As classes sociais e o capitalismo tecnoburocrático
Luiz Carlos Bresser-Pereira
EAESP/FGV, julho de 2014. Este trabalho não está completo. Sugestões são benvindas. A Revolução Capitalista começou nos países do norte da Itália em torno do século
XIV e foi pela primeira vez concluída na Inglaterra, com a formação dos estados-nação
e a Revolução Industrial. Foi uma revolução maior que transformou a história da
humanidade, porque mudou de maneira profunda a organização econômica e política
da sociedade mundial então em formação que passou a ser uma sociedade moderna ou
capitalista, e porque deu riqueza e poder aos povos que a completavam realizando sua
própria revolução nacional e industrial. Foi a revolução que, associada às duas
revoluções inglesas do século XVII, ao Iluminismo e à Revolução Francesa, deu
origem à ideia de lucro e à acumulação de capital, à ideia de eficiência e ao
desenvolvimento econômico, às ideias de liberdade individual e de justiça social e ao
liberalismo e o socialismo, e, afinal, à ideia de democracia. Foi a revolução que deu
origem, primeiro, a uma nova e grande classe dominante, a burguesia, e, depois, à
Revolução Organizacional, que deu origem a uma segunda grande classe dominante, a
tecnoburocracia ou classe profissional. Marx, que foi o analista genial e o grande
crítico da revolução capitalista, sabia que o capitalismo é caracterizado por um
extraordinário dinamismo tecnológico, mas nem ele, nem ninguém, previu a mudança
tecnológica que ocorreria logo após sua morte, a Segunda Revolução Industrial
associada três fatos históricos novos – a produção e o consumo de massa, a
transformação do conhecimento no fator estratégico de produção, e a substituição das
famílias pelas organizações empresariais no papel de unidades básicas de produção –
que determinariam a emergência da classe tecnoburocrática, e que o capitalismo
deixaria de ser o Capitalismo Liberal do século XIX para se transformar no
Capitalismo Tecnoburocrático (ou Organizado, ou do Conhecimento),
Desenvolvimentista, e Social-democrático do nosso tempo – tecnoburocrático se o
olharmos do ponto de vista das classes sociais, desenvolvimentista, se o critério for o
da coordenação econômica (apenas pelo mercado, apenas pelo Estado, ou por ambos),
e Social-democrático, se o olharmos do ponto de vista da distribuição. Neste ensaio
meu interesse é em procurar entender essa nova classe e o Capitalismo
Tecnoburocrático.
1. Classes sociais As classes sociais são uma categoria social própria do capitalismo; são grandes
grupos sociais definidos por sua inserção nas relações de produção ou formas de
propriedade fundamentais existentes nas sociedades capitalistas. Marx definiu as
classes sociais a partir das duas classes – a burguesia e a classe trabalhadora – a
primeira definida pela propriedade privada dos meios de produção ou capital,
enquanto que a segunda vende como se fosse uma mercadoria aos capitalistas. Nesse
ensaio, uma tese central é a de que, no século XX, surgiu uma segunda classe
_______________ Luiz Carlos Bresser-­‐Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas. [email protected], www.bresserpereira.org.br. dominante – a tecnoburocracia ou classe profissional, também definida por sua
respectiva relação de produção – a organização ou propriedade coletiva dos meios de
produção. Esta visão das classes sociais não deve ser confundida com a teoria das
classes sociais de Max Weber, que enfatiza a forma de dominação e o poder
aquisitivo ou posição no mercado, seja em sua forma original, ou na forma
desenvolvida por Ralph Dahrendorf (1957) e por Gerhard Lenski Jr. (1966).
Distingue-se igualmente das teorias funcionalistas de estratificação social associadas à
sociologia da modernização de Talcott Parsons (1937) e de Lloyd Warner (Warner et
al. 1949), frouxamente apoiadas em Max Weber.
Distingue-se, finalmente, da teoria das posições sociais de John Goldthorpe (1982,
1995), David Lockwood (1995) e Mike Savage (1995, 2000) e da teoria de Pierre
Bourdieu (1979) relacionando as classes sociais ao “gosto” e ao “capital cultural”,
embora estas teorias estejam relacionada com a visão de Marx. Em seu notável estudo
sobre “o gosto” e as classes sociais, o Bourdieu mostrou a relação entre os dois
fenômenos. Ele considerou as relações de produção como essenciais para definir as
classes, mas afinal, ao realizar suas pesquisas, ele adotou um conceito de “classe
social dominante” no qual ele somou a classe tecnoburocrática à classe capitalista. E,
afinal, concentrou sua análise nos profissionais ou tecnoburocratas, desta maneira não
apenas reconhecendo a existência dessa terceira classe – algo que por muito tempo os
marxistas recusaram-se a aceitar. Ele se interrogou sobre as condições de existência
dos agentes sociais, e afirmou que “ao nomear essas classes pelo nome da profissão
não se faz senão afirmar que a posição nas relações de produção comanda as práticas
[sociais] por intermédio principalmente dos mecanismos que regem o acesso às
posições”. Devemos, portanto, considerar as diversas profissões. Quais são as
posições que Bourdieu situou na classe dominante? São aquelas que possuem um
volume relativamente grande de “capital econômico” ou então de “capital cultural”,
este último dependendo da formação escolar. Ora, capital cultural e outro nome para o
“comando do conhecimento”, o qual define a classe tecnoburocrática para todos os
sociólogos que a reconheceram como a terceira classe social do capitalismo. Bourdieu
deixa essa distinção em aberto, e, em suas pesquisas, situa na “classe dominante” os
proprietários e altos executivos (patrons) das empresas industriais, os proprietários e
altos executivos das empresas comercias, os profissionais liberais, os administradores
(cadres) privados, os engenheiros, os administradores públicos, e os professores.1 Ele
mistura, portanto, capitalistas e profissionais, e, como as pesquisas sobre os
capitalistas e seus rendimentos é muito difícil, como mesmo seus ganhos em termos
de dividendos, juros e aluguéis não são facilmente encontráveis nas estatísticas
oficiais, e como seus ganhos de capital são ainda mais difícil de medir, Bourdieu
enfocou sua análise nos profissionais. Entretanto, quando Bourdieu passa a analisar as
profissões de acordo com seus gostos, de acordo com o tipo de consumo dos bens
simbólicos ou culturais, torna-se clara a diferença entre os capitalistas e os
profissionais, ficando os profissionais liberais como o grupo híbrido por excelência
situado entre os tecnoburocratas e os capitalistas.
Ainda que essas teorias alternativas tenham utilidade em termos de uma visão
descritiva da sociedade, não atendem à necessidade de explicar o poder e o processo
histórico de mudança social e política, se não forem combinadas com a visão original
de Marx. Interessa-me aqui uma teoria das classes sociais de acordo com essa tradição
de pensamento – uma teoria que nos forneça ferramentas para a análise do capitalismo
atual e de sua dinâmica histórica. Mas, ao contrário de Marx, não vejo o conceito de
2 classe nas sociedades antigas, escravistas ou feudais. Nessas sociedades parece-me
mais apropriado se falar em uma oligarquia dominante, já que o grupo dominante de
militares e sacerdotes é muito pequeno, em comparação com a imensa classe dos
trabalhadores livres e dos escravos e também em comparação com a relação numérica
entre a burguesia e a classe trabalhadora. E também porque o poder dessa oligarquia
não tem base econômica, mas está baseado em uma pretensão aristocrática dos
militares e sacerdotes devidamente legitimada pela religião.
Classes sociais são grupos sociais definidos pela forma como se inserem na produção
e pelos papéis que desempenham na mudança social. Através do processo de luta de
classes, elas se tornaram, no capitalismo, os atores principais da história capitalista.
Mas, ao contrário do que Marx esperava, história não pode ser compreendida em
termos apenas de luta de classe, principalmente porque essa luta se revelou não
resolutiva, ou seja, não resultou na superação do capitalismo pelo socialismo. Por isso
e porque as classes não são todos monolíticos, mas com frequência estão divididas
internamente, as coalizões de classe – principalmente a distinção entre uma coalizão
de classes desenvolvimentista e uma coalizão liberal – revelou possuir forte poder
explicativo. Verificou-se que os interesses da burguesia empresarial ou produtiva são
muitas vezes conflitantes com os interesses da burguesia rentista ou improdutiva, o
que permitiu, em alguns momentos, geralmente caracterizado por altas taxas de
crescimento econômico, a associação dos empresários com a burocracia pública e os
trabalhadores urbanos em torno de uma estratégia nacional de desenvolvimento.
Para que a tecnoburocracia deixasse de ser um mero estamento para se transformar
em uma classe era essencial que estivesse associada a ela uma nova relação de
produção e que o número de seus membros tivesse tamanho suficiente para que
pudesse formular um projeto histórico destinado a torna-la, primeiro, a parte da classe
dominante, e mais tarde, quem sabe, a única classe dominante. O que define a classe
dominante é o controle do fator estratégico de produção – a terra, ou o capital, ou o
conhecimento – e o controle maior ou menor que tenha do Estado, ou seja, do sistema
constitucional legal e da administração pública que o garante. Uma vez definida a
classe dominante, define-se também a distribuição funcional da renda entre as classes
sociais. Escrevi um livro centrado sobre esse tema, Lucro, Acumulação e Crise (1986),
no qual examinei o problema da distribuição dentro do capitalismo, primeiro quando
neste havia apenas a classe capitalista e a trabalhadora, e, depois, quando se somou a
ela a classe tecnoburocrática. Rejeitei a tese de Marx que no capitalismo o excedente
econômico seria exclusivamente apropriado pela burguesia, e mostrei como essa
apropriação passava, gradualmente, partilhada pelos trabalhadores, na medida em que
a sociedade se democratizava, a partilhada pela nova classe tecnoburocrática na
medida em que ela emergia. E mostrei como essa repartição mudava no tempo,
permitindo que identificássemos fases do desenvolvimento capitalista, também em
função da mudança da natureza do progresso técnico (dispendioso de capital, neutro,
ou poupador de capital).
Aqui basta considerar que classe dominante em cada modo de produção apropria-se
do excedente. Esta apropriação toma a forma de impostos e trabalho escravo no
escravismo, de corveia no feudalismo, de lucro especulativo ou acumulação primitiva
no capitalismo mercantilista, de lucro ou mais valia relativa no capitalismo clássico, e
de lucro, de ordenados, de bônus e de opção de compra de ações no capitalismo
tecnoburocrático. Mas é preciso também considerar o que acontece com os salários.
3 No quadro do capitalismo liberal, que prevaleceu até quase o fim do século XIX nos
países mais desenvolvidos, o regime político liberal era autoritário, os trabalhadores
não tinham direito de voto nem liberdade de organização sindical, de forma que eram
forçados a aceitar em troca de seu trabalho um salário que correspondia à subsistência.
Por isso os economistas clássicos definiram o salário pelo nível de subsistência
socialmente necessário do trabalhador, e definiram o excedente econômico como a
produção que excede o consumo necessário. Eles desenvolveram uma teoria de
repartição da renda na qual os salários eram dados, correspondentes a esse nível de
subsistência historicamente determinado, enquanto os lucros apareciam como o
resíduo, como a consequência do aumento (ou diminuição, nas teorias da estagnação
de Ricardo e Marx) da produtividade. Entretanto, o enorme aumento de produtividade
ensejado pelo capitalismo, o surgimento do Estado democrático no início do século
XX e o crescimento da capacidade organizacional dos trabalhadores mudaram este
quadro. Os salários começaram a aumentar acima do nível de subsistência, na
proporção do aumento da produtividade, enquanto os lucros permaneceram
relativamente constantes no longo prazo, apenas flutuando ciclicamente. Por outro
lado, quando a classe tecnoburocrática passou a ter um peso real na economia na
medida em que administrava as grandes organizações empresariais, os ordenados (sua
forma específica de remuneração e apropriação do excedente) passaram a ter
participação crescente na renda. Assim, no capitalismo tecnoburocrático ou dos
profissionais, além dos capitalistas e dos tecnoburocratas, os trabalhadores e
empregados também aumentaram seus salários nos países ricos desde meados do
século XIX até meados dos anos 1970, acompanharam o aumento da produtividade.
Entretanto, como também sua educação e mais amplamente os custos de sua
reprodução social aumentaram correspondentemente poderíamos afirmar que seu
consumo continuou a se limitar ao de sobrevivência historicamente determinado ou
socialmente necessário, e que o salário continuou equivalente ao valor de sua força de
trabalho. Hoje, nas sociedades desenvolvidas, apenas os “excluídos” – aqueles sem
relação formal de trabalho ou com relação de trabalho precária – vivem abaixo do
nível de subsistência.
2. Castas e grupos de status É típico de sociedades pré-capitalistas estabelecer castas e grupos de status ou algum
outro tipo de divisão social do trabalho hereditária, rígida e sustentada por valores
religiosos e pela lei. Muitas vezes somos levados a crer que castas e grupos de status
desempenham o papel das classes sociais em formações econômicas pré-capitalistas.2
Mas isto é não correto, ou não constitui toda a verdade. As incontáveis castas e
subcastas da Índia e os muitos tipos e tamanhos de grupos de status ou de estados na
sociedade feudal são não alternativas reais às classes, mas antes uma estratégia da
classe dominante para organizar hierarquicamente e regulamentar o sistema social3.
Classes sociais básicas ainda existem, com base em sua participação na produção.
Mas elas são posteriormente divididas em grupos menores e mais estáveis, para os
quais são definidos direitos e, o que é mais importante, responsabilidades e limitações.
Diz-se que às vésperas da Revolução Francesa a sociedade estava dividida em três
estados: a nobreza, o clero e o povo. Mas o povo estava dividido em subgrupos de
status menores. A situação é semelhante entre as castas na Índia. Por outro lado,
grupos de status são também formas de estratificar a classe dominante. Assim,
observa Hans Freyer:
4 O exército, o clero, a função pública e a propriedade de terras são geralmente setores que os grupos de status dominantes reservam para si mesmos (1931:169). Weber estava correto ao comparar os grupos de status com as castas: 'uma casta é sem
dúvida um grupo de status fechado'(1916:39). No entanto, ele foi um dos responsáveis
pela afirmação hoje amplamente difundida de que as classes sociais e os grupos de
status são formas alternativas de organização social. Por exemplo, ele afirma que 'as
classes são grupos de pessoas que, do ponto de vista de interesses específicos, têm a
mesma posição econômica', enquanto os grupos de status são um 'tipo de prestígio
social ou de falta dele' (1916:39). Nessa mesma linha, ele denomina 'Status e Classes'
o Capítulo IV da Primeira Parte de "Economia e Sociedade". Aqui ele define classe
em função da posição no mercado, ou seja, com base em 'uma probabilidade que
deriva do controle relativo sobre bens e habilidades e de sua capacidade de
produzirem renda, dentro de uma dada ordem econômica', enquanto 'status
(standische lage) significaria um direito efetivo à estima social em termos de
privilégios positivos ou negativos.' (1922: 302-305).
A noção de prestígio social, que é parte do conceito de grupo de status, na verdade se
refere sobretudo aos grupos de status mais elevados formados pela classe dominante e
seus associados, como a burocracia pré-capitalista. O fato de um membro da classe
inferior pertencer a um grupo de status profissional é também encarado pela classe
dominante e aceito pela classe dominada como uma indicação de prestígio social. É
uma 'honra' e um 'privilégio' pertencer ao grupo de status dos pedreiros ou dos
açougueiros, especialmente se considerarmos que o monopólio desta distinção deriva
da 'apropriação de poderes políticos ou hieráticos.' (Weber, 1922:306). A importância
estratégica que este tipo de distinção tem para a classe dominante é evidente.
Estabelecendo castas e grupos de status, a classe dominante neutraliza a luta de
classes. Assim, alguns autores vêem como uma diferença fundamental entre ambos a
presença de conflito nas relações entre as classes, contra a ausência de conflito entre
os grupos de status. Toennies afirma que 'os estados passam a constituir classes
quando participam de ações hostis ou entram em guerra uns com os outros.' (1931:
12). Na verdade, grupos de status nunca chegam ao ponto de questionar a própria
estrutura de classes. O máximo que fazem é participar de disputas locais ou privadas
com outros grupos de status a fim de conquistar certos direitos ou limitar os direitos
de outros.
O importante é ter em mente que o grupo de status é uma subdivisão de uma classe,
não uma alternativa a ela. Mais precisamente, é uma subdivisão das classes, um
escalonamento interno da classe dominante e da classe dominada. Classes sociais são
aqui entendidas em seu sentido amplo como sendo derivadas da inserção de grupos
sociais em relações de produção antagônicas. O grupo de status seria uma alternativa
à classe social se limitarmos este último conceito ao capitalismo. Esta concepção
limitada de classe tem um certo fundamento histórico na medida em que as classes só
apareceram em sua forma mais pura no capitalismo, mas não devemos perder de vista
a natureza mais geral da classe e da luta de classes através da história.
No entanto, é possível que um grupo de status se torne uma classe. De um lado, é
preciso que haja novas relações de produção, que colocarão o grupo de status numa
posição estratégica; de outro, este grupo social, em conseqüência, teria de ganhar
massa crítica, uma natureza universal e, finalmente, uma vocação tanto para o conflito
5 como para a dominação. Marx e Engels são bastante claros acerca da transformação
da burguesia de um grupo de status em uma classe quando afirmam que:
Pelo simples fato de ser uma classe e não mais um estado, a burguesia é forçada a se organizar não mais localmente, mas nacionalmente, e a dar uma forma geral a seus interesses comuns (1846:80). Essa transformação ocorreu quando as relações de produção para as quais a burguesia
serviu de veículo tornaram-se dominantes na sociedade, enquanto esta nova classe ia
ganhando massa crítica e consciência de seus próprios interesses. A transformação do
grupo de status burocrático em uma classe tecnoburocrática vem ocorrendo, através
de um processo semelhante, na segunda metade do século vinte.
Assim, estados ou grupos de status não constituem uma alternativa à estrutura de
classes, pois as classes sociais e os grupos de status são comuns a todos os modos de
produção antagônicos, mas, num nível mais baixo de abstração, eles podem ser
considerados como a alternativa feudal à estrutura de classes capitalista. É por isso
que os grupos de status, quando contrastados com classes específicas no capitalismo,
tornam-se uma ferramenta teórica útil. Essa ferramenta nos ajuda a compreender as
diferenças históricas não apenas entre estruturas de classes pré-capitalistas e
capitalistas, mas também entre estas últimas e a estrutura de classes específica do
modo de produção tecnoburocrático. Enquanto a estrutura de classes é comum a todos
os modos de produção antagônicos, cada modo estrutura as classes de uma maneira
particular. Os grupos de status desempenharam um papel fundamental no feudalismo,
enquanto no capitalismo as classes tendem a aparecer de uma forma pura; já no
estatismo veremos que o conceito de 'camada' ou de 'estrato social' é essencial para
compreender seu sistema de classes.
Como a teoria de classes precisa ser objeto de uma reavaliação no contexto do
capitalismo tecnoburocrático, o papel da consciência de classe também precisa ser
revisto. O processo da luta de classes envolve não apenas medidas concretas com
vistas à organização e controle do estado, mas também a definição dos interesses de
classe em termos ideológicos. Ideologias conservadoras ou revolucionárias são
sistemas de crenças e valores politicamente orientados. São a expressão de interesses
de classe, e seus proponentes procuram dotá-las de validade universal. Nesse quadro,
a consciência de classe é um elemento importante, mas não necessário, da definição
de classe. Todas as classes possuem sua ideologia respectiva, mas não
necessariamente consciência de classe. A classe tecnoburocrática é dotada de
consciência de classe, mas isto só é verdade na medida em que ela tem como projeto
ou razão de ser o controle das grandes corporações e do Estado.
A consciência de classe seria um elemento necessário à definição de classe se
fôssemos adotar o conceito de Lukács (1922), segundo o qual a consciência de classe
não é a soma ou o denominador comum do que seus membros pensam, mas antes uma
'possibilidade objetiva'. Embora este conceito seja atraente na medida em que enfatiza
a relação dialética entre as relações de produção e a consciência de classe, prefiro
definir classe social aqui como um processo histórico concreto que se origina dessa
relação dialética. A classe dominante sempre teve consciência de classe e exerceu seu
poder não apenas através do controle dos meios de produção e do aparelho repressivo,
mas também através da hegemonia ideológica, ao passo que a classe dominada não a
possui, necessariamente. A fim de manter sua posição dominante, a classe dominante
6 transmite sua ideologia à dominada através dos aparelhos ideológicos existentes na
sociedade.
No período pré-capitalista, a religião era o principal aparelho ideológico. No
capitalismo, essas funções foram desempenhadas pelas instituições educacionais,
pelos partidos políticos, pela imprensa, pela televisão e pelo rádio. Se a classe
dominante puder alcançar total hegemonia ideológica, ela poderá anular ou neutralizar
a consciência da classe dominada. Por essa razão, o fato de uma classe dominada
atingir algum grau de consciência é um fenômeno histórico recente, e ainda parcial.
Ele surgiu com o capitalismo, tomando forma quando os trabalhadores passaram a se
organizar em sindicatos e partidos políticos, e adquirindo estabilidade através da
difusão das idéias socialistas e marxistas. No entanto, dado o sucesso do capitalismo
em promover o desenvolvimento econômico e transferir os ganhos de produtividade
para os trabalhadores sem colocar em risco uma taxa de lucro satisfatória, essa
realização é parcial.
Assim, a consciência de classe não é um elemento essencial na definição de classe, se
a classe a ser definida for a classe trabalhadora. No entanto, esta é uma classe real,
que tem seus próprios interesses coletivos e sua própria ideologia em oposição à
classe dominante. Mas não pode ser considerada um ator efetivo na história. Uma
classe apenas se torna uma força histórica efetiva quando atinge algum grau de
consciência de classe, organiza-se politicamente e luta pelo poder do Estado. Para
Therborn (1980:60), a aceitação ou a resistência à exploração de classe não é
essencial à definição da ideologia das classes dominadas. Uma classe puramente
dominada é dotada de uma ideologia baseada nas idéias de autoridade e obediência. A
luta de classes acontecerá mas, contrariamente às expectativas de Marx, não tenderá a
ser revolucionária.
Nas sociedades pré-capitalistas a classe dominante era o único fator histórico efetivo.
Setores da classe dominante disputavam o controle do Estado, mas só muito
raramente a classe explorada participava dessas lutas. Ela pode ter se revoltado ou
escapado, ou ainda ganho mais espaço político. O poder da classe dominante, no
entanto, apenas sofre uma ameaça com o advento do capitalismo e da classe
trabalhadora, precisamente porque a classe trabalhadora foi a primeira classe
dominada a se tornar organizada e a desenvolver uma consciência de seus próprios
interesses.4 O sucesso econômico do capitalismo, no entanto, não permitiu que essa
ameaça se transformasse em revolução. Ao contrário, no capitalismo atual, a
revolução se transformou cada vez mais numa alternativa irrealista.
3. O debate recente Já nos anos 1980 a teoria marxista das classes sociais estava em plena crise. Em 1982
Luc Boltanski (1982: 91), um sociólogo que trabalhou com Pierre Bourdieu, publicou
um grande volume sobre os administradores na França. Nesse livro, Les Cadres, ele
faz uma análise em profundidade dos administradores que considera um “grupo
social” que se autoconstruiu socialmente e assim alcanço razoável coesão (o que é
correto), mas rejeita todas as estatísticas que demonstram o enorme crescimento da
classe tecnoburocrática (na qual os cadres administradores estão no centro) para,
assim poder rejeitar também a emergência de uma terceira classe social em termos
ideológicos: “sabendo que a união das classes médias é uma arma contra o
7 movimento operário, compreende-se o caráter encarniçado de debate sobre o peso
relativo das classes médias: longe de ser um problema puramente “científico” ou
“estatístico”, a tese da classe média constitui um problema maior das lutas ideológicas
entre as classes.” 5
A polarização entre duas classes sociais não correspondia minimamente à realidade, e
embora a tese da luta de classes continuasse válida, estava claro que ela havia perdido
qualquer sentido revolucionário. É nesse quadro que Erik Olin Wright (1985, 1989),
usando como referência os trabalhos do “marxista analítico” John Roemer (1982),
tenta renovar o pensamento “neomarxista” americano sobre as classes sociais. Para
isso, usou o conceito de “posição de classe” para identificar determinadas profissões
que estariam ao mesmo tempo em mais de uma classe social. Por outro lado, rejeitou
um conceito de classe baseado em “dominação” ou poder, afirmando que o critério
correto é o da “exploração”. Dessa forma, foi-lhe possível incluir uma classe média
entre as duas classes sociais do marxismo – uma classe média cujos membros
estariam em duas posições de classe, como exploradores e explorados, ao mesmo
tempo. Graças a esse procedimento teórico Eric Olin Wright sentiu-se autorizado a
concluir que
O conceito centrado na exploração fornece um meio muito mais coerente e persuasivo para se entender a posição de classe da “classe média” do que conceitos alternativos, tanto em sociedades capitalistas quanto em vários tipos de sociedades não capitalistas. A classe média deixa de ser uma categoria residual ou uma emenda relativamente ad hoc ao mapa de classes polarizado. Ao invés disso, as classes médias são definidas pelas mesmas relações [de produção] que definem as classes polarizadas. (Wright 1989: 41) Apesar do debate que estas ideias causaram na época, em um momento em que o
marxismo analítico parecia uma alternativa teórica válida, afinal elas não deixaram
rastro. A afirmação que a nova classe média poderia ser compreendida teoricamente
com auxílio da mesma relação de produção (o capital) que explica a classe capitalista
é uma não-solução. Roemer e Wright deram-se conta que a organização era um
conceito central em relação ao problema. Entretanto, ao invés de entendê-la como a
relação de produção que explica a classe tecnoburocrática, como eu faço, Eric Olin
Wright (1989: 16) se limitou a afirmar que “a organização – a condição de
coordenação e cooperação entre produtores em uma situação de complexa divisão do
trabalho – é um recurso produtivo em si mesmo”. A organização é mais do que isto: é
a propriedade coletiva dos meios de produção pela nova classe média ou pelos
profissionais.
Já no final do século XX, dado o acúmulo de evidências, a rejeição dos intelectuais de
esquerda, inclusive dos marxistas, à tese da terceira classe praticamente desapareceu.
O crescimento do número de profissionais foi tão grande, sua presença em todos os
setores da vida social se tornou tão grande que deixou de fazer sentido para os
marxistas negar a emergência da tecnoburocracia. Um exemplo dessa mudança foi o
livro de Alain Bihr (1989: 1) escrito com o objetivo de “demonstrar a existência no
seio do modo de produção capitalista... de uma terceira classe, intermediária entre a
classe capitalista e o proletariado”. Fernando Haddad (1998), discutindo o capitalismo
contemporâneo, tomou como evidente o surgimento de uma nova classe.
Na mesma linha de pensamento, David Perrucci e Earl Wysong (2008: 141), ao
discutirem a estratificação da sociedade americana atual, afirmam que a primeira
8 característica distintiva do modelo que desenvolvem “é nossa visão que o sistema de
classes que está surgindo está organizacionalmente baseado. Isto significa que a
estrutura de classes está crescentemente organizada em torno e através de grandes
estruturas e processos organizacionais que controlam recursos valiosos de caráter
social e econômico”. Nesta matéria, porém, a análise teórica mais significativa foi a
de dois marxistas franceses, Jacques Bidet e Gérard Duménil (2007), o primeiro,
sociólogo, o segundo, economista. Nesse livro os dois fazem uma análise teórica da
evolução do capitalismo semelhante à que fiz em meus ensaios dos anos 1970 e que
mantive neste livro.6 Denominam a terceira classe “classe dos administradores” e
afirmam que mercado e regulação se encarregam da coordenação econômica do
sistema. Ora, o capitalismo dos profissionais é exatamente isso – uma sociedade na
qual Estado e mercado, regulação e sistema de preços se completam na coordenação
do sistema. Mas o mais interessante é que consideram essa classe portadora da
“organização”, que, para eles, além de ser a capacidade do Estado e da classe
tecnoburocrática de “regular” as atividades econômicas, é a relação de produção
própria de uma sociedade tecnoburocrática como eu afirmo há muitos anos. Eles
também chamam essa relação de “relação de administração”, mas o termo que mais
usam é organização. E chamam de “administrativismo” o sistema econômico que dá
origem à classe tecnoburocrática. Suas palavras:
A tese que aqui se sustenta é a de que existe uma relação específica de organização, potencialmente autônoma, que compartilha com o capitalismo o fato de que é portador de uma relação de classe. Em relação a isto nos parece mais adequado usar a expressão “relação de administração” ao invés de “organização”... Para fazer um paralelismo, propomos chamar de “administrativismo” (cadrisme) o sistema que corresponde à relação de administração, como se diz “capitalismo” a partir do “capital”. (Bidet e Duménil 2007:15) Para dar conta da grande diversidade da classe trabalhadora no capitalismo
contemporâneo eles usam uma expressão interessante: chamam-na de “classe
fundamental”. Por outro lado, como na classe tecnoburocrática há mais do que
administradores, mas de todos se requer competência profissional, eles sempre se
referem à classe dos administradores também como a classe dos competentes. Para
eles o capitalismo contemporâneo funciona a partir de dois pólos: o pólo do capital,
onde estão os proprietários, e o pólo da organização, onde estão os administradores e
os competentes. As coincidências são, portanto, grandes. Ao serem adotadas por dois
intelectuais de primeira linha elas são um sinal da força e da originalidade das ideias
que venho desenvolvendo sobre o capitalismo contemporâneo e o surgimento da
classe tecnoburocrática. Como Bidet e Duménil usei o método histórico e dialético,
não é surpreendente, portanto, que tenhamos chegado a conclusões semelhantes.
Em um livro posterior, Gérard Duménil, agora com seu companheiro de pesquisas de
sempre, Dominique Lévy (2011: 73), em The Crisis of Neoliberalism, os dois
economistas fazem uma análise amplamente documentada dessa crise. E para fazê-la,
assinalam que “a distinção entre rendas do capital e salários não dão mais conta da
complexidade das relações sociais no capitalismo contemporâneo” e, por isso, adotam
um “uma configuração tripolar de classes na qual são distinguidas as classes
capitalista, gerencial e popular”. Fundamentam sua conclusão no aumento da
participação dos salários na renda das famílias mais ricas dos Estados Unidos. Entre
1950 e 1969, os salários representavam 29,3% da renda das famílias um por mil mais
9 ricas cuja renda anual era superior a US$ 2 bilhões por ano; entre 1980 e 2007, essa
porcentagem subiu para 48,8%.
A proximidade das ideias, porém, limita-se à parte teórica. Quanto à parte política o
acordo é menor. Para mim as três classes sociais não são “boas” ou “más”: elas são
simplesmente as classes sociais que existem no capitalismo dos profissionais.
Naturalmente, compartilho com Bidet e Duménil um parti pris pelos trabalhadores
porque eles são a maioria e os mais pobres, mas não faço a mesma aposta política: a
aposta na coalizão entre as classes fundamentais e os administradores e competentes.
A coalizão progressista com na qual sempre apostei distingue os capitalistas ativos ou
empresários dos inativos ou rentistas, e vê na aliança dos empresários com a classe
tecnoburocrática e a classe trabalhadora o caminho para o desenvolvimento
econômico, político, social e ambiental. Discutirei essa questão no capítulo que
conclui este livro no qual analisarei brevemente o Estado moderno e proporei que a
democracia é o trunfo das classes populares e dos cidadãos de classe médio no sentido
da emancipação ou do desenvolvimento.
4. A nova classe e os estratos sociais A condição essencial para a emergência de uma nova classe é o aparecimento das
correspondentes relações de produção. A nova classe pode ter ou não consciência de
classe, mas é essencial que ela não se confunda com os estratos sociais. Em princípio,
nos modos de produção puros, temos apenas uma classe dominante e uma classe
dominada: a 'classe média' vai corresponder aos setores menos ricos da classe
dominante e aos setores mais ricos da classe dominada. Estão na primeira categoria os
capitalistas de pequeno e médio porte, de um lado, e os trabalhadores especializados,
de outro. Alternativamente, numa formação social mista, a classe média representará
a emergência de novas relações de produção e das correspondentes relações sociais. A
classe média tecnoburocrática que emerge no capitalismo tecnoburocrático se insere
nesta segunda categoria.
Classes sociais são grupos sociais definidos pelos papéis que desempenham,
dominantes ou dominados, dentro das relações de produção básicas da sociedade.
Através do processo inerente de luta de classes, elas se tornaram os atores principais
da história. De um lado, isso pode ser explicado pelo desenvolvimento das forças
produtivas, que estabelece novas condições materiais para as relações de produção e,
de outro, em virtude das lutas de classes que se originam da inserção de cada classe
nas relações de produção e sua conseqüente consciência de classe. Portanto, para que
uma nova classe possa se estabelecer, é essencial que ela participe das novas relações
de produção que estão surgindo, que estas novas relações de produção sejam básicas
para a definição de um novo modo de produção e que, como conseqüência, o novo
grupo social tenha tamanho ou massa crítica suficiente para formular um projeto
histórico destinado a fazer dela no futuro a nova classe dominante.
A classe tecnoburocrática emergente que caracteriza o capitalismo tecnoburocrático
atende plenamente a esses requisitos, como veremos mais adiante neste ensaio.
Adianto apenas que num ensaio anterior (1977), discuti o conceito de classe em
termos de modos de produção puros e não de formações sociais concretas. O modo de
produção capitalista em sua forma mais pura (a da Inglaterra no século XIX) foi
comparado com o modo de produção tecnoburocrático dominante na formação social
10 soviética. Adotando esta estratégia, pude definir a
relação de produção
tecnoburocrática e identificar a tecnoburocracia como a classe dominante neste modo
de produção.
Enquanto no capitalismo puro temos duas classes, a burguesia e os trabalhadores, e
uma relação de produção correspondente, o capital, no modo de produção estatal puro
temos também apenas duas classes, a tecnoburocracia e os trabalhadores, e uma
relação de produção correspondente, a organização. O capital como uma relação de
produção deixa de existir na medida em que desaparece a propriedade privada dos
meios de produção. Ele é substituído por algo que costumo chamar de 'organização': a
propriedade coletiva dos meios de produção pela nova classe profissional ou
tecnoburocrática. Embora os tecnoburocratas não detenham, como os capitalistas, a
propriedade legal dos meios de produção, assemelham-se a estes no sentido de que
detêm o controle efetivo desses meios de produção. A diferença mais importante, no
entanto, não se refere à propriedade legal, mas ao fato de que a propriedade capitalista
é privada e individual, ao passo que, no modo de produção tecnoburocrático, a
propriedade é coletiva. No sistema capitalista, cada capitalista ou possui diretamente
os meios de produção ou uma parcela deles, seja diretamente na forma de ações, seja
indiretamente na forma de créditos. Em contraste, os tecnoburocratas não podem dizer
que possuem um negócio ou mesmo uma parte dele. Ao contrário, os tecnoburocratas
detêm a organização burocrática na medida em que ocupam uma posição em sua
hierarquia organizacional e usam os recursos da organização em proveito próprio.7
O capitalismo tecnoburocrático, sendo uma formação social mista, que permanece
predominantemente capitalista mas compartilha de algumas características estatais ou
tecnoburocráticas, é o meio de onde emerge a nova classe média: a classe
tecnoburocrática ou profissional.
Uma questão fundamental na teoria das classes é 'a questão da classe média', que
examinarei adiante. Por ora é suficiente dizer que, de acordo com a teoria de classes
marxista, não existem classes médias. Evidentemente, Marx e Engels usaram a
expressão 'classe média', mas esse era um modo de designar a burguesia, que estava
no meio da estrutura social, entre a classe trabalhadora e a aristocracia latifundiária.8
Desse modo, Marx e Engels foram basicamente coerentes com seu próprio conceito
de classe social, definida pelo papel que grandes grupos sociais desempenham nas
relações de produção.
Os conceitos de camadas sociais ou de estratos sociais foram utilizados como
sinônimos de classe por sociólogos funcionalistas. Eles consideram a classe social
como uma questão de estratificação social que, de acordo com Talcott Parsons, é uma
classificação hierárquica dos indivíduos de um sistema social particular. É o modo
como os indivíduos ocupam posições na estrutura social em termos de status. Nas
palavras de Parsons:
Estratificação social é encarada aqui como a classificação diferencial dos indivíduos que compõem um dado sistema social e seu tratamento como superiores e inferiores uns em relação aos outros em certos aspectos socialmente relevantes (1940: 841). Se entendermos classes sociais como parte de um sistema de estratificação, o conceito de classe passa a não mais derivar das relações de produção. Ao 11 contrário, ele se torna um mero expediente para a divisão hierárquica da sociedade em estratos, a fim de descrevê-­‐la melhor. Também é possível, mais ou menos arbitrariamente, aumentar o número de estratos, como fez Lloyd Warner, de modo a ter uma classe alta-­‐alta, uma classe alta-­‐baixa, uma classe média-­‐alta, uma classe média-­‐baixa, uma classe baixa-­‐alta e uma classe baixa-­‐baixa (1941).9 Apesar disso, é importante destacar que o conceito de classe média não é meramente uma noção funcionalista. Ele foi utilizado por cientistas sociais com diferentes perspectivas teóricas, inclusive marxistas. Ele continua a ser usado porque é parte de nossa linguagem diária, além de servir freqüentemente para descrever setores da sociedade razoavelmente bem definidos. A rigor, é mais correto falar de estratos altos, médios e baixos, do que de classes altas, médias e baixas. Os primeiros constituem um critério de classificação social diferente do de classe e são válidos e úteis como ferramenta de análise sociológica. Poderíamos definir estrato como uma fatia da sociedade cortada horizontalmente de acordo com uma série de critérios que nos permitem estabelecer uma ordem hierárquica. Esses critérios mais ou menos arbitrários referem-­‐se ao poder econômico e ao prestígio social dos indivíduos. Os sociólogos funcionalistas examinaram em profundidade as correlações existentes e inexistentes entre prestígio social e riqueza, ocupação, educação, raça e religião. Figura 1: Estratos e Classes no Capitalismo Clássico Estrato Alto
Burgu
e sia Estrato Médio
Tecnoburocracia
Classe Trabalhadora
Estrato Baixo
12 Os marxistas foram extremamente críticos da sociologia funcionalista. Não convém
discutir tais questões aqui. Em vez disso, quero sugerir que o conceito de estrato
social é um conceito útil para a análise social, desde que não seja confundido com o
de classe, ou usado para substituir o de classe. Em segundo lugar, podemos utilizar o
conceito de estratos sociais dentro de cada classe social, ou entre as classes sociais.
Por exemplo: existe uma alta burguesia e uma média burguesia.10 Da mesma forma,
podemos distinguir uma tecnoburocracia alta, média e baixa, bem como uma divisão
hierárquica de trabalhadores composta de trabalhadores qualificados, semiqualificados e não qualificados.
A Figura 1 mostra como podemos combinar os conceitos de classe social e de estrato
social dentro de uma dada estrutura social. Este exemplo refere-se ao capitalismo puro
ou clássico, no qual existem apenas duas classes: a burguesia e o proletariado.11 O
estrato superior consiste exclusivamente da burguesia, e o inferior é composto
exclusivamente de trabalhadores. O estrato médio, embora principalmente formado
pela burguesia, também inclui um grande número de trabalhadores especializados ou
qualificados.
Dada a coexistência desses dois conceitos, é importante perguntar se o determinante
primário da ação social e política é a identificação em termos de classe social ou de
estrato social. Em outras palavras, precisamos saber até que ponto o fato de um
trabalhador pertencer a um estrato médio tem peso suficiente para fazer com que ele
adote uma ideologia e padrões de consumo burgueses ou tecnoburocráticos. A
resposta a esta questão é provavelmente positiva, embora o trabalhador seja ainda
fortemente influenciado por sua situação de classe. Desse modo, temos uma indicação
muito clara de que os estratos sociais, embora expressamente distintos da classe,
também servem como uma importante ferramenta de análise política e sociológica.
5. Perda de poder explicativo? As classes sociais, no modelo de Marx, são atores privilegiados da história a partir da
ideia da luta de classes. Entretanto, a partir dos anos 1980 houve um quase abandono
do conceito de classe social pelas ciências sociais dominantes nas grandes
universidades. A teoria de classes de origem marxista havia resistido bem a este tipo
de ataque até os anos 1970, mas soçobrou diante da crise geral da esquerda e do
marxismo dos anos 1970 que resultará na ascensão do neoliberalismo à condição de
ideologia hegemónica. Uma razão objetiva para o declínio do interesse pelas classes
sociais foi o surgimento de uma grande classe média profissional entre a classe
capitalista e a classe trabalhadora. Esse fato embaralhou o conceito das classes e a
tese da luta de classes. Uma segunda razão foi o forte aumento do individualismo, que
levou a sociologia contemporânea a esposar, em relação à estrutura social, “uma
tendência pesada, a da percepção de uma individuação crescente dos indivíduos nas
sociedades ocidentais” (Catherine Bidou 2002: 114) A ciência política
contemporânea, associada ao novo institucionalismo e à escolha racional, e a teoria
13 política contemporânea de caráter normativo aproveitaram o surgimento da terceira
classe e o aumento da individuação a oportunidade para substituir-se respectivamente
à sociologia e à teoria social no papel de principal ciência e filosofia social. As classes
sociais teriam perdido poder explicativo, e a sociologia e a teoria social teriam
perdido relevância para a explicação do mundo moderno. Lemos, então, afirmações
categóricas como a seguinte: “a última década testemunhou o abandono da teoria de
classes e de outros fundamentos do marxismo tradicional” (Uwe Becker 1989: 128).
Por outro lado, as pesquisa eleitorais procuravam desvincular os votos dos trabalhares
nos partidos de esquerda, e viam nisto a confirmação da perda de poder explicativo
das classes sociais.
Mas há outras razões, seja as de caráter ideológico, ou então as causas relativas ao que
Pierre Bourdieu (1976) a luta dos intelectuais de cada área de conhecimento pelo
“monopólio do conhecimento legítimo”. Não deixa de ser paradoxal que nos 30 Anos
Neoliberais, em um período de forte aumento das desigualdades, que o interesse pelas
classes diminuiu. Coforme assinala Louis Chauvel (2002: 117), “Esta suposta morte
das classes sociais não nos permite compreender um fenômeno contemporâneo, e
contribui mesmo para ocultá-lo: a persistência das desigualdades estruturais ligadas a
posições hierárquicas”.
Aquela afirmação e estas pesquisas são equivocadas. As classes sociais perderam
algum poder explicativo com a emergência da classe tecnoburocrática, mas muito
menos do que se propõe. Jean-Noel Chopart e Claude Martin (2004: 11-12),
analisando as pesquisas de Robert R. Alford (1967) e a literatura sociológica recente
sobre a modernidade, sugeriram que o fenômeno teria na opinião dos críticos das
classes sociais duas causas: a individuação social de acordo com a qual cada
indivíduo definiria seu estilo de vida, e a emergência de outros fatores de clivagem
social – o gênero, a etnia, as gerações – que pareceram mais relevantes do que as
classes. Em consequência, as posições no mercado de trabalho teriam deixado de
corresponder às classes sociais definidas por relações de produção. Mas os dois
sociólogos não estão satisfeitos com essa abordagem. Pelo contrário, argumentam que
o aumento das desigualdades torna necessário o retorno as classes sociais, que, aliás,
já começa a ocorrer nos anos 2000, com a crise do neoliberalismo. E afirmam: “podese perceber que o anúncio do desaparecimento das classes sociais contribui
implicitamente para mascarar a violência simbólica, as relações desiguais e a lógica
de dominação que continuam visivelmente a estruturar nossas sociedades”.
As classes sociais continuam relevantes do ponto de vista político, mas há uma razão
objetiva pela qual elas perderam relativamente poder explicativo. Em consequência
do surgimento da classe média profissional, a estrutura social do capitalismo
tecnoburocrático moderno tornou-se mais gradual, menos dicotômica do que a
existente no capitalismo clássico. As classes sociais continuam sendo os atores
principais da história. Capitalistas e trabalhadores continuam a agir de acordo com sua
própria lógica: a lógica do lucro e da acumulação, no caso dos capitalistas; a lógica
das demandas salariais, no caso dos trabalhadores e empregados; mas agora se
tornava necessário também considerar a lógica dos altos ordenados, bônus e opções
de compras de ações, no caso dos profissionais. A luta de classes e a consciência de
classe continuam a ser fatores essenciais na história, mas a existência de uma ampla
nova classe média entre capitalistas e trabalhadores dificultou a análise política,
especialmente porque não se pode mais falar com a mesma propriedade que se falava
14 em relação à burguesia e da classe trabalhadora sobre a “unidade” da classe
tecnoburocrática. Um outro argumento para explicar a perda relativa de poder
explicativo das classes sociais é sugerido por Ulrich Beck (1986: 91). Argumenta ele
que na Alemanha a desigualdade econômica não diminuiu, mas houve um substancial
aumento das condições econômicas dos trabalhadores: “em consequência da elevação
do padrão de vida, as distinções de classe baseadas em status perderam sua base
tradicional, e processos de ‘diversificação’ e individuação de estilos de vida e
concepções de vida foram colocados em movimento”. Em outras palavras, a camada
média aumentou muito, e isto reduziu os conflitos de classe.
Outro fato histórico novo que ajudou a embaralhar o problema da identidade de
classes está relacionado com as imigrações para os países ricos. Seus trabalhadores a
perceberam como uma competição que provocava o rebaixamento de seus salários.
Diante disso, enquanto os partidos de centro-direita defendiam a imigração em nome
do desenvolvimento capitalista e os partidos socialdemocratas, em nome também da
solidariedade humana, os partidos da extrema direita populista passaram a hostilizar
as imigrações e os imigrantes – o que lhes valeu o apoio dos trabalhadores. Em
muitos países europeus, o primeiro partido dos trabalhadores passou a ser o partido de
extrema direita. Por outro lado, é importante considerar os conflitos entre setores
dentro da classe dominante. Esses conflitos estão sempre acontecendo –
principalmente o conflito entre o setor real da economia e o financeiro, ou então entre
os capitalistas ativos e os rentistas. Estas divisões ocorrem principalmente quando a
classe dominante é tão hegemônica que pode tolerar conflitos internos, e são uma das
razões da importância das coalizões de classes ou dos pactos políticos na
compreensão das relações entre sociedade e Estado.
Finalmente é preciso considerar a hegemonia neoliberal dos últimos 30 anos. Ela
atingiu em cheio a academia. E foi marcada por um individualismo radical. Ora,
interessava ao neoliberalismo desclassificar a teoria das classes e da luta de classes.
Vê-la como superada. Por outro lado, esse individualismo tinha uma base na
realidade. Ele aumentou pelo simples aumento da renda e do excedente econômico, e
pelo aumento das oportunidades de cada indivíduo fazer seu projeto de vida. Dessa
forma a individuação moveu-se para o centro do pensamento sociológico e contribuiu
para a tese equivocada da perda de relevância das classes sociais para análise da
politica nas sociedades contemporâneas. Foi provavelmente já vendo o que estava
ocorrendo que Bourdieu (1979: 113), em uma nota de rodapé de A Distinção adverte
que “é preciso não a classe objetiva com a classe mobilizada”. Para classe objetiva
nem sempre está mobilizada. Mas, quando está, “é o conjunto de agentes reunidos,
com base na homogeneidade de suas características ou propriedades objetivadas ou
incorporadas que definem a classe objetiva, em vista da luta destinada a salvaguardar
ou a modificar a estrutura da distribuição das características objetivadas”. A
hegemonia neoliberal não conseguiu, portanto, eliminar nem as classes nem as lutas
de classes. As classes nem sempre estão mobilizadas, mas quando sentem necessidade
e veem a oportunidade de se mobilizar, elas se manifestam.
Desde que no início os anos 2000, como veremos na terceira parte deste livro, a
hegemonia ideológica neoliberal entrou em crise, podemos assistir a um renascimento
do interesse pelas classes sociais. Os títulos dos trabalhos de Geoffrey Evans, “Voto
segundo classe social: de um obtuário prematuro a uma avaliação bem pensada”
(1999), de Chopart e Martin, “Retorno das classes sociais ou amnésia social?” (2004),
15 e do livro de Paul Bouffartigue, O Retorno das Classes Sociais (2004) assinalam esse
retorno. Evans (1999: 4) que editou um livro contendo pesquisas sobre a relação entre
voto e classe social concluiu, no capítulo introdutório do livro, que “a tese de um
declínio geral da base de classe do voto nas sociedades avançadas é simplesmente
errada”. Jean Lojkine (2005: 132) assinalou que, do ponto de vista político, ao invés
de lamentar a diminuição da classe operária, é preciso somar a ela os empregados, e
pensar em um “arquipélago salarial” marcado por muitas contradições, mas que pode
“fazer frente à ofensiva neoliberal”. François Dubet, por sua vez, baseando-se não em
pesquisa mas na evidente existência de dominação e privilégio nas sociedades
modernas e na natureza de classe desse fato concluiu:
Eu creio que é preciso defender a noção de classe porque ela indica a força e os mecanismos de dominação social. Não obstante a pluralidade dos atores sociais, a sociedade de massas e a multiplicidade das clivagens e dos registros de desigualdade, de idade, de sexo, de etnia... as relações sociais continuam marcadas pelos princípios de dominação que não se reduzem ao jogo dos diversos poderes. (2004: 33) 6. Segunda Revolução Industrial A transição do capitalismo clássico para o tecnoburocrático começa pela Segunda
Revolução Industrial. Desde o início do século XIX os países em ricos vinham
conhecendo um desenvolvimento tecnológico sem precedentes. O ritmo das
descobertas científicas aplicáveis à produção aumentava. Entretanto, no último quartel
do século XIX, a partir do motor a explosão, do domínio da eletricidade pelo homem
e do desenvolvimento da linha de montagem e d produção em massa, desencadeou-se
a segunda revolução industrial. Entramos em um processo de aproveitamento das
virtualidades dessa nova fonte de energia que parecem inesgotáveis, não só devido a
sua enorme força, mas também devido a sua imensa maleabilidade. A eletricidade e a
substituição da máquina a vapor pelo motor elétrico multiplicaram muitas e muitas
vezes os resultados do trabalho, a produtividade. Além disso, a eletricidade, graças à
sua qualidade de meio extremamente sensível de controle, permitiu o surgimento do
automóvel, dos aviões, do rádio e de televisão, e, no último quartel do século XX,
possibilitou a eclosão de uma Terceira revolução industrial: a revolução da
informática e da internet. Por outro lado, a tecnologia da linha de montagem e da
administração “científica” do trabalho facilitará o surgimento da produção em massa,
a formação de imensas empresas organizadas burocraticamente, e a configuração de
uma sociedade de consumo de massa.
O desenvolvimento em ritmo geométrico do conhecimento técnico a partir do
domínio do homem sobre a eletricidade foi tornando esse conhecimento técnico cada
vez mais importante dentro do processo de produção. Enquanto nos primórdios da
primeira revolução industrial as máquinas eram simples imitações dos processos de
produções humanas e manuais, e as técnicas produtivas eram simples, de forma que
trabalhadores com instrução elementar eram capazes de dominá-las, após a segunda
revolução industrial as máquinas e o seu controle tornaram-se complexas. Para
construí-las e manejá-las agora não basta o velho mecânico prático, que aprendeu sua
profissão no próprio trabalho. Muitas vezes nem mesmo engenheiros formados em
cursos superiores são mais suficientes. Para controlar a tecnologia mais moderna são
geralmente necessários engenheiros e cientistas altamente especializados, que
realizaram um ou mais cursos de pós-graduação. Mas mesmo esses homens não têm
16 condições, sozinhos, de construir ou operar as novas máquinas, tão complexas são
elas. Este deverá ser o trabalho de equipes de profissionais. A diferença fundamental
entre a tecnologia “mecânica” da primeira revolução industrial e o sistema de
produção em massa da segunda revolução industrial está no fato de que a primeira foi
apenas longinquamente apoiada no desenvolvimento científico, enquanto que a
segunda já estava inteiramente baseada no desenvolvimento da ciência. Resulta daí
uma complexidade muito maior para a tecnologia elétrica em relação à tecnologia
mecânica, cujas bases tradicionais eram ainda predominantes. A eletricidade e o
motor a explosão que ela possibilita é o elemento de ruptura da segunda revolução
industrial. Seu papel é revolucionário. Não só porque irá possibilitar um enorme
aumento da produtividade do trabalho e um extraordinário desenvolvimento das
técnicas de comunicação, como também porque conduzirá o desenvolvimento
tecnológico a uma crescente complexidade. Esta crescente complexidade da
tecnologia, exigindo o trabalho de equipes de profissionais e cientistas altamente
especializados, está na base da transformação do conhecimento técnico em fator
estratégico de produção. O monopólio desse conhecimento por um grupo de
profissionais, cuja oferta é naturalmente limitada, apesar de todos os avanços e da
massificação da educação nas sociedades industriais, vai naturalmente aumentando o
poder desses profissionais. Além do fato de se tornar cada vez mais complexa, a
tecnologia torna-se cada vez mais importante dentro do processo de produção. Isto foi
sempre claro para os grandes economistas. Foi claro para Adam Smith, foi mais claro
ainda para Marx, tornou-se evidente com Schumpeter e com os economistas
estruturalistas do desenvolvimento como Rosenstein-Rodan, Ragnar Nurkse, Raul
Prebisch Celso Furtado e Albert Hirschman, que escreveram seus principais trabalhos
em meados do século XX, e pela primeira vez apareceu no pensamento neoclássico
com o modelo de Solow (1956).
Ficou claro que a diferença entre trabalho não qualificado e trabalho especializado
não é meramente de grau. A simples acumulação de capital, sem que novas técnicas
fossem introduzidas e novas competências se mostrassem necessárias, pouco
desenvolvimento provocaria. Ao invés, o desenvolvimento econômico resulta da
incorporação da nova tecnologia à acumulação de capital, da maior qualificação da
mão de obra necessária para operar as novas técnicas, e da industrialização ou, mais
genericamente, da mudança da força de trabalho para setores industriais com valor
adicionado per capita mais elevado. E resulta aumento da produtividade e dos salários
médios.
A terceira classe, a classe tecnoburocrática, surge assim nas sociedades capitalistas, a
partir da segunda revolução industrial e da transformação do conhecimento em fator
estratégico de produção, e, como veremos no próximo capítulo, da revolução
organizacional, ou seja, do fato de que com a segunda revolução industrial a unidade
básica de produção deixa de ser familiar para se tornar organizacional.
7. O novo estratégico de produção A constatação do surgimento de um novo fator estratégico de produção em
substituição ao capital foi originalmente feita por John Kenneth Galbraith (1967). Ele
mostrou que o capitalismo tornou-se o sistema dominante no mundo quando, com a
revolução industrial, o capital substituiu a terra como fator estratégico de produção.
Em um segundo momento histórico, devido ao imenso progresso tecnológico, o
17 conhecimento técnico substituiu o capital no papel de fator estratégico de produção.
Em consequência, o capitalismo clássico e sua classe dirigente foram sendo
substituídos pela “tecnoestrutura”, ou, na minha linguagem, pelo capitalismo
tecnoburocrático ou dos profissionais. Inicialmente Galbraith mostra porque o capital
foi perdendo seu caráter estratégico:
O último capítulo mostrou que no sistema industrial, embora o capital seja usado em grandes quantias, é, pelo menos em tempo de paz, mais abundantemente oferecido. A tendência a um excesso de poupanças e a necessidade de uma estratégia de compensação por parte do Estado é um aspecto firmado e bem conhecido da economia keynesiana. As poupanças, já vimos, são fornecidas a si mesmas pelas empresas industriais como parte de seu planejamento. Há um alto grau de certeza quanto à sua disponibilidade, porque este é o propósito do planejamento. (1967: 66) A relativa abundância de capital nos países desenvolvidos originou-se, em primeiro
lugar, do fato de que os investimentos (ou seja, a procura de capital) serem com
frequência menores do que a poupança (ou seja, a oferta de capital). Esta tendência
não é meramente conjuntural, como um analista apressado da obra de John Maynard
Keynes poderia concluir, mas é uma tendência intrínseca ao sistema econômico
capitalista. E ocorre mesmo em países de renda média, como é o caso do Brasil ou da
Argentina, em que já tenha surgido um subsistema capitalista relativamente integrado.
Sua causa fundamental está relacionada com a tendência à concentração de renda, ou
seja, ao aumento da participação dos lucros na renda mais que proporcional ao dos
salários devido à oferta ilimitada de mão-de-obra (Arthur Lewis 1954). A própria
distribuição desigual da renda, sempre presente dentro do sistema, independentemente
da fase do ciclo econômico em que nos encontremos, dificulta a perfeita absorção do
grande excedente econômico produzido pela economia industrial, tornando
relativamente abundante o capital disponível na sociedade. Em segundo lugar, o
acesso ao capital está sob o controle das próprias empresas. Ao contrário do que
pressupunha toda a teoria econômica tanto neoclássica como keynesiana, o mercado
de capitais tem importância secundária na capitalização das empresas. Em geral, mais
de três quartos do capital investido pelas empresas provém de seus lucros retidos, são
resultado de autofinanciamento. Nesses termos, as empresas não só dispõem de
capital em relativa abundância e sob controle de suas administrações, como também
os acionistas perdem grande parte de sua importância como supridores de capital. Um
terceiro argumento poderia ter sido adicionado para justificar a relativa abundância do
capital na sociedade industrial moderna: as inovações poupadoras de capital. As
inovações tecnológicas não são simplesmente poupadoras de mão-de-obra por
produto produzido. Grande parte delas são também poupadoras de capital por
produto físico produzido. Muitas máquinas modernas não só poupam mão-de-obra,
mas em adição ainda apresentam uma relação produto físico/custo da máquina, ou
seja, uma relação produto-capital mais alta. Em casos extremos, mas não raros, a alta
sofisticação tecnológica incorporada na nova máquina permite que sua produção
aumente enquanto que seu custo se reduz em termos absolutos. Foi o que ocorreu, por
exemplo, com os computadores de terceira geração, em comparação com os de
segunda geração. Nesses termos, seja porque a poupança tende a ser maior que os
investimentos, só se equalizando a posteriori, seja porque a grande maioria do capital
das em presas é resultado de autofinanciamento, seja porque as inovações
tecnológicas vão adquirindo caráter crescentemente poupador de capital, este vai
perdendo seu caráter estratégico e os capitalistas vão perdendo importância e poder
18 dentro do sistema.
A perda de importância de capital, porém, é um fenômeno relativo. Só faz sentido na
medida em que outro fator de produção começa a se tornar estratégico. Ora, o
surgimento de um novo fator estratégico, que vem ganhando uma importância
crescente no processo de produção das chamadas sociedades industriais modernas, é
um dos fenômenos mais significativos do século XX. Este novo fator estratégico é o
conhecimento técnico, organizacional e comunicativo. Hoje, sem dúvida, ele já
supera em importância ao capital (o qual vai deixando, portanto, de ser estratégico,
não obstante continue sendo essencial, como também o são a terra e o trabalho não
qualificado). Galbraith (1967: 67) diz inicialmente “esperar” que isto aconteça, mas
logo em seguida ele passa para a constatação do fato: “Na verdade, isto já aconteceu...
É um acontecimento dos últimos cinquenta anos e ainda está ocorrendo”.
Como evidências de sua tese, Galbraith cita a perda de poder dos acionistas, o caráter
inexpugnável das diretorias de administradores das grandes empresas
profissionalizadas norte-americanas, a perda de prestígio dos grandes capitalistas e de
Wall Street, a crescente procura de talentos para as indústrias, e o crescente prestígio
da educação e dos educadores. Galbraith está, evidentemente, tomando como modelo
de sua análise a sociedade capitalista norte-americana em processo de transformação.
A distinção entre capitalistas e profissionais com base na tese de que estes pretendem
ter “o monopólio do conhecimento técnico, administrativo e comunicativo” é
naturalmente questionável. O moderno empresário capitalista não é apenas aquele que
tem crédito e disposição para assumir riscos; ele deve ter também o conhecimento
para que possa realizar seu papel precípuo: inovar. Sua legitimidade, portanto, deriva
também do conhecimento, e principalmente de sua capacidade de assumir riscos e
inovar. É o capitalista rentista que deriva sua renda apenas do capital. Ao definir o
empresário Joseph Schumpeter (1911) diz que seu “capital” não é a propriedade dos
meios de produção, mas é o crédito de que dispõe – é a capacidade do empresário de
obter crédito para financiar sua inovação.
Assim, desde a Segunda Revolução Industrial, vimos o capital deixar de ser
estratégico, enquanto que outro fator, o conhecimento técnico e organizacional,
assumia esse caráter. A tecnologia, incorporada nos demais fatores de produção,
sempre existiu. O explosivo desenvolvimento tecnológico a partir da revolução
industrial, porém, implicou em um salto qualitativo. A tecnologia deixou de ser um
mero apêndice, deixou de ser uma mera roupagem de que se revestiam a terra, o
trabalho e capital, para ganhar uma vida e uma massa própria. A técnica tornou-se não
apenas mais complexa, não apenas mais decisiva no processo de desenvolvimento
econômico, não apenas o novo fator estratégico de produção, mas tornou-se o
fenômeno dominante da época em que vivemos. A técnica incorporou-se de tal forma
na vida do homem moderno a ponto de adquirir um papel preponderante na
determinação de nossa própria vida.
Jacques Ellul (1954), em um trabalho pioneiro a respeito do problema, mostra como a
técnica tomou conta do mundo moderno, transformando-se no principal elemento
configurador de nossa civilização. Temos duas formas alternativas de encarar a
técnica. Segundo uma concepção otimista, podemos imaginar a técnica como um
elemento neutro, que sempre existiu em todo o transcorrer da história, e que é
utilizado pelo homem livremente, de acordo com sua própria vontade. Segundo essa
19 alternativa a técnica seria um mero elemento entre o homem e seus instrumentos de
produção. Seria a forma pela qual o homem fabrica e utiliza seus meios de produção.
Esta técnica estaria sempre evoluindo através da história, mas sob o controle da
vontade humana, à qual a técnica estaria subjugada. A alternativa era considerar a
técnica como possuindo autonomia em relação ao homem que a cria e como sendo
portadora de características objetivas que, longe de torná-la valorativamente neutra, a
transformavam em um elemento decisivo no processo da história. Jacques Ellul opta
pela segunda alternativa. Não se trata, porém, de uma opção abstratamente tomada. A
opção parte de uma análise histórica do problema. Se sempre a técnica existiu, nem
sempre ela teve a importância que hoje tem. Inicialmente as técnicas se confundiam
com a magia. Todos os atos produtivos das sociedades tradicionais estão carregados
de elementos mágicos, conforme já foi exaustivamente demonstrado em estudos
antropológicos. Aos poucos, as técnicas foram evoluindo e escapando de suas
conotações mágicas. Conservam, todavia, uma característica básica: eram
tradicionais. As técnicas de produção transmitiam-se de pais para filhos sem maior
crítica. Sua legitimidade estava baseada na tradição, no fato de que as gerações
passadas sempre assim haviam agido. É só a partir do início da Idade Moderna, com o
advento do capitalismo comercial, e particularmente depois da revolução industrial,
que as técnicas vão perdendo seu caráter tradicional para ganhar características
racionais. As técnicas começam, então a se desenvolver em um ritmo incrivelmente
mais acelerado do que no tempo das técnicas mágicas ou das técnicas tradicionais. O
desenvolvimento da técnica passa a realizar-se em progressão geométrica. Nesse
momento assistimos àquele fenômeno que Marx e Engels chamaram de mudança de
quantidade em qualidade. O simples desenvolvimento quantitativo da técnica
implicou, afinal, em uma mudança qualitativa. E em decorrência disto, conforme
observa Jacques Ellul (1954: 81), “o fenômeno técnico atual quase nada mais tem em
comum com o fenômeno técnico até os tempos modernos”.
A técnica, através de seu desenvolvimento quantitativo, dá, afinal, um salto
qualitativo. Ganha massa e sentido próprios. Universaliza-se, torna-se autônoma em
relação aos próprios homens, transforma-se no principal agente configurador da
sociedade em que vivemos, progride sempre, de forma necessária e em ritmo
geométrico, e, de mera servidora do homem, vai se transformando em sua tirana.
Ainda nos termos de Jacques Ellul, que define o problema de forma dramática, “eis
então a espantosa reviravolta a que assistimos: vimos que ao longo de todo o curso da
história, sem exceção, a técnica pertenceu a uma civilização; era um elemento da
civilização, englobada em uma multidão de atividades não técnicas. Atualmente a
técnica englobou todas as civilizações” (1954: 130). Transformou nossa civilização
em uma civilização técnica.
A técnica, portanto, transformou-se não apenas no novo fator estratégico de produção,
mas no próprio elemento definidor do mundo em que vivemos. O homem
desenvolveu a técnica, criou seu pequeno monstro; este cresceu, tornou-se
independente, e acabou engolindo seu próprio criador. Inicialmente a técnica, embora
não chegasse a ser um elemento acidental, era um elemento secundário que
modificava o trabalho e o capital. O desenvolvimento tecnológico, porém, foi de tal
monta, a técnica difundiu-se de forma tão abrangente que a técnica ganhou tal poder
sobre os homens, e o desenvolvimento tecnológico ganhou tal autonomia em relação
aos próprios homens, que ocorreu o salto qualitativo. A técnica assumiu realidade em
si mesma. Tornou-se um fator de produção independente, como o trabalho ou o
20 capital. Ou melhor, tornou-se o fator mais importante, relativamente mais escasso,
tornou se o fator estratégico de produção do nosso tempo. Mais ainda do que isso, a
técnica tornou-se o elemento principal a configurar a infra-estrutura econômica, e a
superestrutura cultural das sociedades industriais modernas.
8. As organizações burocráticas Além de relacionada com a Segunda Revolução Industrial e o surgimento do
conhecimento como novo fator estratégico de produção, a emergência da classe
tecnoburocrática está associada à Revolução Organizacional – à substituição das
empresas familiares por organizações burocráticas no papel de unidades
fundamentais de produção. Para compreender este fato, discutirei nesta seção o
conceito de organização burocrática, que pode ser definido simplesmente como a
sociedade organização racionalmente com vistas à produção de bens e serviços. As
diferentes formas de organização burocrática no modo asiático de produção ou nos
impérios antigos, no Estado liberal e no Estado do bem-estar social sugerem que o
conceito de organização burocrática assume quatro formas históricas: a organização
burocrática asiática caracterizada pela administração teocrático-militar; a organização
burocrática patrimonialista caracterizada pela confusão entre o patrimônio público e o
privado; a organização burocrática weberiana ou em sentido estrito que é definida
pela administração racional-legal ou burocrática e foi genialmente definida por Max
Weber; e a organização burocrática gerencial ou tecnoburocrática que é própria do
capitalismo dos profissionais que se configura a partir do século XX: supõe a
administração burocrática que se contenta em ser efetiva, em alcançar o fim visado,
mas se caracteriza pela administração gerencial que busca de forma mais flexível a
eficiência: alcança o fim visado com menor custo.12 O burocrata asiático assim como
o patrimonialista participa da classe dominante e com ela tende a se confundir; o
burocrata weberiano localiza-se principalmente na organização ou aparelho do
Estado, e é subordinado ou assessor do capitalismo; o profissional ou tecnoburocrata
emerge nas organizações empresariais, e volta a ser parte da classe dominante, mas
associado aos capitalistas.
Por que a organização se tornou uma forma de propriedade e um tipo de sistema
social tão importantes no capitalismo dos profissionais? Uma explicação que se
tornou muito influente no último quartel do século XX foi a explicação novoinstitucionalista de Ronald Coase (1937). Ele explicou este fato com base no conceito
de “custos de transação”. Segundo ele, toda sociedade é caracterizada por um sistema
de trocas e, portanto, por alguma forma de mercado. Existem, porém, custos para que
determinadas transações ocorram no mercado que podem ser menores do que o custo
de realizá-las dentro de uma organização. Por isso existiriam as organizações. Ainda
que se trate de uma maneira engenhosa de explicar as organizações, ela não explica
por que as organizações só se tornaram fundamentais para a produção no século XX.
O método hipotético-dedutivo por ele usado é inadequado para ciências substantivas
como são as ciências sociais para os quais o método correto é o empírico ou histórico.
Além disso, essa explicação é fortemente ideológica, e passou a ser um dos
fundamentos do pensamento neoliberal, porque está baseada em pressuposto quase
religioso: “no princípio era o mercado”. Ora, o mercado é uma instituição socialmente
construída. Aprendemos que no princípio era Deus; talvez nem isto seja verdade, mas
é mais razoável do que dizer que no princípio era o mercado.
21 Fazem mais sentido as explicações de caráter histórico. As organizações nasceram das
duas revoluções industriais, do enorme aumento da produção, e das economias de
escala cada vez maiores proporcionadas por métodos de gestão cada vez mais
competentes beneficiados pelo avanço da tecnologia da informação e da
comunicação. E surgiram também da vontade de poder de seus dirigentes. Há muitas
atividades que necessitam uma escala mínima superior à empresa ou à unidade
familiar para serem minimamente eficientes e competitivas. Por outro lado, a
organização é um sistema de poder hierárquico. Quanto maior for a organização,
maior será o poder de seus dirigentes no topo, e maiores serão os poderes de todos os
demais administradores porque maiores serão os postos de direção disponíveis para
eles. O capitalista ativo ou empresário também deseja poder, mas este está
subordinado ao objetivo riqueza. Já para o profissional a riqueza é também
importante, mas o que interessa mesmo é o poder. Por isso, enquanto o capitalista
acumula capital, o profissional expande a organização.
Para compreender as organizações, uma melhor alternativa à visão de engenheiro
implícita na administração científica taylorista que transformou a organização em
uma máquina, ou à proposta do novo institucionalismo econômico que a transformou
em um mecanismo para economizar custos de transação, é a teoria sociológica das
organizações de Max Weber. Nos Estados Unidos, que Talcott Parsons introduziu na
literatura sociológica norte-americana, e após os estudos de Hawthorne, conduzidos
por Elton Mayo nos anos 20, a teoria das organizações passou a se constituir em uma
área de confluência entre a sociologia e a economia. 13 Para compreender as
organizações e como os administradores e trabalhadores nelas se comportam e são
motivados, a teoria das organizações abandonou a engenharia e as perspectivas
orientadas para a economia e incorporou teorias emprestadas da sociologia e da
psicologia social, ao mesmo tempo que a racionalidade burocrática ou instrumental
continuava a ser seu traço essencial.14
As organizações se tornaram a unidade de produção dominante nas sociedades
modernas porque se revelaram historicamente mais eficientes do que as unidades
familiares. O argumento segundo o qual os custos de transação internos são menores
do que os custos de transacionar no mercado é tautológico; é a mesma coisa que dizer
que a organização é mais eficiente do que o mercado. O que interessa saber é por que
os custos de transação são cada vez menores em grandes organizações, e a resposta
para isso são as economias de escala, as quais dependerão do bem produzido, do tipo
de tecnologia e do tipo de administração historicamente adotados, ou, em outras
palavras, das economias de escala envolvidas que variam no tempo, tendo, nos
últimos 50, aumentado devido à tecnologia da informação. As organizações são um
tipo de sistema social deliberadamente orientado para cumprir objetivos, no qual a
racionalidade instrumental é predominante. Na sua qualidade de organizações formais
ou burocráticas, elas são o produto de decisões racionais de profissionais, ou, nos
termos de James March e Herbert Simon, do “comportamento administrativo” que é
exercido a partir de uma “racionalidade limitada.15 Como se trata de um sistema onde
o todo é maior do que a soma de suas partes, não é possível reduzir as organizações a
decisões de agentes individuais, como presume a escola da escolha pública e o novo
institucionalismo e limitar a motivação de trabalhadores e administradores a
incentivos materiais, embora sua importância não possa ser ignorada.
Com relação aos incentivos, há um consenso geral sobre a importância dos incentivos
22 não econômicos ou sociais. Como observa Amitai Etzioni (1964: 32), a escola de
relações humanas descobriu que a eficiência e a racionalidade das organizações não
depende da capacidade física, mas da “capacidade social” dos trabalhadores, e que as
recompensas não econômicas desempenham um papel central na determinação de sua
motivação e felicidade. Chester Barnard (1938), que, juntamente com Elton Mayo,
pode ser considerado o fundador da teoria das organizações, insistia na importância da
cooperação e dos incentivos morais nas organizações. Em um trabalho que é hoje um
clássico na área, Abraham Maslow (1943, 1970) propõe uma hierarquia de
motivações, começando com a auto-realização no trabalho, continuando com a autoestima derivada da autonomia e da responsabilização na execução de tarefas, a
participação no grupo social e a segurança oferecida pela organização, e terminando
com a motivação ‘fisiológica’, que inclui incentivos salariais e monetários. A ênfase
dada por Mayo e Barnard aos fatores de cooperação na motivação para o trabalho foi
mais tarde criticada como excessiva pelos teóricos das organizações, mas a ideia geral
não foi colocada em cheque. Embora o poder seja a motivação básica do profissional,
é impensável reduzir o sistema de incentivos de uma organização a incentivos
egoístas de ganhos materiais e promoção na carreira.
A preocupação central é compreender as organizações como um sistema social sob
vários ângulos ou perspectivas. Gareth Morgan (1986) propõe que as organizações
possam ser vistas por meio de uma combinação de oito metáforas: organizações como
máquinas, como organismos, como o cérebro, como culturas, como sistemas políticos,
como prisões psíquicas, como fluxo e transformação, e como instrumentos de
dominação. A maioria das organizações são sistemas sociais vivos e dinâmicos,
compostos de ativos econômicos e financeiros, processos e tecnologias, e ocupadas
predominantemente por homens e mulheres dotados de motivos egoístas e altruístas
ou sociais, e com visões contraditórias, de amor e ódio, em relação à organização
onde trabalham.16 Através de um processo que Max Pagès et al. (1986) chamam de
‘mediação’, temos a combinação contraditória, dentro de cada organização, dos
privilégios ou vantagens oferecidos para motivar os funcionários, com as restrições ou
coerção a eles impostas pela organização. Os administradores privados como os
públicos administram a organização como se ela fosse sua propriedade. Seus
“adversários” nas organizações privadas são os empresários, enquanto que no
aparelho do Estado são os políticos. Mas para tanto uns quanto outros, o objetivo
fundamental é a expansão da organização.
9. A gestão das organizações burocráticas A gestão das organizações burocráticas pode ser burocrática ou então gerencial. Ela
começou burocrática no seio do aparelho do Estado ou administração pública,
transformou-se em gerencial nas empresas privadas a partir dos anos 1910, e esta
transformação começou a atingir a administração pública a partir . tecnoburocracia
pode ser entendida como uma forma mais moderna e mais ampla de burocracia –
como uma organização gerencial – e pode ser relacionada com a administração
gerencial ao invés da administração burocrática. A autoridade do profissional é
também racional-legal, mas a legitimação jurídica cede espaço para a legitimação
técnica. 17 A eficiência da organização é colocada como objetivo maior. A
competência técnica deixa de ser reconhecida principalmente em termos de exames e
diplomas juridicamente definidos, como acontece no modelo weberiano, para
depender mais do desempenho efetivo do profissional e de sua capacidade de agir
23 com autonomia e atingir as metas contratadas com seus superiores. Enquanto a
administração burocrática tende facilmente para a rigidez tendo como base
regulamentos rígido, o princípio hierárquico da unidade de comando e a centralização
administrativa, a administração gerencial é muito mais flexível: privilegia objetivos
em relação a meios, abandona o princípio da unidade de comando para apoiar-se no
modelo matricial ou funcional-descentralizado no qual a autoridade de linha é
combinada com a autoridade funcional de várias maneiras, vale-se da competição por
excelência e do controle social para tornar os gestores responsabilizados perante seus
superiores e, no caso da administração pública, perante a sociedade. O sistema
decisório tende a descentralizar-se. Surgem comitês que se encarregam da tomada de
decisão e de coordenação das atividades. Não existe uma carreira rígida para os
profissionais, e suas funções vão sendo definidas em função das necessidades do
sistema e de suas características pessoais. Procura-se assim reduzir a impessoalidade
da organização burocrática, aumentar o nível de participação dos administradores no
processo decisório, e assim aumentar a eficiência do sistema. Há um pressuposto de
eficiência e competência técnica no profissional e na organização burocrática
gerencial, mas isto não significa que ela seja necessariamente eficiente. Esse
pressuposto pode ser muitas vezes uma simples forma de legitimação do poder, sem
base efetiva na realidade.
As organizações gerenciais nasceram no setor privado, inicialmente nos Estados
Unidos, nas grandes empresas automobilísticas. Desde o final do século XIX essas
empresas vinham procurando adotar as políticas desenvolvidas pelas organizações
estatais. Os trabalhos de Henri Fayol tinham essa natureza. Entretanto, seus
dirigentes, entre os quais Alfred Sloan da General Motors e Henry Ford logo
perceberam que o sistema era ineficiente, e passaram a flexibilizá-lo de várias
maneiras. Enquanto isso, as organizações públicas continuavam presas ao modelo
burocrático. Um modelo que era aceitável para um pequeno Estado liberal, que
correspondia a cerca de 7% do PIB, e se limitava a garantir a ordem interna e
defender a nação contra o inimigo externo. Quando o tamanho do Estado se
multiplicou por cerca de seis na segunda metade do século XX com a transformação
do Estado liberal no Estado do bem-estar social, o modelo burocrático de
administração revelou sua rigidez e ineficiência. Afinal, nos anos 1980, começaram as
reformas da gestão pública, inicialmente na Grã-Bretanha, na Nova Zelândia e na
Austrália. Hoje a maioria dos países ricos já adotaram em menor ou maior grau a
reforma gerencial. Entre os países em desenvolvimento o Brasil e o Chile foram os
primeiros a começar a reformar seu Estado nessa direção. Iniciada em 1995 a reforma
gerencial brasileira continua a prosperar, principalmente ao nível dos Estados e dos
grandes municípios, porque é neles que a gestão moderna é mais necessária.
Como a reforma burocrática, a reforma gerencial dura 30 a 40 anos para poder ser
considerada razoavelmente completa. Na verdade, nunca se completa. Trata-se,
porém, de uma reforma inevitável se considerarmos que a transição do Estado liberal
para o Estado do bem-estar social e democrático é também inevitável. Ora, tudo
indica que o Estado do bem-estar social é uma decorrência necessária da democracia
no quadro do capitalismo. É a forma mais eficiente de reduzir a desigualdade e
aumentar a segurança dos cidadãos e suas famílias. Substituir esses grandes serviços
de consumo coletivo por aumento de salários e provisão privada desses serviços é
muito caro, de forma que os cidadãos exigem e a sociedade aceitam que o Estado
construa grandes sistemas de previdência social, educação e saúde pública. Ora, esses
24 serviços são necessariamente o caros, correspondem a uma percentagem importante
do PIB, e, por isso, precisam ser administrados de forma eficiente. Principalmente
graças à adoção do modelo das “organizações sociais” – organizações públicas nãoestatais contratadas pelo Estado para realizar os serviços sociais e científicos que a
sociedade considera deverem ser oferecidos de forma pública – essa eficiência é
alcançada. A reforma gerencial empreendida pela alta burocracia pública profissional
em cada país torna-se assim uma condição de sua própria legitimidade e, mais cedo
ou mais tarde, é adotada.
10. A revolução organizacional Da mesma forma que a transição da produção artesanal para as unidades de produção
manufatureira definiu a revolução industrial, a transição das unidades familiares de
produção para as organizações definiu a “revolução organizacional”.
Tão importante quanto a revolução tecnológica que caracterizou a Segunda
Revolução Industrial foi a Revolução Organizacional – a transformação das
organizações burocráticas na unidade de produção básica das sociedades modernas
em substituição às unidades de produção familiares. Durante todo o período préindustrial e durante quase um século depois da revolução industrial na Inglaterra, as
organizações burocráticas tinham um papel secundário dentro do sistema social.
Prevaleciam tipos de sistema social tradicionais, não-racionais, como a tribo, o clã o
feudo, a corte, a unidade de produção familiar, seja ela artesanal, agrícola, ou mesmo
industrial dos primeiros tempos, em que a tecnologia era simplesmente mecânica. Na
medida em que a tecnologia não o exigia, não se constituíam organizações
burocráticas. Há algumas exceções clássicas. No Egito dos faraós e na China dos
mandarins chegaram a se constituir burocracias estatais expressivas. A Igreja Católica
é um célebre exemplo de burocracia multissecular. Os aparelhos dos primeiros
estados-nação surgidos nos séculos XVII e XVIII, inclusive seus exércitos, são
também exemplos de burocracias clássicas. Este quadro mudará completamente a
partir da revolução capitalista, ou seja, a revolução nacional e industrial, na Inglaterra,
e, um século depois, a revolução organizacional. Não foi por acaso que Max Weber
desenvolveu o conceito de organização burocrática – o sistema social organizado
racionalmente – logo após a Alemanha haver terminado sua própria revolução
capitalista. Como a revolução nacional e industrial naquele país foi retardatária em
relação à da Inglaterra e da França, quando ela ocorreu ela se acavalou com a
revolução organizacional, ou, em outras palavras, a primeira e a segunda revolução
industrial se sobrepuseram.
A organização burocrática transformou-se, durante o século XX, no instrumento
principal do desenvolvimento econômico, na forma por excelência de organizar o
trabalho para a produção de bens e serviços. Conforme demonstrou Alfred Chandler
(1977) as organizações burocráticas empresariais começam a aparecer em substituição
às empresas familiares ainda em meados do século XIX, quando administradores de
nível médio passaram a ter um papel importante na administração das empresas. A
mudança mais completa, porém, apenas se concretizou no começo do século XX, com
a segunda revolução industrial, quando surgem as grandes empresas que agora
burocráticas mas capitalistas: formalmente organizadas, administradas por
profissionais, e voltadas para o lucro e a acumulação de capital. As economias de
escala que vinham embutidas no progresso tecnológico sob a forma de inovações
25 como a produção padronizada, a linha de montagem, a produção em fluxo integrado
e, mais tarde, a automação obrigavam as empresas a se tornar cada vez maiores e mais
complexas. Estamos então em pleno período fordista do capitalismo dos profissionais,
que, entretanto, não tem como figura paradigmática Henry Ford. O outro personagem
chave desse período é Alfred Sloan que, na direção da General Motors, nos anos
1910, definirá as bases da organização funcional-descentralizada ou matricial – uma
forma de organizar as grandes empresas que combina a centralização das
competências e a descentralização da produção tanto no plano geográfico quanto no
de produto. Esta foi uma extraordinária inovação organizacional que viabilizou do
ponto de vista econômicos ou da eficiência empresas muito maiores, de abrangência
nacional e depois multinacional.18
Como o trabalho assalariado, o lucro e a acumulação de capital, as burocracias
públicas e os estados-nação foram consequência da revolução capitalista. Depois da
Segunda Guerra Mundial, o aparelho do Estado cresceu de forma extraordinária na
medida em que o Estado deixava de ser o do Estado liberal para se tornar o do Estado
do bem-estar social no qual os serviços sociais e científicos prestados pelo Estado
passaram a representar cerca 25% a 35% da despesa pública.19 Cresceu, assim, a
organização burocrática estatal, e, por isso, há frequentemente uma confusão entre a
organização burocrática e o aparelho do Estado. Na verdade, a administração pública
ou o aparelho do Estado ou a organização do Estado é apenas uma das organizações
burocráticas das sociedades modernas. O crescimento das organizações burocráticas
ao nível das empresas foi também imenso; e elas também avançam nos demais setores
da sociedade: no setor da propriedade corporativa, ou seja, dos clubes, das
associações classe, os sindicatos; no da propriedade pública não-estatal de serviços
sociais e científicos – as escolas e os hospitais sem fins lucrativos; e no setor da
propriedade pública não-estatal de controle ou responsabilização social – as ONGs
estrito senso contribuindo para a afirmação e fiscalização dos direitos civis, sociais e
ambientais, em todos esses setores as organizações burocráticas ou simplesmente
organizações assumiram o papel de instituição organizacional da ação coletiva.
Essas organizações, ao crescerem, tornavam-se cada vez mais complexas, mas
conseguiam se manter coesas e eficientes graças ao desenvolvimento da tecnologia
das comunicações que ocorre a partir da Segunda Guerra Mundial. Os 30 Anos
Dourados do Capitalismo foram os anos de Bretton Woods e do Estado do bem-estar
social; foram também os anos dourados das grandes organizações e dos profissionais
que as administravam.20 A própria sociedade parecia se burocratizar, na medida que a
regulação do Estado aumentava em toda parte e que os profissionais viam seu poder e
seu prestígio crescer.
Entretanto, a partir dos anos 1970, começa a crise do regime de regulação fordista, e,
portanto, da grande coalizão política de capitalistas, profissionais e trabalhadores que
caracterizara o capitalismo tecnoburocrático inaugurado pela Segunda Revolução
Industrial. A queda nas taxas de lucro e de crescimento nos países ricos, o colapso do
sistema financeiro internacional de Bretton Woods em 1971, o primeiro choque do
petróleo em 1973, o segundo, em 1979, a estagflação nos Estados Unidos abriram
espaço para a contrarrevolução neoliberal. Discutirei estes fatos mais adiante. Agora é
importante assinalar que o assalto neoliberal não será apenas ao grande Estado
burocrático; será também voltado contra os profissionais – principalmente contra os
profissionais do setor público, mas também contara os das grandes organizações
26 empresariais, neste caso em nome dos acionistas.
Devido à revolução da tecnologia da informação e da comunicação que ocorreu no
último quartel do século XX – as organizações privadas e públicas também sofreram
modificações. Ao nível das empresas, Rosabeth Moss Kanter (1991), a partir de uma
extensa pesquisa que realiza entre 80 grandes empresas americanas, assinala já nessa
época modificações importantes. Dada a rapidez cada vez maior do progresso técnico,
dada a competição não mais a nível nacional mas mundial em que se veem imersas as
empresas, dada a nova competição dos países em desenvolvimento na produção de
bens industrializados, as organizações são obrigadas a se tornar mais flexíveis e
menos hierárquicas. Tanto as organizações privadas como as públicas passarão por
reformas, para torná-las mais flexíveis, mais capazes de se adaptar a um ambiente em
permanente mudança, mais terceirizadas, com maior número de assessores e
consultores independentes, mais voltadas para resultados e menos para a definição de
procedimentos rígidos. Nestas reformas existe um elemento ideológico neoliberal (a
tentativa de reduzir os salários dos trabalhadores e de enfraquecer os profissionais em
favor dos acionistas), mas elas respondem também às restrições impostas pela
competição e pela necessidade de eficiência. Ou, em outras palavras, essas reformas
respondiam tanto a restrições econômicas que, se não fossem respeitadas, o sistema
econômico funcionaria mal, quanto a “restrições de hegemonia” que apenas
interessavam à coalizão de classes neoliberal. Já a partir dos anos 1980 em alguns
países ricos e dos anos 1990 no Brasil, a organização do Estado passa também por
reforma. Algumas delas, em determinados momentos, assumem caráter neoliberal ao
pretenderem reduzir o tamanho do Estado e o papel da regulação econômicas. Mas na
maioria dos casos respondem ao desafio representado pelo crescimento dos serviços
sociais e científicos prestados pelo Estado. Estes serviços que constituem o Estado do
bem-estar social representaram um grande avanço do ponto de vista da diminuição da
desigualdade nas sociedades capitalistas. O consumo coletivo que está implicado
neles é muito mais igualitário do que o consumo individual pregado pelo
neoliberalismo. Mas para que esse Estado do bem-estar social ou esse consumo
coletivo se justifique é necessário que os serviços sejam prestados de maneira
eficiente. Foi essa a lógica por trás de boa parte da reforma gerencial do aparelho do
Estado; foi essa a lógica que me orientou quando desencadeei no Brasil a Reforma
Gerencial do Estado de 1995.21 Por exemplo, ao t ornar gerencial a administração do
sistema universal de cuidados da saúde do Brasil, o SUS, o governo estava
legitimando o extraordinário avanço social que representa no Brasil o Sistema Único
de Saúde.
Através de reformas e da definição de estratégias de gestão que, no setor privado, não
começaram nos anos 1980 mas no começo do século XX, as organizações se
tornavam mais eficientes. Ainda que os neoliberais patrocinassem algumas delas –
todas que envolvessem perdas de direitos para os trabalhadores e perda de poder para
os profissionais – as que realmente avançaram foram sempre conduzidas pelos
próprios profissionais, que, dessa forma, legitimavam seu papel no sistema produtivo.
Em alguns casos, como na flexibilização das leis de proteção ao trabalho ao nível das
próprias empresas, eles lograram resultados, mas isto em geral ocorreu como uma
imposição da concorrência internacional, e implicou em vários níveis de acordo com
os trabalhadores preocupados em conservar seu emprego. E teve como compensação
um aumento dos serviços sociais do Estado, especialmente o auxílio desemprego e os
serviços de retreinamento do pessoal – estes tornados necessários na medida em que o
27 desenvolvimento tecnológico tornava determinadas competências técnicas obsoletas.
Este sistema de compensação originalmente desenvolvido na Dinamarca mas depois
estendidos a muitos países ricos ficou conhecido como o sistema de “flexiseguridade”
(Boyer 2006).
Portanto, a diferença fundamental entre o capitalismo clássico que Marx conheceu e o
capitalismo tecnoburocrático está no plano da produção, está na forma de organizar
essa produção a partir de empresas que são agora organizações burocráticas. O século
XX foi o século das organizações. Organizações em permanente processo de
transformação, mas sempre organizações burocráticas, formalmente e racionalmente
organizadas. A produção deixou de ser realizada principalmente por unidades de
produção familiares e passou a ocorrer no seio de grandes sociedades anônimas. E foi
esse o fato histórico novo que levou a um enorme aumento do número dos
administradores ou profissionais nas sociedades capitalistas. Um aumento tão grande
do estamento tecnoburocrático que implicou mudança de qualidade; implicou a
configuração de uma nova classe social: a classe profissional ou tecnoburocrática –
uma classe que, como a burguesia, será originalmente uma classe média, mas aos
poucos suas camadas mais altas enriquecem remuneradas por altos salários, bônus e
opções de compra de ações, e passa a fazer parte da classe alta.
11. A nova relação de produção: a organização A Segunda Revolução Industrial, a mudança do fator estratégico de produção e a
Revolução Organizacional tiveram, portanto, como consequência a emergência da
tecnoburocracia. A sociedade continuou capitalista, porque orientada para o lucro e
baseada na acumulação de capital, mas deixou de ser possível se falar em um
capitalismo “puro”, deixou de ser o capitalismo clássico ou liberal do século XIX,
para ser o capitalismo tecnoburocrático. A tecnoburocracia passava a partilhar poder
e privilégio com a burguesia. Para entendermos a sociedade moderna que assim
assumia novas características, precisávamos agora, além de entender a lógica do
capital, entender a lógica da organização. Precisávamos pensar teoricamente em uma
sociedade estatal ou no estatismo, e compreender a organização – a relação de
produção e a lógica própria da tecnoburocracia. Além do capital – da propriedade
privada dos meios de produção – tínhamos agora uma nova relação de produção: a
organização – a propriedade privada das organizações pelos profissionais. O
resultado é uma formação social mista, tecnoburocrático-capitalista, porque nele as
duas lógicas coexistem. A burguesia detém a propriedade jurídica dos meios de
produção e o direito a dividendos e juros; a tecnoburocracia detém o controle do novo
fator estratégico de produção, o conhecimento técnico e organizacional, e, por isso, a
propriedade coletiva da organização; e se remunera com ordenados e bônus. No
âmbito das próprias empresas, os administradores ganham crescente autonomia ao
lograr a expansão da empresa e a realização do lucro pelos respectivos proprietários
capitalistas que vão se transformando em rentistas.
Nesse processo, a burguesia reproduz a experiência do aprendiz de feiticeiro; cria as
condições para sua própria possível destruição. Do capital nasce a organização que
tende a substituí-lo na qualidade de relação de produção dominante. Embora
assinalando o surgimento dessa nova classe social, é preciso ficar claro que não me
inscrevo na “escola gerencial” do capitalismo que, nas palavras de Maurice Zeitlin
(1989: 73), “afirma que uma ‘revolução silenciosa’ levou os administradores das
28 grandes empresas a tomar o poder dos capitalistas, abolir o objetivo lucro,
estabelecendo-se assim uma ‘sociedade pós-capitalista’”. O capitalismo, no final da
primeira década do século XXI continua forte e sem alternativa à vista: há muito,
porém, deixou de ser um capitalismo apenas dos capitalistas.
Neste capítulo o meu tema é a organização – a relação de produção própria das
sociedades profissionais ou estatistas, a propriedade coletiva das organizações
burocráticas pelos profissionais. Como podemos pensar em um capitalismo “puro”
definido pela propriedade privado dos meios de produção ou pelo capital, podemos
pensar em uma sociedade puramente estatal ou tecnoburocrática na qual desaparece o
capital e resta apenas a organização. Em uma sociedade mista, tecnoburocráticocapitalista, ou seja, no capitalismo tecnoburocrático as duas formas de propriedade
coexistem. A revolução capitalista tornou o capital a relação de produção dominante
no capitalismo clássico; a revolução organizacional e a mudança do fator estratégico
de produção – ambas consequências da segunda revolução industrial tornaram a
emergência da classe tecnoburocrática um fenômeno histórico definitivo. Diante
desse fato, alguns sociólogos liberais viram a nova classe surgir e o tamanho do
aparelho do Estado aumentar e temeram pelo capitalismo: foi o caso de Joseph
Schumpeter. Outros, como Adolphe Berle, Daniel Bell, e Ralph Dahrendorf viram na
emergência dos profissionais ou dos gerentes uma profunda reorganização do
capitalismo que o transformava em uma sociedade mais racional e livre dos conflitos
de classe. Um terceiro grupo formado por intelectuais como Wright Mills e John K.
Galbraith perceberam também que o capitalismo mudara, surgira uma nova classe,
mas isto não significava que a sociedade deixasse de ser uma sociedade de classes.
Finalmente, um quarto grupo do qual fizeram parte Bruno Rizzi, Cornelius
Castoriadis, Claude Lefort e o George Orwell de A Revolução dos Bichos
concentraram sua atenção na União Soviética e mostraram que a revolução socialista
levara a um sociedade tecnoburocrática e a um sistema político autoritário senão
totalitário dominado pela burocracia. Neste livro eu discuto essas abordagens e
desenvolvo minha própria interpretação do problema mostrando que o capitalismo
não foi superado pelo estatismo, mas que nele ocorreu uma revolução organizacional
que deu origem a uma formação social mista capitalista e profissional.
Estas ideias foram objeto de grande debate nos anos 1970. Marxistas que se
pretendiam ortodoxos recusavam a ideia de uma nova classe não prevista por Marx,
seja porque em relação aos países comunistas não aceitavam que estivessem se
transformando em estatismo burocrático, seja porque, em relação aos países
capitalistas avançados, não admitissem que o capitalismo deixara de ser uma
sociedade de classes. Não tinham razão em relação ao primeiro ponto, mas estavam
corretos em relação ao segundo. A separação entre a propriedade e o controle nas
empresas sem dúvida ocorreu nos Estados Unidos, mas raramente implicou a perda
completa de poder dos acionistas. Conforme Maurice Zeitlin (1989: 7-9), “gestão
burocrática não significa controle burocrático; é preciso considerar os centros de
controle no alto do sistema ou fora da burocracia propriamente dita”. É por essa razão
que vejo o capitalismo tecnoburocrático como um sistema no qual capitalistas e
profissionais partilham poder e privilégio, ao mesmo tempo em que lutam entre si por
maior poder e maior privilégio. São duas classes distintas; não são, como sugere
Zeitlin “membros da mesma classe social”. Para que essa afirmação fizesse sentido
seria necessário ignorar as raízes históricas dessas duas classes sociais.
29 Hoje, essa discussão está terminada. É impossível ignorar ou rejeitar a emergência da
classe tecnoburocrática. Continua, entretanto, em aberto a questão do papel político
dessa classe social. Sabemos que ela tem uma ideologia, mas daí não é possível
deduzir um comportamento político coerente. No passado isto parecia possível; hoje é
impossível porque a classe tecnoburocrática é grande e muito diversificada. Seus
interesses ora estão relacionados com o Estado e o desenvolvimento econômico, ora
com as empresas e seu crescimento. Ora essa classe faz uma coalizão política com os
capitalistas ativos ou empresários e com os trabalhadores, como aconteceu em boa
parte do século XX, ora se associa a rentistas e ao capital financeiro, como ocorreu
nos 30 Anos Neoliberais – no tempo do capitalismo neoliberal.
Para entendermos o capitalismo tecnoburocrático dos nossos dias eu apresentei uma
série de conceitos e ideias como a mudança da unidade básica de produção das
famílias para as organizações, o surgimento de um novo fator estratégico de produção
a substituir o capital, as formas históricas que a tecnoburocracia assumiu no século
XX nos países ricos, e nos países retardatários que fizeram revoluções socialistas ou
então nacionalistas. Neste capítulo quero discutir dois pontos cruciais: o conceito de
organização e o novo conceito de capital.
O século XX foi o século das organizações, foi o século do capitalismo dos
profissionais, foi o século da revolução organizacional, foi o século em que uma nova
relação de produção ou de propriedade se define não em substituição mas ao lado do
capital: a organização. A distinção fundamental entre o modo de produção
tecnoburocrático e o capitalista pensados em termos puros encontra-se na natureza das
relações de produção respectivas, na forma que assume a propriedade em cada
sistema. A propriedade, segundo Marx, é a forma jurídica de que se revestem as
relações de produção. Os modos de produção são categorias históricas em que a
forma de propriedade ou mais precisamente a relação de produção definida pela
propriedade constitui a característica essencial. À propriedade comunitária primitiva,
à propriedade antiga, à propriedade asiática, à propriedade germânica, à propriedade
feudal, à propriedade capitalista correspondem os respectivos modos de produção.
Isto está muito claro nas Grundisse (Rascunhos) nos quais ele trata das formações
pré-capitalistas
(1858 vol. 1: 434-444). Se a cada forma de propriedade
correspondem relações de produção diferentes, correspondem também classes sociais
diferentes. A burguesia é a classe dominante em uma sociedade capitalista. A
propriedade capitalista é a propriedade privada do capital pela burguesia, que se
define como uma classe social específica, historicamente situada a partir do
surgimento do capitalismo, e que desaparece com o advento de um modo de produção
tecnoburocrático puro.
Ao modo de produção estatal corresponde a propriedade organizacional ou
simplesmente a organização, que pode ser simplesmente definida como a
propriedade coletiva pelos profissionais de cada organização burocrática. Quando
estamos no estatismo, a propriedade dos meios de produção pertence ao Estado, mas o
aparelho ou organização do Estado é propriedade de sua alta burocracia. Seu controle
dos meios de produção se exerce à medida que seus membros ocupem posições
administrativas estratégicas nas organizações burocráticas privadas e nas do Estado.
No caso do estatismo puro existe, a rigor, apenas uma organização burocrática – a
organização do Estado das quais as empresas estatais são parte. A relação de
produção tecnoburocrática é assim radicalmente diversa da capitalista, na medida que
30 em uma a propriedade é coletiva e na outra, privada, e, no limite, uma é sempre
privada, a outra, estatal. Esta distinção torna-se, porém, mais clara se pensarmos em
termos de propriedade organizacional. O tecnoburocrata é o profissional que dirige as
organizações burocráticas, definidas estas em termos weberianos como sistemas
sociais racionais administrados segundo critérios de eficiência. Não apenas o poder,
mas também a própria existência do profissional depende da existência concomitante
de uma organização burocrática. Na verdade, a organização burocrática antecede à
classe tecnoburocrática, porque historicamente primeiro surgem as organizações
burocráticas ou semiburocráticas sob o controle patrimonial ou capitalista e os
burocratas estamentais, e só mais tarde o controle efetivo dessas organizações é
assumido pelos profissionais.
O importante, entretanto, é assinalar que, no sistema econômico tecnoburocrático, a
organização burocrática surge como um intermediário necessário entre os
profissionais e os instrumentos de produção; o controle sobre a organização
burocrática é a organização, é a propriedade organizacional. Ao contrário do que
acontece no capitalismo clássico, em que o capitalista possui diretamente a
propriedade do instrumento de produção, ou seja, o capital, no estatismo o
profissional tem a propriedade ou o controle não dos meios de produção mas da
organização burocrática.22 É esta organização burocrática, por sua vez, que detém a
propriedade dos instrumentos de produção, das mercadorias e do dinheiro necessários
para empregar trabalhadores e realizar a produção. Além disso, a organização – a
propriedade do profissional sobre a organização burocrática, seu efetivo controle
sobre esse sistema social organizado, não é realizado individualmente, como
acontecia no capitalismo, mas coletivamente por um grupo de profissionais. No
estatismo a propriedade organizacional transforma-se em propriedade estatal. Mas no
capitalismo a organização já está presente ao lado do capital, porque as organizações
burocráticas estão em toda parte.
A distinção essencial entre o capitalismo e o modo de produção tecnoburocrático
baseia-se, portanto, na natureza diversa das relações de produção. No capitalismo a
propriedade é privada e a classe dominante é a burguesia; no estatismo ou sociedade
tecnoburocrática a propriedade é coletiva e a classe dominante é constituída pelos
profissionais. Há outros tipos de propriedades “coletivas”, expressão que estamos
utilizando aqui em oposição à propriedade privada. Temos a propriedade asiática, em
que um Estado burocrático-tradicional serve de mediador; temos a propriedade
comunal própria da Europa pré-capitalista, coexistente com a apropriação privada
feudal.. E teríamos a sociedade socialista, que, no entanto, prefiro não discutir na
medida em que entendo o socialismo mais como uma ideologia ou um projeto a ser
realizado do que como uma realidade possível no médio prazo.
A existência da organização no capitalismo dos profissionais se revela sob muitas
maneiras. Uma delas é o fato de que os altos executivos das grandes empresas
comerciais e a alta burocracia pública são capazes de definir sua própria remuneração.
Nas empresas comerciais, teoricamente isso é atribuição do conselho de
administração, mas muitas vezes esses conselhos são controlados por administradores
e não por acionistas. No Estado, os funcionários públicos mais graduados, eleitos e
não eleitos, muitas vezes têm um poder semelhante. O fato de os profissionais não
deterem a propriedade legal mas, em vez disso, a propriedade coletiva da organização
evidentemente reduz sua capacidade de definir seus proventos de modo pleno. Eles
31 precisam constantemente justificar suas ações ou explicar sua remuneração em termos
de mercado, enquanto o capitalista está livre para fazer uso de sua propriedade em seu
próprio benefício e no de sua família. O mesmo acontece nos sistemas estatais. A
“nomenclatura” – o conjunto dos altos profissionais que dominavam a União
Soviética – enfrentava forte limitação em sua tentativa de se apropriar do excedente
econômico. A propriedade dos profissionais não é herdada, ao contrário da
propriedade capitalista e pré-capitalista. A nova classe média profissional precisa
adotar várias estratégias para transmitir suas posições de classe a seus filhos e filhas,
enquanto esse processo é relativamente automático no caso das classes capitalistas e
sobretudo aristocráticas. Isso significa que a propriedade organizacional é menos
definida e menos autoritária do que a propriedade capitalista. Significa que a
organização é uma relação de produção que oferece menos estabilidade a seus
proprietários do que o capital. E explica por que a mobilidade social tende a ser maior
no capitalismo dos profissionais do que no capitalismo liberal.
O ideal meritocrático – a esperança de que a desigualdade econômica fosse explicada
apenas pelo mérito pessoal – era o sonho dos “progressistas” norte-americanos. No
capitalismo tecnoburocrático esse sonho transformou-se em uma realidade não tão
ideal. 23 A remuneração dentro da organização depende da posição relativamente
instável ocupada pelo indivíduo. A posição, por sua vez, deriva do monopólio sobre o
conhecimento técnico, organizacional e comunicativo que o técnico tem ou alega ter.
Origina-se do conhecimento técnico e científico real ou presumido do burocrata, de
sua competência para administrar organizações burocráticas e de sua capacidade de
criar redes e transmitir valores e ideias. Em termos de justiça social, há um avanço
porque a propriedade e as relações familiares cedem lugar para o mérito – mas esse
avanço está longe de ser ideal, pelo fato de que a remuneração dos altos executivos se
torna extremamente elevada, e a renda não fica igualitária, mas frequentemente acaba
se concentrando. Mérito e poder organizacional tornam-se tão inter-relacionados que
fica difícil saber qual critério prevalece.
12. O novo conceito de capital A mesmo tempo que se configurava a organização como uma nova relação, o capital
se transformava, mudava de conceito. Quando Marx (1867: 885) fala em capital
variável e em capital constante, ou quando se refere a capital-dinheiro e a capitalmercadoria, pode-se imaginar que ele esteja dando ao capital um caráter material. Na
verdade, o capital, como a própria mercadoria, é para ele sempre um processo e uma
relação de produção. Em suas próprias palavras: “o capital não é uma coisa, mas uma
relação social entre pessoas, efetivada através de coisas”. Nos Rascunhos Marx (1858:
452) definiu a propriedade como uma relação social de produção real através da qual
os homens tomam posse dos bens materiais, e não como um simples aspecto jurídico
da relação de produção. “A propriedade não significa originariamente outra coisa
senão o comportamento do homem com suas condições naturais de produção como
sendo condições pertencentes a ele, suas, pressupostas juntamente com sua própria
existência”. Para Marx, portanto, e ao contrário do que acontece no sistema jurídico
moderno, propriedade não se distingue de posse. Propriedade não é o aspecto jurídico,
formal, da apropriação, enquanto a posse corresponderia a apropriação de fato.
Propriedade é a própria relação de produção, quando se quer dar ênfase, na relação de
produção, à apropriação dos bens materiais. Ou, em outras palavras, a propriedade é o
elemento essencial e real das relações de produção, na medida em que define
32 socialmente a apropriação dos meios de produção. Por isso, da mesma forma que
Marx afirma que para cada modo de produção existe uma respectiva relação de
produção, existe também uma correspondente forma de propriedade. A propriedade
possui uma forma comunitária primitiva, ou asiática, ou eslava, ou germânica, ou
antiga, ou feudal, ou capitalista, dependendo do caráter das relações de produção.
Não há nenhuma “nominação” nessa forma de compreender a propriedade e
relacioná-la com as respectivas relações de produção, mas a simples verificação da
interdependência entre os conceitos de modo de produção, relação de produção e
propriedade. Não é por acaso que Marx, (1858: 456), utiliza sistematicamente o
conceito de propriedade para identificar os diversos modos de produção. Praticamente
repetindo sua definição de propriedade, afirma ele: “propriedade significa, portanto,
originalmente — tanto em sua forma asiática, quanto eslava, antiga, germânica — o
comportamento do sujeito que trabalha (produtor) (o que se reproduz), com as
condições de sua produção ou reprodução como algo de seu”. Não podem estar mais
claros do que nesse texto, de um lado o caráter de apropriação efetiva da propriedade,
e não seu mero caráter jurídico, e de outro a importância crucial do conceito de
propriedade para definir os modos de produção. A propriedade capitalista, nestes
termos, é o próprio capital, entendido este como relação de produção; é a apropriação
privada, pela burguesia, dos meios de produção. A apropriação do capital sobre o
trabalho coletivo, que de fato caracteriza as relações capitalistas de produção, só se
configura a partir do momento em que o capital se constitui como tal, ou seja, a partir
do momento em que o capitalista assume a propriedade privada dos meios de
produção. Nesse momento e concomitantemente, surgem o trabalho assalariado e o
trabalhador coletivo na grande indústria, definindo-se então, plenamente, as relações
de produção capitalistas. Propriedade privada capitalista, mercado e generalização da
mercadoria, trabalho assalariado, mais-valia, trabalhador coletivo, grande indústria,
são aspectos interdependentes que, globalmente, irão integrar as relações de produção
capitalistas, irão configurar o capital.
Com a revolução organizacional e o surgimento de uma segunda relação de produção
no capitalismo dos profissionais o próprio conceito de capital se modificou, assim
como a forma de medir o capital. O capital, obviamente, não deve ser confundido com
os meios de produção, ou com os “bens de capital”. O capital é a propriedade dos
meios de produção. Dentro dessa definição ampla, porém, o conceito de capital vem
mudando com o tempo. Para os primeiros economistas clássicos, o capital era o
capital circulante, era essencialmente a capacidade de contratar trabalhadores,
pagando-os antes que o resultado de seu trabalho pudesse ser vendido no mercado.
Para Marx, assim como para os economistas neoclássicos e keynesianos, que viveram
em uma época na qual o capital fixo tinha se tornado o fator dominante, enquanto os
trabalhadores podiam cada vez mais dispensar o pagamento prévio de seus salários, o
capital era principalmente a propriedade de instalações e equipamentos. Mais
recentemente, quando o software prevalece sobre o hardware, ou quando o
conhecimento operacional torna-se o fator estratégico de produção, tomando o lugar
dos bens de capital, o capital é a capacidade de derivar lucros das organizações de
comando e do conhecimento a elas incorporado. O aspecto curioso e significativo
dessa definição de capital é que ela inclui o conceito de organização. O capital só é
realmente capital quando seus proprietários são também “proprietários” ou capazes de
controlar a organização. Ora, a organização não é apenas a organização burocrática, é
também a propriedade coletiva dos meios de produção por parte dos profissionais. A
33 organização é para o técnico ou o profissional o que o capital é para o capitalista.
Observemos que quando Galbraith afirmou que o conhecimento técnico estava
substituindo o capital como o fator estratégico de produção, ele estava se referindo ao
objeto da propriedade do capital, não ao próprio capital. Ele não estava definindo o
capital como a propriedade dos meios de produção, mas adotando o sentido mais
habitual da palavra – o sentido que identifica o capital com os meios de produção, ou
com o capital físico. Concomitantemente com a transformação do conceito de capital
na capacidade da organização de gerar lucros ou fluxos financeiros positivos, a forma
de medir o capital também mudou. Não estou me referindo à complexa e inconclusiva
discussão dos anos de 1960 entre as duas Cambridge (a inglesa e a americana) sobre o
valor do capital. A teoria econômica, nesses debates, aproxima-se da metafísica, uma
abordagem que não se coaduna com minhas preocupações mais pragmáticas. Refirome ao valor financeiro do capital, ao valor das empresas comerciais. Na época do
capitalismo industrial, até meados do século XX, o capital de uma empresa era
medido por seu patrimônio líquido, tal como identificado no balanço patrimonial.
Algumas correções poderiam ser feitas, o valor dos ativos intangíveis poderia ser
considerado, a avaliação contábil de certos bens de capital poderia ser ajustada, mas,
no final, o valor da empresa era a soma dos ativos totais menos o passivo. Enquanto o
capital físico era o fator estratégico de produção, medir o valor de uma empresa por
seu patrimônio líquido contábil ou pelo retorno sobre o fluxo de caixa não fazia muita
diferença. As duas medidas eram relativamente equivalentes, uma vez que se podia
presumir que, em condições normais e dada a tendência à equalização das taxas de
lucro (provavelmente aliada à lei da oferta e da procura, os dois fundamentos da teoria
econômica) o resultado seria quase o mesmo fosse qual fosse a escola de pensamento.
Hoje, não há mais essa visão, e o valor de uma empresa é dado pelo valor descontado
de seu fluxo de caixa. Nenhum avaliador sério levará em conta o antigo sistema. O
que está por trás de tal mudança? Seria apenas um aperfeiçoamento dos métodos de
análise, como presume a teoria econômica não histórica, ou existe algum fato
histórico novo que tenha provocado essa mudança metodológica? A relação entre essa
mudança na forma de medir o capital e o novo fator estratégico de produção na teoria
de Galbraith é bastante óbvia, e é dupla. Em primeiro lugar, o conhecimento
incorporado ao pessoal da organização, ao software e à própria organização é
atualmente o bem mais importante de muitas empresas, e um bem importante para
todas. Portanto, não faz sentido medir o valor de uma empresa por seu patrimônio
líquido. Em segundo, depois que o conhecimento operacional se tornou estratégico, os
analistas do mercado financeiro confirmam diariamente que o valor de uma empresa
varia de modo dramático de acordo com a qualidade de sua gestão. Um novo diretorpresidente e um grupo de executivos mais competentes na direção de uma empresa
poderão aumentar (ou diminuir se forem incompetentes) seu fluxo de caixa e seus
lucros em um período relativamente curto. Nesse caso, o antigo conceito de
patrimônio líquido deixa de fazer sentido, enquanto a medida do valor do capital com
base no fluxo de caixa se torna a única possibilidade racional. Assim, na medida em
que o fluxo de caixa de uma empresa depende fortemente da qualidade de sua alta
direção, o valor do capital depende do conhecimento técnico, organizacional e
comunicativo detido por esses administradores.
Isso explica por que a alta direção vê sua renda e seu poder aumentarem diariamente.
Explica também por que a influência dos acionistas está sendo sistematicamente
34 reduzida. Explica também por que, de maneira perversa, o abuso e a corrupção, em
especial sob a forma de falsos demonstrativos contábeis, como aconteceu com a
Enron, tornaram-se tão comuns no capitalismo dos profissionais contemporâneo,
levando Galbraith a falar ironicamente sobre a “a economia das fraudes inocentes” –
título de seu último livro (2004). A extraordinária remuneração dos altos executivos,
sob a forma de bônus e opções sobre ações, depende do desempenho do executivo.
Assim, forjar bons resultados é uma tentação a que muitos são incapazes de resistir.
Esse papel estratégico da alta direção, somado a uma oferta ainda limitada de
administradores ou, mais amplamente, de profissionais, apesar da enorme expansão
dos cursos de mestrado em administração de negócios e áreas correlatas, e a
surpreendente aceleração do progresso técnico incorporado na tecnologia da
informação digital também explicam a concentração de renda que caracteriza as
economias capitalistas contemporâneas desde meados dos anos de 1970.
Nesse processo de conquista crescente de poder e riqueza, os altos profissionais, ao
mesmo tempo que se mostravam necessários, buscaram sempre se aliar aos acionistas
que substituíram na direção das empresas. O mecanismo básico utilizado com esse
objetivo foi o de relacionar o valor das ações no mercado com sua remuneração
pessoal sob a forma de bônus e opções de compra de ações. Os grandes beneficiados,
porém, foram os altos profissionais: a relação entre o pagamento recebido pelos CEOs
(chief executive officers) nas 500 maiores empresas americanas e o salário médio dos
operários aumentou de 30 vezes em 1970 para 570 vezes em 2000 (Glyn 2007: 58).
Em 2011, a remuneração média dos CEOs das 350 empresas com maiores vendas nos
Estados Unidos foi de US$ 11,1 milhões contra uma remuneração anual dos
trabalhadores de US$ 50,3 mil dólares. Por outro lado, enquanto que os 1% mais bem
remunerados nos Estados Unidos tiveram um aumento de rendimentos de 156% entre
1979 e 2007, os 90% menos remunerados viram crescer seus rendimentos em apenas
17% nesses 29 anos (Lawrence Michel e Natalie Sabadish 2012). Conforme
observaram Holmestron e Kaplan (2003: 13), “é difícil argumentar que essa gente
necessitava incentivos tão grandes pagos pelos acionistas. Uma explicação óbvia é a
de que eles puderam usar suas posições de poder para obter recompensas excessivas”.
Em 2011, nos Estados Unidos, a remuneração média anual dos presidentes (chief
executive officers) das empresas abertas americanas foi de US$ 14,4 milhões,
enquanto que o salário médio dos americanos foi de US$ 45.230 dólares.24
Além de mudar a maneira de avaliar o capital, o capitalismo dos profissionais deu
origem à definição de um novo tipo de “capital” – o capital humano. Os dois
economistas neoclássicos que formularam essa teoria (Schultz, 1961, 1980; Becker,
1962, 1993) obtiveram o Prêmio Nobel de Economia, e o mereceram porque ao invés
de usarem o método hipotético-dedutivo para construir castelos no ar, reconheceram a
existência de um novo fato histórico: que o conhecimento tinha se tornado semelhante
ao capital físico, e que o investimento em educação é o modo pelo qual os indivíduos
“acumulam” esse patrimônio e dele derivam ganhos ou rendimentos. O que eles não
enfatizaram foi que a educação de muitos indivíduos, a generalização da educação
para toda a sociedade, acarreta externalidades positivas, acarreta desdobramentos e
cruzamentos que abrem caminho para a inovação e o aumento da eficiência em nível
social, de tal modo que o capital humano total criado é maior do que a soma dos
capitais acumulados por cada indivíduo.
35 13. A emergência da tecnoburocracia Temos agora os elementos necessários para concluir que no século XX emergiu como
segunda classe dominante do capitalismo a tecnoburocracia e, assim, configurou-se
uma formação social mista: o capitalismo tecnoburocrático.
A análise feita até agora sugere que a partir da revolução organizacional ocorrida nos
países desenvolvidos na primeira metade do século XX e da definitiva emergência da
classe tecnoburocrática o mundo entrou em uma nova etapa da história na qual o
conhecimento enquanto fator estratégico de produção e o planejamento enquanto
forma de organizar a produção ao nível das empresas passaram a desempenhar papel
decisivo. Entretanto, a classe tecnoburocrática tem um papel ainda mais importante o
processo de convergência dos países em desenvolvimento para o nível dos países
ricos. Assim, na análise da emergência da classe tecnoburocrática devemos distinguir
os países capitalistas originalmente desenvolvidos, os países em desenvolvimento, e
os países que realizaram revoluções socialistas.
A emergência da classe tecnoburocrática nos países hoje ricos e a emergência
retardatária nos países tanto nos países hoje em desenvolvimento e nos países que
realizaram revoluções socialistas foram, naturalmente diferentes. Boa parte da
discussão girou em torno do conceito de classes, e de se continuariam ou não as
classes sociais relevantes para a teoria social. Não vou neste livro voltar a essa
discussão que é antiga. Por outro lado, na análise sociológica não faz sentido se
atribuir a uma classe social uma valorização positiva ou negativa. As classes sociais
emergem em função do surgimento de novas tecnologias e de novas relações de
produção; são, portanto, um fenômeno histórico que não faz sentido criticar.
Podemos, sim, criticar a violência que adotam para atender a seus interesses e as
ideologias através das quais procuram disfarçá-los. Muitos intelectuais e militantes de
esquerda compreenderam esse fato nos últimos anos. Mas eles são parte da classe
tecnoburocrática, e são defensores do racionalismo que desde a Renascença definiu a
modernidade. Nesses termos, eles vivem um problema faustiano. De um lado, eles se
sentem atraído pelo ideal tecnoburocrático de uma sociedade racional e eficiente,
dirigida por profissionais escolhidos e promovidos de acordo com o critério
meritocrático da capacidade técnica; de outro, eles sentem que admitir a revolução
tecnoburocrática como algo de real e de “bom” é também renunciar à revolução
socialista.
O debate sobre o surgimento de uma “nova classe média” começou no final do século
XIX, na Alemanha. Já então foi dessa forma que os liberais alemães procuraram
desclassificar a tese marxista da luta dos trabalhadores contra burguesia. Conforme
informou Val Burris (1986: 25), o conceito de “nova classe média” originou-se em
oposição à teoria marxista oficial daquele tempo. O termo foi inicialmente
popularizado por antimarxistas dos 1890s para designar o número crescente
servidores públicos, empregados técnicos, supervisores, auxiliares de escritório e de
vendas.25 Max Weber (1924: 50), por sua vez, mostrou preocupação com o fato: “no
momento é a ditadura dos funcionários e não dos trabalhadores que está a
caminho”.26 Nos Estados Unidos a primeira colocação significativa da questão foi
realizada por Adolf Berle e Gardiner Means (1932) na célebre pesquisa que
realizaram em 1929 sobre as grandes empresas norte-americanas e sobre controle do
seu capital. Nesse trabalho, logo em seu primeiro capítulo, os autores estabelecem a
tese básica do livro: o sistema de propriedade está em transição. Com a concentração
36 do capital em grandes sociedades anônimas, ou seja, em grandes organizações
profissionalizadas, e com a distribuição da sua propriedade entre milhares e milhares
de acionistas, o sistema industrial capitalista entrou em uma fase de profundas
transformações. As empresas deixam de ser controladas por indivíduos ou famílias,
nos termos do capitalismo individualista do século XIX, na medida em que ocorre a
separação entre a propriedade e a gerência das empresas. O controle das empresas foi
passando para um grupo de administradores profissionais, enquanto a propriedade foi
dividida entre acionistas ausentes. Em seguida os autores analisam o processo de
separação do controle e da propriedade das empresas, que pode ser resumido nos
seguintes termos: Ocorreu nos Estados Unidos um extraordinário movimento de
concentração do poder econômico. Na época em que a pesquisa foi realizada as 200
maiores empresas controlavam 49% de toda a riqueza das companhias norteamericanas. Para que essa concentração fosse possível, foi necessário recorrer à
poupança de um número crescente de pessoas. Daí a dispersão da propriedade de
ações, de forma que, entre 4.367 companhias, os seus administradores possuíam
10,7% das ações ordinárias e 5,8% das ações preferenciais. Em muitas empresas
nenhum acionista possuía mais do que um por cento do capital. Em vista disto,
separou se o controle da propriedade. Os autores apresentam, então, cinco tipos de
controle das empresas e classificam as 200 empresas pesquisadas segundo esses tipos.
Teríamos assim que 44% das empresas estariam sob o controle de administradores
profissionais; 21% sob o controle legal (sistema de pirâmide, ações sem direito a voto,
ações com poder de voto maior do que as outras, etc.); 23% sob o controle da minoria
do capital; 5% sob o controle da maioria, e 6% sob o controle praticamente total de
um ou alguns indivíduos. A linha divisória entre o controle por administradores
profissionais e o controle por minoria foi arbitrariamente estabelecida em 20% do
controle do capital. Com base nesses dados concluíam os autores que estava
ocorrendo nos Estados Unidos um extraordinário processo de concentração do capital
nas mãos de umas poucas grandes empresas, ao mesmo tempo em que o capital dessas
empresas se democratizava, que os seus proprietários perdiam poder, e que este ia
cada vez mais se concentrando nas mãos de administradores profissionais
(profissionais, de acordo com nossa terminologia). Separava-se, assim, o controle e a
propriedade das empresas. Estas se burocratizavam. Os capitalistas inativos perdiam
poder relativo para os executivos ou tecnoburocratas privados.
Os intelectuais de esquerda receberam mal a ideia de uma nova classe. Ela criva
problemas graves para o esquema baseado em duas classes e na luta de classes de
Marx. Uma exceção entre os intelectuais de esquerda americanos foi Wright Mills.
Em seu livro White Collar (1951), ele distinguiu a “velha classe média” da “nova
classe média”, a primeira correspondendo à média burguesia, a segunda, à classe que
estou chamando de profissional ou tecnoburocrática. O grande sociólogo definiu a
nova classe média como os funcionários administrativos ou “colarinhos brancos”, e
assinalou o grande aumento da nova classe média que estava em curso nos Estados
Unidos desde o final do século XIX. Outra exceção foi Theodore Roszak (1972), que
foi um dos porta-vozes do novo pensamento contra-cultural norte-americano nos anos
1960. Ele aceitou a tese da emergência da tecnoburocracia, mas fez a crítica do
“reacionarismo” da nova classe como os socialistas haviam feita a crítica da
burguesia. Ele viu a tecnocracia como a marca distinta de nosso tempo e como o
inimigo número um a ser combatido pelos jovens, pela nova esquerda, pelo
movimento underground, enfim, pela contracultura. A tecnocracia estaria em toda
parte, dominaria toda a nossa vida e todas as nossas consciências.
37 Os fatos, entretanto, continuaram a rejeitar a negação do surgimento da nova classe.
Em 1929, 44% das empresas americanas eram controladas por administradores
profissionais. Em 1963 essa porcentagem havia aumentado para 84,5%. Em
contrapartida, os demais tipos de controle haviam sido drasticamente reduzidos.
Nenhuma empresa mais era propriedade de um ou alguns indivíduos contra 6% em
1929. Estes são dados impressionantes e definitivos.
Deixando de lado o problema do controle das empresas, podemos considerar
simplesmente a evolução das categorias profissionais. Supondo-se que estas
correspondam, aproximadamente, às classes sociais, todas as pesquisas realizadas
com base em censos nacionais mostraram um grande aumento da classe
tecnoburocrática, enquanto que diminuíam não apenas o número de trabalhadores mas
também de capitalistas. Apresento na Tabela 1 apenas os dados referentes à França.
São impressionantes. Enquanto a porcentagem de profissionais mais do que dobra,
subindo de 15,7 em 1962, para 34,9% em 2002, a classe capitalista burguesa e
pequeno burguesa cai para menos da metade: de 37,6 para 15,3%. Certamente a
categoria que mais diminuiu foi a pequeno burguesa, esmagada pelas grandes
organizações empresariais. Já a “classe trabalhadora” se mantém aproximadamente no
mesmo nível, mas isto se deveu ao fato de que a queda na participação dos operários,
que são o coração clássico da classe trabalhadora, foi compensado pelo aumento dos
empregados.
Assim, a classe trabalhadora em sentido amplo não diminuiu de tamanho; continuou
representando cerca de 55% da força de trabalho. Mudou, entretanto, de natureza:
deixou de ser constituída principalmente por operários para sê-lo por empregados.
Deixou também de ser “proletária”, na medida que seus salários reais que já vinham
aumentando desde meados dos século XIX na proporção do aumento da
produtividade continuaram a aumentar aproximadamente nesse ritmo, mas continuou
sendo a classe explorada na medida em que a classe capitalista e a classe
tecnoburocrática continuaram a se apropriar da maior parte do excedente econômico.
Esse aumento dos salários à mesma taxa do aumento da produtividade só deixou de
ocorrer a partir dos 30 Anos Neoliberais do capitalismo quando, como veremos mais
adiante, eles praticamente estagnaram nos países ricos, enquanto os rendimentos dos
rentistas e da alta tecnoburocracia (dos 2% mais ricos da população) aumentavam
explosivamente.
1.
Tabela 1. Classes e categorias sociais na França, 1962 e 2002 (%) Categorias/Classes
1962
2002
Agricultores
15,9
2,5
Artesãos, comerciantes e empresários
21,7
12,8
Burguesia e pequena burguesia
37,6
15,3
Administradores, profissionais intelectuais
4,7
14,0
Profissionais intermediários
11,0
20,9
38 Classe profissional
15,7
34,9
Empregados
18,5
28,2
Operários
39,1
26,9
Classe trabalhadora
57.6
55,1
Fonte: Bouffartigue (2004: 31) com base nos censos da França.
Em suma, conceito de classe tecnoburocrática é central para a compreensão das
sociedades modernas ou contemporâneas. Pensadores como Max Weber, Bruno Rizzi,
James Burnham e Cornelius Castoriadis, Wright Mills, John Kenneth Galbraith e
Milovan Djilas as pensaram originalmente. Nos anos 1970, eu adicionei argumentos
como o conceito de organização e de revolução organizacional. A sociedade de
classes por excelência é a capitalista. As sociedades pré-capitalistas avançadas não
eram, estritamente, sociedades constituídas por classes, mas sociedades formadas por
uma pequena oligarquia dominante, por uma série de grupos estamentais ou
corporativos, e por uma massa de dependentes e camponeses. O poder da oligarquia
não estava apenas baseado na propriedade da terra, como sugeriu Galbraith com seu
conceito de fatores estratégicos de produção, mas no fato de que o grupo dominante
era uma oligarquia armada e proprietária de terras, amparada pela religião e pelo
Estado antigo. No capitalismo, o capital – a propriedade privada das empresas –
define o sistema de classes. Já nas sociedades tecnoburocráticas, não é o capital mas a
organização que define o sistema de classes – classes que perdem a nitidez que
tinham no capítulo e se aproximam da ideia de camadas que a teoria sociológica
americana estudou em meados dos século XX. Agora o que importa não é tanto a
propriedade do capital, mas o controle da organização, que é justificado não pelo
título de propriedade, mas pelo fato de que essa classe tem ou pretende ter o
monopólio relativo do conhecimento técnico, organizacional ou administrativo, e
comunicativo – e deriva seu poder desse monopólio.
Nos três casos – nas sociedades pré-capitalistas, nas sociedades capitalistas e nas
sociedades tecnoburocráticas – o objetivo da dominação é sempre a apropriação do
excedente econômico – da produção que excede o consumo necessário. A propriedade
capitalista é um meio para isto, como é o controle do Estado antigo no caso das
oligarquias pré-capitalistas, e o controle das organizações no caso das sociedades
estatais. Nas formações sociais mistas, como é o caso das sociedades
tecnoburocrático-capitalistas contemporâneas, as duas classes sociais dominantes
convivem ao mesmo tempo em que se digladiam por poder, prestígio e partilha do
excedente. A luta e a colaboração entre financistas e acionistas que caracterizou o
capitalismo neoliberal de 1975-2008 é um capítulo dessa longa e complexa história.
14. O capitalismo tecnoburocrático no século XX Os primeiros 50 anos do século XX e do capitalismo tecnoburocrático foram anos
tumultuados. Foram marcados pela conquista do sufrágio universal que assinalou a
transição do Estado liberal para o democrático, por duas grandes guerras mundiais,
pelas revoluções socialistas na Rússia (1917) e na China (1949), pela Grande
Depressão dos anos 1930 nos Estados Unidos, pelo New Deal de Franklin Delano
39 Roosevelt, e pela mudança do papel de hegemon mundial da Inglaterra para os
Estados Unidos. No imediato pós-guerra ocorrem o colapso do colonialismo aberto, a
constituição das Nações Unidas, a Guerra Fria, o acordo financeiro mundial de
Bretton Woods, a constituição do Estado do bem-estar social na Europa, e nesta
mesma região o início da constituição da União Europeia. E se estabelecem as bases
para os 30 Anos Dourados do capitalismo (1949-1978) – período em que o
crescimento econômico se acelera, a estabilidade financeira aumenta e a desigualdade
diminui nos países ricos.
Depois do crash de 1929 e da Grande Depressão dos anos 1930, que demonstraram a
instabilidade e ineficiência sistemas econômicos coordenados por mercados
desregulados, o Ocidente percorreu o caminho do capitalismo tecnoburocrático e do
Estado do bem estar social – o caminho de uma sociedade mista na qual a lógica do
capital e a lógica da organização estavam presentes. O crescimento do aparelho do
Estado após a Segunda Guerra Mundial, o planejamento econômico indicativo, a
crescente regulação das atividades privadas pelo Estado, e o enorme crescimento das
grandes sociedades anônimas organizadas burocraticamente sugeriram que o
capitalismo que eu estou chamando de capitalismo tecnoburocrático ou dos
profissionais fosse chamado de “capitalismo organizado” 27 - um capitalismo regulado
pelo Estado e por grandes empresas. Nesse período a teoria econômica keynesiana
prevaleceu nas universidades e nas políticas econômicas adotadas pelos países ricos,
enquanto a teoria estruturalista do desenvolvimento e o desenvolvimentismo
legitimavam e orientavam a industrialização retardatária dos países em
desenvolvimento. O capitalismo como um todo apresentou taxas de crescimento
elevadas, estabilidade financeira, e a desigualdade econômica diminuiu nos países
ricos.
Durante os 30 Anos Dourados do Capitalismo, entre 1949 e 1978, no quadro de uma
economia internacional regulada pelo Acordo de Bretton Woods (1944) e da
hegemonia da macroeconomia keynesiana houve grande estabilidade financeira, as
taxas de crescimento econômico foram elevadas, e, nos países ricos, houve mesmo
diminuição da desigualdade econômica. Nesses anos, enquanto os principais países
europeus realizavam a convergência para os níveis de desenvolvimento dos Estados
Unidos, um capitalismo tecnoburocrático e um Estado do bem-estar social avançam
entre os países ricos. Configurava-se com clareza cada vez maior uma formação
social mista, na qual o Estado se mantinha a instituição coordenadora fundamental, e
a organização da produção era dividida entre um grande setor de mercado formado
pelas empresas competitivas, e um setor de Estado controlando as empresas de
infraestrutura e serviços públicos, uma parte da indústria de base, e um amplo setor de
serviços sociais e científicos. A sociedade “moderna” deixava, assim, de ser mero
sinônimo de sociedade capitalista, para ser a expressão de sociedades mistas,
capitalistas e tecnoburocráticas. Esse modelo dos países mais desenvolvidos (como
também o modelo misto desenvolvimentista dos países em desenvolvimento que
realizavam então sua revolução capitalista e se tornavam países de renda média) foi
muito bem sucedido durante quatro décadas, mas nos anos 1970, quando passou por
uma crise econômica sem grande profundidade, a oportunidade foi aproveitada por
políticos, intelectuais e homens de negócio conservadores que para assaltá-lo e
destruí-lo. Fizeram-no em nome da luta contra um comunismo que estava se
encarregando de se autoderrotar na União Soviética ao insistir em manter um
estatismo inviável. Fizeram tentando construir uma sociedade neoliberal, procurando
40 igualmente construir uma sociedade “pura”, puramente capitalista, em erigir um novo
modelo de economia e de sociedade no qual prevalecesse apenas a lógica do mercado
e do capital.
O período desde o início do século XX até a crise dos anos 1970, passando pelo New
Deal, e, no após-guerra, pelos Anos Dourados do Capitalismo, foi o tempo do
fordismo. O conceito de “regime de acumulação fordista”, introduzido pela Escola da
Regulação francesa, foi uma expressão feliz para denominar a coalizão de classes e o
regime de acumulação ou a forma de organização econômica e política que o
capitalismo assumiu entre o início do século XX e os anos 1970, porque este foi um
período caracterizado pela linha de montagem, a produção em massa e o
barateamento dos bens de consumo durável, e por uma grande coalizão política
incluindo o capitalismo vitorioso, a classe tecnoburocrática emergente, e os
trabalhadores cujos salários aumentavam com a produtividade .28
O capitalismo regulado do pós-guerra foi o grande momento do capitalismo dos
profissionais ou tecnoburocrático, foi um momento no qual o poder e o prestígio dos
profissionais cresceram em toda parte. Foi nesse período que John Kenneth Galbraith
(1967) definiu o conhecimento como o novo fator estratégico de produção. Foi então
que Peter Drucker (1968) identificou a sociedade capitalista como a “sociedade do
conhecimento”.29 Os dois estavam certos em ver o no capitalismo fordista o
conhecimento detido pelos profissionais havia assumido uma importância e um papel
decisivos. Drucker, porém, equivocava-se ao falar na “superação do capitalismo” –
uma tese equivocada dos gerencialistas americanos que para defender o capitalismo
do socialismo então ainda em expansão afirmavam as sociedades modernas já não
eram mais capitalistas, eram sociedades gerenciais. O uso ideológico da tese da
emergência da classe tecnoburocrática continua a ocorrer, mas mudou de caráter. Em
meados do século XX o gerencialismo era uma ideologia do capitalismo, era adotado
por intelectuais para mostrar a capacidade do capitalismo de mudar e de produzir uma
imensa classe média, hoje já é diretamente uma ideologia da própria classe
tecnoburocrática que, por exemplo, Richard Florida (2002) seria uma “classe criativa”.
15. Anos Dourados e capitalismo do conhecimento No após-guerra, no período que passou a ser chamado de os Anos Dourados do
Capitalismo, ou os Trinta Anos Gloriosos – um período de forte crescimento,
estabilidade, e redução das desigualdades, a classe tecnoburocrática chegou ao auge
do seu poder e de seu prestígio. Ao mesmo tempo ocorria a Revolução da Tecnologia
da Informação e da Comunicação que levou muitos analistas a falar sobre o
“capitalismo do conhecimento”. Este é um bom conceito, mas não reflete um fato
novo. É sinônimo do que estou chamando de capitalismo tecnoburocrático ou de
capitalismo dos profissionais. A principal razão porque o capitalismo clássico se
transformou no capitalismo tecnoburocrático foi o fato de o capital se haver tornado
abundante enquanto o conhecimento se tornava o novo fator estratégico de produção,
e seus detentores podem ser chamados de tecnoburocratas ou de profissionais. O
capitalismo tecnoburocrático é a formação social dominante nos países ricos desde o
início do século XX. A revolução da tecnologia da informação e da comunicação
tornou esse conhecimento ainda mais estratégico do que já era desde o início do
século com a revolução organizacional. Naquele momento a revolução não foi do
conhecimento e não resultou na produção de bens imateriais, mas foi a revolução da
41 tecnologia industrial (a segunda revolução industrial) e da forma de organizar a
produção, que já então tornaram o conhecimento estratégico.
Em um relatório do Department of Economic and Social Affairs das Nações Unidas
(2005) está presente a ideia da sociedade do conhecimento que se caracterizaria pela
“produção em massa de conhecimento”. Mas é muito discutível que a revolução da
tecnologia da informação e da comunicação tenha produzido tanto conhecimento – o
que ela produziu em massa foi informação. A tese do capitalismo do conhecimento,
ou de uma “economia baseada no conhecimento” 30 , ou mesmo do “capitalismo
intelectual”, 31 proposta originalmente por Peter Drucker, está hoje presente de
maneira competente nos trabalhos de economistas e sociólogos associados à teoria da
regulação entre os quais Carlos Vercellone que organizou livro sobre o tema,
Teríamos saído do Capitalismo Industrial? (2002), e Yann Moulier Boutang que
publicou o livro Capitalismo do Conhecimento (2007). 32 A análise que realizam
mostra com clareza porque o conhecimento se tornou ainda mais estratégico do que já
era. Entretanto, a transição assinalada por Vercellone (2003: 9) da valorização do
capital para o da “valorização dos saberes” corresponde à mudança do fator
estratégico de produção e foi consequência da Segunda Revolução Industrial e não da
Revolução da Tecnologia da Informação da segunda metade do século XX. A
revolução tecnológica representada por esta última foi marcante, mas desde que se
configurou como tal o capitalismo foi um modo de produção caracterizado pelo
progresso técnico acelerado. O fato de que esse progresso tenha sido durante algum
tempo espetacular no plano da informação e da comunicação e que a produção de
bens imateriais ou de “conteúdos” comercializáveis tenha se tornado realidade são
impressionantes mas não mudaram a natureza do capitalismo. A maior importância
dos serviços tecnologicamente sofisticados que exigem mais conhecimento ocorreu,
mas a natureza da grande empresa tecnoburocrático-capitalista continua a mesma:
uma organização cuja propriedade estrito senso é dos capitalistas e lhes garante
dividendos, mas o controle ou a propriedade em sentido amplo é coletivamente dos
seus profissionais que são remunerados por ordenados e bónus; uma organização que
está sempre voltada para o lucro capitalista e para a expansão profissional das
posições burocráticas. Nem mudou o fato de que a acumulação de capital com
incorporação de progresso técnico é a condição de sobrevivência das empresas nos
mercados.
El Mouhoub Mouhoud (2003: 136) assinala que a transição do fordismo para o
capitalismo do conhecimento está associada ao aumento do consumo imaterial, e,
principalmente, uma “lógica produtiva ‘cognitiva’” que não teria substituído mas se
somado à lógica taylorista, a qual, por sua vez, também teria mudado, flexibilizandose. E conclui: “o conhecimento se torna o input primordial: sua produção e seu
controle obedece a lógicas cumulativas que engendram desigualdades crescentes entre
os indivíduos e entre os territórios”. Não creio que as formas de produzir e o papel
acrescido do conhecimento tenham sido a causa da desigualdade crescente que ocorre
a partir dos anos 1970. Mais amplamente, não creio que a revolução da tecnologia da
informação e da comunicação tenha sido a causa principal da virada ocorrida nos anos
1970. Não me parece correto afirmar que houve a mudança do fordismo para o
capitalismo do conhecimento, porque o capitalismo fordista já era um capitalismo do
conhecimento. É correto, porém, salientar o papel crescente do conhecimento na
produção de bens e serviços. E mostrar porque as empresas mais bem sucedidas são
geralmente mais intensivas em conhecimento e em capacidade criativa. A inovação
42 que resulta do conhecimento e da criatividade surgiram juntamente com o capitalismo,
mas é cada vez mais uma condição de êxito das empresas em busca de monopólios ou
vantagens competitivas sempre transitórios.
Os Anos Dourados do Capitalismo foram um segundo desenvolvimentismo, na
medida em que Estado e mercado se complementavam na coordenação do sistema
econômico. Eles terminam devido a uma crise econômica que não teve grandes
proporções, mas foi suficiente para baixar as taxas de lucro e de valorização do capital
rentista e levar o capitalismo a embarcar na aventura neoliberal de 1979-2008,
comandada pelos capitalistas rentistas e pelos financistas que administram sua riqueza.
O neoliberalismo foi uma tentativa necessariamente fracassada de fazer o capitalismo,
que se tornara desenvolvimentista e social, a retornar à condição de capitalismo
liberal ou liberal. Constituiu-se em um ataque aos trabalhadores, para reduzir seus
salários e, assim, recuperar a taxa de lucro, e contra os tecnoburocratas para que
devolvessem aos acionistas o comando das empresas e ao capital financeiro, o
comando do Estado.
16. As ideologias No tempo capitalismo tecnoburocrático fordista toda a sociedade se torna ou pretende
ser tornar mais racional e, por isso mesmo, mais cooperativa, mas organizada, e mais
planejada; quando o fordismo dá lugar aos 30 Anos Neoliberais do Capitalismo, a
ideologia neoliberal aposta todas suas fichas no indivíduo e na competição e no
mercado, e a vida social torna-se irracional porque deixa de atender ao objetivo básico
de todas as sociedade: a estabilidade ou a segurança. Vejamos primeiro a ideologia
tecnoburocrática propriamente dita, que foi dominante nos países ricos entre 1900 e
os anos 1970. Ela foi a ideologia da razão, da administração e do planejamento, da
eficiência, do desenvolvimento econômico parcialmente planejado, e da crença na
capacidade da técnica de resolver qualquer problema. Valores, crença; artes, diversões
ganham conotações racionais cada vez mais definidas. A tecnoburocracia representa a
cristalização das ideias racionalistas e das ações supostamente racionais que definem
o mundo moderno. É o momento em que, sob a égide de um racionalismo utilitarista,
o capitalismo dos profissionais e seu Estado atingem o ápice de sua integração
organizacional. A dominação tecnoburocrática é essencialmente dinâmica, porque
está baseada no desenvolvimento tecnológico, mas identifica-se com o status quo,
com a preservação e aperfeiçoamento da cultura e da ordem vigentes. E, para
justificá-la, conta com sua própria ideologia tecnoburocrática.
O primeiro postulado da ideologia tecnoburocrática é o de que ela própria não é
ideológica. Teríamos afinal chegado à era do fim da ideologia, como
equivocadamente Daniel Bell (1962) sugeriu. As ideologias da esquerda e da direita
teriam perdido sentido na medida em que lhes faltariam bases técnicas e científicas.
Não há razão, dizem os profissionais, para ficarmos perdendo nosso tempo com
discussões estéreis entre ideologias. Na verdade, a simples afirmação de que qualquer
problema político pode e deve ser resolvido tecnicamente já é uma proposição
ideológica. A afirmação de que chegamos ao tempo do fim da ideologia é
eminentemente ideológica. A ideologia tecnoburocrática penetra todos os setores da
vida moderna. Ela se adapta às velhas ideologias em luta, com elas se confunde e
nelas se instala. Mais do que isto, ela as coopta. Capitalistas ou comunistas da
segunda metade do século XX, esquerda ou direita, progressistas ou conservadores,
43 são, sem o perceber, portadores e veículos da ideologia tecnoburocrática.
A ideologia tecnoburocrática é racionalista. O racionalismo é a filosofia dominante no
mundo moderno. Tem sua origem na filosofia de Platão, e encontra seu primeiro e
grande arauto em Descartes. Tem seu grande momento no século XVIII e no
Iluminismo.33 No século XIX o racionalismo e sua crença no progresso surgem as
grandes visões racionais da história de Hegel, Marx e Weber. O racionalismo está
relacionado com a emergência da burguesia e do sistema capitalista no mundo
moderno. Um sistema econômico e social mais racional do que o feudal e do que o
das sociedades agrárias aristocráticas que diretamente o precedem porque toda a sua
lógica está baseada no uso da razão econômica. No capitalismo o racionalismo tornase historicamente cada vez mais econômico.
No século XX, depois da irracionalidade da Primeira Guerra Mundial, o racionalismo
entrou em crise. E a Segunda Guerra Mundial confirmou esse pessimismo em relação
à razão e ao progresso. Herbert Marcuse (1964: 123) foi um crítico penetrante e
radical. Para ele “no período contemporâneo, os controles tecnológicos parecem ser a
própria personificação da Razão para o bem de todos os grupos e interesses sociais —
a tal ponto que toda contradição parece irracional e toda ação contrária parece
impossível…” Encontramos a mesma ideia nos outros dois grandes representantes da
escola de Frankfurt, Max Horkheimer e Theodore Adorno (1944: 121): “A
racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação; é o caráter
repressivo da sociedade que se auto-aliena.” Mas renovado pela emergência da
tecnoburocracia – uma classe que fará da razão técnica sua base de legitimidade – o
racionalismo é renovado.
No capitalismo, o homem se alienava mercadoria, através da reificação das relações
sociais, da transformação do próprio trabalho em uma mercadoria, e da atribuição às
mercadorias de características misteriosas de fetiche. Na tecnoburocracia esta
alienação se refina. Além de alienar-se à mercadoria, o homem aliena-se também à
técnica, ou seja, ao método de produzir a mercadoria. Reifica a técnica, atribuiu-lhe
massa e valor intrínsecos, e a ela se subordina. Encontramos essa crítica em Alasdair
MacIntyre (1981) que foca sua análise na classe tecnoburocrática ou e no
“gerencialismo”. Ele considera o “gerente” um dos tipos individuais caracterizadores
das sociedades modernas ao lado do “esteta” e do “terapeuta”. Ele crítica
principalmente a ilusão criada pelo profissional de que ele é capaz de tornar a
organização eficiente, porque seria capaz de tornar previsível o comportamento das
pessoas em respostas ao estímulo e punições que ele administra.
A ideologia tecnoburocrática, neste caso como a capitalista, é utilitarista porque
identifica o racional com o útil e com o eficiente, e subordina todos os demais valores
humanos — a liberdade, o amor a beleza, a justiça, a igualdade de oportunidade —
aos valores maiores da eficiência e da técnica. O mundo do capitalismo
tecnoburocrático continua caracterizado pelo privilégio e pela injustiça, as nações
continuam em nome de um nacionalismo étnico a praticar o genocídio, as grandes
potências, por sua vez, continuam a promover guerras e a promover todo tipo de
pressão contra os países pobres que buscam através do nacionalismo econômico se
desenvolver, mas, nesses três quartos de século, houve grande progresso material
graças ao desenvolvimento econômico e avanço politico substancial graças ao avanço
da democracia. Também nessas áreas há muito por fazer e a crítica social continua
mais necessária. Na verdade ela é sempre necessária para que haja progresso.
44 Entretanto, o homem moderno não está se entregando de forma fatalista a seu destino
de objeto alienado da técnica, do individualismo feroz, e do racionalismo utilitarista.
Em um tempo eu acreditei que a alternativa a essa alienação ocorreria apenas ao nível
da própria sociedade e se expressaria em uma revolução social e cultural. Creio,
entretanto, que me enganei a respeito. Outra revolução – a revolução democrática –
continuou a ocorrer. E creio que é dela – que é da política democrática que expresse
os interesses dos trabalhadores e dos pobres, e os ideais de uma minoria respeitável de
cidadãos republicanos que poderemos esperar o progresso à nossa frente.
O primeiro e mais importante objetivo a ser alcançado por um sistema
tecnoburocrático é a eficiência econômica, é a maximização dos resultados em
relação aos recursos produtivos utilizados na produção. Para o profissional, ato
racional e ato eficiente são sinônimos. Se ato racional é o ato coerente com os fins
visados e se ato eficiente é o que maximiza resultados em relação a um determinado
esforço realizado, ato racional e ato eficiente se equivalem para a ideologia
tecnoburocrática. A crença na eficiência como valor maior está tão profundamente
arraigada na sociedade moderna, que parece difícil imaginar outra concepção de
racionalidade que não o da eficiência econômica. De acordo com a ideologia
eficientista, a maximização da produção com o uso de uma quantidade limitada de
recursos produtivos resume toda a aspiração por racionalidade do mundo moderno. E
traduz o sentido materialista desse mundo. Os objetivos econômicos são, na prática,
colocados acima de todos os demais. Estas ideias já estão presentes no liberalismo e
na teoria econômica clássica que o legitimou teoricamente, mas é muito mais forte no
eficientismo tecnoburocrático. Na busca da eficiência, a ideologia tecnoburocrática
privilegia a administração e o planejamento. É através dele que se alcançará o
desenvolvimento econômico.
Para alcançar a eficiência não basta a alocação dos recursos pelo mercado. É
necessário, adicionalmente, o planejamento, não apenas dentro das organizações, mas
também a nível da sociedade como um todo. Não se trata de planejar tudo. De fazer
planos quinquenais no estilo soviético, mas de planejar os investimentos nos setores
chave da economia, nos setores de infraestrutura, de serviços públicos e da indústria
de base – setores que o mercado não tem condição de alocar recursos de maneira
satisfatória, por não serem competitivos e por requererem somas muito elevadas de
capital.
Além da eficiência e do desenvolvimento econômico, que formam o coração da
ideologia tecnoburocrática, a ideologia tecnoburocrática enfatiza a mudança
tecnológica e social. Conforme observa Rose Marie Muraro (1969: 23), ela parte de
um princípio básico: o avanço da tecnologia “não é uma revolução política, social ou
econômica, mas uma revolução global — a revolução do homem — desencadeada e
acelerada pelo desenvolvimento da técnica.” A técnica é, portanto, revolucionária. A
técnica provoca mudanças. Essas mudanças são bem recebidas pela ideologia
tecnoburocrática, e na medida em que aumentar a eficiência implica necessariamente
na introdução de novas técnicas. Em contrapartida, porém, a ideologia
tecnoburocrática é conservadora. Trata-se de um novo tipo de conservadorismo. De
um conservadorismo reformista. Não de um conservadorismo clássico ou
tradicionalista. O profissional só admite um tipo de revolução: a revolução técnica.
Ele pode assumir o poder através de uma revolução política ou de um golpe de
Estado. Mas uma vez no poder, ele não se disporá a realizar uma revolução
45 econômica e social. Ele prefere fazer reformas. É certo que nos países comunistas as
revoluções econômicas e sociais foram profundas. Mas as revoluções socialistas que
resultaram no estatismo não eram tecnoburocráticas. O verdadeiro profissional prefere
não transformar as estruturas sociais e econômicas de um país em que assumiu ou está
assumindo o poder. Revolução significa desordem, insegurança e, portanto,
ineficiência. Por isso é preferível ser moderadamente conservador. Se a estrutura for
capitalista, continuará capitalista. Se for socialista, continuará socialista. O
profissional não se importa. Está seguro de que, através de suas reformas, através da
adoção de critérios profissionais de planejamento e administração, ambos os sistemas
caminharão no longo prazo em uma mesma direção. E poderão ser ambos eficientes.
Uma outra característica que caracteriza a ideologia profissional é a crença de que
todos os problemas são profissionais e podem ser tecnicamente resolvidos. Esta
crença fundamenta-se em uma visão de mundo tecnoburocrática segundo a qual
existiria uma lógica interna imanente às coisas e às situações, que tornaria o mundo
essencialmente harmônico. O mundo, para o profissional, é um sistema ou um
conjunto de sistemas em que cada elemento tem uma função, um papel. O papel do
profissional é o de compreender esses sistemas naturais, mecânicos ou sistemas
sociais, é o de entender suas interdependências e fazê-los funcionar suave e
eficientemente. Os conflitos e as contradições são defeitos técnicos dos sistemas, são
disfunções, que podem ser tecnicamente resolvidos. O fundamental é garantir a
ordem, é contornar os desarranjos e a desestruturação. Nas palavras de Henri
Lefebvre (1969: 62), “nessa vasta ideologia, fica subentendido que as sociedades e os
grupos que as constituem, como os seres vivos e os “seres”, em geral, têm
necessidade de um princípio interno que os mantêm na existência. Esse principio de
coesão e de coerência, estrutura latente ou em vias de aparecimento, é a única coisa
importante. A desestruturação? É a ameaça, o lado mal a ser abolido com urgência, o
mal.
Finalmente, um elemento essencial da ideologia tecnoburocrática é a crença no
mérito, é a ideologia que legitima o poder e a riqueza dos mais competentes . Essa
crença já faz parte da ideologia burguesa, mas no capitalismo a recompensa ao mérito
continuou limitada na medida em que através das heranças as famílias puderam
continuar a transferir para seus filhos capital sem qualquer relação com a capacidade
profissional revelada por eles. Já em um sistema puramente profissional, onde
desaparecem as heranças, o critério do mérito se torna dominante: além do
eficientismo o meritocratismo se torna um aspecto fundamental da ideologia
tecnoburocrática. Perdoem-me os dois neologismos que refletem valores
profundamente arraigados na sociedade profissional do nosso tempo, mas que
contradizem outros valores como o da solidariedade ou da fraternidade. Como é
“natural” que a eficiência seja um valor maior, é também natural que os melhores, os
mais competentes, os mais esforçados sejam recompensados. O princípio do mérito
nas organizações burocráticas é fundador. A legitimidade do burocrata está
essencialmente baseada no mérito do profissional aferido no processo de
recrutamento e seleção (no concurso público no caso dos servidores públicos) e
reafirmado nas etapas posteriores da carreira. Mas a primazia do mérito não está
apenas nas organizações burocráticas, está em toda a sociedade. Começa muito cedo,
na escola, e depois se espalha para todo o tecido social. É o mérito que justifica o
poder, é o mérito que justifica a renda e a riqueza, é o mérito que justifica o prestígio
social. Conforme observa Yves Michaud (2009), nas sociedades contemporâneas o
46 conceito de mérito ganhou novas conotações. O mérito está associado a
reivindicações nobres de igualdade quanto ao sexo, à raça e aos direitos, mas nada
tem a ver com valor moral, realizações humanas, virtude, mas com trabalho e
remuneração. Afinal, “as desigualdades de posição na hierarquia, de casta e de raça
são inaceitáveis. As únicas desigualdades admissíveis são as relacionadas a talentos e
capacidades”.
A ideologia meritocrática é a ideologia da igualdade de oportunidades. Esse foi
sempre “o sonho americano” (Lloyd Warner 1953), mas sua defesa filosófica coube a
John Rawls (1971), o teórico político mais influente da segunda metade do século XX.
Um liberal, para ele a igualdade tout court não faz sentido: a igualdade política
substantiva (razoável igualdade de poderes entre os cidadão) e a igualdade econômica
(razoável igualdade de renda e de riqueza) não são possíveis. É possível e suficiente a
igualdade jurídica (todos iguais perante a lei), a igualdade política formal (cada
cidadão, um voto), e o respeito ao “princípio da diferença”, “garante que aqueles com
talentos comparáveis e motivação enfrentem oportunidades de vida relativamente
semelhantes, e que as desigualdades na sociedade sejam benéficas para os menos
privilegiados”. Portanto, esse princípio legitima a desigualdade e afirma a primazia do
mérito.
Será possível pensar diferentemente? Será possível uma igualdade maior do que a
igualdade de oportunidades? Como socialista ou socialdemocrata, acredito que sim. É
verdade que talentos e méritos desiguais levam a uma sociedade desigual, e que desde
que a comunidade primitiva desapareceu não houve sociedade igualitária. Mas a
história também mostra que é possível ter graus de igualdade muito diferentes de uma
para outra sociedade capitalista. A igualdade econômica nos países escandinavos não
é ideal, mas é muito maior do que nos Estados Unidos. Para diminuir as
desigualdades existentes no capitalismo dos profissionais o meritocratismo
transformado em princípio de justiça não é o único empecilho, mas é um obstáculo
que não deve ser subestimado. A construção grau de uma sociedade cada vez mais
democrática é também a construção de uma sociedade socialista na qual não haverá
uma igualdade absoluta, mas as desigualdades serão muito menores do que nas
sociedades tecnoburocrático-capitalistas do nosso tempo.
Em resumo, a ideologia tecnoburocrática é conservadora sem ser tradicionalista;
valoriza a mudança técnica e os profissionais; valoriza a eficiência, o
desenvolvimento econômico, a administração e o planejamento, a segurança, a
estabilidade política e o mérito. Ao contrário da ideologia neoliberal, a ideologia
profissional não valoriza a competição. Pelo contrário, rejeita-a em nome da
administração e da organização. Os vencedores ou os escolhidos devem sê-lo no
quadro da avaliação administrativa dos superiores, não no contexto da competição
que para o profissional é fonte de irracionalidade. Assim, o eficientismo e o
meritocratismo desvalorizam a liberdade, a justiça social, a beleza, ou, quando as
valorizam, as transformam em decorrência da eficiência. Liberdade e justiça social,
especialmente, são consideradas perigosas; poderão ser sempre sacrificadas em nome
da segurança e da eficiência.
17. Dominação profissional inevitável? Os argumentos baseados na concepção de uma “necessidade histórica” são perigosos.
47 Frequentemente são fruto de um determinismo ingênuo. Com frequência serviram
para justificar ou dar forças ao desejo ao invés explicar a história. Esse foi o caso das
previsão vitória inevitável do socialismo, e também a tese mais recente, neoliberal, da
convergência de todas as formas de capitalismo para o modelo americano ou liberaldemocrático. É, portanto, igualmente equivocado prever a substituição da sociedade
capitalista pelas estatal ou tecnoburocrática. Na formação social mista que é o
capitalismo tecnoburocrático, as relações entre capitalistas e profissionais são relações
de constante cooperação e conflito, seja em termos individuais, seja em termos
coletivos, de classes sociais. Da mesma forma que, durante séculos a burguesia
competiu com a aristocracia por poder e privilégio, no último século é a classe
tecnoburocrática que empreende essa competição tendo como adversário e parceiro a
burguesia. Mas essa competição dificilmente levará à dominação profissional. A
burguesia tem necessidade dos profissionais para administrar as grandes organizações
empresariais e o grande aparelho do Estado dos nossos dias. Além de detentores do
conhecimento técnico e organizacional, e de responsáveis pela racionalidade
instrumental ou eficiência, eles são também agentes da segurança – uma segurança
que depende da capacidade regulatória das organizações e, principalmente, da
instituição organizacional maior, o Estado, que eles administram. Isto, entretanto, não
impede que a classe capitalista reaja contra esse aumento de poder dos profissionais,
como vimos acontecer nos 30 Anos Neoliberais. E – o que é mais importante – não
impede a resistência democrática ou a demanda por democracia por parte da massa de
trabalhadores constituída por operários e empregados.
Não se imagine, portanto, que a dominação tecnoburocrática seja inevitável. A
definição do conhecimento técnico e organizacional como novo fator estratégico de
produção, aponta nessa direção, mas considerá-la necessária seria cair no
determinismo economicista. A formação social na qual a classe tecnoburocrática é
todo-poderosa – as sociedades tecnoburocráticas que se pretendiam socialistas –
revelou-se inviável. Por outro lado, o poder tecnoburocrático continuará a ser
contEstado não apenas pela burguesia rentista, mas também pelos trabalhadores e
pelas classes médias de empregados (o estrato inferior da classe tecnoburocrática). E
o farão em nome da democracia, um regime político para o qual tendem as sociedades
modernas tanto quanto nelas tende a aumentar o poder tecnoburocrático dentro das
organizações. O governo da sociedade não se confunde com o governo das
organizações. Nas sociedades nacionais o poder político vem historicamente
transitando do autoritarismo para a democracia; nas organizações empresariais, não
obstante todas as tentativas de autogestão, o poder mantém-se hierárquico; a
democracia empresarial continua uma utopia, porque a competição no mercado requer
decisões rápidas e coordenadas que só são viáveis em um sistema hierárquico, que
pode ser flexível, descentralizado, mas será sempre hierárquico. Nas sociedades que
fizeram revoluções socialistas, mas se tornaram sociedades estatistas, tentou-se
transformar a sociedade em uma organização, ou seja, em um sistema racional e
hierárquico, mas isto não fazia sentido. Nas sociedades modernas a demanda dos
cidadãos pelos direitos civis, pelos direitos políticos e pelos direitos sociais é muito
forte, resultando nas liberdades civis, na democracia e no Estado do bem-estar social.
O Estado moderno é o sistema constitucional-legal soberano, e a administração
pública que o garante. A burocracia pública eleita e não-eleita tem um enorme poder
sobre o aparelho ou organização burocrática; seu poder sobre a ordem jurídica,
porém, é limitado pela democracia.
48 Não é, portanto, mais possível se pensar a sociedade sem se pensar o Estado e a
democracia. No inicio do século XX houve um segundo fato histórico novo que
ocorreu aproximadamente ao mesmo tempo em que a revolução organizacional dava
origem à classe tecnoburocrática: a transição da maioria dos países hoje ricos de
regimes autoritário-liberais (que garantiam os direitos civis mas rejeitavam o sufrágio
universal) para regimes democráticos. Esta transição ou revolução democrática teve
consequências profundas sobre a forma de organizar e coordenar as sociedades
modernas. A partir do momento em que cada nação transita do autoritarismo para a
democracia, os trabalhadores associados a uma minoria de profissionais e de
capitalistas dotados de espírito republicano buscam construir uma sociedade menos
injusta ou mais igualitária do que é o capitalismo clássico. Adquirem capacidade
crescente de afirmar sua liberdade e construir seu Estado e sua sociedade. Mas esta
mudança não acontece do dia para a noite. A primeira forma de democracia é
meramente liberal – é ainda uma democracia de elites. Entretanto, a partir dela a
melhoria da qualidade da democracia – a democratização – torna-se inevitável: a
democracia tende, primeiro, a se tornar “social” (que além dos direitos políticos
garante os direitos sociais) e, mais tarde, “participativa (que inclui mecanismos ainda
que limitados de democracia direta). Embora este tema tenha enorme importância,
neste livro eu o assumirei como real – como um processo político que molda cada vez
mais a própria sociedade – e concentrarei minha atenção na dinâmica da própria
sociedade porque minha abordagem aqui é antes de teoria social do que de teoria
política.
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1
Coloquei as profissões na ordem de rendimentos declarados e da porcentagem de não declarados que aparece em Bourdieu: Quadro 6: 130). 2
Esta é a posição assumida por Sedi Hirano (1975). Assumi uma posição semelhante em Empresários e Administradores no Brasil (1974). 3
De acordo com Ferdinand Töennies, "As castas na Índia atualmente são contadas aos milhares, se incluirmos as subcastas. Nas províncias centrais, que têm cerca de dezesseis milhões de habitantes, o censo de 1901 identificou quase novecentos nomes de castas que se incorporavam, no entanto, para efeito de classificação, em duzentas castas reais." (1931:15). 4
De acordo com Lukács, "... nas épocas pré-­‐capitalistas e no comportamento de muitos estratos dentro do capitalismo cujas raízes econômicas estão no pré-­‐capitalismo, a consciência de classe é incapaz de atingir uma clareza completa e de influenciar conscientemente o curso da história". (1922: 55) 5 Além de adotar esse ponto de vista ideológico que a meu ver é insustentável, Boltanski (1982: 63) deixa de fazer uma distinção clara entre a classe tecnoburocrática e a classe média burguesa e a pequeno burguesa. Sua análise do surgimento da tese da terceira classe ainda no século XIX e nos anos 1930 faz referência à classe média burguesa não obstante o tema de seu livro sejam os administradores. Ele associa o “movimento dos administradores” com o “movimento das classes médias” ao mesmo tempo que reconhece que esses movimentos de classe média se originassem na pequena e na média burguesia – setores que se distinguem radicalmente da classe média profissional do ponto de vista das relações de produção e das ideologias. 54 6 Refiro-­‐me a “A emergência da tecnoburocracia” (1972) e “Notas introdutórias ao modo de produção tecnoburocrático” (1977), que também foi publicado em L”Homme et Société no.55-­‐58, janeiro-­‐dezembro 1980: 61-­‐89. 7
João Bernardo tem um ponto de vista semelhante com relação à propriedade coletiva dos meios de produção pelos tecnoburocratas. No entanto, ele fala de uma "burguesia de Estado" e de "capitalismo de Estado": "O que temos aqui é a propriedade coletiva do estado, que não pode ser transferida de modo individual... A propriedade coletiva é mantida dentro do mesmo grupo social e seus descendentes através do controle total da educação pública e pelo fato de que os filhos da burguesia de Estado terão, em sua infância, uma longa educação dentro da família." (1975: 175) 8
Engels, por exemplo, afirma: "Logo veio o tempo em que apareceu como necessidade inevitável uma classe média capitalista (uma burguesia, de acordo com os franceses), que, lutando contra a aristocracia dos proprietários de terras, destruiu seu poder político e se tornou, por sua vez, econômica e politicamente dominante." (1881:13). Assim como Engels usa o termo "classe média capitalista" como sinônimo de burguesia, podemos também falar de uma "classe média tecnoburocrática" como sinônimo de tecnoburocracia. O que não faz sentido é falar simplesmente de classe média, porque nesse caso confundimos classes sociais com estratos sociais. 9
Para a metodologia utilizada na criação deste tipo de análise, ver Lloyd Warner, Marcha Meeker e Kenneth Eels (1949). Eu mesmo empreguei esses conceitos em meus primeiros trabalhos acadêmicos, de certo modo influenciado pelo funcionalismo. Ver "The Rise of the Middle Class and Middle Management in Brazil" (1962). 10
Observem que se definirmos a burguesia como sendo composta de pequenos proprietários que empregam trabalhadores assalariados e ao mesmo tempo realizam eles próprios trabalho braçal, isso constituirá uma outra classe, específica à relação de produção que se originou da produção mercantil em pequena escala. A pequena burguesia é sempre incluída no estrato médio. 11
É evidente que neste caso, como na verdade em qualquer caso onde utilizamos o conceito de modo de produção, estamos fazendo uma simplificação. Estamos generalizando e reduzindo uma realidade histórica a uma abstração. Mesmo na metade do século XIX, quando o capitalismo clássico atingiu sua forma mais pura, havia mais de duas classes. A aristocracia, os camponeses e a pequena burguesia continuaram a existir como manifestações do modo de produção anterior. 12
Administração “efetiva” é aquela que logra impor a lei ou tornar realidade as políticas públicas de segurança, cuidados de saúde, etc.; “eficiente” é aquela que o faz com o menor custo. 13 Esses estudos foram realizados na fábrica da Western Electric, em Hawthorne, Chicago, entre 1927 e 1932. O relato clássico sobre esses estudos foi feito por Roethlisberger e Dickson (1939). De Elton Mayo ver seu trabalho clássico, The Human Problems of an Industrial Civilization (1946). 14 Alberto Guerreiro Ramos (1981). Enquanto ensinava na University of South California, ele tentou desenvolver uma alternativa ‘substantiva’ à teoria ‘formal’ das organizações, que ele considerou como excessivamente dependente de uma abordagem econômica. Mas ele não foi capaz de chegar a uma conclusão satisfatória, provavelmente porque a teoria das organizações combina essencialmente uma abordagem sociológica e uma abordagem econômica. 15 Simon (1947); March e Simon (1958). 55 16 A literatura sobre a teoria das organizações é extensa. Ela é ensinada principalmente em escolas de administração de empresas. A base comum dessa teoria é o trabalho de Max Weber sobre burocracia e os trabalhos de Talcott Parsons (1937, 1960) e March e Simon (1958). 17 Manuel Garcia-­‐Pelayo (1974) propõe uma distinção semelhante a esta, para opor burocracia a tecnocracia. Prefiro, entretanto, a expressão tecnoburocracia para deixar claro o caráter fundamentalmente burocrático desse modo de produção e do respectivo tipo de poder. 18 O estudo empírico clássico desse tipo de organização foi realizado por Alfred Chandler (1962); Peter Drucker (1954) fez sua análise administrativa. 19
Defino o Estado como o sistema constitucional-­‐legal e a organização ou aparelho que o garante. Na sua primeira condição o Estado define o regime político e a sua natureza ou papel: Estado autoritário ou democrático, Estado liberal ou Estado do bem-­‐estar social. 20
A expressão “30 Anos Gloriosos do capitalismo” se deve a Jean Fourastié (1979); Stephen Marglin (1990), por sua vez, a partir de outra perspectiva teórica, falou nos anos dourados do capitalismo. Decidi pelos 30 anos, mas preferi o adjetivo “dourados” ao “gloriosos”. A análise clássica e pioneira do período foi feita por Andrew Shonfield (1969). 21
“Reforma Gerencial do Estado de 1995” é o nome que eu venho dado à reforma gerencial do aparelho do Estado que começa nesse ano no Brasil. O Estado moderno passou por duas grandes reformas administrativas: a Reforma Burocrática, que aconteceu no século XIX nos principais países europeus, e a Reforma Gerencial (Public Management Reform) que está sendo realizada desde o final dos anos 1980 em vários países inclusive o Brasil. A primeira visava tornar a administração pública profissional e efetiva, a segunda, visa tornar os serviços sociais e científicos eficientes e, dessa maneira, legitimar o Estado do bem-­‐estar social. 22 Observe-­‐se que a sociedade anônima e a constituição de um grupo crescente de acionistas separados do controle dos meios de produção por organizações burocráticas privadas já é um fenômeno de uma formação social mista como é o capitalismo monopolista de Estado. 23 Lloyd Warner (1953) identifica a mobilidade social com base no mérito “o sonho norte-­‐americano”. Uso aqui a palavra “progressistas ” para identificar as pessoas de centro-­‐esquerda nos Estados Unidos que, nesse país, se autodenominam “liberais” ao invés de “de esquerda” ou “socialdemocráticos”, provavelmente porque ali a oposição entre liberais e conservadores que caracterizou a política no século XIX continuou a prevalecer na medida em que não surgiu um partido socialista significativo que se transformou em socialdemocrático como ocorreu na Europa. 24
Cf. Natasha Singer, “Afortunados executivos”, The New York Times, textos selecionados da semana, em Folha de S. Paulo, 16 de abril de 2012. 25
Segundo Val Burris (1986: 65), Gustav von Schmoller, fundador do socialismo acadêmico (Kathedersozialismus), foi o primeiro a designar os empregados assalariados “nova classe média”. 26 Max Weber (“Der Sozialismus”) citado em Gerth e Mills, “Introduction – the man and his work” (1946: 50); itálicos meus. 56 27
Scott Lash e John Urry (1987), que escreveram sobre o fim do capitalismo organizado, informam que esse conceito foi utilizado originalmente por J. Kocka (1974) e publicado no livro Organisierter Kapitalismus organizado por H. Winckler (1974). 28
Para uma exposição sistemática do fordismo e da teoria da regulação ver Boyer (1987). 29 Peter Drucker (1968: 247, 326) já então falava em uma “economia do conhecimento” e em uma “sociedade do conhecimento”. Argumentava que “os setores industriais baseados no conhecimento” e não na produção de bens e serviços que em 1955 representavam um quarto do produto interno bruto dos Estados Unidos, dez anos mais tarde já representavam um terço. Já naquela época Drucker falava do “trabalhador do conhecimento” e assinalava “a emergência do conhecimento como um elemento central para nossa sociedade”. Em 1993, o primeiro capítulo de seu livro Post-­‐Capitalist Society tinha como título “Do capitalismo para a sociedade do conhecimento”. 30
Ver entre muito outros Charles Savage (1996) e principalmente Economia della Conoscenza de Enzo Rullani (2004). 31
Ver Angelo Deiana (2007: 4) para quem o mundo estaria desde a revolução da tecnologia da informação e da comunicação na “era do conhecimento”. 32
Vercelone faz parte de um programa de pesquisa sobre o tema, “Le capitalisme cognitif comme sortie de la crise du capitalisme industriel” cujos pesquisadores são Antonella Corsani, Patrick Dieuiade et.al. (Vercellone 2003: 8). 33
Conforme nos ensina Ernest Cassirer (1932: 42/-­‐3) na busca do caminho do conhecimento, “em lugar do Discours de la Méthode de Descartes, o pensamento das Luzes se reporta às Regulae Philosophandi de Newton para resolver o problema central do método filosófico... O caminho newtoniano não é o caminho da dedução pura, mas o da análise... Os fenômenos são os dados; os princípios aquilo que se deve buscar”. 57 
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329-Classes sociais e capitalismo tecnoburocrático