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OS MODISMOS, A CIRCULAÇÃO DE IDÉIAS E A FORMAÇÃO
DE PROFESSORES NO BRASIL
Luiz Artur dos Santos Cestari1
“….the fear of ridicule would be the most antiphilosophical sentiment.”
Gabriel Tarde
Resumo: Este trabalho apresenta ao campo educacional um estudo sobre a circulação
de idéias, especificamente tenta compreender a acusação freqüente neste campo de que
uma idéia está em moda. Em nosso entender, compreender os modismos envolve
apresentar os motivos pelos quais uma idéia se torna mais importante que outra num
determinado momento e por que ela se difunde, ocupando a preocupação central de
educadores e pesquisadores. Apresentaremos esta comunicação em dois momentos.
Primeiro, discutiremos o paradoxo presente neste campo de acusação de modismos,
contradito pelo receio dos intelectuais em incluir este fenômeno no domínio de seus
estudos. Em segundo, realizaremos um esboço da compreensão da circulação de idéias
em três contextos: emergência, recepção e disseminação. Por fim, mostraremos algumas
indicações da forma como as idéias circulam como uma moda tomando como base um
estudo sobre a circulação de abordagens autobiográficas na formação de professores no
Brasil.
Palavras-chaves: Modismos. Circulação. Idéias. Formação de Professores.
Introdução
Temos apresentado ao campo educacional uma preocupação relacionada ao
modo como as idéias circulam e em específico a de tentar entender a acusação freqüente
neste campo de que uma idéia esteja em moda. Compreender os modismos envolve, em
nosso entendimento, apresentar as razões pelas quais uma idéia se torna mais importante
que outra numa determinada época e por que ela se difunde, passando a ocupar o centro
das preocupações de educadores e pesquisadores num certo momento.
O que nos permite perceber o fenômeno de moda é de imediato a repetição,
ou seja, o anúncio dos mesmos pressupostos de forma repetitiva em vários lócus de
disseminação seja em revistas de divulgação científica, nos programas dos cursos de
formação de educadores, nas propostas de políticas públicas para a educação ou ainda
nas dissertações e teses publicadas em cursos de pós-graduação. Assim, é pela repetição
da idéia que nos convencemos da ocorrência dos modismos.
Por outro lado, nem sempre a repetição se dá pelas mesmas razões de
apropriação de uma idéia, ou seja, associada à repetição está a diferenciação do modo
como esta idéia será assimilada num contexto epistemológico. Como exemplo disso,
1Doutor em Educação e Professor Adjunto da UESB, vinculado ao Departamento de
Estudos Básicos e Instrumentais, Campus Itapetinga. [email protected]
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temos o estudo que realizamos recentemente sobre a circulação das abordagens
autobiográficas na formação de professores no Brasil. Naquele momento, tínhamos
apontado que a repetição da ‘crença autobiográfica’ era realizada em diversos domínios
de estudos sobre formação de professores, isto é, em estudos sobre as didáticas
específicas – linguagem, matemática, ciências da natureza e sociedade; em estudos
envolvendo preocupações identitárias, tais como os problemas relacionados ao gênero e
à afrodescendência; em estudos sobre a inclusão social, etc. Deste modo, percebemos a
ocorrência de sujeitos, em variadas situações formativas, se questionando sobre sua vida
e contando suas experiências formativas.
Estas
situações
nos permitiram perceber
um núcleo
comum
de
questionamento sobre si e o relato de experiências positivas e afirmativas como a crença
autobiográfica. A repetição deste núcleo em diferentes domínios nos levou a identificar
que quanto mais circulava a idéia em domínios diferenciados ainda mais esta idéia se
distanciava dos problemas concretos vivenciados pelos sujeitos, ou seja, a adesão ao
ideário autobiográfico se justificava pelo próprio ideário, deixando de lado o anúncio de
problemas pertencentes aos sujeitos e às relações educacionais, para anunciar
significados novos e ainda não vivenciados nesta realidade. Neste sentido, a apropriação
das autobiografias encontra justificativa pela importância que as abordagens
autobiográficas têm alcançado no campo da formação e, muito menos, por razões
relacionadas ao objeto de estudo.
Esta breve exposição nos mostra a relevância e como o tema repetição e
diferença está intrinsecamente relacionado ao problema da circulação das idéias e em
específico do modo como isto ocorre no campo educacional. Em nosso estudo, temos
elaborado uma compreensão de como é possível entender os modismos no campo
educacional e, para isso, caminhamos em dois sentidos. De um lado, optamos pelo
estudo do fenômeno de moda e do paradoxo de repetição/diferenciação inerente a ele.
De outro, pelo estudo da ocorrência de um exemplo do campo educacional com a
finalidade de mostrar como uma idéia pode ser apreendida como um modismo.
Neste texto pretendemos fazer senão um esboço da compreensão dos
resultados que temos alçando ao estudar como as idéias circulam no campo da formação
de professores no Brasil e, especificamente, apontaremos algumas indicações de como
procedemos esta análise ao estudar as abordagens autobiográficas. Por isso, num
primeiro momento, apresentaremos algumas justificativas que nos levaram a estudar os
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modismos no campo, sistematizadas no seguinte paradoxo: a constatação dos modismos
pelos intelectuais na educação, acompanhada do receio epistemológico em incluir este
fenômeno no domínio de seus estudos.
Num segundo momento, apresentaremos a forma de compreensão da
circulação das idéias e dos modismos no campo da formação em três contextos: da
emergência, da recepção e da disseminação. Estes três momentos indicam que uma idéia
para circular como uma moda passa pela sua retirada do contexto emergência – origem
local, histórica e epistemológica da idéia – da sua recepção em outros contextos – a
acolhida da idéia e seus efeitos de migração – e, posteriormente, a sua disseminação – a
difusão desta num domínio específico de estudos, em nosso caso na formação de
professores no Brasil.
Portanto, partindo desta elaboração buscamos estudar a difusão da ‘crença
autobiográfica’ na formação de professores no Brasil e, com isso, pudemos perceber
como circula um discurso com forte apelo à defesa das experiências individuais e, ao
mesmo tempo, levando a cabo a aceitabilidade irrestrita dos pressupostos do Movimento
Pesquisa/Formação, apostando bem mais nos efeitos de unicidade – aceitabilidade
incontestável da crença autobiográfica – do que na valorização das diferentes
experiências que tanto anuncia.
1 Modismos: da constatação ao receio epistemológico
Há um bom tempo temos convivido no campo educacional com a afirmação, e
em alguns casos isto se faz com inquietações, de que alguma idéia está em moda. A
ocorrência disso tem sido feita pela repercussão de uma abordagem ao influenciar os
modos de falar sobre como educar numa época e é possível que encontremos
recorrência de uma mesma idéia em propostas formativas, no modo de falar dos
docentes, em políticas públicas, em revistas científicas, em anais de congresso etc.
Assim, quanto mais notamos sua veiculação pelos espaços de disseminação do
conhecimento, ainda mais nos damos conta de que se trata de uma idéia em moda.
Entretanto, a mesma convicção que temos em reconhecer a ocorrência deste
fenômeno no campo não se mantém quando tentamos compreendê-lo, ou seja, admitir
questões sobre o que é uma moda de idéia ou o que é uma idéia em moda não é uma
opção tão comum quanto à de reconhecer os modismos. Por exemplo, em outro trabalho
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(CESTARI, 2008) temos mostrado as contribuições de alguns autores brasileiros, que
aceitaram a tarefa de questionar o “construtivismo” como uma moda no campo
educacional, e em nenhum deles foi encontrada qualquer elaboração conceitual da
noção de moda. Além disso, quando notamos uma ocorrência, isto não se fez com a
intenção de estudar a idéia como uma moda, mas esta se restringiu a descrever um
mínimo conceito, para em seguida abandoná-lo2.
Nesses estudos encontramos algumas percepções importantes quando se trata
da ocorrência dos modismos de idéia na educação. Primeiro, a concepção mais comum
da noção de moda de uma idéia é aquela que considera os modismos como resultado de
uma adesão gregária, decorrente de uma apropriação inconsistente pelo professor3.
Neste sentido, identificamos que o professor é acusado de não obter o amadurecimento
intelectual que seja comparável ao que fazem os intelectuais em suas experiências de
pesquisa e, tendo em vista os precários processos formativos aos quais muitos são
submetidos, eles são acusados de estabelecerem uma relação com a idéia que em muito
se distancia do modo como esta é elaborada nos domínios de sua reflexão
epistemológica, ou seja, encontramos estudos que acusam os processos rápidos e
momentâneos de “formação continuada” de serem responsáveis por introduzirem de
forma, também gregária, concepções desenvolvidas prioritariamente nos âmbitos das
pesquisas acadêmicas.4
2De acordo com Rossler (2005), os modismos nas sociedades modernas capitalistas são, no sentido de
Agnes Heller, fenômenos de alienação e é esta definição que ele se apropria para apresentar a expressão
do construtivismo como uma moda. No entanto, segundo ele, esta definição é um mínimo esclarecimento
do conceito e ele mesmo, apesar de abordar o fenômeno como uma moda, afirma que o objetivo do seu
texto: ”... não é propriamente o de caracterizar o que seja um modismo e, especialmente, um modismo em
educação, mas sim o de adotando como pressuposto o fato de o construtivismo ter-se constituído num
modismo, procurar analisar as origens sociais e psicológicas do poder de atração desse ideário” (Rossler,
2005, p. 05).
3Ver a respeito Arroyo (1993) e Silva (1993)
4No caso do construtivismo, por exemplo, a tradução do seu ideário para a prática de docentes em
muitos casos não tem sido feita mediante uma reflexão sobre as condições diferenciadas entre o
laboratório dos pesquisadores no domínio da psicologia cognitiva e a realidade escolar, onde os
professores desenvolvem seu trabalho. Ainda notamos, nos dias atuais, pouca problematização da
migração dessas idéias entre domínios epistemológicos e práticos distintos. Até a reflexão que tem sido
feita nas pesquisas, no domínio das didáticas dos conteúdos específicos, quando discutem a tradução dos
saberes (o problema da transposição didática, por exemplo) apenas se restringem a questionar como
podemos ensinar um saber, tal como ele é elaborado e apreendido do âmbito de sua produção, ocultando
que outro processo de tradução está sendo do mesmo modo operacionalizado, a saber: o de traduzir
categorias e modos de pensamentos entre campos epistemológicos e práticos distintos.
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Esta primeira percepção da moda se constitui tomando como base a
desvalorização do professor, até porque a distinção (professor x pesquisador) beneficia
bem mais o campo intelectual, omitindo alguns problemas que os intelectuais teriam
que justificar, tal como o receio em introduzir o conceito de moda no domínio de suas
categorias de pensamento, uma vez que, ao fazer isso, teriam que reformular suas
perspectivas teóricas que tradicionalmente não contemplam o fenômeno da moda.
Assim, a acusação de apropriação inconsistente parece ser uma saída fácil que livra os
intelectuais de relutar frente às suas próprias construções e, em nosso ver, tão
inconsistente quanto à atitude gregária a que acusam.
Outra concepção que encontramos na literatura no campo educacional é o
entendimento de que os modismos são “ilusões da sociedade do conhecimento”
(DUARTE, ROSLLER, 2005). Nesta concepção percebemos que as idéias em moda são
falsas representações erigidas para justificar o novo ideário burguês ou esconder as
contradições do capitalismo contemporâneo. Esta concepção é problemática ao menos
em dois pontos. Primeiro, porque sustenta a idéia de que há uma verdadeira
representação da realidade e, logo, uma idéia que é mais verdadeira que aquelas
submetidas ao efeito das modas. Neste caso, a acusação de modismo se faz para mostrar
que ainda há uma verdade utópica a qual nem todos estão intencionados a ver e o
professor se torna afeito ao modismo por ainda não ter adquirido a consciência
adequada, por isso ele se ilude com as novas investidas do capital no campo
educacional. Segundo, porque, ao manter a crítica ao capitalismo, os autores
mencionados reduzem os modismos a uma espécie de (epi)fenômeno ideológico
igualmente a outros que são inerentes à estrutura da sociedade capitalista, e é por este
motivo que uma postura desta natureza olha bem mais para o instrumental crítico ao
sistema capitalista do que para um fenômeno particular ao campo educacional, tentando
estender a este a mesma crítica feita a outros objetos.
Uma terceira concepção que encontramos se nega desde o início a aceitar a
moda como um fenômeno que merece atenção do campo educacional5. Por isso, faz
uma incursão inversa às anteriores, pois rejeita qualquer construção interpretativa
tomando como base uma distinção que atribui a alguns o privilégio do recuo crítico, e a
outros não, ou seja, não há um “grupo” responsável pelos modismos, mas este é um
fenômeno do campo. Apesar disso, esta concepção se recusa em tentar problematizar a
5Sobre esta percepção ver, por exemplo, Corazza (1996).
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moda como uma categoria compreensiva, do mesmo modo como faz as outras
concepções relatadas. Assim, este posicionamento reconhece o fenômeno da moda, mas
considera que este é um fenômeno para o qual deveremos resguardar nossas ressalvas,
embora incluí-lo no conjunto de nossas preocupações seria perda de tempo.
O levantamento que aqui apontamos não é exaustivo, mas nos apresenta
algumas indicações que permitiram nossa trajetória na relação com o tema. Em primeiro
lugar, nenhum dos autores mencionados, e que se posicionaram frente ao fenômeno dos
modismos no campo educacional, apontou para questionamentos sobre o que é uma
moda, sobre o que é uma moda de idéias ou quais são as particularidades deste
fenômeno no campo educacional. Ao ler os trabalhos, percebemos o que denominamos
de “receio epistemológico” em incluir a moda na ordem de preocupação do campo e
este receio parece ser sustentado por sentimentos de revolta, de decepção ou até de
indignação diante da ocorrência dos modismos.
Em segundo lugar, este diagnóstico nos fez reconhecer que não podemos
apresentar o problema dos modismos sem uma estenografia conceitual da noção de
moda. Somente o anúncio e o sentimento negativo frente à ocorrência do fenômeno não
são suficientes, acreditamos, para o estudo das idéias educacionais em moda, ou seja,
para compreender o modismo de idéias na educação é importante que tentemos
compreender o fenômeno da moda e os problemas que este suscita. Por isso, tomamos
duas decisões.
A primeira decisão nos manteve atentos às ocorrências dos modismos na
educação e, estudando os mais notórios, buscamos esboçar algumas questões imanentes
ao fenômeno. Nos exemplos estudados, notamos que as idéias em moda, em geral, eram
idéias elaboradas em campos correlatos ao da educação e que eram apropriadas como
idéia educacional, trazendo seus pressupostos e impondo à educação uma meta a ser
apreendida como educacional. Por exemplo, no caso já relatado do construtivismo, a
idéia de educar estava intimamente vinculada ao desenvolvimento cognitivo dos sujeitos
e é por isso que o professor deveria se debruçar a entender a estruturação dos conceitos
pelos sujeitos, bem como suas fases de desenvolvimento. Assim, o indivíduo educado é
aquele que passava adequadamente pelos estágios de desenvolvimento cognitivo.
Diante disso, um primeiro momento de nosso estudo sobre o fenômeno de
moda de uma idéia é compreendê-la no contexto de sua emergência, ou seja, quais
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sentidos são levados à educação para a afirmação de uma determinada idéia como
educativa.6
Após isso, um segundo momento de nossa preocupação veio da constatação de
que as idéias acusadas de modismos na educação no Brasil eram idéias oriundas de
outros contextos locais e históricos. Neste sentido, outro contexto foi problematizado,
que é o de entender a recepção desta idéia na educação brasileira, isto é, qual a recepção
ela recebeu? Diferencia-se dos sentidos construídos em seu contexto de origem
(emergência)? Quais (re)significações são operacionalizadas?
Por fim, um terceiro momento era entender os sentidos da idéia após a sua
difusão no campo educacional e, para isso, denominamos este terceiro momento de
estudo da idéia no contexto da disseminação. Neste pudemos ir mais fundo quanto à
noção de moda.
É neste ponto que nos aproximamos do interesse em estudar os modismos no
campo educacional, apontando a necessidade de elaborar uma estenografia conceitual
da moda. Ao mesmo tempo, fomos levados ao campo da moda e para isso procuramos
tentar entender como teóricos sociais da moda apreenderam este fenômeno. Disso
resultou um estudo sobre a história do fenômeno que nos fez percorrer por autores como
Simmel, Bourdieu, Lipovetsky, Tarde e outros. Nos estudos realizados, embora
ressalvando suas particularidades, todos os autores identificaram um paradoxo inerente
ao processo moda, ou seja, a moda é a ocorrência ao mesmo tempo da repetição e da
originalidade, pois, ao mesmo tempo em que tenta imitar o mesmo, tem, também, a
pretensão contínua de diferenciação. Foi esta estrutura que fomos tentar apreender nos
estudos sobre modismos no campo educacional: o que se repete e o que se diferencia na
ocorrência de uma idéia sob o efeito de uma moda?
6Vale a ressalva de que a imposição de uma idéia ao campo educacional não é uma
ocorrência restrita aos modismos e em muitos casos podemos identificar idéias de que
se impõem à educação e ainda assim esta não adquire a expressão que exige o fenômeno
de moda. Esta é uma questão epistemológica do campo educacional e diria problemática
porque, também, encontramos autores que advogam a idéia de que a educação não seria
um campo de saber com suas especificidades, mas um domínio de certo modo aberto a
incursões de outros saberes. Não é meu interesse discutir estas questões, apenas tomo
este direcionamento porque tenho por intenção mostrar, tal como veremos a seguir, que
do deslocamento entre contextos de uma idéia decorre a (re)significação da própria
idéia. Por isso, este primeiro momento de abordagem é a compreensão do significado de
uma idéia no contexto de emergência.
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2 Esboço de uma compreensão da circulação de idéias
As considerações parciais delimitadas após esta incursão pela problematização
dos modismos em educação nos conduziram a perceber que o problema dos modismos
se encontra intrinsecamente vinculado ao problema da circulação das idéias,
especificamente do modo como circulam as idéias no campo educacional. Por isso, tal
como notamos acima, os estudos que temos realizado exigem o esboço da circulação de
idéias em três dimensões e foi isso que fizemos quando estudamos a circulação de
abordagens autobiográficas no campo da formação de professores no Brasil.
A primeira consistiu em compreender a aproximação entre uma idéia e o
campo da educação ou formação, ou seja, como as idéias são apropriadas para o campo
da formação, que denominamos de estudo da idéia no contexto de emergência. Como
exemplo disso, estudamos como as autobiografias, e implícitas a estas as experiências
de socialização propiciadas pelas narrativas de vida, são apreendidas como experiências
de formação no conjunto de produções vinculadas ao Movimento Pesquisa/Formação7.
Neste momento, nos interessou mostrar os problemas desta apropriação e, neste caso,
delimitamos os sentidos que vão sendo firmados no campo da formação para as noções
de memória, de socialização biográfica, de narrativas etc, ou seja, consistiu em apontar
a “sintaxe ideológica” elaborada no campo da formação para manter os pressupostos em
aceitar as autobiografias como experiência de formação.
Na segunda tratamos de outro conjunto de problemas relacionados à migração
de idéias entre contextos locais e históricos. Orientado por contribuições de Pierre
Bourdieu sobre o problema da circulação internacional das idéias (BOURDIEU, 1989)
apontamos o argumento de que a circulação de uma idéia entre os contextos de acolhida
e recepção não é realizada sem que haja (re)significação da idéia, isto é, entre o
contexto de origem (denominado aqui de contexto de emergência) e o de acolhida
(contexto de recepção) existem justificativas diferenciadas para a apropriação de uma
7Nos últimos 20 anos na Europa, as autobiografias e ou as histórias de vida têm sido apropriadas pelo
campo da educação com o sentido de uma experiência teórico-metodológica de construção existencial.
Esta perspectiva teve início com a preocupação em apresentar nova orientação para trabalhar com a
educação e formação de adultos na Europa reunindo pesquisadores da Suíça, França, Portugal e Inglaterra
com a intenção de mostrar que a valorização da experiência do professor, mediante a história de vida,
pudesse colocar os mestres para falarem de si por si mesmos, valorizando sua vida e a experiência do
processo de pesquisa como formação de uma experiência existencial. Ver Pineau (2006), Josso (2004) e
outros autores que tem denominado este movimento de Pesquisa/Formação.
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idéia. Por isso, neste segundo momento de nossa pesquisa o interesse tem sido em
mostrar as diferentes justificativas de apropriação das autobiografias em contextos
locais e históricos distintos. Para isso, indicamos a realização de uma história social da
problemática das autobiografias para a formação de professores no Brasil, ou seja,
apontamos os sentidos das autobiografias para os estudos e pesquisas sobre formação de
professores no Brasil. Nesta incursão pudemos perceber que as idéias migradas de
outros contextos tendem a circular pelo contexto da recepção como um modismo porque
os sentidos destas idéias estão cada vez mais distantes daqueles identificados na história
social do problema.
Por exemplo, tomando como base um estudo realizado com a literatura sobre
formação de professores e o uso das abordagens autobiográficas, pudemos notar que
estes estudos utilizaram as autobiografias para anunciar um problema específico do
contexto da formação de professores no Brasil. As pesquisas tentavam mostrar, por
exemplo, o problema do gênero, discutindo a feminização do magistério no Brasil e as
trajetórias de professoras em escolas públicas; a questão da afrodescendência e as
questões relacionadas á inserção do negro nas escolas e universidades no Brasil; a
questão da leitura e do acesso ao conhecimento, etc. Assim, o uso das autobiografias
encontra justificativa nos problemas inerentes à educação e às escolas brasileiras.
De modo diferente encontramos as autobiografias nos estudos influenciados
pelo Movimento Pesquisa/Formação, no qual as autobiografias tiveram o interesse de
(re)significação da vida dos sujeitos. Neste movimento, os autores querem antes colocar
os docentes para contar sua história visando uma avaliação dos significados de suas
vidas do que mostrar problemas que eles enfrentam no contexto das escolas e da
sociedade brasileira. Esta mudança de enfoque no uso das autobiografias fez com que o
ideário do movimento de valorização da experiência narrativa como processo de
formação se afastasse cada vez mais dos problemas da formação vivenciados pelos
professores no Brasil. Em muitos estudos no Brasil, encontramos o uso das
autobiografias justificadas apenas na crença de que “contar sua história a si” é
reveladora de sentidos ainda não percebidos, isto é, o uso das autobiografias se justifica
pela potencialidade que tem a experiência autobiográfica em oferecer situações para a
constituição dos significados de uma vida.
A terceira dimensão do estudo da circulação de idéias no campo educacional
foi denominada de contexto da disseminação. Neste, nós nos dedicamos a compreender
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as formas de apropriação da “crença autobiográfica” - auto-afirmação pelas narrativas
de si - por estudos e pesquisas realizadas no campo da formação de professores. Em
nossa análise pudemos perceber a circulação desta mesma crença em diferentes
conjuntos de interesses em pesquisas sobre formação. Percebemos que o uso das
autobiografias se faz em variadas situações de estudos nas quais encontramos em
comum a invariável questão sobre a construção de si.
Por exemplo, em pesquisas sobre educação matemática o professor começa a
questionar as razões pelas quais se tornou professor de matemática, quais as relações
históricas ele estabeleceu com a disciplina como aluno e se isso de certo modo altera a
sua atuação como docente. Do mesmo modo, encontramos esta incursão em pesquisas
sobre professores de outros conhecimentos em domínios específicos das didáticas, em
reflexões sobre temáticas pedagógicas, tal como a questão de problematizar as
experiências de estágios de alunos mediante a história de suas vidas; encontramos ainda
pesquisas que tentam aproximar diferentes áreas de conhecimento pelas autobiografias,
isto é, pesquisas envolvendo áreas como as dos campos da saúde e da educação, por
exemplo; e ainda pesquisas autobiográficas que apresentam a trajetória formativa de
sujeitos em campos nos quais a problematização sobre os percursos da vida é quase
inexistente, levando em consideração um histórico da produção deste campo. Por
exemplo, encontramos estudos socializados em eventos sobre pesquisas autobiográficas
em que bibliotecários apresentavam questionamentos sobre a “construção de si” e a
experiência formativa na sua trajetória como bibliotecário.
Portanto, o que aproxima estas pesquisas é a circulação da “crença
autobiográfica” e este é um elemento comum, que se repete entre os vários estudos
apreciados em nossa pesquisa. Temos percebido que invariavelmente a crença
autobiográfica é aceita como núcleo de questionamentos que permitem os sujeitos
interpelraram suas vidas em variados domínios de estudos e pesquisas e apostarem, ao
mesmo tempo, na crença de que há sempre um resultado afirmativo deste processo.
Assim percebemos, também, que a circulação das idéias se faz pelo anúncio autojustificado dos pressupostos do Movimento Pesquisa/Formação, isto é, o uso desta
abordagem encontra em sua potencialidade significativa as razões de sua apropriação,
deixando de lado as especificidades dos domínios das pesquisas e dos estudos aos quais
é introduzida.
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Considerações Finais
O estudo dos modismos no campo educacional nos fez alcançar alguns
resultados que consideramos imprescindíveis à compreensão da circulação de idéias.
De início, nos afastamos do receio epistemológico em relação aos modismos
encontrado em alguns autores que se interessaram pelo tema. Parece comum o
sentimento de indignação frente à ocorrência dos modismos, tal como se este fenômeno
fosse um tipo de degeneração no campo que atinge um grupo de não iniciados, os quais
não estão preparados para realizar, conforme exigências feitas pelo campo científico, a
apropriação de uma idéia educacional. Em nosso posicionamento, não descartamos que
isto também acontece, mas nossos estudos têm mostrado que a difusão da crença
autobiográfica e das formas como se deu a sua apropriação foi o resultado de estudos
realizados em meios de disseminação do conhecimento propiciados por setores
consolidados pela academia, tais como os programas de pós-graduação stricto senso, os
eventos de disseminação do conhecimento organizados por estes setores e até os meios
de divulgação científica.
Por isso, é importante considerar que não há uma distinção de quem é
responsável pelos modismos, se os professores que recebem os discursos ou os
pesquisadores que os reelaboram e os legitimam. Nossas anotações sobre a circulação
de idéias nos levaram a concluir que a difusão de um modismo se faz, inicialmente,
pelos acordos de legitimação de uma idéia e a mútua cooperação entre os pesquisadores,
o que nos fez perceber que isso acontece de cima para baixo, ou seja, da aceitabilidade
da idéia entre os distintos pesquisadores e responsáveis pela apropriação e produção do
conhecimento para, só depois, assim, atingir os iniciados.
Com isso, vimos que esta lógica obedece a uma das leis da imitação
anunciadas por Tarde (2001), quando este nos mostra que a difusão dos objetos a serem
imitados é um processo que se realiza primeiro dentre aqueles considerados superiores
numa ordem de distinção num determinado contexto, pois, segundo ele, toda imitação
desce do superior para o inferior, ou seja, toda imitação é unilateral e só depois se torna
recíproca ou se mutualiza.
Outra consideração que Tarde (2004) nos levou a perceber é que uma idéia
se torna mais importante que outra numa época porque ela se torna mais útil naquele
momento. No caso das abordagens autobiográficas e tomando como base uma breve
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revisão no campo da formação de professores no Brasil8, percebemos que a repercussão
destas9 vai encontrar no Brasil um contexto de recepção favorável a propostas que
exigem a individualização dos sujeitos, configurado, ao mesmo tempo, pelas exigências
de responsabilização do professor no âmbito das políticas educacionais, pela
valorização do cotidiano escolar e da vida do professor, assim como pela afirmação de
um posicionamento contrário ao excesso de discursos sobre educação e formação,
oriundos da produção intelectual, isto é, um tipo de reivindicação personalizada do
professor em busca de suas referências.
Este cenário nos deu uma visão das razões pelas quais o contexto da
recepção favorece a individualização e, do mesmo modo, fizemos uma incursão pela
produção literária pedagógica no Brasil, delineando os significados atribuídos às
abordagens autobiográficas e inscritos nas produções; permitindo apreender os
significados destas abordagens entre os contextos da emergência – contexto local e
histórico de surgimento do Movimento Pesquisa/Formação - e da recepção – contexto
de apropriação desta perspectiva no Brasil.
Nossa hipótese da relação entre os contextos (emergência e recepção) é de
que os sentidos das autobiografias oriundas do contexto da emergência são apropriados
de modo a se sobreporem aos da recepção. O estudo da recepção da crença
autobiográfica nos fez perceber que o campo da formação de professores no Brasil ao se
tornar cada vez mais sensível aos pressupostos do Movimento Pesquisa/Formação,
também, fez com que as pesquisas se afastassem do contexto da realidade das escolas e
dos sujeitos, pois as pesquisas passaram a dar ênfase às experiências individuais e à
identificação de etapas formativas segundo as narrativas anunciadas pelos próprios
sujeitos.
Esta condição permitiu uma particular disseminação das abordagens
autobiográficas na formação de professores no Brasil. A crença autobiográfica passou a
8Ver a respeito disso, Borges (2001), Nunes (2001) e Freitas (2002), que fazem uma boa
revisão do cenário da produção na formação de professores nos anos 80 e 90, assim
como Bueno (2002) que mostra que neste domínio este período é marcado pelo que
denomina de “reinvidicação da subjetividade”, no qual as produções se tornam mais
sensíveis a expressão dos sujeitos.
9A tendência à individualização não foi um processo exclusivo do campo educacional
no Brasil, mas interligado a exigências contemporâneas em outros domínios do saber e
em nível internacional.
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colonizar os mais diversos domínios de estudos no campo da formação de professores
de modo que se tornou bem mais relevante a aceitabilidade do ideário do Movimento
Pesquisa/Formação do que as próprias condições dos objetos de estudos nestes
domínios.
Diante disso, percebemos duas outras exigências de Tarde (2001) para a
difusão das idéias como uma moda. A primeira se refere à superioridade das imitações
estrangeiras sobre as locais e com isso pudemos notar que os significados oriundos
desse movimento são tomados como superiores àqueles estabelecidos no contexto da
formação de professores no Brasil porque a valorização da crença autobiográfica esteve
associada à aceitabilidade irrestrita de seus pressupostos. Assim, em muitas pesquisas,
que se apropriaram dos pressupostos do Movimento Pesquisa/Formação, o anúncio de
suas virtudes como experiência de formação eram demasiadamente reiteradas. A
segunda foi o anúncio destas abordagens como uma significação da novidade e que era
capaz de oferecer uma nova perspectiva para os estudos sobre formação, porque
possibilitava o sujeito a falar um novo discurso, que se encontrava adormecido nele por
ainda não ter sido interpelado. A revelação disso os projetava para uma nova dimensão
de significados porque construídos segundo suas narrativas.
Portanto, os estudos dos modismos não se realizam pela acusação de quem
é responsável coletiva ou individualmente por uma adesão gregária das idéias, mas pelo
modo como uma idéia circula pelo campo, ou seja, pela identificação das significações
construídas num domínio específico do conhecimento, pela sua migração entre
contextos e, posterior, difusão. Neste caso, acusação personalizada pela ocorrência dos
modismos é uma espécie de auto-ilusão uma vez que não podemos garantir o que o
outro poderá fazer com minhas idéias, ou seja, não temos e jamais teremos o controle da
recepção.
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