PROTECÇÃO INTERNACIONAL E NACIONAL ÀS VITIMAS DE
GUANTÁNAMO
“[t]here is no trade-off between effective action against terrorism and the protection
of human rights. On the contrary, (…) we shall find that human rights, along with
democracy and social justice, are one of the best prophylactics against terrorism”.1
Kofi Annan
I.
O Grupo de Juristas (GJ) da Amnistia Internacional Portugal (AI Portugal), cujos
membros são activistas empenhados na defesa do respeito pelo Direitos Humanos
(DH) em todo o mundo, depõe grande inquietação sobre o estado actual em que se
encontra a protecção e assistência às vítimas de Guantánamo, principalmente no que
respeita ao respectivo apoio jurídico e humanitário, essencial para a realização e
respeito da dignidade humana dos mesmos.
Sabendo que existem detidos que, após libertação, não podem regressar ao seu país de
origem2, a Amnistia Internacional pretende que, à luz do Direito Internacional dos
DH, os Estados Terceiros cumpram as suas obrigações e encontrem soluções
humanitárias para as vítimas destas detenções arbitrárias e ilegais.
1
Kofi Annan, Secretário-Geral das Nações Unidas, Janeiro de 2002, apud AI, Memorandum to the US
Government on the Rights of People in US Custody in Afghanistan and Guantánamo Bay, AI Index
51/053/2002, Abril de 2002.
2
vide caso dos dezassete (17) Chineses Muçulmanos da etnia Uighur
http://jurist.law.pitt.edu/paperchase/2008/10/effort-to-relocate-guantanamo-uighurs.php
e
http://www.cfr.org/publication/16870/)
(em
em
Actualmente, estão detidas na Base Naval de Guantánamo, em Cuba, duzentas e
setenta pessoas, que para aí foram transferidas, a partir de 2002, na sequência de
detenções efectuadas no decurso de uma operação militar no Afeganistão ou de raptos
levados a cabo em África ou na Europa. Estes raptos, ao total arrepio das leis da
guerra, tiveram lugar em Estados terceiros, contra nacionais de Estados terceiros,
baseados simplesmente numa suspeita por parte do Presidente dos EUA ou dos seus
delegados. Para tanto terá sido ou foi mesmo emitida, em finais de 2001, uma Ordem
Militar a autorizar detenções indiscriminadas de cidadãos não norte-americanos (a
designada Military Order on the Detention, Treatment and Trial of Certain NonCitizens in the War Against Terrorism).
Entre essas pessoas, cerca de setenta foram já autorizadas para libertação ou
transferência, por não haver qualquer indício da sua participação em actividades
terroristas. Apesar disto, algumas não foram repatriadas por legítimo receio de tortura
à chegada ao seu país, enquanto outras esperam indefinidamente por acordos de
repatriamento entre o seu país e os EUA.
Embora o GJ não pretenda debruçar-se extensivamente sobre a problemática de
Guantánamo, à luz dos princípios mais básicos e impreteríveis do Direito
Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário, não
prescindirá da oportunidade de imprimir a sua posição de ser manifesta a necessidade
de uma tomada de posição expressa por parte da comunidade internacional, no sentido
de pressionar os EUA a encontrar uma solução para estes indivíduos, ilegalmente e
indefinidamente detidos desde 2002, bem como, de afirmar que o Estado Português
deve pronunciar-se pelo encerramento de Guantánamo.
Com a iminente libertação dos detidos de Guantánamo, é improrrogável a sua
reintegração nos países de origem ou, se tal não for possível, a integração em outros
países de acolhimento, e aqui surge a motivação e objecto do presente Parecer.
II.
Relembrando, com base nos princípios e regras consagrados pelos diversos
instrumentos de Direito Internacional dos Direitos Humanos, entre os quais, ao nível
universal, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), o Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), o Pacto Internacional sobre
os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), a Convenção contra a Tortura
e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, e a Convenção e Protocolo
sobre o Estatuto do Refugiado, também conhecida pela Convenção de Genebra de
1951, que nenhum Estado Parte deve expulsar ou retornar uma pessoa para fronteira
de um país onde a sua vida ou liberdade corra risco de ser ameaçada com base na
raça, religião, nacionalidade, por ser membro de determinado grupo social ou opinião
política.
A Lei do Asilo (Lei n.º 27/2008), no seu artigo 2.º, adoptou o Princípio do “Non
Refoulement”, revivendo o artigo 33.º da Convenção de Genebra de 1951, segundo o
qual os requerentes de asilo devem ser protegidos contra a expulsão ou repulsão,
directa ou indirecta, para um local onde a sua vida ou liberdade estejam ameaçadas
em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou
opiniões políticas, e a definição internacional de refugiado:
“«Refugiado» [é] o estrangeiro que, receando com razão ser
perseguido em consequência de actividade exercida no Estado da
sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da
democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os
povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana ou em virtude
da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou
pertença a determinado grupo social, se encontre fora do país de
que é nacional e não possa ou, em virtude daquele receio, não
queira pedir a protecção desse país, ou o apátrida que, estando
fora do país em que tinha a sua residência habitual, pelas mesmas
razões que as acima mencionadas, não possa ou, em virtude do
referido receio, a ele não queira voltar, e aos quais não se aplique
o disposto no artigo 9.º”
Conhecendo que o n.º 1 e n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 27/2008 prevêem que é
“garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou
gravemente ameaçados de perseguição, em consequência de actividade exercida no
Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia,
da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da
pessoa humana” e ainda que têm “direito à concessão de asilo os estrangeiros e os
apátridas que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça,
religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não
possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou
da sua residência habitual.”
No entanto, salvaguarda a norma do n.º 3 deste artigo que é “irrelevante que o
requerente possua efectivamente a característica associada à raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou político que induz a perseguição, desde que tal
característica lhe seja atribuída pelo agente da perseguição”
Recordemos que o Governo Português, através da Resolução do Conselho de
Ministros n.º 110/2007, de 12 de Julho, afirmando que, no âmbito da continuidade de
lançamento de políticas activas de acolhimento e apoio aos asilados, se revela
imperativo promover a criação de condições para conceder asilo, determinou que
sejam criadas condições para conceder anualmente, no mínimo, asilo a 30 pessoas.
Analisando e interpretando as normas que obrigam o Estado Português, é evidente
que as vítimas de actos de perseguição no país de origem não devem ser para lá
retornadas, considerando-se actos de perseguição, para efeitos de concessão de asilo,
aqueles que constituem “pela sua natureza ou reiteração, grave violação de direitos
fundamentais, ou [que se traduzem] num conjunto de medidas que, pelo seu cúmulo,
natureza ou repetição, afectam o estrangeiro ou apátrida de forma semelhante à que
resulta de uma grave violação de direitos fundamentais”, podendo os seus sujeitos
activos ser o Estado, os partidos ou organizações que controlam o Estado ou uma
parcela significativa do respectivo território ou mesmo agentes não estaduais,
conforme artigos 5º e 6.º da referida Lei.
Não se preenchendo todos os requisitos legais previstos nas aludidas normas, vem
ainda o presente diploma legal tutelar a posição dos requerentes que se encontram nas
condições em que não são “aplicáveis as disposições do artigo 3º e que sejam
impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade
ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos
humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave”.
Assim, importa atentar para as normas previstas nos artigos 10.º, 11.º e 12.º da já
aludida Lei, pelas quais lembramos que, mesmo havendo suspeita de abuso do direito
em pedir asilo, tem que prevalecer sempre o benefício da dúvida.
Parece incontestável que a Lei n.º 27/2008 tutela a situação de um ex-detido de
Guantánamo que se encontra prestes a ser restabelecido no seu país de origem,
quando se encontra em risco de aí sofrer violações de DH, razão pela qual o GJ insiste
na necessidade de empreender esforços concertados com as várias entidades
responsáveis por este processo, para que as vítimas de Guantánamo possam ser
recebidas no nosso País.
III.
Concluindo:
1. O Governo Português, enquanto defensor da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, tem o dever de afirmar o princípio de que os seres humanos, sem
distinção, devem desfrutar dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais;
2. Portugal é Estado Parte da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos
Refugiados de 1951 e do Protocolo de 1967, que definem o estatuto de refugiado e
as obrigações dos Estados para com os indivíduos com este estatuto;
3. O Estado Português, através da Lei n.º 27/2008, garante a concessão de asilo aos
estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de
perseguição, em consequência de actividade exercida no Estado da sua
nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação
social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa
humana, e aos que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua
raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo
social, não possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua
nacionalidade ou da sua residência habitual;
4. Estabelecer progressivamente um espaço de liberdade, de segurança e de justiça
aberto às pessoas que, obrigadas pelas circunstâncias, procuram legitimamente
protecção na Comunidade é um objectivo da União Europeia;
5. É imperioso dar vida à letra dos compromissos assumidos em instrumentos
nacionais e internacionais;
6. Têm frequentemente chegado a público notícias e relatórios que dão conta das
práticas de atropelos aos direitos humanos que ocorrem na prisão de Guantánamo,
base militar norte-americana em Cuba, que vão desde o prolongamento de
detenção sem qualquer formalização de acusação até à utilização de métodos de
tortura;
7. A prisão de Guantánamo é hoje sinónimo de violação dos Direitos Humanos, tal é
a gravidade dos atentados aos mais elementares direitos cuja notícia nos chega
pelos mais variados meios, nomeadamente por prisioneiros que são libertados e
por relatórios denunciadores, e que, nos últimos tempos, tem sido confirmada
pelas instâncias judiciais norte-americanas;
8. O Governo Português pretende manter-se afastado de qualquer espécie de
conivência com as violações de DH perpetradas em Guantánamo, encontrando-se
solidário com a luta pelo encerramento da prisão, tendo até sugerido, no semestre
passado, à Presidência eslovena da União Europeia, um debate sobre o tema;
9.
Alguns dos prisioneiros de Guantánamo, que têm vindo a ser libertados na
sequência da reposição do seu estatuto de inocência, sentem fundamentado receio
de serem perseguidos no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência
habitual, em consequência de actividade exercida em favor da democracia, da
libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da
pessoa humana ou em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções
políticas ou pertença a determinado grupo social, nomeadamente pelo estigma que
lhes foi imposto pelo tempo de detenção naquela prisão;
O Grupo de Juristas apoia, em absoluto, a campanha ora desenvolvida pela Amnistia
Internacional visando que, até Junho de 2009, os Estados, incluindo EUA, estendam
protecção internacional a detidos que receiam regressar ao país de origem, permitindo
que os mesmos se estabeleçam regularmente no país. Apoia, igualmente, que seja
divulgado e assumido publicamente o papel essencial dos governos dos países
terceiros, no sentido de encontrarem soluções humanitárias para os detidos de
Guantánamo, rejeitando quaisquer condições proibitivas impostas pelos EUA,
relacionadas com as deslocações, que possam violar obrigações do Estado à luz do
Direito Internacional dos DH.
O GJ apoia a AI Portugal a aconselhar veemente o Estado Português a desenvolver
um programa específico de acompanhamento às vítimas de Guantánamo, em parceria
com o Conselho Português para os Refugiados (CPR), bem como com outras
organizações locais que possam ter um papel importante na integração das mesmas.
O GJ apoia a AI Portugal na opção de apelar ao Estado Português para que promova a
recepção destas pessoas com base no estatuto de requerente de asilo/refugiado e que
desenvolva acções, nomeadamente concertadas com os EUA, para o efeito.
O GRUPO DE JURISTAS
Lisboa, 24 de Outubro de 2008
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