos de gênero, os procedimentos sociais através dos quais um indivíduo aprende ou transforma os componentes de gênero de sua subjetividade (GARCIA, 2004). Assume-se, deste modo, que na escola as características femininas e masculinas são construídas, representadas e constantemente reelaboradas, por meio de um movimento de aprendizagem das masculinidades e feminilidades, incluindo e enfatizando, nessa perspectiva, que as representações do feminino e do masculino como construções culturais e históricas, permitem compreender que o gênero “é a organização social da diferença sexual” (SCOTT, 1994: 13). Nesse sentido, destacam-se a dimensão de atribuição cultural e a modelação 5 dos corpos sexuados, sendo o gênero um caminho para se compreender as complexas conexões entre várias as formas de interação humana, abrangendo outros aspectos da organização sócio-histórica como os saberes produzidos sobre a sexualidade. Isso supõe, antes de tudo, a ampliação do conceito de sexualidade, pois sua construção aproxima-se das mesmas determinações contidas nas relações sociais de gênero. A socialização que o exercício da sexualidade demanda está intimamente relacionada ao modo como as relações de gênero estão organizadas em um determinado contexto. Considera- se, portanto, a escola como um dos contextos nos quais os jovens e as jovens se produzem como atores sexualizados e generificados (EPSTEIN e JOHNSON, 2000). Entender gênero e sexualidade em uma perspectiva histórico-cultural, e não mais em uma perspectiva estritamente biológica, tem sido o principal fundamento dessas críticas. Enfim, instituições como a escola - enquanto produto sócio-histórico deve ser observada e examinada sob a perspectiva da “não naturalidade” acerca de preceitos de segregação que nos foram condicionados “naturalmente” na nossa história. Há inúmeros desafios a serem enfrentados pela produção acadêmica brasileira nesse campo, pois ao mesmo tempo em que atestam a inegável proximidade entre os estudos de educação, gênero e as temáticas relativas à sexualidade, revelam preconceitos e discriminações que marcam o cotidiano das escolas. Há em situações cotidianas nas escolas uma espécie de sinergia entre atitudes e discursos racistas, sexistas e homofóbicos5. Um exemplo que muitas vezes passa “despercebido”: se um aluno manifesta qualquer sinal de homossexualidade, logo aparece alguém chamando-o de “mulherzinha” ou “mariquinha”. O que poucos se perguntam é: Por que ser chamado de mulher pode ser ofensivo? O racismo consiste em crer que certas pessoas são superiores a outras devido a pertencer a uma raça específica. Os racistas definem uma raça como sendo um grupo de pessoas que têm a mesma ascendência. Sexista é termo que se refere ao conjunto de ações e idéias que privilegiam pessoas de determinado gênero. Homofobia: Termo usado para se referir ao desprezo e ao ódio às pessoas com orientação sexual diferente da heterossexual. 5 6 A misoginia6 e a homofobia se misturam e se reforçam. A discriminação em relação às mulheres ou ao feminino articula-se à discriminação dos sexualmente diferentes, daqueles que são sexualmente atraídos por pessoas do mesmo sexo. Ampla investigação realizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura/UNESCO, focalizando especificamente professoras/es brasileiras/os nas 27 unidades da federação, com o objetivo de traçar um perfil das/dos docentes dos ensinos Fundamental e Médio, em escolas das redes pública e privada, esmiuçou dados relativos às opiniões sobre comportamentos na esfera privada. Seis, dentre os itens relacionados nessa pesquisa, são considerados inadmissíveis; enquanto três são considerados admissíveis. Para 59,7% dos educadores/as ter relações homossexuais é inadmissível (UNESCO, 2004). No ano de 2009, pesquisa sobre preconceito e discriminação em contexto escolar, abrangeu 18.599 respondentes em 501 escolas de 27 Estados brasileiros, incluindo estudantes, professores (as), diretores (as), demais profissionais de educação e responsáveis7. Os resultados indicam que o preconceito e a discriminação latentes nas escolas resultam muitas vezes em situações em que pessoas são humilhadas, agredidas ou acusadas de forma injusta – simplesmente pelo fato de fazerem parte de algum grupo social específico. Entre estudantes (as) os (as) respondentes declaram conhecer mais práticas discriminatórias motivadas pelo fato de serem as vítimas negras (19%), em seguida por serem pobres (18,2%) e, em terceiro lugar, por serem homossexuais (17,4%). Compreende-se assim, que as políticas educacionais e a escola, enquanto espaço de práticas sociais e pedagógicas constituidoras de mecanismos que criam e recriam formas diversas de relações de poder, devem debater as implicações das relações de gênero e sexualidade nas práticas de inclusão/exclusão de seus/suas alunos (as). 6 Misoginia: Aversão a todos os símbolos (cabelos longos, maquiagem, determinados tipos de roupas, etc.) que são ligados ao gênero feminino. 7 Já entre professores, as principais vítimas de tais situações são os mais velhos (8,9%), os homossexuais (8,1%) e as mulheres (8%). Ver: FIPE/MEC/INEP. Projeto de estudo sobre ações discriminatórias no âmbito escolar, organizadas de acordo com áreas temáticas, a saber, étnico racial, gênero, orientação sexual, geracional, territorial, de necessidades especiais e sócioeconômica: sumário dos resultados da pesquisa. Brasília, 2009. 7 Portanto, tornar acessível o conjunto de contribuições de pesquisadoras (es) sobre as relações de gênero e sexualidade, contribui para que se desvelem (e desocultem) relações que, aparentemente são vistas como “naturais”, mas que são arranjos sociais, que ainda marcam fronteiras entre hierarquias de gênero - lugares masculinos e femininos -; sexualidades, consolidando polaridades limitadoras das potencialidades de crianças e jovens no espaço escolar. ABRAMOWICZ, Anete. A menina repetente. Campinas: Papirus, 1997 (Coleção magistério: formação e trabalho pedagógico). BRASIL. Plano Nacional de Educação - PNE. Ministério da Educação. Brasília: Inep, 2001. ______. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2004. _______. Projeto de estudo sobre ações discriminatórias no âmbito escolar, organizadas de acordo com áreas temáticas. Sumário dos resultados da pesquisa. FIPE/MEC/INEP: Brasília, 2009 EPSTEIN, Debbie e JOHNSON, Richard. Sexualidades e institución escolar. Madrid: Paidéia/ Ed. Morata, 2000. GARCIA, Ivan Carlos (ed.). Hacerse hombres, hacerse mujeres. Dispositivos pedagógicos de gênero. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central/ DIUC, 2002. HEILBORN, Maria Luíza. Sexualidade: o olhar das ciências sociais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. SCOTT, Joan W. Prefácio a Gender and Politcs of history. In: Cadernos Pagu (3): Desacordos, desamores e diferenças. Campinas: UNICAMP, 1994. __________. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e Realidade. vol.16, n.20, Porto Alegre, 1995. pp.5-22. __________. Entrevista com Joan Wallace Scott. In: Revista de Estudos Feministas, Florianópolis: UFSC, v.6, n.1, 1998. pp.114-124. UNESCO. O perfil dos professores brasileiros: o que fazem, o que pensam, o que almejam... São Paulo: Moderna, 2004. 8