A EDUCAÇÃO DA PRIMEIRA INFÂNCIA HOJE: UM POSSÍVEL DIÁLOGO COM JOHN DEWEY Dariane Carlesso1 Universidade Federal de Santa Maria Este trabalho é fruto de estudos suscitados durante o desenvolvimento da pesquisa de dissertação de mestrado: “John Dewey e sua contribuição ao discurso contemporâneo sobre cultura escolar”. Ao ser revisitado, em algumas de suas obras consideradas importantes no campo educacional, John Dewey revela-se potencializador de uma reflexão significativa sobre a infância, especialmente no que diz respeito ao discurso de valorização da criança, suas vivências e experiências. Esta comunicação versará sobre a problemática da infância hoje, focalizando a discussão referente ao distanciamento entre a escola e a vida do aluno. Propõe, assim, um exercício de reflexão diante dos atuais discursos e práticas disciplinadoras e fragmentadas que permeiam o ambiente escolar. (Palavras-chaves: educação; infância, John Dewey; experiência). Introdução O objetivo deste trabalho é trazer para as discussões atuais sobre Educação Infantil, considerando a especificidade que esta etapa da Educação Básica tem por direito, as contribuições de um dos filósofos e pedagogos que primeiro aludiu e defendeu a centralidade da criança no processo de ensino, bem como a complexidade que envolve a educação da criança pequena, John Dewey. Centrando-se nesta temática principal, também serão discutidas questões referentes à cultura escolar, à educação infantil e à inserção da criança no mundo da escrita. Para fins de melhor organização do texto, ele será estruturado de forma que, em um primeiro momento seja descrito o “lugar de onde estou partindo”, qual é o “chão que estou pisando” para fazer as apreciações que acredito serem pertinentes. Abordando, assim, um pouco da minha formação escolar e acadêmica inicial, de minha pesquisa no curso de pós-graduação e, também das leituras que me subsidiam na compreensão do espaço escolar atual. Em um segundo momento, diante das problemáticas que já terão sido destacadas, focalizo minha escrita em uma das obras de John Dewey que acredito ser extremamente pertinente para o que estamos vivendo e discutindo hoje, quando falamos da educação da criança e da inserção da mesma no mundo letrado. Trata-se da obra intitulada “La educación de hoy”, na qual poderemos discutir as proposições deste autor quanto à educação primária, à inserção da criança na escola e os equívocos que são cometidos neste momento. Para finalizar, em um terceiro momento objetiva-se fazer um exercício de reflexão tentando compreender a produtividade de John Dewey para as discussões educacionais atuais. 1 Pedagoga, aluna do Programa de Pós-graduação em Educação-Mestrado da Universidade Federal de Santa Maria. Integrante da linha de pesquisa “Educação Política e Cultura”, desenvolvendo estudo sobre John Dewey e sua produtividade para pensar a escola contemporânea, sob a orientação da professora Elisete Medianeira Tomazetti. A história começa assim... Era uma vez uma aluna... Daquelas que não aceita mais o “a” e decide ser “luna”... Mas uma “luna” cabe na escola? E na academia? Este trocadilho inicial representa um pouco da minha inquietação com a organização escolar, com aquilo que a escola faz com seus alunos em nome de um saber, de um conteúdo, de uma prova, de uma avaliação. Minha trajetória escolar, acadêmica identifica-se com a da maioria das pessoas. Advimos de um sistema escolar que limita o porvir2 e a criatividade das crianças. Os níveis de desistência, reprovação, resistência ao espaço escolar revelam isso, e não precisamos pesquisar muito para ter acesso a estes dados. Entretanto, pergunto-me o que a escola faz com a criança quando resolve ensinar o a-luno (aquele que não tem luz)? Minha trajetória escolar revela um pouco isso. Meu primeiro dia de aula é exemplificador. Foi “dia de desenho livre”: Eu, muito alegre com o desafio de fazer um belo trabalho, iniciei meu desenho e logo “preenchi” o espaço em branco da folha com aquilo que de melhor eu sabia fazer: as lindas flores de quatro pétalas que minha mãe ensinou-me a desenhar. “Lindas flores!” elogia a professora, mas, “da próxima vez, você pode desenhá-las todas de pé” (!!!) Esta foi minha “recepção” na escola (pré-escola), nos meus cinco anos e meio de pura sabedoria! Enfim, com o passar dos anos aprendi a ser aluna (a-luna), aprendi a desenhar “direito”, aprendi a escrever “direito”, aprendi a me expressar “direito”, enfim fui me adequando aos tempos, espaços, conteúdos escolares, assim como a maioria das pessoas que hoje lêem este texto, por exemplo. O problema, entretanto, começa a surgir quando passo a olhar a escola sob outra perspectiva, qual seja, sob a ótica do professor, daquele que agora, em tese, não mais recebe lições de ordenamento, disciplina, mas é aquele que dá ordem, que dita a disciplina, que corrige o “errado” e enfatiza o “certo”. Logo, é nesta posição que me percebo hoje, na obrigação de refletir e repensar este espaço, talvez aí a explicação para eu questionar a denominação de a-luno e conceber a escola como um espaço que recebe crianças, nas mais diversas especificidades que esta faixa etária comporta. Como pesquisadora, indago a precária ligação que a escola estabelece entre educação e vida, conseqüentemente entre as experiências da criança e os conteúdos programáticos. Assim como a escola, a academia também é um espaço de disciplina e ordenamentos, esta é uma condição que faz parte das mais diversas instituições sociais. Estabelecer normas, parâmetros de conduta e valores, são normalizações que não podem ser formas de atravancar o desenvolvimento das potencialidades inerentes ao ser humano. Logo, a escola, passagem obrigatória para todos, é uma 2 Porvir é um termo utilizado por Jorge Larrosa (2001): “Com a palavra porvir nomearei aquilo que não se pode antecipar, nem projetar, nem prever, nem predizer nem prescrever, com aquilo sobre o que não se pode ter expectativas, com aquilo que não se fabrica, mas que nasce...” (2001, p.286). das instituições que mais fortemente consegue modelar, consegue formar e conformar o ser humano desde a mais tenra idade. Como afirma Rocha (2000): ... é justamente o espaço escolar, seja ele edificado ou não, aberto ou fechado, amplo ou mínimo, com funções e lógicas específicas (ou não), que permite ou não movimentos de ocupação e limitação, que institui práticas ou sequer as permite (...) mais do que isto: espaço de produção e reprodução de saber (e poder)... (p.117). Ao estabelecer parâmetros, a escola produz subjetividades, forma identidades, desde o aluno até o docente e, muitas vezes, é uma forma tão sutil que se internaliza como parte da vida das pessoas. O fato é que, ao instituir a escola, automaticamente, clamamos pela normatividade, essa, se faz exigência, ela referese ao ordenamento, imprescindível à conservação do instituído e da própria construção de subjetividades. As palavras de Dussel e Caruso sinalizam esta idéia: “o indivíduo necessita do outro que o nomeie e o situe em uma série ou rede exterior a si mesmo, para sair da indiferenciação na qual não existem nem ele nem o mundo...” (2003, p.233). É neste sentido que, a especificidade da educação infantil deve sim ser repensada, ou melhor, a educação da criança como um todo precisa ser revista, pois o fato de pertencer a uma escola e ser denominado como aluno não retira a potencialidade e os direitos da criança de sê-la. A abertura às mais diferentes linguagens, culturas, conhecimentos implica, também e reconhecer a criança como construtora de seus conhecimentos, portadora de uma identidade infantil, inerente ao desenvolvimento da criatividade, do envolvimento da criança com a escola. É a leitura da obra de John Dewey que me faz repensar a condição atual da criança dentro do espaço escolar. O disciplinamento, a rigidez, divisão de tempos e espaços, encaminham minhas indagações para a identidade da criança que este espaço vem construindo. Que identidade infantil é essa? Que potencialidades estão sendo creditadas e desenvolvidas? Se pensarmos na educação da criança pequena tendo como principal foco, por exemplo, a aprendizagem da escrita, o acesso ao mundo letrado, estamos centrando nossas atenções a apenas uma das perspectivas que precisam ser considerados na educação da criança. E isso dá conta da multidimensionalidade que envolve o ser humano? Entretanto, percebe-se isso na educação da criança pequena. Com este questionamento, de forma alguma desejo desvalorizar este importante conhecimento, apenas, questiono e problematizo as diferentes linguagens que permeiam a educação da criança. Quando uma criança de, por exemplo, 3 anos toma emprestada a voz da mãe, da professora, da amiga mais velha, e lê o texto com a voz emprestada, ela está lendo. Está lendo com os ouvidos, assim como outros lêem com os olhos ou com as mãos. (...)Ela experimenta a voz da escrita (BRITTO, 2005). É neste sentido que encaminho o texto, tentando chamar a atenção para as diferentes possibilidades de manifestação e apreensão do conhecimento próprias da criança quando valorizadas suas diferentes linguagens. John Dewey: Um resgate pertinente Trazer John Dewey para esta reflexão implica em valorizar seus escritos e acreditar neles para a educação de hoje. Para tanto, o cuidado com a apreciação de suas idéias, através de estudo e busca de compreensão de suas produções é fundamental. Um dos principais aspectos que nos remete a Dewey é a centralidade dada por ele à criança, ao protagonismo creditado a este pequeno ser em movimento de aperfeiçoamento e crescimento dentro do espaço da escola. Visivelmente percebemos isso na seguinte crítica feita por Dewey à educação tradicional: ... o seu incentivo à passividade, a sua massificação mecânica das crianças, a sua uniformidade de programas e métodos de estudo. Aquilo que a caracteriza pode ser resumido se dissermos que seu centro de gravidade é exterior à criança. Situa-se no professor, no manual... (DEWEY, 2002, p.40). A valorização da criança enquanto ser em potencialidade é uma das primeiras bandeiras levantadas por Dewey, apresentando-se permanentemente em sua obra. Entretanto, esta necessidade de trazer tal protagonista para o espaço escolar, perpassa por uma concepção de educação diferenciada, que não admite mais o adulto como único “dono do saber” ou a inferioridade e a falta de potencial da criança. Uma “nova” forma de compreender a educação delineia-se a partir de John Dewey, seus discursos educacionais renovadores imprimem uma perspectiva progressista de educação e propõem uma mudança da escola. A crítica feita por Dewey no final do século XIX e início do século XX mostra-se pertinente em vários aspectos hoje. Podemos dizer que ainda somos “vítimas” de um sistema educacional que não dá conta da criança e da complexidade que a envolve. Tornar a criança em aluno parece ser uma tarefa cada dia mais perseguida, as próprias políticas públicas hoje tendenciam para isso. Delineou-se ao longo da história da escola uma cultura escolar que não percebe as diferenças, que não valoriza a heterogeneidade a singularidade de cada um nas suas diferentes formas de ser e existir. A criança é cada dia mais homogeneizada, igualada, sofrendo com a falta de sensibilidade do adulto para com suas necessidades, sua identidade infantil, sua cultura enquanto criança. Ou seja, perde seu referencial de criança para “apressadamente” entrar no mundo adulto, assim como tal. Em sua obra La educación de Hoy, que teve sua segunda edição publicada em 1957, especialmente no primeiro capítulo: “El fetiche de la educación primária”, Dewey trata da condição de ser criança escolarizada naquele momento histórico. A concepção do ser criança como um adulto em miniatura, como alguém deve “vir a ser” subjugava aqueles pequenos à necessidade de adaptação ao ambiente escolar, suas normas, conteúdos e rotinas. Neste trabalho, Dewey critica fortemente os moldes em que se desenvolvia a educação primária de seus tempos, nele podemos apreciar ricas considerações, reveladoras de alguns de seus princípios educacionais. Podemos notar que a concepção de criança, para ele, perpassava não mais pela incompletude, mas sim pela possibilidade, pela potencialidade daqueles que deveriam estar no centro do processo educativo e não mais simplesmente sujeitos às normas e rotinas externamente impostas. A fim de que melhor sejam esclarecidas e entendidas suas compreensões, fazse necessário que referenciemos algumas das principais passagens encontradas em sua obra, tendo em vista que entendamos melhor a inquietação do autor frente à prática escolar de sua época. No livro La educación de hoy, John Dewey faz uma importante retomada histórica sobre as condições provocadoras da institucionalização da educação primária e, também a ‘defasagem’ da mesma quando pensada no contexto de sua época. Isso nos remete a perguntar: nos dias de hoje é diferente? De uma forma radical ele critica o ensino exclusivo da linguagem escrita nos anos iniciais da educação da criança e, questiona a necessidade de manter esta tradição nos dias que lhe eram atuais: Mi tesis es que as condiciones (sociales, industriales e intelectuales) han cambiado de manera radical que se hace necesario un examen a fondo de la importancia que se da al trajo linguístico en la instucción elemental (DEWEY, 1957, p.8). Consciente das mudanças que se apresentaram na condição de uma sociedade em processo de industrialização, a qual passa a disponibilizar e exigir outros meios para a aquisição e construção de conhecimento, Dewey critica a estatismo da escola, dadas as prioridades que a mesma ainda apregoa e, também, a pouca flexibilidade dessa, questionando a ‘atualidade’ das práticas educativas desta instituição tão tradicional nas organizações sociais consideradas por ele como civilizadas. Isso não só por mudanças sociais, mas também por um conhecimento maior sobre a criança, seu desenvolvimento. O ensino voltado exclusivamente para o domínio das letras, da leitura de “clássicos” tidos como única fonte de conhecimento válido ou de Cultura, é uma prática que perpassou várias gerações e, segundo Dewey, não cabe mais a situação que lhe era contemporânea. Perguntamos, então, se cabe à nossa? Quando instituída, a escola passa a ser o meio prioritário e privilegiado de inserir-se no mundo letrado. Ela surge e firma-se como importante instituição social, mantenedora do saber e do poder enquanto prioridade das classes mais abastadas, em um momento “...en que el único camino para llegar al conicimento era el saber leer, cuando la lectura era el único instrumento que permitia manejar las fuentes acumuladas de conocimento de nuestra civilización ” (1957, p.8). Neste contexto, a leitura e escrita, para os poucos que dela poderiam se apoderar, era por si só uma satisfação, uma forma de reconhecimento social. Entretanto, segundo Dewey e, como bem podemos perceber isso mudou. O conhecimento tão somente da leitura já não nos basta e, com o advento das diferentes ciências da educação, principalmente da psicologia, descobre-se a inconveniência de priorizar tal tarefa nos anos iniciais de escolarização. Logo, chega-se a compreensão de que este não pode ser o único viés enfatizado pela escola, especialmente nos primeiros anos de escolarização das crianças. Ao ser aceito o protagonismo da criança, começa-se a perceber a integralidade inerente a ela, consequentemente, as possibilidades e potencialidades presentes na sua condição e no mundo que a cerca. As diferentes linguagens, além da escrita, que podem ser exploradas e desenvolvidas no ser humano passam a fazer parte do discurso educacional deweyano. Para o autor, a condição da sociedade que começa se constituir, exige uma formação diferenciada de homem, a formação para a participação, para as diferentes formas de comunicação que a sociedade oferece, passa a fazer parte de seu discurso. E como formar para a democracia sem reconhecer a capacidade do ser humano de pensar por si próprio, de ser autônomo e capaz de tomar decisões, de ‘ler’ seu mundo...? Que modelo de escola temos que possa dar conta de tais qualidades? Que modelo de escola queremos? Lembrando que para este autor a emancipação e o “aperfeiçoamento” do ser humano tem um fim principal que é a formação para a democracia. Cabe destacar aqui, que o questionamento ao ensino exclusivo da linguagem escrita não pode ser tomado isoladamente, o autor, com a afirmação feita anteriormente não objetiva desconsiderar o ensino das letras e o conhecimento dos saberes produzidos pela humanidade ao longo da história. Seu objetivo maior é salientar as diferentes possibilidades de fazer com que os mais novos construam conhecimento e não simplesmente repitam-nos numa atividade mecânica. Para tanto, faz-se necessário, segundo Dewey, considerar o contexto e as experiências já vivenciadas pelos alunos. Pois, somente na interconexão entre a vida das crianças e os conhecimentos trabalhados na escola é que vai haver verdadeiramente construção de conhecimentos. Então o que a escola está fazendo? Esta é a pergunta que norteia suas críticas ao modelo tradicional de educação e fomenta seus escritos sobre a necessidade de uma diferenciada perspectiva de escola. Dewey salienta, com freqüência, que o momento vivenciado por ele delineia mudanças substanciais e, já naquela época, alerta: Parece innecesario decir que hoy han cambiado las circunstancias intelectuales y sociales. Es indudable que el viejo estado de cosas persiste todavía en los distritos rurales apartados y lo que he de decir no tiene importancia especial para ellos, pero en el general, el advenimiento del correo rápido y barato, de los viajes y transportes fáciles y contínuos, del telégrafo y el teléfono, la creación de bibliotecas, museos e clubs literarios, la difusión universal de material de lectura barato, diarios ey revistas de todas clases y niveles, todo ello ha causado un cambio inmenso en el medio intelectual inmediato. Los valores de la vida y la civilización, en lugar de estar lejos, y por lo tanto ser inacessibles, precionam al individuo – por lo menos en las ciudades- con intensa urgencia y fuerza estimulante. Es más probable el hartazgo que la muerte por hambre; hy más congestión que falta de alimento intelectual (1957, p. 09). A leitura feita por Dewey da conjuntura social e organizacional de seu tempo, revela a origem de sua sede por mudança e sua crítica à inoperância da escola frente à sociedade que se configura então. Dewey critica a direção que tomou a aprendizagem da leitura e da escrita na escola, atividade primeira e única enfatizada na chegada da criança à instituição. Para ele, é neste momento que ocorre o “divórcio fatal entre a substância e a forma de expressão”, pois, a criança, vivendo em um contexto que tem muito mais para oferecer, é obrigada a realizar uma tarefa mecânica e sem sentido na escola. Para o autor aqui estudado, antes de a criança ser iniciada nas letras, ela precisa desenvolver-se no global, até porque, sua condição biológica não está própria para uma tarefa tão minuciosa quanto é a leitura e a escrita. Para Dewey, assim como para muitos dos autores que referenciamos para falar da educação infantil hoje, a consideração da criança nas suas mais diferentes formas de expressão é consenso. Entretanto, nos vemos caminhando para uma modelo de organização e formação que se preocupa em antecipar e apressar a aprendizagem e por meio da linguagem escrita prioriza a “aquisição de conteúdos”, no sentido restrito. Entretanto, a necessidade de olhar a criança a partir de uma perspectiva menos preocupada com aquilo que ela deve ser, com aquela sociedade que ela deve vir a servir, faz-se necessário. A criança, enquanto tal merece viver esta etapa de sua vida na completude que lhe é de direito, os problemas enfrentados pela infância hoje, especialmente na sua relação com a escola, são ‘pedidos’: “... de propostas escolares que respondam os seus interesses e a suas necessidades, ao desenvolvimento de sua criatividade, dos seus potenciais latentes, da sua inteireza” (FRIEDMANN, 2005, p. 12). Outra questão importante é levantada pelo autor quando ele menciona as poucas oportunidades que, neste mundo industrializado, são oferecidas para que as crianças experienciem situações “práticas e motoras”, das quais, ela “necessita para equilibrar seu desenvolvimento intelectual” (DEWEY, 1957). Nesta afirmativa, o autor já começa a delinear sua compreensão sobre educação e aprendizagem, logo, a vinculação que percebe como fundamental entre as atividades práticas e o desenvolvimento cognitivo. John Dewey, em seus escritos, assume uma postura de defensor da infância, da condição de ser criança, especialmente por acreditar que se fazem extremamente necessárias, para o bom desenvolvimento infantil, a interação da criança com “a riqueza de materiais que a rodeia”. Sem precipitar suas ações ao ato da escrita e leitura, como veio se delineando na institucionalização da educação e que hoje parece assumir uma pressa ainda maior. Estas duas atividades (leitura e escrita) primordiais para a escola, na visão de Dewey competem às crianças que já tenham desenvolvido noções mínimas de compreensão do próprio contexto. Para que as futuras aprendizagens vivenciadas no ambiente escolar estejam minimamente interligadas com as experiências até então construídas pelas crianças. Aqui podemos perceber a influência primeira de John Dewey nas teorizações de Paulo Freire, educador brasileiro (1921-1997), dadas as afirmações do último: “a leitura de mundo precede a leitura da palavra”. Muito embora saibamos que Paulo Freire, no decorrer de sua trajetória como educador sofreu outras influências, teóricas, políticas, indo além da leitura de Dewey. Retomando a linha norteadora do texto e, tentando perceber a enorme gama de vicissitudes e particularidades evidentes entre o que Dewey defendia em sua época e o que enfrentamos hoje em nosso contexto educacional, especialmente aqui falando da experiência de leitura e escrita da criança, e a valorização de outras linguagens infantis, podemos nos reportar a seguinte passagem: “Aprende a leer, no por consideración a lo que lee, sino simplesmente porque lee. Así, cuando el processo de la lectura se transforma em um fin em si, es psicológicamente impossible que tenga vida propria”. (1957, p. 15). Entretanto, aquilo que seria o meio principal para a criança “apropriar-se” da Cultura e dos conhecimentos produzidos pela humanidade, acaba sendo uma tarefa insignificante, dolorosa, sem propósitos ou finalidades interessantes ao aprendiz. É quando a criança chega à escola, iniciada no “mundo das letras” que ela começa a estabelecer uma distância trágica entre seu mundo e o mundo da instituição educativa, afirma Dewey. O estabelecimento de graus mínimos de correlações inexiste, pois cada palavra lhe é apresentada e assimilada única e exclusivamente pela sua forma e não pelo seu conteúdo. E sua atividade resume-se a reconhecer e expressar as formas. Esta separação, infelizmente, a acompanhará pelo restante de sua vida escolar. Estas constatações são alguns dos pressupostos que alimentam a teorização de John Dewey sobre educação e se dão, especialmente, por ter ele feito parte de um sistema educacional, durante sua vida escolar, no qual todas estas colocações foram de certa forma experienciadas. “La absoluta trivialidad del contenido de nuestros primeros libros de lectura escolares muestra el resultado inevitable de forzar en el niño, en época prematura, el dominio de formas de lenguaje externas” (1957, p.15). Cabe aqui perguntar: Quando falamos em crise da escola, hoje, não estamos apontando com mais ênfase uma problemática já ressaltada por este autor há muitos anos atrás? Dewey critica o disciplinamento presente na escola ao enfatizar tais métodos tradicionais de ensino e, também, pontua enfaticamente a necessária relação que a escola deve preocupar-se em estabelecer com as necessidades mentais da criança (com os níveis de desenvolvimento cognitivo). E isso só irá se efetivar na medida em que o professor conseguir colocar a criança “em relação vital com a matéria de leitura” (DEWEY, 1957). O objetivo de sua escrita neste direcionamento, ao falar sobre a leitura e a escrita, está não em atacar os livros e toda a cultura letrada, está sim em tentar apropriar-se do enorme valor dos mesmos, no sentido intelectual e moral, afirma o autor. Logo, por meio de uma metodologia que oportunize a significação daqueles escritos. Neste sentido, cabe aqui questionar se nossas escolas estão considerando a criança, suas necessidades e especificidades, pois, o que vemos é uma preocupação exacerbada com as normas, os disciplinamentos, os conteúdos certos, a preocupação “cega” que domina as aulas, em vencer conteúdos, em ensinar isso, aquilo, etc. As conseqüências de uma metodologia de ensino da leitura e da escrita equivocada como vem acontecendo, segundo Dewey, tem repercussão por toda a vida escolar e até acadêmica do aluno, ou seja, são eles padecedores de uma “dependência servil dos livros” e, também, “da incapacidade de utilizá-los eficazmente”. Entretanto, nos valendo de um exemplo citado pelo próprio Dewey, a queixa dos professores universitários de que os alunos não são capazes de “ver por si mesmos”, ou que existe pouca autonomia, criatividade, advém de situações resultantes de uma vida escolar que primou pelo ensino abstrato, no sentido pejorativo do termo, e pela falta de incentivo ao pensar próprio do educando, contraindo a idéia de que o que é certo é somente o que os outros já disseram e registraram. Esta compreensão perceptível na obra do autor aqui estudado é mais um sinal de sua significativa crítica ao ideário cultural até então primado na escola. Entretanto, ao permanecer primando por uma Cultura que se diz superior a tudo que a criança está vivenciando no momento, a escola acaba esquecendo do caminho que o aluno precisa percorrer para alcançar tal nível de abstração e compreensão. Desconhecer as situações que o rodeiam, ou não valorizá-las é uma forma de limitar possibilidades, capacidades de desenvolvimento social e intelectual. Portanto, para Dewey: ... los fatores fundamentales del programa primário del futuro: el trabajo manual, la ciência, el studio de la naturaleza, el arte y la historia. Ellos mantienen vivos los impulsos positivos e creadores del niño y los dirigem de tal manera que le disciplinan en los hábitos de pensamientos y de acción necesarios para participar en la vida en comunidad (1957, p. 20). Percebemos nesta fala, de maneira mais enfática, a pontuação que o autor faz à necessidade de que a formação dos futuros cidadãos acontecesse de tal forma que conseguisse alcançar além do desenvolvimento global da criança, também, o progresso de uma sociedade moderna que se delineava. Por isso, também, nosso cuidado em contextualizar o pensamento deweyano à condição social e econômica vivida por ele no final do século XIX e início do século XX. Seu crédito à possibilidade de uma sociedade democrática, que conseguisse bem viver na comunidade, perpassa pela educação da criança sem “apressamentos” ou “alijeiramentos”, mas, principalmente com muita credibilidade ao ser criança, como alguém que pode constituir-se autonomamente no meio social em que está inserido. Algumas considerações Cabe destacar neste momento final do trabalho, que a discussão sobre as possíveis contribuições da teoria de John Dewey não podem e não devem acabar por aqui. O que foi escrito até então ainda são leituras preliminares deste importante teórico, que precisa ser revisitado sim. Não só por ser um clássico, mas também, por ser alguém que prenuncia importantes e necessárias mudanças para a educação contemporânea. Segundo alguns autores: Dewey não é somente importante porque é um clássico, mas porque antecipa inúmeros dilemas da condição pós-moderna com o qual nos confrontamos. Um deles é a recusa da história como monumento, mas sua valorização como uma das respostas ao presente que destituiu a idéia de progresso em história e recupera a noção da história como sintoma (BARBOSA, p. 16, 2002). É sob esta perspectiva que se reitera aqui a posição de que a leitura da obra de Dewey é importante. Logo, faz-se necessário ter clareza de que essa só não aconteceu em virtude de um desprestígio por parte da academia para com este autor. Isso, em nome de uma referência ideológica ao liberalismo, que acaba por desconsiderar as reais contribuições deweyanas. A escola de hoje sofre uma séria crise de paradigmas, vivemos um momento conturbado, que gera mudanças e exige-nos reflexão. Entretanto, pensar a educação infantil neste contexto sem esquecer da especificidade que acompanha esta etapa da educação básica é também parar para pensar que educação é essa. Pois, neste questionamento, começamos a nos dar por conta daquilo que estamos praticando nas escolas e proferindo em nossos discursos. De nada vale “legalizar” a educação infantil se esquecemos que dela faz parte a criança. Assim como, também, de nada adianta discursarmos sobre a especificidade desta etapa e exigirmos, de forma “velada”, um disciplinamento “adulto” das mesmas. A criança nas suas diferentes formas de manifestação precisa ser valorizada, isso faz parte da constituição e aceitação de uma identidade infantil, da criança pelo professor. E, na realidade, é isso que Dewey indiretamente nos diz quando critica a “unilateralidade” que a escola costuma olhar para criança. Ou seja, com os olhos de quem só acredita em uma linguagem, a escrita, representando um Conhecimento ou na Cultura eleita e aceita pelo currículo e cultura escolar. Referências BARBOSA, Ana Mae. Reavaliando a recepção de Dewey ou atualizando John Dewey. Cap. 1. 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