Parte II Os Grandes Marcos da História Política Página anterior - 1939. Reunião ministerial. Da dir: Vargas, Sousa Costa, Osvaldo Aranha, almirante Guilhen e Waldemar Falcão. Arq. Nac. A Revolução de 1930 Paulo Brandi Cachapuz A Revolução de 1930 constitui um divisor de águas na história do Brasil por assinalar o ponto de ruptura do sistema oligárquico e regionalista da chamada República Velha. Definida usualmente como o movimento político-militar que derrubou o presidente Washington Luís, elevando Getúlio Vargas à chefia da nação, a revolução acarretou mudanças significativas na organização política e na vida econômica e social do país. Na periodização de nossa história, o movimento de 1930 marca o término do primeiro regime republicano, iniciado com a queda da monarquia em 1889, e o começo da Segunda República no Brasil. A revolução representou o lance final da acirrada disputa pela sucessão de Washington Luís, agravada por uma crise sem precedentes da economia cafeeira. Entretanto, seus antecedentes devem ser buscados um pouco mais longe. Nesta volta ao passado, o ano de 1922 é sempre lembrado como ponto de inflexão no panorama político e cultural brasileiro. A Semana de Arte Moderna, a fundação do Partido Comunista, a primeira rebelião tenentista e a criação do Centro Dom Vital por pensadores católicos fazem de 1922 um ano especialmente relevante para a definição de novos campos políticos e intelectuais no país. O primeiro levante tenentista ocorreu em protesto contra a vitória de Artur Bernardes no pleito para sucessão do presidente Epitácio Pessoa. Liderada por jovens oficiais, doravante conhecidos como “tenentes”, a rebelião foi estimulada pelo clima de efervescência política poucas vezes observado em eleições anteriores. Presidente de Minas Gerais (na época, os governadores tinham essa designação), Bernardes foi apoiado pela aliança entre Minas e São Paulo, que vinha dando as cartas da política nacional desde o início do século. Sua indicação foi contestada pelos grupos oligárquicos dominantes no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, que articularam o movimento da Reação Republicana em favor da candidatura do ex-presidente Nilo Peçanha. A campanha oposicionista criticou o esquema de revezamento no poder entre São Paulo e Minas (conhecido como política do café-com-leite), o federalismo excludente, a manipulação dos resultados eleitorais e o desvirtuamento 159 do regime republicano, conquistando a simpatia das camadas médias urbanas e de numerosos elementos militares. O descontentamento no interior da corporação militar agravou-se com o episódio das “cartas falsas” contra o Exército, atribuídas a Bernardes. A oposição civil e militar não reconheceu a vitória de Bernardes no pleito de março de 1922, reivindicando a criação de um Tribunal de Honra. A Revolução de 1930 A crise culminou com a Revolta de 5 de julho de 1922 em guarnições militares das cidades de Campo Grande, Niterói e Rio de Janeiro, imediatamente sufocada pelo governo. O principal foco da rebelião na capital foi o forte de Copacabana que, bombardeado por mar e aviões, caiu na manhã do dia 6. Dezessete militares com a adesão ocasional de um civil marcharam ao encontro de tropas legalistas muito superiores, no episódio que ficou conhecido como os 18 do Forte. Bernardes tomou posse em novembro de 1922 sob estado de sítio e manteve suspensas as garantias constitucionais durante todo seu mandato. Governando com mão de ferro, adotou medidas discricionárias contra adversários, restringiu a liberdade de imprensa e pressionou para que os “tenentes” rebeldes fossem punidos com o máximo de rigor. Excetuando o Rio Grande, os estados que haviam dado sustentação à Reação Republicana sofreram intervenção federal, recurso freqüentemente utilizado pelo poder central durante o primeiro regime republicano para regular a seu favor as disputas entre grupos oligárquicos nos estados. Vale ressaltar que essa arma só não foi utilizada justamente contra os três estados mais fortes da federação: São Paulo, Minas e Rio Grande. 160 1930. Às vésperas da Revolução, João Pessoa é o vice na chapa da oposição para as anunciadas eleições. Arq. Nac. O presidente chegou a contemplar a hipótese de intervenção no Rio Grande no início de 1923, quando antigos caudilhos federalistas se levantaram em armas contra o governador Borges de Medeiros, chefe do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e principal mentor da Reação Republicana. Acabou considerando arriscada essa opção em face da ampla superioridade das forças leais a Borges na guerra civil gaúcha. Em vez da intervenção, patrocinou um acordo de paz, conhecido como Pacto de Pedras Altas, que garantiu o quinto mandato de Borges no executivo estadual, vedando entretanto sua reeleição para o período seguinte. A segunda revolta tenentista eclodiu em São Paulo em 5 de julho de 1924, marcando o segundo aniversário do levante do forte de Copacabana. Com um efetivo aproximado de mil homens do Exército e da Força Pública paulista, sob o comando do general Isidoro Dias Lopes e do capitão Miguel Costa, os revolucionários tomaram conta da cidade de São Paulo durante três semanas. No final de julho, decidiram abandonar a capital, fustigada por seguidos bombardeios aéreos e de artilharia, iniciando uma marcha pelo interior do estado. Em outubro, a “coluna paulista” fixou-se na região de Foz do Iguaçu, no oeste do Paraná, onde permaneceu à espera de forças rebeldes que se sublevaram no Rio Grande do Sul sob a liderança do capitão Luís Carlos Prestes e do tenente João Alberto. Na sucessão de Artur Bernardes, a prática da alternância na chefia do governo entre paulistas e mineiros funcionou sem contestação de outros grupos estaduais. Candidato único, Washington Luís, ex-presidente de São Paulo, foi eleito com quase 98% dos votos, sendo empossado em novembro de 1926. O novo presidente ensaiou um início de distensão política, suspendendo o estado de sítio e a censura à imprensa. Preocupou-se também em ampliar sua base de apoio, incorporando o Rio Grande às responsabilidades do governo com a nomeação de Vargas para o Ministério da Fazenda. A passagem de Getúlio pelo ministério durou pouco mais de um ano, correspondendo à época de êxitos da política econômico-financeira de Washington Luís. Ele deixaria o cargo em janeiro de 1928 para assumir a presidência de seu estado no lugar de Borges. As medidas liberalizantes prosseguiram com a libertação de presos políticos e militares detidos sem processo e a legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Esperava-se que o passo seguinte fosse a anistia aos “tenentes”, mas a maioria governista no Congresso recusou a medida. Em meados de 1927, o governo começou a recuar em seu liberalismo. Conseguiu aprovação de projeto que deu origem à chamada “Lei Celerada”, responsável pelo reinício de rigorosa censura à imprensa, e recolocou o PCB na ilegalidade. De todo modo, a oposição ao governo dava mostras de vitalidade, impulsionada inclusive por novos partidos. Em São Paulo, o domínio monolítico do Partido Republicano Paulista (PRP) foi quebrado com o surgimento do Partido Democrático (PD). No Rio Grande, os grupos oligárquicos que se opunham tanto ao governo central quanto ao PRR criaram o Partido Libertador (PL). Mas o que precipitou a desestabilização do quadro político nacional, tal como em 1922, provocando desta vez uma cisão definitiva no pacto de dominação oligárquica, foi a questão sucessória. A partir de meados de 1928, Washington Luís deixou evidente sua intenção de apoiar a candidatura do presi- A Revolução de 1930 Em abril de 1925, os rebeldes gaúchos e paulistas formaram a célebre Coluna Miguel Costa-Prestes, também conhecida simplesmente como Coluna Prestes. Durante quase dois anos, eles percorreram milhares de quilômetros pelo interior do país, propagando o levante armado da população contra as oligarquias. Travaram mais de uma centena de combates, mas as esperadas revoluções de apoio fracassaram todas. A marcha terminou em fevereiro de 1927, quando os últimos remanescentes da Coluna Prestes entraram em território boliviano. 161 A Revolução de 1930 dente paulista Júlio Prestes de Albuquerque, rompendo tacitamente com o esquema de revezamento no poder entre Minas e São Paulo. 162 As articulações para uma candidatura de oposição foram iniciadas pelo presidente mineiro Antônio Carlos Ribeiro de Andrada. Ao perceber que Minas e seu próprio nome estavam sendo marginalizados pelo Palácio do Catete, Antônio Carlos buscou a aproximação com o Rio Grande do Sul. Em junho de 1929, os dois estados firmaram um pacto secreto de aliança, prescrevendo a apresentação de uma candidatura gaúcha, nomeadamente Getúlio Vargas ou Borges de Medeiros. Em 11 de julho, Getúlio informou ao presidente que era candidato, deixando claro que não oporia obstáculo a uma solução diferente em torno de um tertius. Washington Luís repeliu liminarmente essa hipótese. Comunicou aos demais governadores a candidatura de Júlio Prestes, recebendo o apoio de todos, com exceção de João Pessoa, da Paraíba, que aceitara concorrer à vice-presidência como companheiro de chapa de Vargas. Ainda em julho, o Partido Republicano Mineiro (PRM) aprovou o lançamento da chapa oposicionista. Cerrando fileiras em torno da candidatura Vargas, o PL de Assis Brasil e Batista Luzardo integrou-se ao PRR na Frente Única Gaúcha (FUG). O passo seguinte foi a criação no início de agosto da Aliança Liberal, coligação composta pela maioria dos representantes políticos dos três estados dissidentes e de oposições estaduais, como o PD. Seu programa propugnava primordialmente a reforma política do país, defendendo a representação popular através do voto secreto, a criação da Justiça Eleitoral, a independência do Judiciário e a anistia aos presos políticos e revolucionários perseguidos desde 1922. No plano econômico e social, combatia o esquema de valorização do café, não discordando nesse ponto da política de Washington Luís, insinuava a necessidade de industrialização e preconizava medidas de proteção ao trabalhador, como aplicação da lei de férias e a regulamentação do trabalho do menor e da mulher. A partir das convenções de setembro que homologaram as chapas VargasJoão Pessoa e Júlio Prestes-Vital Soares, ficou definida a situação de inferioridade da Aliança Liberal na disputa sucessória. A oposição enfrentaria a máquina oficial em 17 estados e, tendo-se em conta, os padrões de controle eleitoral da República Velha, suas chances de vitória eram praticamente nulas. Para piorar esse quadro, a chapa oficial receberia ainda o reforço da Concentração Conservadora, dissidência do PRM, liderada pelo vice-presidente Fernando de Melo Viana. Ainda em 1929, uma corrente da Aliança Liberal, formada por políticos mais jovens como Osvaldo Aranha, João Neves da Fontoura e Virgílio de Melo Franco, passou a admitir a hipótese de um movimento armado contra o governo federal em caso de derrota das urnas. Como primeiro passo, buscou-se a colaboração dos “tenentes”, tendo em vista seu passado revolucionário e experiência militar. Vários oficiais revolucionários aderiram à idéia de colaborar com a Aliança Liberal, não obstante a posição em contrário de Luís Carlos Prestes, chefe supremo do movimento tenentista. Prestes encontrava-se a meio caminho em seu processo de adesão ao comunismo e começava a abraçar uma nova concepção da revolução brasileira. Mas não se furtou a entrar em contato com Vargas, a pedido de seus companheiros. Teve um primeiro encontro com o candidato oposicionista em setembro de 1929 e outro pouco antes das eleições. Nessa altura, a campanha eleitoral ganhara um novo ingrediente em razão dos efeitos da crise econômica mundial desencadeada pela quebra da Bolsa de Nova Iorque. A crise teve conseqüências desastrosas para os cafeicultores e os círculos financeiros de São Paulo. Em pouco tempo, todas as reservas de ouro acumuladas à custa de empréstimos externos foram tragadas pelos capitais em fuga do país. Washington Luís recusou-se a emitir novos financiamentos e a conceder a moratória, reclamados pela lavoura paulista, ocorrendo então, segundo a avaliação do historiador Boris Fausto, “um desencontro entre o Estado, como representante político da burguesia cafeeira, e os interesses imediatos da classe”. Às vésperas do Ano Novo, Vargas viajou ao Rio, rompendo o acordo com Washington Luís. Em 2 de janeiro de 1930, leu sua plataforma, não em recinto fechado como fizera Júlio Prestes, mas em praça pública para uma grande multidão que se concentrou na esplanada do Castelo. Em seguida, foi a São Paulo e Santos, onde foi entusiasticamente recebido. Em fevereiro, ocorreram choques violentos em algumas cidades. O conflito mais importante eclodiu na Paraíba às vésperas das eleições. Foi a revolta da cidade de Princesa, liderada por José Pereira, que congregou a oposição paraibana ao governo de João Pessoa e contou com o apoio do Catete. A campanha da Aliança Liberal empolgou as camadas médias urbanas e mesmo alguns segmentos do operariado, caracterizando uma mobilização sem precedentes no Brasil da Primeira República. Mas tal como esperado as eleições de 1º de março de 1930 deram a vitória ao candidato oficial. Júlio Prestes alcançou a marca de 1.091.000 votos contra 737 mil dados a Getúlio. Pelo Bloco Operário e Camponês (BOC), concorreu o operário comunista Minervino de Oliveira, que obteve uma votação ínfima. O comparecimento de quase dois milhões de eleitores (do sexo masculino) foi recorde, correspondendo a 5,6% da população do país estimada em 33 milhões de habitantes. O resultado do pleito foi claramente determinado pelo uso das máquinas eleitorais, tanto no campo governista, quanto oposicionista. De outra forma seria difícil explicar a fabulosa votação de Getúlio no seu estado: quase 300 mil votos contra apenas 982 de seu concorrente. A Revolução de 1930 Getúlio conduziu a campanha com extrema cautela, mantendo sempre um canal de comunicação com Washington Luís. Em dezembro de 1929, chegou a firmar um acordo secreto com o presidente, comprometendo-se a não fazer propaganda eleitoral fora de seu estado. 163 A Revolução de 1930 Manifesto da Aliança Liberal 164 O Brasil anseia por medidas, não por homens. Os nossos homens de governo, à falta de uma invariável tradição de nível comum, por si sós já não se impõem à confiança do povo. A Nação pergunta pelos seus princípios, pelas medidas de governo que pretendem realizar, e indaga ainda qual a corrente partidária que se constitui em garantia da sua execução. As medidas que o Brasil de nossos dias reclama são de caráter liberal, encaminham-se inicialmente à plena e definitiva pacificação dos espíritos, para demorar depois na modificação do nosso sistema eleitoral, por forma que lhe possa assistir a certeza de que os seus governantes representam de fato e de direito a sua vontade soberana, única origem legítima de todo poder constituído. Por isso, sem dúvida, o povo, que possui o sentido sagrado dos seus direitos e das suas aspirações, deu à nossa aliança política o nome de liberal. Recolhemo-lo com ufania. E certos de que o povo não delibera sem causa justificada, com ele assumimos, nesta hora, o sagrado compromisso de respeitar a sua indicação e de sermos dignos da sua vontade. Manifesto da Aliança Liberal, de autoria de Lindolfo Collor, de 20 de setembro de 1929. Transcrito em A Revolução de 30: textos e documentos. Org. por Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães et al. Brasília: Ed. da UNB, 1982. 2 v. (Temas Brasileiros, 14). v. 1, p. 221-227. A derrota eleitoral provocou diferentes reações no interior da Aliança Liberal. Em 19 de março, o velho caudilho gaúcho Borges de Medeiros, em entrevista ao jornal carioca A Noite, reconheceu a vitória de Júlio Prestes, dando por encerrada a campanha oposicionista. A entrevista suscitou forte reação de Osvaldo Aranha, João Neves e Flores da Cunha, partidários da via revolucionária. De forma ainda bastante reticente, Vargas concordou com a preparação de um movimento armado, deixando a Aranha a responsabilidade pela sua coordenação. Ainda em março, a conspiração passou a contar com o apoio tácito de Antônio Carlos e outros próceres do velho regime, como os ex-presidentes Artur Bernardes e Epitácio Pessoa. No início de abril, a participação dos “tenentes” ficou acertada: Juarez Távora chefiaria a revolução no Norte, João Alberto e outros oficiais ajudariam o movimento no Sul e Siqueira Campos dirigiria o setor mais difícil – a capital paulista. Para chefiar o estado-maior revolucionário, dada a desistência de Luís Carlos Prestes, os gaúchos escolheram um oficial de carreira, o tenente-coronel Pedro Aurélio de Góes Monteiro. O arbítrio do reconhecimento dos poderes do novo Congresso em maio de 1930 constituiu-se em mais um fator de indignação contra Washington Luís. A maioria governista promoveu a “degola” de vários deputados do PRM e de todos os candidatos paraibanos apoiados por João Pessoa. Entrementes, as articulações revolucionárias na área dos “tenentes” sofreram uma baixa importante com a morte de Siqueira Campos num acidente aéreo. Além disso, Luís Carlos Prestes rompeu publicamente com a Aliança Liberal, divulgando manifesto contra a “revolução da oligarquia” e a Em junho, a preparação do levante voltou praticamente à estaca zero em virtude das hesitações de Antônio Carlos e Vargas. O presidente de Minas demonstrou desconfiança quanto ao êxito do movimento revolucionário, avaliando que o melhor seria transformar a aliança militar em aliança política entre os três estados dissidentes. Além disso, transferiu a responsabilidade da participação ou não de Minas no movimento ao seu sucessor no governo estadual, Olegário Maciel, que tomaria posse em setembro. O recuo de Antônio Carlos foi o pretexto de que serviu Vargas para também recuar, motivando a renúncia de Osvaldo Aranha ao seu posto no governo gaúcho. A conspiração tendia a se extinguir quando ocorreu o assassinato de João Pessoa em 26 de julho. Embora o crime tenha sido cometido por motivos de ordem pessoal, os líderes aliancistas lançaram imediatamente a culpa sobre o governo federal. A comoção nacional provocada pelo desaparecimento de João Pessoa deu novo alento às articulações revolucionárias. Em agosto, Getúlio ainda considerou arriscado o envolvimento do Rio Grande sem o apoio expresso de Borges de Medeiros, encarregando Aranha de obter a adesão do chefe do PRR, tarefa que cumpriu com sucesso. Vargas e Borges também consideraram indispensável obter senão o apoio, pelo menos a neutralidade, de altos comandantes militares no Rio de Janeiro. Em meados de setembro, Lindolfo Collor viajou ao Rio, onde manteve contatos com vários oficiais. Estabeleceram-se assim entendimentos para uma intervenção pacificadora no caso de um conflito prolongado. Apesar de alertado por alguns generais, Washington Luís não ordenou nenhuma medida preventiva para deter a revolução, sendo surpreendido pelos acontecimentos. Em 3 de outubro, a revolução eclodiu quase simultaneamente às cinco da tarde em Porto Alegre e em Belo Horizonte. Algumas horas depois, todas as unidades militares da capital gaúcha já se encontravam sob o controle dos revolucionários. No interior do estado, as guarnições que não aderiram aos revoltosos permaneceram inativas graças às articulações de Góes Monteiro. No dia seguinte, Vargas divulgou manifesto, conclamando o povo gaúcho às armas. O apelo foi atendido com entusiasmo: cerca de 50 mil voluntários alistaram-se para lutar na insurreição. Em Belo Horizonte, apesar da resistência do 12º Regimento de Infantaria, que durou cinco dias, o domínio da cidade também foi rápido. Algumas guarnições no interior de Minas permaneceram fiéis ao governo federal, mas limita- 1930. Junta Governativa reúnese para as primeiras decisões após a Revolução. Da dir. Osvaldo Aranha, os generais Tasso Fragoso e Mena Barreto e o almirante Isaias de Noronha. Arq. Nac. A Revolução de 1930 favor de um programa de revolução agrária e antiimperialista. 165 ram sua ação à resistência dentro dos quartéis. No Nordeste, o movimento irrompeu na madrugada de 4 de outubro e a situação logo tendeu a favor dos revolucionários, merecendo destaque a ampla participação popular na insurreição em Pernambuco. A Revolução de 1930 Em 17 de outubro, Vargas estabeleceu seu quartel-general em Ponta Grossa, no Paraná, assumindo o comando das forças em marcha para a capital da República. Nessa altura o único bastião legalista significativo fora do Distrito Federal era o estado de São Paulo, que concentrou suas tropas em Itararé, junto à divisa com o Paraná, para deter o avanço dos revolucionários sulistas. O choque dessas forças não chegou a ocorrer por causa da intervenção da cúpula militar no Rio de Janeiro. Em 24 de outubro, Washington Luís foi deposto e 166 Rio Grande, de pé, pelo Brasil! Entreguei ao povo a decisão da contenda e este, cansado de sofrer, rebela-se contra os seus opressores. Não poderei deixar de acompanhá-lo, correndo todos os riscos em que a vida será o menor dos bens que lhe posso oferecer. Estamos ante uma contra-revolução para readquirir a liberdade, para restaurar a pureza do regime republicano, para a reconstrução nacional. Trata-se de um movimento generalizado, do povo fraternizando com a tropa, desde o Norte valoroso e esquecido dos governos até o Sul. Amparados no apoio da opinião pública, prestigiados pela adesão dos brasileiros, que maior confiança inspiram dentro e fora do país, contando com a simpatia das forças armadas e a cooperação de sua melhor parte, fortes pela justiça e pelas armas, esperamos que a Nação reentre na posse de sua soberania, sem maior oposição dos reacionários, para evitar a perda inútil de vidas e de bens, abreviar a volta do país à normalidade e a instauração de um regime de paz, de harmonia, sob a égide da lei. Não foi em vão que o nosso Estado realizou o milagre da união sagrada. É preciso que cada um dos seus filhos seja um soldado da grande causa. Rio Grande, de pé, pelo Brasil! Não poderás falhar ao teu destino heróico! Rio Grande, de pé, pelo Brasil, discurso de Getúlio Vargas pronunciado em 4 de outubro de 1930. A Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938-1945. v. I, p. 59-63. substituído por uma junta governativa composta pelos generais Tasso Fragoso e Mena Barreto e pelo contra-almirante Isaías de Noronha. Quatro dias mais tarde, a junta comunicou a decisão de transmitir o poder a Vargas. Discurso de posse de Getúlio Vargas No fundo e na forma, a Revolução escapou (...) ao exclusivismo de determinadas classes. Nem os elementos civis venceram as classes armadas, nem estas impuseram àqueles o fato consumado. Todas as categorias sociais, de alto a baixo, sem diferença de idade ou sexo, comungaram em um idêntico pensamento fraterno e dominador: - a construção de uma Pátria nova, igualmente acolhedora para grandes e pequenos, aberta à colaboração de todos os seus filhos. (...) O trabalho de reconstrução, que nos espera, não admite medidas contemporizadoras. Implica o reajustamento social e econômico de todos os rumos até aqui seguidos. Não tenhamos medo à verdade. Precisamos, por atos e não por palavras, cimentar a confiança da opinião pública no regime que se inicia. Comecemos por desmontar a máquina do filhotismo parasitário, com toda a sua descendência espúria. (...) No terreno financeiro e econômico, há toda uma ordem de providências essenciais a executar, desde a restauração do critério público ao fortalecimento das fontes produtoras, abandonadas às suas dificuldades e asfixiadas sob o peso de tributações de exclusiva finalidade fiscal. (...) Como vedes, temos vasto campo de ação, cujo perímetro pode, ainda, alargar-se em mais de um sentido, se nos for permitido desenvolver o máximo em nossas atividades. Discurso de posse de Getúlio Vargas, em 3 de novembro de 1930. A Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938-1945. v. I, p. 69-74. A Revolução de 1930 Em 31 de outubro, precedido por três mil soldados, Getúlio chegou ao Rio de Janeiro, sendo recebido com uma manifestação apoteótica de apoio. Como escreveu o historiador Boris Fausto, “o homem que, no comando da nação, iria insistir no tema da unidade nacional, fez questão de fazer transparecer, naquele momento, seus traços regionais. Desembarcou na capital da República em uniforme militar, ostentando um grande chapéu dos pampas”. Em 3 de novembro, Getúlio Vargas tomou posse como chefe do Governo Provisório. Sua chegada ao poder marcou o fim da República Velha e o início de uma nova fase da história política brasileira. 167 Bibliografia BRANDI, Paulo. Vargas: da vida para a história. 2ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1985 (em colaboração com Mauro Malin e Plínio de Abreu Ramos). DICIONÁRIO Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Coord. Alzira Abreu, Israel Beloch, Fernando Lattman-Weltman e Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão. 2 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001 (verbetes Aliança Liberal, Revolução de 1930 e Tenentismo). A Revolução de 1930 FAUSTO, Boris. A revolução de 1930, historiografia e história. 3ª ed. São Paulo:Brasiliense, 1975. 168 _____ . História do Brasil. 5ª ed. São Paulo: Editora da USP; Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1997. FERREIRA, Marieta de Moraes e PINTO, Surama Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida (orgs). O Brasil republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, vol. 1. LIMA SOBRINHO, Alexandre José Barbosa. A verdade sobre a Revolução de Outubro -1930. 2ª ed. São Paulo:Alfa-Ômega, 1975. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. 4º ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. A Revolução Constitucionalista de 1932 Renato Lemos A solução militar da crise política gerada pela sucessão do presidente Washington Luís em 1929-1930 provoca profunda ruptura institucional no país. Deposto o presidente, o Governo Provisório (1930-1934), formado em seguida e liderado por Getúlio Vargas, precisa administrar as diferenças entre as correntes políticas integrantes da composição vitoriosa, herdeira da Aliança Liberal, que patrocinara a candidatura oposicionista de Vargas nas eleições presidenciais. Elementos oriundos dos movimentos “tenentistas” da década de 1920 passam a integrar o governo, defendendo um programa antiliberal que inclui o prolongamento do regime ditatorial e o adiamento de eleições para uma assembléia constituinte até que estivessem realizadas as reformas que entendiam necessárias. Já a parcela mais expressiva dos representantes das classes dominantes regionais que haviam integrado a Aliança Liberal se mobiliza contra a orientação estatizante e centralizadora que se firmava no interior do Governo Provisório, defendendo a imediata reconstitucionalização do país. Vizinhos dos “tenentes” no poder, por eles nutrem crescente desconfiança e, passando por cima do fato de que compõem diversificado espectro ideológico que ia da extrema-direita fascista ao comunismo, passam a tachá-lo s de simpatizantes do bolchevismo russo. Em São Paulo, como, de resto, em vários outros pontos do país, o Governo Provisório usa os “tenentes” para submeter os partidos políticos regionais, de maneira a impor sua orientação política. A nomeação de João Alberto, natural de Pernambuco e egresso da Coluna Prestes (1925-1927), para interventor no estado desperta a ira paulista, não só por preconceito contra os nordestinos, mas também pela defesa que faz da legalização do Partido Comunista e por tentar uma aproximação com a classe operária. João Alberto, depois de resistir a algumas tentativas 169 1932. Repercussão da Revolução em Minas Gerais. Da esq: Juscelino Kubitschek, José Maria Alkmin e um capelão. Ag. Nac. A Revolução Constitucionalista de 1932 de deposição, inclusive um levante militar frustrado em abril de 1931, acaba renunciando em julho desse mesmo ano. 170 Governo mineiro organiza-se para entrar na Revolução. Da esq: Olegário Maciel, um oficial e Gustavo Capanema Processa-se, em seguida, uma reversão da crise política estadual que, em 1926, dividira o Partido Republicano Paulista (PRP) e dera origem ao Partido Democrático (PD), participante ativo da Aliança Liberal e do movimento político-militar de 1930. A convergência de posições contra a orientação política federal une defensores do retorno à ordem anterior e democratas liberais. Seguindo o rumo dos representantes políticos das classes dominantes mineira e gaúcha, o PD e o PRP formam, em fevereiro de 1932, a Frente Única Paulista (FUP) e rompem com o Governo Provisório. Amparados na sua “tradição liberal democrática” e na defesa da autonomia estadual, os representantes políticos das classes dominantes paulistas exigem a instalação de uma Constituinte e o fim da intervenção federal nos estados. A animosidade contra Vargas não diminui mesmo com a promulgação, em fevereiro de 1932, de um Código Eleitoral, que indicava um recuo diante das pressões constitucionalistas, além de introduzir importantes inovações na prática eleitoral, como o voto obrigatório e secreto e a inclusão das mulheres no eleitorado. A nomeação, em março de 1932, de Pedro Toledo, paulista e civil, para interventor em São Paulo, também não resolve a crise. A formação, em 13 de maio, de uma comissão encarregada de elaborar o anteprojeto de uma nova Constituição e a fixação da data das eleições em 1933 não impedem que se acuse Vargas de retardar a reconstitucionalização do país, promessa da campanha da Aliança Liberal e do movimento insurrecional de 1930. A mobilização assume caráter de conspiração e encontra apoios em outras áreas. Preocupados com a ameaça à hierarquia que o crescente poder político desfrutado pelos “tenentes” representava, membros da alta cúpula do Exército se aproximam da oposição paulista. Em Minas Gerais, a Frente Única se engaja na articulação, destacando-se a liderança do ex-presidente Artur Bernardes, cuja candidatura motivara em 1922 a primeira manifestação tenentista. No Rio Grande do Sul, o Partido Libertador e o interventor Flores da Cunha se declaram solidários ao movimento, enquanto o general Bertoldo Klinger, comandante da guarnição de Mato Grosso, promete apoio militar. Também entre setores populares o movimento encontra alguma repercussão, apesar da ausência da classe operária, então em mobilização sindical ascendente. Os representantes políticos e líderes corporativos empresariais fazem intensa propaganda através da imprensa e do rádio resgatando referências regionais - o mito do bandeirante, por exemplo - temperadas de Contudo, quando a insurreição se inicia, em 9 de julho de 1932, as bases do movimento se revelam muito mais frágeis do que sugeriam as aparências criadas pela propaganda. O comando militar, integrado pelos generais Bertoldo Klinger e Isidoro Dias Lopes e pelo coronel Euclides de Figueiredo, e o comando civil, de que faziam parte o exinterventor Pedro de Toledo, na condição de chefe do governo revolucionário, Francisco Morato (PD) e Pádua Salles (PRP), vêem-se abandonados à própria sorte pelos aliados com que contavam. As classes dominantes mineira e gaúcha optam por defender o governo federal, apesar de contrárias à sua orientação centralizadora. O próprio general Klinger contribuiu apenas com pouco mais de uma centena de soldados. Deflagrada a guerra civil, o campo governista é constituído pelo Exército e a Marinha, que impõe o cerco ao porto de Santos. O lado rebelde é formado por contingentes do Exército sediados em São Paulo e a Força Pública estadual, apoiada por setores da população mobilizados militarmente. Os voluntários chegam perto de 200 mil, mas nas unidades do Exército só há armas para menos de um terço deles, que são incorporados aos efetivos militares. Muitos outros se juntam aos contingentes estaduais, armados tão precaria- Manifesto dos revolucionários O movimento que se desencadeou na noite de 9 para 10 deste mês e dominou incontinenti o estado de São Paulo (...) não tem outros intuitos senão reintegrar o país na ordem legal e restituir aos brasileiros o gozo dos direitos e franquias que são o apanágio da nossa civilização. (...) Pelo que o povo, a guarnição federal e a força pública de São Paulo, fraternizados com os civis e militares de Mato Grosso e em estreita cooperação com as correntes políticas e milícias do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e outros estados, pedem se tranqüilizem seus compatriotas e anunciam-lhes que o movimento há de generalizar-se e prosseguir vitorioso, com o duplo e fundamental intento de entregar o Governo Federal a uma Junta que, dentro do prazo estritamente indispensável para o preparo e funcionamento da assembléia constituinte, leve o país ao regime constitucional (...). Tudo pela união, felicidade e grandeza do Brasil! Pedro de Toledo, Gen. Isidoro Dias Lopes, Gen. Klinger, Francisco Morato, A. de Paula Salles. São Paulo, 12 de julho de 1932. Manifesto dos revolucionários, transcrito em O Estado de S. Paulo, 13 de julho de 1932. Apud Edgar Carone. A Segunda República. São Paulo: Difel, 1973. p. 53-54. A Revolução Constitucionalista de 1932 anticomunismo, e tentando desqualificar as medidas efetivamente tomadas por Getúlio Vargas no sentido da reconstitucionalização do país. Sucedem-se manifestações e, durante comício realizado em São Paulo no dia 23 de maio de 1932, a repressão policial resulta na morte dos estudantes Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, cujas iniciais são escolhidas para dar nome a um dos movimentos contra o governo federal - MMDC. O episódio amplia o apoio da classe média paulista ao movimento e generaliza definitivamente no estado o descrédito quanto às intenções liberalizantes de Vargas. 171 A Revolução Constitucionalista de 1932 Manifesto de Monteiro Lobato 172 São Paulo tem que organizar em bases seguríssimas a sua defesa, a sua legítima defesa. (...) Se hoje o povo se levanta em massa e marcha resignado para as trincheiras e dá ao Governo [Constitucionalista Revolucionário] todas as reservas que ainda possui, vem de que seu instinto de conservação despertou. São Paulo deliberou salvarse pela força das armas e o fará. Está matando em legítima defesa. Nada espera da política. Espera tudo de si próprio. (...) Cada cidadão paulista deverá constituir um soldado mobilizável, que permaneça em sua casa, que seja depositário de um fuzil e certa quantidade de munição, que faça anualmente exercícios militares na cidade onde se achar e que fique preso a um quadro – este, sim, mantido em permanência. (...) A atitude única que o instinto de conservação impõe a São Paulo, depois da vitória, deverá expressar-se nesta fórmula: Hegemonia ou Separação. (...) Convençamo-nos de que só há dois caminhos na vida; ser martelo ou bigorna, boi de corte ou tigre. Velha bigorna, velho boi de corte, velha vaca de leite que tem sido, transforme-se São Paulo em tigre. Faça-se todo dentes e garras afiadíssimas, antes que a linda idéia romântica da brasilidade o reduza a churrasco. E oponhamos aviação eficientíssima e metralhadoras mais modernas às queixadas de burro com que Caim nos pode atacar. Manifesto de Monteiro Lobato, enviado a Valdemar Ferreira, secretário de Justiça e Segurança do Governo Constitucionalista Revolucionário de São Paulo em 10 de agosto de 1932. Apud Hélio Silva. 1932: A guerra paulista. O ciclo de Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 279-283. mente que precisam inventar apetrechos que simulam o ruídos de armas, como a matraca, para impressionar as forças governistas. As tropas constitucionalistas têm como missão estratégica controlar o Vale do Paraíba e as divisas com o Paraná e Minas Gerais. A reação federal, comandada pelo general Pedro Aurélio de Góis Monteiro, chefe da insurreição em 1930, inicia-se na fronteira sul de São Paulo, junto a Minas Gerais. São três meses de luta entre forças extremamente desiguais. Os paulistas tentam compensar a inferioridade numérica e militar com a mobilização de seus amplos recursos econômicos. Proprietários de terras, através da Sociedade Rural Brasileira e do Instituto do Café do Estado de São Paulo, e comerciantes contribuem para a viabilização econômica da guerra. A burguesia industrial do estado se engaja decididamente na campanha, liderada pela Associação Comercial de São Paulo e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Fábricas são convertidas à indústria bélica, enquanto se tenta, em vão, obter armas, munições e aviões no exterior. As forças federais, entretanto, embora também enfrentassem problemas materiais e organizacionais, dispõem de efetivos mais numerosos e artilharia pesada. Ambos os lados usam aviões, fato até então inédito na história militar do país. Após numerosos combates, extremamente violentos, Como resultado da pressão paulista, ou por sinceridade de propósitos, Vargas, apesar da perturbação política relacionada à guerra civil, mantém o calendário eleitoral. Em maio de 1933 são eleitos os deputados e senadores que elaboram a nova Constituição do país, promulgada em 1934. Manifesto de Getúlio Vargas ao povo de São Paulo (...) como se explica a revolta de São Paulo? Só uma explicação é possível: a ambição do poder, caracterizada por um movimento de revanche contra o de 1930, visando restaurar o passado, recuperar posições e reaver prerrogativas que permitiam ser dilapidado o erário do povo brasileiro mediante todas as formas de corrupção administrativa imagináveis. Mas, se tentaram articular um movimento generalizado e fulminante e esse movimento falhou (...) por que insistiram na luta? Por que não depuseram as armas? Por que persistem no derramamento e inútil sacrifício do sangue irmão? Só duas alternativas lhes restam: ou ambicionam impor o predomínio de um estado sobre todos os outros do Brasil, ou querem chegar ao separatismo. (...) Mas, felizmente, ainda a sedição não partiu do povo varonil, ordeiro e honesto de São Paulo. Audaz sindicato político-militar usurpou-lhe a vontade, jogando o estado numa aventura sinistra e, receoso de receber, pelo ludíbrio praticado, o merecido e inevitável castigo, tudo fará, agora, para lhe ocultar a verdade. O Governo Federal não considera o povo paulista culpado. Ele é, apenas, a maior vítima. Os verdadeiros responsáveis hão de encontrar nela, à hora precisa, o juiz inflexível, capaz de ditar e executar a sentença que lhes terá de ser imposta. São Paulo, iludido na sua boa fé, ludibriado, arrastado à ruína e à perda de vidas preciosas, precisa e deve reagir em defesa dos seus sagrados interesses, para evitar maiores e irreparáveis males, erguendo-se e opondo-se à sanha dos seus algozes, que não trepidaram em atirar à morte as novas gerações bandeirantes e enlutar e reduzir à miséria lares onde imperava a alegria e reinava a abundância. Manifesto ao povo de São Paulo, de Getúlio Vargas, em 20 de setembro de 1932. A Nova Política do Brasil, v. I. Rio de Janeiro: José Olympio, 19381945. p. 81-91. A Revolução Constitucionalista de 1932 que resultam em cerca de 15 mil vítimas, entre mortos e feridos, a iminência da tomada da capital conduz ao início de negociações de paz em 1º de outubro. A rendição dos constitucionalistas é anunciada dois dias depois. 173 A Revolução Constitucionalista de 1932 Bibliografia 174 BRANDI, Paulo. Vargas. Da vida para a história. Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1983. CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932. A causa paulista. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1981. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 5ª ed. São Paulo: Editora da USP; Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1997. HILTON, Stanley E. A guerra civil brasileira (História da Revolução Constitucionalista de 1932). Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982. SILVA, Hélio. A guerra paulista. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. A Aliança Nacional Libertadora e a Revolta Comunista de 1935 Dulce Chaves Pandolfi O Partido Comunista Brasileiro, então Partido Comunista do Brasil (PCB) foi criado em 1922, como uma seção da Internacional Comunista, entidade sediada em Moscou encarregada de coordenar as atividades dos partidos comunistas em todo o mundo. O objetivo desses partidos era promover nos outros lugares o mesmo que havia ocorrido na Rússia em 1917. Em outras palavras, através de uma revolução, deveriam conquistar o poder e implantar o comunismo. Foi também em 1922 que surgiu no Brasil o “tenentismo”, movimento liderado por jovens oficiais do Exército que propunham mudanças na sociedade brasileira. Além de um papel mais relevante para o Exército, defendiam bandeiras como a reforma agrária, a educação pública obrigatória e o voto secreto. Conhecidos como “tenentes”, esses jovens oficiais, ao longo da década de 1920, realizaram rebeliões armadas em vários pontos do país. Uma das mais expressivas foi a que se tornou conhecida como Coluna Prestes. Durante quase dois anos, centenas de “tenentes” marcharam pelo interior do Brasil, pregando a derrubada da República. Em 1927, após muitos enfrentamentos com as forças regulares do Exército, os “tenentes” refugiaram-se na Bolívia. A partir de então, o líder principal da Coluna, Luís Carlos Prestes ganhou expressão nacional, passando a ser conhecido como o “Cavaleiro da Esperança”. No exílio, Prestes, procurado por dirigentes do PCB, teve seus primeiros contatos com as idéias comunistas. Em outubro de 1930, através das armas, a velha República foi derrubada e Getúlio Vargas assumiu a chefia do Governo Provisório. Enquanto uma parcela significativa dos “tenentes” participou da chamada Revolução de 1930, outros, entre eles Luís Carlos Prestes, colocaram-se à margem do processo. Posição semelhante foi adotada pelos comunistas. Para eles, o que ocorrera em 1930 não passava de uma simples disputa entre as elites políticas do país e não Manifestação comunista em São Paulo. Arq. Nac. 175 A ANL e a Revolta Comunista de 1935 176 provocaria alterações substantivas na sociedade. Poucos meses depois da revolução, Prestes, ainda no exílio, através de um manifesto, anunciou sua adesão ao comunismo. Criticando os “tenentes” que participavam do governo Vargas, defendia a necessidade de se fazer uma revolução agrária e anti-imperialista no Brasil. No final de 1931, viajou para a União Soviética e ali permaneceu três anos. Durante esse período, as informações que recebia dos dirigentes do PCB eram animadoras: havia uma situação favorável para o desencadeamento de uma revolução no Brasil. Agildo Barata ( à dir.) é preso na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. Arq. Nac. No final de 1934, em companhia de Olga Benário, sua mulher, uma judia militante do Partido Comunista Alemão, Prestes partiu de Moscou com destino à sua terra natal. Usando as identidades falsas de Antônio Villar e Maria Bergner Villar, chegaram clandestinamente no Brasil em inícios de 1935. Além dos dois, outros militantes ligados à Internacional Comunista também vieram clandestinamente para o Brasil: o argentino Rodolfo Ghioldi e sua mulher Carmem, o casal alemão Elisa Saborowski e Artur Ernest Ewert (conhecido como Harry Berger), os belgas Leon Vallée e sua mulher Alphonsine, os alemães Franz Paul Gruber e sua mulher Erika e o norte-americano Victor Allen Baron. A função de todos eles, de acordo com a prática usualmente adotada pela Internacional Comunista de enviar militantes para auxiliar os mais diversos partidos comunistas, era assessorar o PCB. Quando Prestes e os assessores da Internacional Comunista chegaram ao Brasil, o clima era, de fato, de grande efervescência política. Em 1934, após quase quatro anos de regime discricionário, havia sido aprovada uma nova Constituição e Getúlio Vargas, até então o chefe do Governo Provisório, foi eleito indiretamente presidente da República. O restabelecimento do regime democrático produziu grande mobilização no país e a radicalização do processo político foi num crescendo. Em março de 1935 foi criada a Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma organização política de abrangência nacional que movia cerrada oposição ao governo Vargas. Inspirada no modelo das frentes populares que surgiam na Europa para impedir o avanço do nazi-fascismo, a ANL incluía em seu programa, pontos como a anulação de todos os débitos às nações estrangeiras, a nacionalização das empresas estrangeiras, a garantia das liberdades públicas, a distribuição das terras dos latifúndios entre os camponeses e a proteção ao pequenos e médios proprietários. Com sedes espalhadas em diversas cidades do país, a ANL conseguiu a adesão de milhares de simpatizantes e rapidamente se transformou em um amplo movimento de massas. Importantes lideranças civis e militares que haviam participado da Revolução de 1930 e ocupado postos-chave no pós-30, ingres- saram na organização. Muitos de seus dirigentes - como Miguel Costa, Hercolino Cascardo, Agildo Barata e Silo Meireles - eram oriundos do tenentismo. A ANL e a Revolta Comunista de 1935 As forças hegemônicas no interior da ANL eram, sem dúvida, os “tenentes” e os comunistas, muito embora a organização congregasse representantes de diferentes correntes políticas, como liberais, socialistas e católicos, e contasse com a adesão de sindicatos, associações profissionais, partidos e entidades culturais diversas. Significativamente, seu presidente de honra era Luís Carlos Prestes. Se no momento de fundação não houve uma participação efetiva dos comunistas, o PCB logo percebeu que a ANL poderia ser um importante instrumento para derrubar Vargas e implantar um governo nacional e popular. De acordo com as análises dos comunistas, a revolução brasileira teria que ser feita em duas etapas. Como o Brasil era um país atrasado, ainda não efetivamente capitalista, o comunismo só poderia ser implantado após a destruição dos dois obstáculos que impediam o seu desenvolvimento: o latifúndio e o imperialismo. Numa primeira etapa do processo revolucionário, a revolução brasileira seria, portanto, agrária e anti-imperialista. Nesse sentido, o programa da ANL se coadunava com os objetivos imediatos do PCB. Além do mais, a formação de uma ampla frente de massas contra Vargas não se confrontava com a idéia de revolução. Uma, inclusive, poderia alimentar a outra. O rápido crescimento da ANL produziu forte reação no governo. Em abril de 1935, um mês após a sua criação, foi aprovada uma Lei de Segurança Nacional e, em julho, a ANL foi colocada na ilegalidade. A despeito de algumas tentativas de criar organizações legais para dar continuidade à ANL, nenhuma delas vingou. A decretação da ilegalidade provocou redefinições no interior da organização. Enquanto muitos aliancistas se desmobilizaram, outros intensificaram os preparativos para a deflagração de um movimento armado para derrubar Vargas e instalar um governo nacional e popular. Assim, com o fechamento da ANL, a perspectiva de tomada do poder, através de uma insurreição, sempre presente tanto no horizonte dos “tenentes” quanto no dos comunistas, parecia ter se tornado mais viável. No segundo semestre de 1935, a preocupação de Prestes, expressa na intensa correspondência que manteve com os seus ex-companheiros de tenentismo, era com os preparativos para o desencadeamento da revolução. Além dos “tenentes”, Prestes buscava sensibilizar outros setores das Forças Armadas, também descontentes com o governo Vargas. Desde as revoltas tenentistas da década de 1920 que nas Forças Armadas, sobretudo no Exército, eram freqüentes as manifestações de insubordinação da baixa oficialidade em relação a seus superiores hierárquicos. A instituição estava fragmentada, marcada por inúmeras clivagens in- 177 Novembro de 1935. Os comunistas presos são enviados para a Ilha das Flores. Cor.da Manhã A ANL e a Revolta Comunista de 1935 178 ternas. Anos mais tarde, Prestes, acertadamente, diria que naqueles tempos “era mais fácil construir o Partido Comunista nos quartéis do que nas fábricas”. De fato, além de Prestes, vários militantes que iriam ter grande projeção na estrutura do PCB - como Agildo Barata, Gregório Bezerra, Giocondo Dias e Apolônio de Carvalho - eram de origem militar. Enquanto a posição de acelerar os preparativos para desencadear a luta armada ganhava força na direção do PCB, alguns militantes discordavam radicalmente dessa orientação. Consideravam prematura qualquer tentativa de tomada brusca do poder e buscavam relativizar a força da ANL, tão alardeada pelos dirigentes do partido. Nos dias 21 a 23 de novembro de 1935, na cidade do Rio de Janeiro, a direção do PCB fez uma reunião. Confirmou-se naquela ocasião que havia no país uma situação revolucionária. Tratava-se apenas de esperar o momento oportuno para desencadear a revolução, que deveria ter um caráter nacional e ser de massas. Era responsabilidade da direção partidária decidir o momento mais oportuno para o embate; antes disso, nenhum movimento deveria ser iniciado. Entretanto, ainda no dia 23, eclodiu uma revolta em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Poucos dias antes, soldados tinham sido presos e expulsos do Exército. Indignados com a expulsão, militares da baixa oficialidade do 21º Batalhão de Caçadores decidiram rebelar-se, mas antes de iniciar a revolta, foram buscar o apoio dos comunistas. Como a decisão já havia sido tomada e Pronunciamento de Getúlio Vargas sobre o levante comunista Os fatos não permitem mais duvidar do perigo que nos ameaça. Felizmente, a Nação sentiu esse perigo e reagiu com todas as suas reservas de energias sãs e construtoras. (...) A punição dos culpados e responsáveis pelos acontecimentos de novembro impõe-se como ato de estrita justiça e reparação, como exercício legítimo do direito de defesa da sociedade, em face da atividade criminosa e organicamente anti-social dos seus inimigos declarados e reconhecidos. Impõe-se, ainda mais, pelo dever, que o Estado tem, de salvaguardar a nacionalidade atacada e ameaçada pela decomposição bolchevista. O comunismo, encarado como força desintegradora e agente provocador de sérias perturbações, constitui, no Brasil, pela sua profunda e extensa infiltração, já comprovada mas desconhecida ainda do público, perigo muito maior do que se possa supor. O levante comunista de 27 de novembro de 1935, discurso de Getúlio Vargas pronunciado nas primeiras horas de 1936. A Nova Política do Brasil, v. IV. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938-1945. p. 142-143. No dia 24, ao tomar conhecimento da situação em Natal, os dirigentes do PCB em Pernambuco desencadearam a rebelião, que começou no 29º Batalhão de Caçadores, em Socorro, nos arredores de Recife, onde havia um núcleo significativo de militares comunistas. O quartel foi rapidamente controlado pelos rebeldes que, dali, partiram para ocupar outros pontos da capital pernambucana. No trajeto, ocorreram diversos enfrentamentos com as forças legalistas e, na tarde do dia seguinte, os insurretos já estavam completamente dominados. Diferentemente de Natal, no Recife, a participação da população civil foi quase inexistente. No Rio de Janeiro, as informações que chegavam sobre as rebeliões ocorridas no Rio Grande do Norte e em Pernambuco eram vagas. Mas, ao tomar conhecimento dos levantes, Prestes conseguiu convencer a direção do PCB sobre a importância de apoiar os rebelados do Nordeste, deflagrando imediatamente uma revolução no Sul do país. No dia 27, no Rio de Janeiro, a ordem de sublevação foi dada às unidades da Vila Militar, do Realengo, à Escola de Aviação do Campo dos Afonsos e ao 3º Regimento de Infantaria da Praia Vermelha. Esperava-se que após a vitória nas unidades militares, a população civil apoiasse o movimento. Entretanto, a reação das forças legalistas foi rápida e os embates do Rio de Janeiro ficaram restritos aos quartéis. No mesmo dia em que a direção do PCB decidiu deflagrar a rebelião no Rio de Janeiro, emissários foram enviados com ordens para iniciar levantes em outros estados da federação. Detidos pelo governo, eles não conseguiram chegar aos seus destinos. Circunscritas às cidades de Natal, Recife e Rio de Janeiro, as rebeliões foram violentamente debeladas e provocaram uma onda repressiva sem precedentes. Imediatamente, centenas de aliancistas e comunistas foram presos em todo o país. Muitos, entre eles, Luís Carlos Prestes, amargaram quase dez anos de prisão. Diversos aliancistas que viriam a ser importantes dirigentes do PCB, tiveram, na prisão, seus primeiros contatos com as idéias comunistas. O Tribunal de Segurança Nacional condena Luis Carlos Prestes a 16 anos de prisão. O Globo A ANL e a Revolta Comunista de 1935 diante da sua inevitabilidade, os comunistas do Rio Grande do Norte, mesmo sem consultar a direção do partido que se encontrava reunida no Rio de Janeiro, aderiram à proposta. Iniciada no 21º Batalhão de Caçadores, a rebelião espalhou-se pela capital e atingiu algumas cidades do interior. Após ocupar pontos estratégicos de Natal, militares, auxiliados por civis, tomaram o quartel-general da Polícia Militar e prenderam o chefe de polícia. Para conduzir o processo revolucionário, instalou-se em Natal um Comitê Popular Revolucionário, cuja direção coube aos comunistas. Mas no dia 27, tropas do Exército e as polícias dos estados vizinhos retomaram o poder das mãos dos rebeldes. 179 A ANL e a Revolta Comunista de 1935 As prisões do Estado Novo 180 As autoridades federais iludem a opinião pública nacional, anunciando, oficiosamente, pela imprensa, que Harry Berger se acha bem instalado (...). O que mais assombra é o nenhum valor da palavra oficial (...). Venha comigo sem aviso prévio, à Polícia Especial, e eu o habilito a informar o sr. Presidente da República que nas prisões do Estado Novo existem detidos que estão no dever de pensar que, para a administração brasileira, eles perderam a condição de criaturas humanas. Carta de Sobral Pinto ao Ministro da Justiça Agamenon Magalhães. Apud Elisabeth Cancelli. O mundo da violência: a polícia da era Vargas. Brasília: UNB, 1993. p. 201. O desfecho da escalada repressiva iniciada em novembro de 1935 foi a instalação, em novembro de 1937, do Estado Novo, um regime ditatorial chefiado por Vargas e que vigorou até 1945. Do ponto de vista simbólico, o levante de novembro de 1935, também, teve um papel fundamental. Em diversas fases da nossa história, a “ameaça comunista”, através do “lembraivos de 1935”, foi utilizada como um forte recurso de poder. Brasileiros! Aproximam-se dias decisivos. Os trabalhadores de todo o Brasil demonstram, através de lutas sucessivas, que já não podem mais suportar e nem querem mais se submeter ao governo em decomposição de Vargas e seus asseclas nos estados. Além disso, os cinco últimos anos deram uma grande experiência a todos que no Brasil tiveram de suportar e sofrer a malabarista e nojenta dominação getuliana. E esses cinco anos de manobras e traições, de contradanças de homens do poder, de situacionistas que passam a oposicionistas e vice-versa, de inimigos “irreconciliáveis” que se abraçam, cinicamente, sobre os cadáveres ainda quentes dos lutadores de 1922, abriram os olhos de muita gente. Onde estão as promessas de 1930? Que diferença entre o que se dizia e se prometia em 1930 e a tremenda realidade já vivida nestes cinco anos getulianos! (...) Um apelo – População trabalhadora de todo o país! Em guarda, na defesa de seus interesses! Venha ocupar o seu posto com os libertadores do Brasil! (...) Brasileiros! Todos vós que estais unidos pela idéia, pelo sofrimento e pela humilhação de todo Brasil! Organizai o vosso ódio contra os dominadores transformando-o na força irresistível e invencível da Revolução brasileira! Vós que nada tendes a perder, e a riqueza imensa de todo o Brasil a ganhar! Arrancai o Brasil da guerra do imperialismo e dos seus lacaios! Todos à luta para a libertação nacional do Brasil! Abaixo o fascismo! Abaixo o governo odioso de Vargas! Por um governo popular nacional revolucionário. Todo o poder à Aliança Nacional Libertadora! Manifesto de Luís Carlos Prestes, transcrito em A Platéia, 6 de julho de 1935. Apud Edgar Carone. A Segunda República. São Paulo: Difel, 1973. p. 431-440. A ANL e a Revolta Comunista de 1935 Manifesto de Luís Carlos Prestes 181 A ANL e a Revolta Comunista de 1935 Bibliografia 182 CAMARGO, Aspásia et al. O golpe silencioso. As origens da República Sindicalista. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989. COUTO, André Luiz Faria. ANL: uma frente de esquerda nos anos 30. Dissertação de Mestrado em História da Universidade Federal Fluminense, 1995. DICIONÁRIO Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Coord. Alzira Abreu, Israel Beloch, Fernando Lattman-Weltman e Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão. 2 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001, 5 v. il. PANDOLFI, Dulce. Os anos 1930: as incertezas do regime. In FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida (orgs). O Brasil republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, vol. 2. PANDOLFI, Dulce. Camaradas e Companheiros: história e memória do PCB. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1995. PANDOLFI, Dulce e GRYNSZPAN, Mário. Da Revolução de 30 ao Golpe de 37: a depuração das elites. Revista de Sociologia e Política. UFPR, 1997, n. 9, p. 7- 23. PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. VIANNA, Marly. Revolucionários de 35. São Paulo: Companhia das Letras, 1992 O Golpe do Estado Novo (1937) Dulce Chaves Pandolfi N o dia 10 de novembro de 1937, através de um golpe, foi instalado o Estado Novo, um regime ditatorial que marcou profundamente a história do nosso país. Segundo o discurso de Getúlio Vargas e dos homens que o ajudaram a implantar o Estado Novo, o novo regime era o resultado natural de um processo que tivera o seu ponto de partida em 1930. Entretanto, longe de ser um desdobramento natural da Revolução de 1930, o Estado Novo foi um dos resultados possíveis das lutas e dos enfrentamentos travados no período. Na realidade, os anos que antecederam o Estado Novo foram marcados por disputas e agitações nos meios civis e militares. Essa situação tinha a ver com a diversidade das forças que haviam participado da Revolução de 1930. Ao lado dos liberais e dos “oligarcas dissidentes”, ali também estavam os rebeldes “tenentes”, um grupo de jovens oficiais do Exército que desde o início da década de 1920, tentavam, através das armas, derrubar o regime em vigor desde 1889. Em 1930, logo após a instalação do Governo Provisório, começaram as divergências. Enquanto alguns exigiam a convocação imediata de uma Assembléia Nacional Constituinte, outros afirmavam que o retorno a uma ordem democrática só deveria ocorrer após a promoção das reformas sociais. Enquanto uns desejavam um regime forte e autoritário, outros propunham um modelo de Estado mais liberal. Posições mais centralizadoras se confrontavam com a defesa de maior autonomia estadual. Muitas também eram as disputas no interior das Forças Armadas, que emergiram da Revolução de 1930 enfraquecidas e divididas. Poucos militares de alta patente haviam atuado no movimento revolucionário e a participação dos “tenentes” no governo subvertia a hierarquia, provocando tensões permanentes entre a baixa e a alta oficialidade. Por isso, nos anos que antecederam o Estado Novo, as sublevações nos quartéis eram constantes. Em julho de 1932, eclodiu uma revolução em São Paulo que contou com o apoio de muitos que haviam participado da Revolução de 1930. Os paulistas exigiam o fim do regime ditatorial e maior autonomia para São Paulo. Dois anos depois, em julho de 1934, foi promulgada uma nova Constituição e Vargas foi eleito indiretamente presidente da República. De acordo com as normas 183 constitucionais, o seu mandato teria a duração de quatro anos e não era permitida a reeleição. A Constituição de 1934 desagradou profundamente Vargas. O modelo de Estado ali proposto era mais liberal e menos centralizador do que ele desejava. O Golpe do Estado Novo (1937) Com o estabelecimento do regime constitucional, a participação política da população aumentou e, em pouco tempo, o processo político radicalizou-se. Em março de 1935 foi criada a Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma organização política de amplitude nacional que fazia oposição cerrada a Vargas. Muitos revolucionários de 1930, insatisfeitos com o governo, aderiram à organização. Sob o comando dos “tenentes” e dos comunistas, a ANL rapidamente transformou-se num grande movimento de massas. 184 Benedicto Valadares ( à esq) Governador de Minas Gerais em 1937, conspira com Negrão de Lima. Ag.Nac. Em abril de 1935, o Congresso, a pedido de Vargas, aprovou uma Lei de Segurança Nacional, um instrumento importante para tentar deter o crescimento do movimento popular. A lei suprimia diversas franquias democráticas presentes na Constituição de 34; previa a censura aos meios de comunicação, o fechamento das entidades sindicais consideradas suspeitas e a prisão de um a dez anos para aqueles que estimulassem ou promovessem manifestações de indisciplina nas Forças Armadas ou greves nos serviços públicos. Em novembro daquele ano, em nome da ANL, comunistas e “tenentes” deflagraram um movimento armado cujo objetivo era derrubar Vargas do poder e instalar um governo popular. Restritas às cidades de Natal, Recife e Rio de Janeiro, as rebeliões foram rapidamente debeladas. A despeito do fracasso, a chamada Revolta Comunista serviu de forte pretexto para o fechamento do regime. A partir de então, o comunismo foi declarado o inimigo n. 1 do governo e uma forte repressão se abateu contra todos os considerados opositores do regime. Centenas de pessoas foram presas em todo o país. Muitos dos prisioneiros haviam sido elementos de destaque na Revolução de 1930. Um deles era Pedro Ernesto, o prefeito do Distrito Federal. Sob o impacto dos levantes de 1935, o Congresso passou a aprovar medidas que cerceavam seu próprio poder, enquanto o Executivo ganhava poderes de repressão praticamente ilimitados. Três emendas constitucionais foram aprovadas em dezembro daquele ano. De acordo com a Emenda n. 1, sempre que ocorressem manifestações, em qualquer parte do território nacional, que subvertessem as instituições políticas e sociais considerava-se que o país vivia uma situação de “estado de guerra”. Pela Emenda n.2, Vargas ficava autorizado a cassar a patente e o posto do oficial da ativa, da reserva ou reformado dos militares que praticassem atos ou participassem de movimentos subversivos. De Entretanto, ao mesmo tempo que Vargas conseguia apoio do Congresso para reforçar seus poderes e adotar violentas medidas repressivas, ele não conseguia apoio necessário dos 2/3 dos congressistas para prorrogar seu mandato. Em meados de 1936, Vargas, através do ministro do Trabalho Agamenon Magalhães, realizou uma sondagem junto aos governadores de Minas, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia, os mais fortes da Federação. À exceção de Benedito Valadares, governador de Minas, todos os demais se posicionaram contra a prorrogação do mandato. Diante da recusa, aqueles governadores, até então aliados de Vargas, passaram a ser tratados como inimigos. Para dar prosseguimento às suas manobras continuístas, Vargas buscou desarticulá-los e a ameaça de intervenção federal passou a ser constantemente acionada. Foi também a partir de meados de 1936 que Vargas buscou redefinir suas alianças com os militares, sobretudo, com o general Góis Monteiro que defendia uma proposta de construção de um Exército forte, profissional e impermeável à política. Mas para obter essa impermeabilização era necessário eliminar a política do meio social. Ou seja, a consolidação do Exército passava, necessariamente, pela implantação de uma ordem autoritária, centralizadora, sem participação política. Segundo Góis Monteiro, a proposta reformista dos “tenentes” havia sido altamente prejudicial à consolidação da organização militar. Ao alimentar clivagens verticais, ela punha em cheque a hierar- Reunião dos generais em 27 de setembro de 1937 Não se trata de política, mas exclusivamente de repressão ao comunismo. Ante a ameaça ostensiva dos elementos comunistas, precisa e publicamente caracterizados, o ministro da Guerra já fez tudo quanto estava a seu alcance. O crime de lesa-pátria praticado em novembro de 1935 está prestes a ser repetido, provavelmente com maior energia e mais segurança de êxito. Não é fantasia do governo; os documentos de origem comunista são copiosos e precisos; as atitudes dos elementos postos em liberdade são públicas e evidentes; as manifestações em praça pública são do conhecimento de todos; as declarações da imprensa, algumas sob assinatura, não deixam a menor dúvida. (...) As nossas leis, como se acaba de ver, são ineficazes, inócuas. Só tem servido para por em liberdade aqueles que a polícia apanhou em flagrante delinqüência. O menor defeito dos processos serve de argumento para inocentar os maiores culpados. (...) Impõe-se, contra a ação nefasta iminente, a ação honesta e salvadora das instituições nacionais. É questão de iniciativa: quem perdê-la estará comprometido, pelo menos no primeiro instante. É preciso, portanto, agir e agir imediatamente. Fala de Eurico Gaspar Dutra, transcrita em ata de reunião no Ministério da Guerra, em 27 de setembro de 1937. Apud Hélio Silva. Ameaça vermelha: o plano Cohen. Porto Alegre: L & PM, 1980. p. 25. O Golpe do Estado Novo (1937) acordo com a Emenda n. 3, o mesmo poderia ocorrer com funcionários civis, ativos ou inativos. Poucos meses depois foi criado um Tribunal de Segurança Militar, um tribunal especial para julgar os considerados inimigos do regime. 185 O Golpe do Estado Novo (1937) quia militar e proporcionava um clima favorável às revoltas, como as que haviam ocorrido em novembro de 1935. 186 Havia ainda a posição “neutralista”, defendida por outro grupo de militares, entre eles o ministro da Guerra, João Gomes. Menos prejudicial do que a proposta tenentista, a “neutralista”, também não agradava nem a Góis nem a Vargas. Mesmo impedindo que se fizesse política dentro do Exército, a posição “neutralista” não impedia que o Exército sofresse influências desagregadoras da política, vindas de elementos externos à instituição. Em dezembro de 1936, João Gomes foi substituído no cargo pelo general Eurico Dutra, homem da confiança de Góis Monteiro. Daí em diante, diversas substituições ocorreram nos comandos das Regiões Militares e Dutra e Góis passaram a ser peças-chave nos acontecimentos que iriam desembocar na implantação do Estado Novo. Pedro Aleixo, Presidente da Câmara na ocasião do golpe de 1937, professor de Direito Penal, integrante da bancada da UDN mineira. Arq. Nac. No início de 1937, num clima de muita repressão, a questão da sucessão presidencial ganhou destaque na cena política. As eleições estavam marcadas para janeiro de 1938 e, à revelia de Vargas, três candidatos foram lançados à presidência da República: o governador de São Paulo, Armando de Sales Oliveira, que recebeu o apoio do governador gaúcho Flores da Cunha e de diversos agrupamentos estaduais oposicionistas; o paraibano José Américo de Almeida, representante das forças do Norte-Nordeste do país e do tenentismo; e. finalmente, Plínio Salgado, o chefe da Ação Integralista Brasileira, organização paramilitar criada em 1932, inspirada no fascismo italiano. Enquanto os três candidatos faziam suas campanhas, Vargas, silenciosamente, preparava uma nova Constituição. Em junho de 1937, o Congresso rejeitou o pedido do governo de prorrogação do estado de guerra, em vigor desde abril do ano anterior. Num clima aparentemente de maior descontração, o governo concedeu anistia a alguns presos políticos. Mas, três meses depois, a Câmara dos Deputados aprovou o retorno ao estado de guerra e suspendeu as garantias constitucionais por 90 dias. Essa decisão fora provocada pela divulgação, no dia 30 de setembro, através da imprensa, de um documento, o “Plano Cohen”, relatando a preparação de uma nova insurreição comunista no Brasil. O plano, datilografado pelo capitão Olímpio Mourão Filho, chefe do estado maior das milícias integralistas, era uma peça de ficção, mas serviu plenamente aos seus objetivos. Os setores oposicionistas, que eram minoria no Congresso Nacional, questionaram a sua veracidade e posicionaram-se contra o novo pedido de decretação do estado de guerra. Refutando as evidências de que realmente houvesse uma ameaça subversiva, associaram o novo pedido a uma tentativa do governo de impedir a realização das eleições presidenciais. Contudo, apesar das contestações, o pedido de estado de guerra foi aprovado pela maioria. Havia uma forte suspeita de que, caso a medida não fosse aprovada, o Exército fecharia o Congresso. Na manhã do dia 10 de novembro, o Congresso Nacional foi cercado por tropas militares e à noite, através do programa radiofônico A Hora de Brasil, Getúlio Vargas anunciou à população a mudança do regime. Poucos foram os protestos. Porém, a fraca reação ao golpe não significou necessariamente uma concordância. Ela foi resultado de um bem sucedido esquema de desarticulação dos focos de resistência. O golpe foi sendo preparado de forma lenta e gradual. Na verdade, quando o Estado Novo foi implantado, parte Proclamação de Getúlio Vargas ao povo brasileiro Quando as competições políticas ameaçam degenerar em guerra civil, é sinal de que o regime constitucional perdeu o seu valor prático, subsistindo, apenas, como abstração. A tanto havia chegado o país. A complicada máquina de que dispunha para governar-se não funcionava. Não existiam órgãos apropriados através dos quais pudesse exprimir os pronunciamentos da sua inteligência e os decretos da sua vontade. Restauremos a Nação na sua autoridade e liberdade de ação: - na sua autoridade, dando-lhe instrumentos de poder real efetivo com que possa sobrepor-se às influências desagregadoras, internas ou externas; na sua liberdade, abrindo o plenário do julgamento nacional sobre os meios e os fins do governo e deixando-a construir livremente a sua história e o seu destino. Proclamação ao povo brasileiro, de Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 1937. A Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938-1945. v. p. 29-32. O Golpe do Estado Novo (1937) Em outubro, o deputado mineiro Negrão de Lima, seguindo as instruções de Vargas e do governador de Minas, Benedito Valadares, saiu em missão pelos estados do Norte e Nordeste, à exceção de Bahia e Pernambuco, para buscar apoio para a permanência de Vargas no poder, através da mudança do regime. Conforme o previsto, nos estados politicamente mais fracos, o sucesso da missão foi total. Ameaçados e acuados pelo governo federal, os governadores da Bahia e Pernambuco viviam uma situação de “intervenção branca”. Em São Paulo, enquanto as forças ligadas a Armando Sales, ex- governador e candidato à sucessão de Vargas, protestavam, o seu substituto, o governador Cardoso de Melo Neto, que vinha adotando uma política de gradativo alinhamento com o governo federal, terminou concordando com a proposta de mudança do regime. No Rio Grande do Sul, Flores da Cunha, destituído do comando da força militar estadual e totalmente assediado, renunciou ao governo no dia 17 de outubro e exilou-se no Uruguai. Apesar das tentativas da Assembléia Legislativa para garantir a continuidade do poder civil, a intervenção no Rio Grande do Sul foi decretada no dia 19 e o comandante da 3. Região Militar foi nomeado interventor. 187 O Golpe do Estado Novo (1937) expressiva dos que haviam participado da Revolução de 1930 já estava marginalizada do poder e os possíveis opositores do novo regime encontravam-se presos ou exilados. Sem dúvida, a ação de Vargas no sentido de garantir bases de sustentação para a implantação do regime ditatorial fora bem sucedida. 188 E se houve continuidade entre a Revolução de 1930 e o Estado Novo, também houve rupturas. O período situado entre os dois acontecimentos foi marcado por disputas de projetos e por um processo constante de depuração e realinhamento das elites civis e militares do país. Manifesto de Armando de Sales Oliveira Não é possível que o Exército e a Marinha fiquem indiferentes diante da injustiça que, com o amparo do seu nome, se comete contra esse povo. Marchávamos para as eleições, na mais bela das contendas políticas. Dividia-se a opinião democrática em duas correntes poderosas, mas essa divisão, longe de enfraquecer, robusteceria o organismo nacional. À medida que se aproximava o pleito, as massas adquiriam aspectos cada vez mais vivos de boa saúde moral. As suas esperanças transformaram-se, entretanto, da noite para o dia, em lúgubres apreensões. Generaliza-se a convicção de que não haverá eleições em 3 de janeiro. Multiplicamse com engenho fértil os pretextos de não cumprir a obrigação constitucional. Na sombra em que os comunistas urdem seus planos de conquista, agem igualmente outros homens que, decretando por conta própria a falência da democracia brasileira nas vésperas do dia em que ela ia oferecer a prova insofismável de sua vitalidade, procuram converter os meios de extermínio, usados contra o bolchevismo, em armas de destruição do regime. (...) A despeito dos atos notórios, que se precipitam para o desfecho fatal, eu ainda confio. Confio na palavra dos chefes militares, que assumiram compromissos de honra com a nação. Ao Exército e à Marinha cumprirá montar guarda às urnas e velar por que o país obtenha nelas um governo de autoridade – de irrecusável autoridade moral, ao qual darão depois o seu firme apoio, não só para a luta contra o comunismo, como para a obra de organização do Brasil. Manifesto de Armando de Sales Oliveira, em 8 de novembro de 1937. Apud Hélio Silva. 1937: todos os golpes se parecem. O ciclo de Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. p. 586-589. Referências Bibliográficas BRANDI, Paulo. Vargas. Da vida para a história, Ed. Zahar, Rio de Janeiro: 1983. CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política. 1930-1945. In: A Revolução de 30. Seminário Internacional. Brasília: Ed. UnB, 1988. D’ARAÚJO, Maria Celina. A Era Vargas. Ed. Moderna, São Paulo, 1997. DICIONÁRIO Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930. Coord. Alzira Abreu, Israel Beloch, Fernando Lattman-Weltman e Sergio Tadeu de Niemeyer Lamarão. 2 ed. rev. e atual. Ed. FGV, Rio de Janeiro, 2001, 5 v. il. OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta; GOMES, Ângela Maria de Castro; Estado Novo: ideologia e poder. Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1982. PANDOLFI, Dulce. Os anos 1930: as incertezas do regime. In FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida (orgs). O Brasil republicano. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003, vol., 2. PANDOLFI, Dulce e GRYNSZPAN, Mário. Da Revolução de 30 ao Golpe de 37: a depuração das elites. Revista de Sociologia e Política. UFPR, 1997, n. 9, p. 7- 23. O Golpe do Estado Novo (1937) CAMARGO, Aspásia et al. O golpe silencioso. As origens da República Sindicalista. Ed. Rio Fundo, Rio de Janeiro, 1989. 189 A Ação Integralista Brasileira e o Levante de 1938 Paulo Brandi Cachapuz À 190 s vésperas do golpe de novembro de 1937, milhares de militantes da Ação Integralista Brasileira (AIB) participaram de um grande desfile no Rio de Janeiro, comandado pelo líder máximo do movimento, Plínio Salgado. Organizados em colunas e com o uniforme de camisas verdes, os integralistas marcharam da Praça Mauá até o Palácio Guanabara, onde prestaram homenagem ao presidente Getúlio Vargas. De um balcão do palácio, Vargas prestigiou o desfile, recebendo a saudação Anauê, repetida três vezes pelos manifestantes. À noite, Plínio Salgado retirou sua candidatura às eleições presidenciais, marcadas para janeiro de 1938, anunciando apoio ao chefe do governo e às forças armadas “na luta contra o comunismo e a democracia anárquica, e para proclamar os princípios de um novo regime”. Dez dias depois, Vargas promoveu de fato a mudança do regime. Apoiado pelos chefes militares, o presidente instaurou a ditadura do Estado Novo, sem encontrar praticamente nenhuma resistência. Os integralistas esperavam participar do novo poder: tinham contribuído para o cenário do golpe e contavam com vários simpatizantes na cúpula civil e militar do governo. Entretanto, Getúlio logo tratou de se desvencilhar da AIB, ignorando os compromissos estabelecidos com Plínio Salgado, que estivera o tempo todo a par das articulações golpistas. Em dezembro de 1937, o ditador oficializou a dissolução dos partidos políticos, atingindo diretamente a AIB ao proibir o funcionamento de sociedades civis com mesma denominação com que haviam se registrado como partidos políticos. Era o começo do fim da mais importante organização de inspiração fascista criada no Brasil. Marginalizados por Vargas, os integralistas perderam o prumo político e, com a ajuda de oposicionistas liberais, passaram a tramar a derrubada do governo. Como veremos adiante, a desastrada tentativa de assalto ao poder em maio de 1938 selou o destino do movimento integralista. A AIB foi fundada em São Paulo em outubro de 1932 pelo escritor e jornalista Plínio Salgado e outros intelectuais. Em seu curto período de existência, chegou a reunir pelo menos duzentos mil adeptos, transformando-se De imediato, a AIB arregimentou o apoio de movimentos dispersos de orientação fascista, como a Legião Cearense do Trabalho e o Partido Nacional Sindicalista. O manifesto integralista de Plínio Salgado também impressionou favoravelmente figuras influentes do pensamento católico, como Alceu Amoroso Lima, secretário geral da Liga Eleitoral Católica (LEC). O movimento cresceu rapidamente em São Paulo, no Distrito Federal, em Minas Gerais e em cidades do Nordeste e do Sul com a realização das chamadas “bandeiras integralistas” lideradas por Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale. Autor de várias obras de cunho anti-semita, Gustavo Barroso encabeçaria a corrente da AIB mais próxima do nazismo alemão. Miguel Reale também se distinguiu como teórico integralista, inspirando-se sobretudo na experiência italiana e portuguesa. Em 1934, a AIB adotou rígida estrutura hierarquizada composta por secretários de departamentos nacionais, chefes provinciais, subordinados ao chefe supremo e perpétuo, Plínio Salgado, e uma rede de órgãos destinados a enquadrar seus militantes de base. Essa estrutura seria remanejada em 1936 com a incorporação de novos organismos como a Câmara dos Quarenta, a Câmara dos Quatrocentos e a Corte do Sigma, órgão supremo. A AIB representou um dos elementos diferenciais do processo de reorganização política que marcou a transição do Governo Provisório para o governo constitucional de Vargas. Distinguiu-se dos partidos tradicionais por um novo gênero de ativismo político de forte entonação ideológica que seduziu elementos das camadas médias urbanas, como intelectuais, profissionais liberais, funcionários públicos e militares. Membros da elite política e empresarial também aderiram ou professaram simpatia pela AIB, valendo destacar ainda as fortes raízes do movimento nas comunidades italiana e alemã, notadamente no sul do país. No início de 1935, surgiu à esquerda uma resposta mais organizada contra o espectro do fascismo representado pela AIB. Comunistas, socialistas e militares egressos do movimento tenentista, descontentes com os rumos do governo Vargas, formaram uma frente de oposição denominada Aliança Nacional Libertadora (ANL), seguindo o modelo das frentes populares A Ação Integralista Brasileira e o Levante de 1938 no primeiro partido com uma organização de massa implantada em todo o país. Não se definiu de imediato como organização partidária, mas movimento “cívico-cultural” com ideário nacionalista nitidamente influenciado pelos partidos fascistas em ascensão na Europa. Adotou o lema “Deus Pátria e Família”, identificando o liberalismo, o comunismo e o capitalismo financeiro internacional como principais inimigos da nação. Nas matrizes européias, buscou inspiração para seus rituais e ícones: o uniforme de camisas verdes e gravatas pretas, a letra grega sigma para indicar a idéia de que o movimento aspirava a ser um “somatório” e a saudação com a palavra indígena Anauê e o braço direito levantado. 191 A Ação Integralista Brasileira e o Levante de 1938 192 antifascistas em voga na Europa. A ANL congregou rapidamente milhares de adeptos em todo o país, mas sua existência legal foi bastante efêmera: em julho de 1935, o governo ordenou o fechamento da entidade com base na nova Lei de Segurança Nacional. Julho de 1937. Vargas (dir.) saúda Plínio Salgado, que é candidato às eleições do ano seguinte. Arq. Nac. Plínio Salgado aplaudiu a dissolução da ANL e a perseguição contra seus militantes, que contou aliás com a colaboração das milícias integralistas. De todo modo, por pressão da minoria parlamentar na Câmara, sua organização correu sério risco também ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional. Às vésperas da revolta comunista de novembro de 1935, a Câmara aprovou uma moção de condenação da AIB. Ao tomar conhecimento do levante comunista, Salgado telegrafou a Vargas, colocando à sua disposição cem mil “camisas verdes” para o combate aos rebeldes. Dominada sem dificuldade pelas tropas legalistas, a revolta beneficiou claramente os integralistas, além de reforçar as tendências autoritárias do governo Vargas. Em março de 1936, Salgado transformou a AIB em partido político com o intuito de concorrer às eleições para sucessão de Vargas. Meses depois, a maré montante do integralismo sofreu um pequeno refluxo em virtude de medidas repressivas adotadas por alguns governadores, como Juraci Magalhães (Bahia) e Lima Cavalcanti (Pernambuco). Plínio formalizou sua candidatura às eleições presidenciais em junho de 1937. Na mesma época, Vargas recebeu uma comitiva de altos dirigentes da AIB, declarando de público que o movimento integralista o “impressionava satisfatoriamente”. Durante a campanha, Salgado insistiu no perigo comunista, denunciando a infiltração de “agentes de Moscou” entre os que apoiavam as candidaturas de José Américo de Almeida e Armando de Sales Oliveira. Paralelamente, Vargas também agitava os meios políticos com o espectro do comunismo, intensificando as articulações para a mudança do regime, em comum acordo com os generais Eurico Gaspar Dutra (ministro da Guerra) e Góes Monteiro (chefe do Estado-Maior do Exército). Em 30 de setembro, Dutra anunciou a descoberta de uma trama comunista para derrubada do governo, esboçada no Plano Cohen. Tratava-se na verdade de documento elaborado pelo capitão Olímpio Mourão Filho, chefe do serviço secreto da AIB. Tinha sido preparado a pedido do próprio Plínio Salgado para “estudo interno” sobre a ação dos comunistas e a reação dos integralistas numa insurreição simulada. Apropriado pelo general Góes Monteiro, a ameaça sinistra do Plano Cohen foi utilizada como pretexto para acelerar o golpe. A Ação Integralista Brasileira e o Levante de 1938 Plínio foi conivente com a farsa montado pelo governo. Já estava comprometido com a conspiração golpista, tendo recebido de Francisco Campos uma cópia do projeto da nova constituição a ser outorgada ao país. Em meados de outubro, teve um encontro secreto com Vargas. Segundo sua versão, o presidente deixou subentendido que o integralismo seria a base do novo regime, prometendo ainda a nomeação de um dirigente da AIB para o ministério da Educação. Foi nesse contexto que Plínio promoveu o grande desfile dos “camisas verdes” em 1º de novembro de 1937, passado em revista pelo presidente e outras autoridades do governo. Como assinalou o historiador Hélgio Trindade, a marcha tinha um sentido ambíguo: tanto poderia ser de apoio como de ameaça a Vargas. Desfechado o golpe, Getúlio deixou claro que não tinha intenção de partilhar o poder com os integralistas, nem de transformar a AIB em partido único do regime, à semelhança dos países fascistas europeus. O rompimento com a AIB e as primeiras medidas repressivas contra núcleos e jornais integralistas no final de 1937 compeliram vários líderes do movimento a planejar uma revolta armada. Salgado aprovou a preparação do levante, mas não assumiu qualquer responsabilidade pessoal. A conspiração recebeu o apoio do grupo liberal, articulado por Otávio Mangabeira e o coronel Euclides Figueiredo, e a ajuda financeira do ex-governador gaúcho Flores da Cunha. 193 A primeira tentativa de levante ocorreu em 11 de março de 1938 no Distrito Federal e no estado do Rio. Chefiada por Belmiro Valverde, revelou-se um fiasco completo. Houve apenas um início de ação na Marinha, importante reduto integralista, e a invasão de uma estação de rádio, logo repelida pela polícia. Houve muita publicidade em torno da revolta: os jornais denunciaram os planos de extermínio do Sigma e a apreensão de três mil punhais marcados com a cruz gamada na residência de Plínio Salgado. Entretanto, o governo não tomou medidas rigorosas para evitar um novo levante. A conspiração recomeçou com engajamento de vários chefes militares integralistas e de oficiais que não pertenciam a AIB, como o tenente Severo Fournier. Na madrugada de 11 de maio, os integralistas tentaram um novo levante, desfechando um ataque ao Palácio Guanabara e diversas operações armadas no Distrito Federal. O assalto ao palácio presidencial foi empreendido por Severo Fournier à frente de 30 homens. O chefe da guarda palaciana, um militar integralista, facilitou a missão de Fournier, abrindo o portão externo do Guanabara aos invasores. Depois de rápida discussão seguida Reunião do Movimento Integralista. Cor. da Manhã A Ação Integralista Brasileira e o Levante de 1938 194 A repulsa pelo atentado de 11 de maio Existia, até pouco tempo, um credo político que disfarçava os seus apetites de sinistro predomínio com as invocações mais caras e arraigadas em nossas consciências: - DEUS, PÁTRIA e FAMÍLIA. Mas a impostura foi desmascarada. Em nome de Deus, que ordena o amor e o perdão aos próprios inimigos, ninguém pode assaltar e trucidar; a Pátria exige a união de todos os brasileiros, empenhados em trabalhar pelo seu engrandecimento; e a família é incompatível com a violação dos lares adormecidos, maculados pela violência e a brutalidade de assassínios. A repulsa aos simuladores e aos nefandos processos foi, felizmente, imediata e edificante. As forças armadas tiveram exemplar conduta, mantendo ação coesa e disciplinada, e todas as classes exprimiram, inequivocamente, a sua solidariedade ao Governo Nacional. A vossa manifestação é mais uma prova da unanimidade dos sentimentos do povo brasileiro. Os inimigos da nossa segurança e do progresso hão de ter o merecido castigo. A repulsa pelo atentado de 11 de maio, discurso de Getúlio Vargas pronunciado em 13 de maio de 1938. A Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 19381945. v. V, p. 211-213. de luta, quatro soldados da guarda foram mortos. Os rebeldes não chegaram entretanto a invadir o interior do prédio, precariamente defendido por Vargas, um punhado de parentes e alguns auxiliares, armados apenas de revólveres de pequeno calibre. Fournier e seus homens cortaram as saídas e a eletricidade, permanecendo à espera de reforços. Durante várias horas, Vargas ficou praticamente à mercê dos atacantes, enquanto outros grupos de assalto integralistas, com efetivos menores, lançavam um plano de ataque a edifícios públicos, estações de rádio e às casas particulares de Dutra e outros generais. Essas operações fracassaram na maior parte. Os revoltosos chegaram a tomar o Ministério da Marinha e o cruzador Bahia, para onde Getúlio deveria ser conduzido preso, mas acabaram se rendendo pela manhã. O assalto ao palácio presidencial permanece envolto em mistério. Ao longo da madrugada, o Guanabara permaneceu sitiado por Fournier e seus homens sem que as autoridades policiais e militares conseguissem reunir efetivos para socorrer o presidente. Os atacantes se dispersaram com a chegada de um pequeno contingente militar comandado pelo general Dutra. Em seguida, chegou o coronel Osvaldo Cordeiro de Farias, à frente de uma tropa da Polícia Especial, “pacificamente e sem dar um tiro”, segundo relatou Alzira Vargas do Amaral Peixoto no livro de memórias sobre o pai. Fournier já havia fugido. Os demais rebeldes se renderam. Oito integralistas foram fuzilados nos jardins do palácio. Após o fracasso levante, cerca de 1.500 integralistas foram presos só no Rio de Janeiro. Entretanto, a repressão não foi tão drástica como seria de esperar. Enquanto a polícia perseguia a arraia-miúda, desenrolava-se uma farsa em relação aos chefes, notadamente Plínio Salgado dado como “desaparecido”, mas morando em endereço conhecido das autoridades Plínio foi preso em janeiro de 1939, por insistência de Dutra, partindo em seguida para o exílio em Portugal, onde manteve uma posição de indefectível apoio ao Estado Novo. Severo Fournier passou um mês asilado na embaixada da Itália, mas acabou concordando em se entregar às autoridades, sendo sentenciado a dez anos de prisão. Sofrendo de tuberculose, foi torturado e submetido a péssimas condições carcerárias. O levante integralista afetou até certo ponto as relações diplomáticas entre o Brasil e a Alemanha. Após a prisão de nove alemães acusados de cumplicidade com a revolta, a repressão a organizações nazistas no sul do país tornou-se mais intensa, provocando protestos indignados do embaixador Karl Ritter. Desde o Carta de Plínio Salgado a Getúlio Vargas A maior de todas as surpresas que tive em 10 de novembro foi o discurso de V. Exa. Nessa noite fiquei completamente convencido de que estávamos alijados desde o primeiro dia. Não houve uma palavra de carinho para o Integralismo ou para os integralistas. Entretanto era um movimento e eram homens que tudo fizeram pela Nação e que sempre foram leais para com V. Exa. nos momentos mais difíceis. Por todo o país, ouvindo o rádio, um milhão e meio de brasileiros baixavam a cabeça amargamente. Apressei-me, leal à palavra empenhada, em extinguir a feição política da Ação Integralista Brasileira. O único partido nacional, o único que estava em consonância com o Corporativismo do Estado Novo, extinto, para só viver como sociedade cultural, esportiva e beneficente. Isso antes de qualquer lei, de qualquer decreto. O integralismo iria continuar, sob essa forma, conforme lhe prometeram os responsáveis pela situação, prestando os serviços que só ele até então tinha prestado ao país. Eu não supunha, porém, que o que se arquitetava contra o Integralismo fosse tão grande. (...) Em todas as rodas de políticos da cidade só se falava então no “tombo” que V. Exa. nos dera; no novo “pirarucu” que pescara; na rasteira que V. Exa. passara no Integralismo, como se tais proezas, atribuídas a um homem que todos os brasileiros devem obrar como honrado e dedicar todo o respeito, não ferissem mais V. Exa. do que ao Integralismo. Carta de Plínio Salgado a Getúlio Vargas, de 28 de janeiro de 1938. Apud Hélio Silva. 1938: terrorismo em campo verde. O ciclo de Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. p. 374-375. A Ação Integralista Brasileira e o Levante de 1938 desde março. Cerca de 300 integralistas foram condenados pelo Tribunal de Segurança Nacional, mas Plínio, Gustavo Barroso e outros próceres do desbaratado movimento foram excluídos do processo. 195 A Ação Integralista Brasileira e o Levante de 1938 196 início do ano, o embaixador vinha se batendo contra a política de assimilação das colônias estrangeiras empreendida pelo Estado Novo, em particular a proibição de partidos políticos estrangeiros e de jornais e revistas em língua estrangeira. Ritter desafiou essas exigências, continuando a dar cobertura a agentes nazistas. Em setembro, foi declarado persona non grata pelo Itamarati e obrigado a deixar o país. Esse incidente diplomático foi logo superado. Não chegou a comprometer as relações políticas e econômicas entre os dois países, mesmo porque naquele momento havia uma forte corrente dentro do governo brasileiro favorável ao estreitamento de relações com a Alemanha. O fracassado levante de 1938 representou a pá de cal do integralismo na cena política nacional e também a única reação armada ao regime do Estado Novo até a deposição de Vargas pelos militares em 1945. Bibliografia BRANDI, Paulo. Vargas da vida para a história. 2ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1983. CARONE, Edgard. O Estado Novo (1937-1945). São Paulo: Difel, 1977. DICIONÁRIO Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Coord. Alzira Abreu, Israel Beloch, Fernando Lattman-Weltman e Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão. 2 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001 (Verbetes Integralismo, Plínio Salgado e Revolta integralista). FAUSTO, Boris. História do Brasil. 5ª ed. São Paulo: Editora da USP; Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1997. MAIO, Marcos Chor e CYTRYNOWICZ, Roney. Ação Integralista Brasileira: um movimento fascista no Brasil (1932-1938). In FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida (orgs). O Brasil republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, vol. 2. PEIXOTO, Alzira Vargas do Amaral. Getúlio Vargas, meu pai. Porto Alegre: Globo, 1960. SILVA, Hélio. 1938, terrorismo em campo verde. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971 TRINDADE, Hélgio. Integralismo (O fascismo brasileiro na década de 1930). São Paulo: Difel, 1974. O Brasil na Segunda Guerra Mundial Sérgio Lamarão A eclosão da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939, não alterou, num primeiro momento, a política de eqüidistância mantida pelo presidente GetúlioVargas diante dos Estados Unidos e das Alemanha, as duas maiores potências econômicas e militares da época. Contudo, a despeito de sua posição de neutralidade, em julho de 1941, o governo brasileiro autorizou a utilização de suas bases aeronavais, localizadas no Norte e Nordeste, pelos norte-americanos, que na época também se mantinham neutros em relação ao conflito que colocava em campos opostos, França e Inglaterra (os Aliados) e Alemanha, Itália e Japão (o Eixo). O ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de dezembro, precipitou a entrada dos Estados Unidos na guerra contra o Eixo, forçando uma definição mais concreta do governo brasileiro. No próprio dia 7, Vargas convocou o ministério, que, por unanimidade, declarou a solidariedade brasileira aos Estados Unidos. Vargas, atendendo a pedido do presidente norte-americano Franklin Roosevelt, permitiu que os EUA enviassem pessoal técnico às bases aéreas de Belém, Natal e Recife. Com a entrada dos Estados Unidos na guerra, Natal passou a ter papel fundamental no transporte de homens e materiais para o teatro de operações do norte da África, e Recife tornou-se o principal centro de comando contra a guerra submarina na região. Em janeiro de 1942, realizou-se no Rio de Janeiro a III Conferência de Chanceleres das Repúblicas Americanas para discutir a situação internacional. O objetivo dos Estados Unidos, contando com o apoio explícito do Brasil, era garantir o rompimento unânime e imediato das relações diplomáticas dos países latino-americanos com o Eixo, mas, devido à resistência da Argentina, conseguiu-se apenas aprovar uma moção que recomendava o rompimento de relações. No dia 28, a despeito das resistências do chefe do Estado-Maior do Exército, general Pedro Aurélio Góis Monteiro, e o ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, Vargas determinou o rompimento de relações diplomáticas e comerciais do Brasil com a Alemanha, a Itália e o Japão. 197 O Brasil na II Guerra Mundial 198 No mês seguinte, começou uma série de torpedeamentos de navios mercantes brasileiros por submarinos alemães que operavam no litoral do país. Entre fevereiro e agosto 19 embarcações foram afundadas. Até o final do conflito, em 1945, mais 22 navios teriam o mesmo destino, provocando, no total, a morte de mais de 1.400 pessoas. Nesse momento foi de fundamental importância a ação de patrulhamento do Atlântico Sul realizada pela Força Aérea Brasileira (FAB), organizada no âmbito do recém-criado Ministério da Aeronáutica, com base nas já existentes aviação militar (do Exército) e aviação naval (da Marinha). Os sucessivos afundamentos de navios causaram uma crescente indignação popular a favor da entrada do Brasil no conflito ao lado dos Aliados, que culminou em 18 de agosto, quando grandes manifestações ocuparam as ruas das principais cidades brasileiras, reivindicando a declaração de guerra contra o Eixo. No Rio, o cortejo terminou no palácio Guanabara, onde discursaram Vargas e o ministro das Relações Exteriores Osvaldo Aranha. No dia 21, depois de se comunicar com Roosevelt, Vargas autorizou Aranha a comunicar aos governos da Alemanha e da Itália que os atos de guerra praticados contra o Brasil tinham criado um estado de beligerância. No dia 31, foi decretado o estado de guerra em todo o território nacional. No plano militar, o governo decretou imediatamente a mobilização geral do país, tratando prioritariamente de assegurar a defesa do litoral. Em setembro, a Marinha brasileira, quase toda em operação no Nordeste, foi posta sob o comando do almirante norte-americano Jonas Ingram. Em novembro, a Comissão Mista de Defesa Brasil-Estados Unidos acertou as bases para a defesa do Nordeste brasileiro. O Brasil assumia a defesa de seu território e a proteção das instalações militares. A defesa marítima, coordenada por Ingram, seria responsabilidade conjunta de ambas as nações. A cidade de Natal foi escolhida para sede do Comando de Transporte Aéreo norte-americano e seu aeroporto, construído pelos norte-americanos, logo tornou-se um dos mais movimentados do mundo. Iniciaram-se então as conversações sobre o envio de um contingente brasileiro à frente de combate. A formação de uma força expedicionária correspondia a um duplo projeto político de Vargas: fortalecer as Forças Armadas no plano interno e aos olhos dos vizinhos, em especial a Argentina, e com isso garantir a continuação do apoio militar ao regime do Estado Novo; e assegurar uma posição de importância para o Brasil no cenário internacional, na qualidade de aliado especial dos Estados Unidos. Entretanto, as vitórias aliadas no norte da África, em novembro de 1942, reduziram o peso estratégico do Nordeste brasileiro e, por conseguinte, as possiblidades de reequipamento das Forças Armadas brasileiras. Preocupado, Vargas insistiu com Roosevelt, quando este visitou Natal em janeiro de 1943, no fornecimento do material bélico prometido pelos Estados Unidos e manifestou o interesse brasileiro em tomar parte ativa nos combates. O Brasil na II Guerra Mundial A discussão do envio de tropas brasileiras, travada na Comissão Mista de Defesa, arrastou-se por algum tempo. Cada etapa era alvo de complicadas negociações entre a cúpula militar norte-americana e as duas alas do governo brasileiro – a pró-Aliados e a pró-Eixo –, entre as quais Vargas manobrava. Em maio, ficou acertada a criação de uma força expedicionária composta de três divisões de infantaria, órgãos de apoio (artilharia, engenharia, comunicações, saúde etc.) e forças aéreas correspondentes. Apenas a 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (1ª DIE) – conhecida como Força Expedicionária Brasileira (FEB) – e seus órgãos de apoio foram efetivamente organizados, sendo colocados, a partir de outubro de 1943, sob o comando do general de divisão João Batista Mascarenhas de Morais. No final do ano, foi decidido que o destino da 1ªDIE seria o teatro de operações do Mediterrâneo, mais precisamente a Itália. Em janeiro de 1944, Mascarenhas de Morais nomeou o coronel Floriano de Lima Brayner para a chefia do Estado-Maior da FEB e autorizou a concentração de todas as tropas vinculadas à 1ª DIE nas imediações do Rio de Janeiro, operação concluída na segunda quinzena de março. Teve então início o período final de treinamento do contingente em território brasileiro e a formação de cinco escalões, de cerca de cinco mil homens cada um, que seriam enviados gradualmente para a Europa. A data dos embarques, o trajeto dos navios e seu destino foram mantidos em sigilo para dificultar a ação dos aviões e submarinos inimigos. Em 24 de maio, uma grande massa popular concentrada no centro da capital, assistiu o discurso de despedida de Getúlio aos 25 mil soldados expedicionários. No dia 30 de junho de 1944, o 1º Escalão da FEB, comandado pelo general-de-brigada Zenóbio da Costa, embarcou no navio norte-americano General Mann, levando a bordo o general Mascarenhas de Morais. Os primeiros contingentes brasileiros desembarcaram em Nápoles, em meados de julho. Em agosto, foram incorporados ao V Exército norte-americano, estacionado na região da Tarquínia, passando a operar como uma grande unidade, sob o comando do general Mark Clark. A partir de setembro, tiveram início as missões de combate. No dia 15, os brasileiros substituíram uma força norte-americana que estava sendo desligada do IV Corpo do V Exército. No dia seguinte, ocuparam Massarosa, Monte Carrunale e Il Monte e, posteriormente, Camaiore e Monte Prano. Nessa fase da guerra, o objetivo dos Aliados na Itália era manter o Exército alemão sob permanente pressão, visando a impedir que o comando nazi-fascista transferisse para a França algumas divisões altamente combativas. Após a conquista de Monte Prano, a FEB foi transferida para o vale do rio Sercchio, com o objetivo de 199 09.04.1942. O Presidente recebe uma comissão de técnicos norteamericanos. Ag. Nac. O Brasil na II Guerra Mundial ficarem mais próximas de Castelnuovo di Garfagnana, local de grande interesse estratégico por ser uma das vias de acesso à planície do rio Pó. 200 A essa altura, seus efetivos já contavam com os reforços dos 2º e 3º escalões, comandados, respectivamente, pelos generaisde-brigada Osvaldo Cordeiro de Farias e Olímpio Falconière da Cunha, chegados à Itália no início de outubro. Também nos primeiros dias de outubro, desembarcou em território italiano o 1º Grupo de Aviação de Caça (1º GAC). Composto por cerca de 400 homens, entre eles o filho mais velho de Getúlio, o tenente médico Lutero Vargas, sob o comando do major Nero Moura, o 1º GAC integrou-se ao 350º Regimento de Caça da Força Aérea dos Estados Unidos, vindo a participar ativamente da campanha contra as forças alemãs que operavam no vale do rio Pó. Tropas brasileiras chegam à Europa (8 junho de 1944). Os combates começarão em setembro. O Globo No final de outubro, as tropas brasileiras sofreram seu primeiro revés ao serem rechaçadas das proximidades de Castelnuovo pelos alemães. Em novembro, em obediência à determinação do Allto Comando Aliado, a 1ª DIE chegou ao vale do Rio Reno, passando a ocupar a linha de frente do V Exército aliado, em substituição a tropas norte-americanas. O principal objetivo militar agora era a tomada de Castelnuovo, o que só seria possível depois de se desalojar os alemães de Monte Castelo. Essa região era defendida pela 232ª Divisão do Exército alemão, que lançava sistematicamente panfletos em português aconselhando os brasileiros a voltar e ridicularizando a tutela exercida pelo norte-americanos sobre a FEB. As primeiras tentativas de conquistar Monte Castelo – realizadas nos dias 24, 25 e 29 de novembro pela Força Tarefa 45, norte-americana, com apoio de efetivos brasileiros – fracassaram. Baseado na avaliação de que o fracasso se devera a uma preparação inadequada e insuficiente e à falta de coordenação entre as diferentes unidades, que nunca haviam atuado em conjunto, Mascarenhas de Morais pleiteou ao general Mark Clark o cumprimento dos acordos firmados em setembro, pelos quais as tropas da FEB não seriam desmembradas e permaneceriam sob comando direto de oficiais brasileiros. Aceita as solicitações, no dia 12 de dezembro a FEB desfechou um ataque contra Monte Castelo, mais uma vez sem sucesso. E dessa vez o revés significou um elevado número de baixas: 145 soldados, entre mortos e feridos. Dias depois, ficou resolvido que a divisão brasileira seria temporariamente dispensada de realizar novos ataques, integrando-se ao conjunto das forças aliadas e já incorporando o 4º Escalão de pracinhas, desembarcado em Nápoles no início de dezembro. Começou então um período de estabilização, caracterizado pela manutenção e fortalecimento das posições conquistadas. De volta à Itália no fim de janeiro, Lima Brayner transmitiu a confiança de Vargas nos chefes da FEB, que nesse momento se dedicavam ao adestramento das tropas para uma nova campanha, na qual caberia à divisão brasileira, em íntima associação com a 10ª Divisão de Montanha norte-americana, capturar Monte Castelo. A nova operação contra Monte Castelo teve início em 19 de fevereiro, reinaugurando os combates cessados em dezembro. Monte Castelo foi conquistado em 21 de fevereiro, seguindo-se a conquista de La Serra e a tomada de Monte della Torraccia pelos norte-americanos. No dia seguinte, desembarcou em Nápoles o último escalão da FEB. Em 3 de março foi iniciada a ofensiva no vale do rio Marano pela 10ª Divisão de Montanha norte-americana e pelos 6º e 11º Regimentos de Infantaria brasileiros. No dia 5 Castelnuovo foi capturado. Iniciaram-se então os preparativos para a Operação Primavera, cujas prioridades eram a conquista de Bolonha, a ocupação do vale do rio Pó e o bloqueio do passo de Brenner, importante ponto de passagem para o resto da Europa. A operação prolongou-se de 5 de abril a 2 de maio, cobrindo todo o norte da Itália. Sua ação principal teve início no dia 14 de abril, com a participação de duas divisões norte-americanas e uma brasileira. As tropas brasileiras conquistaram Montese no próprio dia 14 e os norte-americanos ocuparam Tole e Vergato dois dias depois, garantindo o acesso à planície do Pó. Dando prosseguimento à ofensiva, no dia 27 os brasileiros tomaram Collecchio, impedindo assim a retirada dos alemães em direção a Parma. Dois dias depois Fornovo caiu e capitularam a 148ª Divisão e os remanescentes da 90ª Divisão Motorizada alemã, assim como a Divisão Itália. No dia 2 de maio, todos os exércitos inimigos que operavam na Itália se renderam. Mascarenhas de Morais recebeu então instruções para concentrar a maior parte das tropas brasileiras em Alessandria e Piacenza a fim de manter a região sob ocupação militar Rio de Janeiro, julho de 1945, as tropas da FEB voltam da guerra. Arq. Nac. O Brasil na II Guerra Mundial Em janeiro de 1945, o coronel Lima Brayner viajou ao Brasil em missão oficial, tornando-se portador de duas cartas de Mascarenhas de Morais, uma para Vargas e outra para Dutra, solicitando que o escalão seguinte, de cerca de cinco mil homens, fosse o último a ser enviado, como de fato aconteceu. Brayner encontrou um ambiente conturbado pelo desgaste do Estado Novo e o pessimismo em relação à atuação da FEB. A opinião pública, apesar da censura, mostrava-se alarmada com notícias de pesadas baixas entre os pracinhas brasileiros. Segundo ele, Vargas recebia informações deformadas da frente de batalha, como parte de uma articulação voltada para destituir Mascarenhas de Morais do comando da FEB. 201 O Brasil na II Guerra Mundial Reunião dos chanceleres no Rio de Janeiro (...) esta Conferência é a maior afirmação histórica da imortalidade da democracia, porque os seus resultados não se apresentam como a vontade de um só, e sim como a vontade de todos. Nenhuma Nação fez sua a vontade de um outro povo, mas todas as Nações da América hoje têm uma só vontade. Esta vitória da democracia sobre si mesma é a preliminar básica e a credencial maior com que a América se apresenta para assegurar a todo mundo a liberdade e o bem-estar. (...) A democracia está viva. A democracia sempre viverá, porque na América ela não associa, regula ou protege interesses, mas irmana as consciências para a obra do bem e da paz entre os americanos. Discurso de Osvaldo Aranha, presidente da Terceira Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, em 28 de janeiro de 1942. Apud O Brasil na Segunda Guerra Mundial. O Globo Expedicionário. Rio de Janeiro: Agência O Globo, 1985. p. 160-161. 202 Confiança do Brasil no seu Corpo Expedicionário O espírito americanista que preside as nossas determinações é o da restauração dos valores humanos, é o da liberdade e da justiça. Não esqueci, nem poderei esquecer jamais, o entusiasmo, a chama cívica que ardia na exaltação e nas vozes do nosso povo quando pedia guerra ao agressor. Chegou o momento de transformar em atos os nossos sentimentos de repulsa e indignação. Para tanto nos preparamos, repelindo os ataques traiçoeiros do inimigo e adestrando-nos no uso dos modernos instrumentos de guerra. Estareis tão bem armados e supridos como qualquer dos melhores soldados em luta. Com o vosso ânimo varonil e as vossas excelentes condições de disciplina, treino e armamento, a Nação permanecerá confiante, porque sabe que desempenhareis a vossa missão. Confiança do Brasil no seu Corpo Expedicionário, discurso de Getúlio Vargas pronunciado em 24 de maio de 1944. A Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938-1945. v. X, p. 308. Entre setembro de 1944 e maio de 1945, a FEB percorreu cerca de 400km, capturou quase 200 vilas e cidades. Seus efetivos alcançaram um total de 25.334 homens, 15.069 dos quais utilizados em combate. Desse total, 451 soldados morreram nos campos italianos. O número de feridos em combate chegou a 1.145, tendo sido registrados ainda 23 desaparecidos e 35 prisioneiros. Foram feitos 20.573 prisioneiros entre soldados alemães e italianos. A ocupação militar realizada pela divisão brasileira estendeu-se até 3 de junho, quando começou o retorno para o Brasil. Foram novamente organizados cinco escalões de viagem. O primeiro escalão da FEB e da FAB desembarcou no Rio de Janeiro no dia 18 de julho. Ao desfilarem na avenida Rio Branco, os expedicionários foram aplaudidos calorosamente por milhares de pessoas. Aviões da FAB participaram do desfile, fazendo acrobacias e vôos rasantes. A Força Expedicionária Brasileira foi oficialmente extinta em 1º de janeiro de 1946. No limiar de uma nova era Atravessamos, nós, a Humanidade inteira transpõe, um momento histórico de graves repercussões, resultante de rápida e violenta mutação de valores. Marchamos para um futuro diverso do quanto conhecíamos em matéria de organização econômica, social ou política, e sentimos que os velhos sistemas e fórmulas antiquadas entram em declínio. Não é, porém, como pretendem os pessimistas e os conservadores empedernidos, o fim da civilização, mas o início, tumultuoso e fecundo, de uma era nova. (...) A ordenação política não se faz, agora, à sombra do vago humanitarismo retórico que pretendia anular as fronteiras e criar uma sociedade internacional sem peculiaridades nem atritos, unida e fraterna, gozando a paz como um bem natural e não como uma conquista de cada dia. Em vez desse panorama de equilíbrio e justa distribuição dos bens na Terra, assistimos à exacerbação dos nacionalismos, as nações fortes impondo-se pela organização baseada no sentimento da Pátria e sustentando-se pela convicção da própria superioridade. Passou a época dos liberalismos imprevidentes, das demagogias estéreis, dos personalismos inúteis e semeadores de desordem. À democracia política substitui a democracia econômica, em que o poder, emanado diretamente do povo e instituído em defesa do seu interesse, organiza o trabalho, fonte de engrandecimento nacional e não meio e caminho de fortunas privadas. Não há mais lugar para regimes fundados em privilégios e distinções; subsistem, somente, os que incorporam toda a Nação nos mesmos deveres e oferecem, eqüitativamente, justiça social e oportunidades na luta pela vida. No limiar de uma nova era, discurso de Getúlio Vargas, pronunciado a bordo do encouraçado Minas Gerais, em 11 de junho de 1940. A Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938-1945. v. VII, p. 331-334. O Brasil na II Guerra Mundial dos Aliados. No dia 6, a Alemanha assinou a rendição incondicional e a guerra terminou no teatro de operações europeu. 203 Bibliografia O Brasil na II Guerra Mundial BRAYNER, Floriano de Lima. A verdade sobre a FEB; memórias de um chefe de estado-maior na Campanha da Itália (1943-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. 204 DICIONÁRIO Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Coord. Alzira Abreu, Israel Beloch, Fernando Lattman-Weltman e Sergio Tadeu de Niemeyer Lamarão. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. http://www.sentandoapua.com.br/brasil3.htm A Deposição de Vargas em 1945 Renato Lemos A o eclodir, em setembro de 1939, a Segunda Guerra Mundial passa a constituir um fator decisivo da sorte do Estado Novo e do projeto político de Getúlio Vargas, que, com o apoio decisivo das Forças Armadas, havia instaurado a ditadura em 10 de novembro de 1937. O embate entre países do bloco capitalista democrático, em aliança com a União Soviética, e do bloco capitalista nazi-fascista - o Eixo, que une Alemanha, Itália e Japão - tem como cenário principal a Europa, mas é transmitido em ondas para a periferia. No Brasil, neutro por decisão de Vargas anunciada no dia seguinte ao seu início, a guerra potencializa contradições até então represadas pela solidez da ditadura. A posição geográfica, vital para o controle das rotas do Atlântico Sul, e suas dimensões populacionais e econômicas são elementos que levam os Estados Unidos a pressionar o governo brasileiro a assumir uma posição compatível com sua importância geopolítica. Até então, Vargas executara uma política pendular em face dos dois blocos adversários, procurando tirar proveito das rivalidades entre ambos na América Latina em benefício de seu projeto desenvolvimentista. Entretanto, quando as circunstâncias da guerra, após a entrada dos EUA no conflito em dezembro de 1941, já não permitem manter o jogo, Vargas cede às pressões e fecha um acordo que inclui a autorização para a instalação de bases militares norte-americanas no litoral do Nordeste. Internamente, grandes manifestações de massas, onde se destacam estudantes, intelectuais e operários, desafiam a repressão governamental nas principais cidades do país e exigem que Vargas declare guerra ao Eixo. O rompimento das relações diplomáticas é anunciado pelo Brasil ainda em janeiro de 1942, e é acompanhado pela assinatura, em maio, de um acordo políticomilitar secreto com os EUA. O regime ditatorial começa a apresentar fissuras decorrentes de divergências entre membros do governo em relação a assuntos internos. Em fevereiro, 205 16.09.1945. Em campanha política, embarcando para um comício em Santos. No primeiro degrau José Américo de Almeida, tendo à dir. Osvaldo Aranha, Euclides Figueiredo, Neiva Moreira (então jovem repórter) e o jornalista Victor do Espírito Santo. Arq. Nac. A Deposição de Vargas em 1945 206 30.10.1945. José Linhares (2° à esq.) assume a Presidência da República. Ag. Nac. Osvaldo Aranha, ministro das Relações Exteriores e simpático ao bloco antifascista, protesta junto a Vargas contra a ação repressiva da polícia do Distrito Federal. Coordenada pela União Nacional dos Estudantes, realiza-se no Rio de Janeiro, em 4 de julho, uma “Passeata Estudantil Antitotalitária”, que estimula iniciativas análogas em outras cidades. O afundamento de navios mercantes brasileiros por submarinos alemães não deixa a Vargas senão o caminho da declaração de guerra ao Eixo em agosto. O passo seguinte é a decisão de enviar contingentes militares ao teatro de operações na Europa, que não é vista com bons olhos por estadunidenses e britânicos. Ainda assim, a Força Expedicionária Brasileira, formada por cerca de 25 mil homens, começaria a seguir para a Europa em julho de 1944. O crescimento das mobilizações antifascistas e a opção de Vargas pelo alinhamento com os Aliados criam condições para a expansão de tendências de oposição ao regime do Estado Novo, que passam a centrar fogo no “fascismo interno”. Ainda em 1942, o esmagamento da ofensiva germânica na cidade russa de Stalingrado assinala a tendência, que se mostraria irreversível, dos rumos da guerra em favor dos Aliados. A perspectiva de derrota do bloco nazi-fascista é prenúncio de más perspectivas para a ditadura e Vargas passa a buscar por novas bases políticas. O surgimento da seção “Atualidades americanas” no Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio traduz a intenção de apresentá-lo à massa trabalhadora sindicalizada como um líder identificado com a maré democratizante que se avoluma no continente. O ministro do Trabalho, Alexandre Marcondes Filho, é o executor de uma estratégia de ampliação do número de trabalhadores sindicalizados e, principalmente através de programas radiofônicos, apresentação das medidas trabalhistas do regime como uma doação pessoal de Vargas, caracterizado como líder devotado à satisfação das necessidades das massas. Prepara-se Vargas, assim, para um novo cenário em que o voto, e não as baionetas, é a principal moeda de troca entre as forças políticas. Progressivamente, manifestações de oposição ao regime começam a surgir de outros setores da sociedade, incluindo religiosos, empresários e intelectuais. O Manifesto dos Mineiros, assinado por representantes das classes dominantes de Minas Gerais e divulgado em 24 de outubro de 1943, veícula uma exigência branda, é verdade - de restabelecimento da democracia no país. O documento encontra grande repercussão, em especial junto às camadas médias da sociedade brasileira. Embora recorra aos instrumentos de repressão do regime, Vargas aos poucos perde o controle da oposição. A censura à imprensa, um dos pilares do regime ditatorial, começa a cair sem autorização do governo. O mês de fevereiro de 1945 é marcado por grande quantidade de editoriais e matérias que abordam assuntos políticos até então proibidos. Em 28 deste mês, uma entrevista concedida por José Américo de Almeida - um dos candidatos à frustrada eleição presidencial de 1938 - ao Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, é o clímax do processo de recuperação da liberdade de imprensa. Em face das oposições internas e da iminência de derrota definitiva do bloco nazi-fascista na guerra, que reduziria a legitimidade internacional dos regimes ditatoriais, Vargas tenta reassumir a iniciativa política. Ainda em 28 de fevereiro, baixa a Lei Constitucional n. 9, que emenda a Constituição de 1937 e estabelece o prazo de três meses para a fixação da data das eleições gerais no país, admitindo um Parlamento com poderes constituintes. Cedendo a pressões dos EUA, reconhece em 2 de abril - pela primeira vez na história Manifesto aos mineiros Um povo reduzido ao silêncio e privado da faculdade de pensar e de opinar é um organismo corroído, incapaz de assumir as imensas responsabilidades decorrentes da participação num conflito de proporções quase telúricas, como o que desabou sobre a humanidade. Se lutamos contra o fascismo, ao lado das Nações Unidas, para que a liberdade e a democracia sejam restituídas a todos os povos, certamente não pedimos demais reclamando para nós mesmos os direitos e as garantias que as caracterizam. A base moral do fascismo assenta sobre a separação entre governantes e governados, ao passo que a base moral e cristã da democracia reside na mútua e confiante aproximação dos filhos de uma mesma pátria e na conseqüente reciprocidade da prática alternada do poder e da obediência por parte de todos, indistintamente. No momento em que o mais antigo – o precursor dos Estados totalitários – naufraga no mar profundo dos seus próprios vícios, pressente-se que se aproxima, para todos os povos, a oportunidade de uma retomada de consciência dos valores democráticos, ou, para melhor dizer, de sua regeneração pelo sentimento e pelo pensamento. Manifesto aos mineiros, de 24 de outubro de 1943. Apud Hélio Silva. 1945: por que depuseram Vargas. O ciclo de Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. p. 7071. A Deposição de Vargas em 1945 Impedido de assumir a vice-presidência da Sociedade dos Amigos da América, fundada em janeiro de 1943 por setores antifascistas, Osvaldo Aranha se demite do Ministério das Relações Exteriores em agosto de 1944. Também na área militar, os principais artífices do golpe que instituíra a ditadura em 1937 se afastam de Vargas. Em solidariedade a Aranha, o general Pedro Aurélio de Góis Monteiro, ainda em agosto, deixa o posto diplomático que ocupa na embaixada em Montevidéu. O ministro da Guerra, general Eurico Dutra, faz eco a críticas de oficiais da FEB ao regime e começa a defender o fim do Estado Novo em contatos com civis e militares. 207 A Deposição de Vargas em 1945 Entrevista de José Américo de Almeida 208 Só três brasileiros, na minha opinião, não podem ser candidatos à presidência da República nesta quadra. Os dois primeiros somos eu e o meu antigo competidor na malograda competição presidencial de 37, o Sr. Armando de Salles Oliveira. Na campanha da sucessão nós dividimos a opinião, como era natural em momento de normalidade eleitoral. Mas, hoje, precisamos estar unidos e contribuindo para a unificação das forças políticas do Brasil, em benefício da restauração democrática. O terceiro incompatível é o Sr. Getúlio Vargas, porque se incompatibilizou com as forças políticas do país. Malsinou tanto os políticos e as organizações partidárias, em seus recentes discursos, que os mais sensíveis, isto é, os mais briosos, já se arregimentam contra ele. E o que convém à nação é um homem capaz de fazer convergirem para o seu nome e o seu programa todas as correntes de colaboração. Entrevista de José Américo de Almeida ao Correio da Manhã, em 22 de fevereiro de 1945. Apud Hélio Silva. 1945: por que depuseram Vargas. O ciclo de Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. p. 97. brasileira - a União Soviética. A campanha pela anistia, que vinha sendo empreendida por comitês liderados por militantes comunistas, secundados por oposicionistas liberais, é satisfeita no dia 18 com a decretação da medida, que beneficia todos os acusados de crime político entre o dia 16 de julho de 1934 e aquela data. Assim, recuperam a liberdade cerca de 100 comunistas, entre os quais Luís Carlos Prestes, dirigente máximo do PCB, além de dissidentes liberais e integralistas. A decretação da anistia e da Lei Eleitoral de 28 de maio de 1945 - “Lei Agamenon”, como se torna conhecida por associação ao ministro da Justiça, Agamenon Magalhães - dá a partida para a temporada eleitoral, centrada, inicialmente, na escolha dos constituintes em pleito marcado para 2 de dezembro. Pelas novas regras, os partidos devem ser nacionais, o que restringe a competição a poucas agremiações. No campo anticapitalista, apenas o Partido Comunista Brasileiro, então Partido Comunista do Brasil (PCB), consegue se adequar à legislação partidária. Pretendendo sensibilizar também parcelas do eleitorado não-comunista, lança candidato à presidência da República o engenheiro Iedo Fiúza, que não pertencia aos quadros partidários. Grande parte da oposição - comunistas independentes, antigos membros do movimento tenentista, liberais e tradicionais representantes das classes dominantes regionais - funda, em 7 de abril de 1945, a União Democrática Nacional (UDN) e toma a dianteira, lançando oficialmente o nome do brigadeiro Eduardo Gomes. Preocupados com crescimento da candidatura udenista, representantes da máquina político-administrativa comandada por Vargas organizam, sob sua orientação, o Partido Social Democrático (PSD), oficializado em 17 de julho de 1945. Seu candidato é o general Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra até agosto, quando se afasta do cargo por exigência da lei eleitoral. Sob a liderança dos comunistas, setores trabalhistas integram a campanha “Queremos Constituinte com Getúlio”. O “queremismo”, como o movimento fica conhecido, agrava em setores liberais e da cúpula militar temores, já existentes, de que Vargas articula um projeto continuísta, planejando a implantação de um regime baseado no movimento trabalhista organizado e em aliança com os comunistas. Contra essa suposta ameaça à ordem representada pela reorientação política de Vargas em direção ao movimento trabalhista, preparam um golpe. Em 29 de outubro de 1945, o processo de redemocratização sofre uma inflexão: Getúlio Vargas é destituído, assumindo a chefia do país José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal. O calendário eleitoral foi mantido e o pleito presidencial, bem como para a Assembléia Nacional Constituinte, realizado em dezembro de 1945. O general Eurico Dutra, vitorioso com o a p o i o d e c i s i v o d e Va r g a s , f o i empossado em janeiro de 1946. Manifesto de Getúlio Vargas à nação Em todos os momentos decisivos de minha vida pública sempre procurei pairar acima das paixões e choques personalistas, pensando somente no bem da Pátria. Não me afastarei ainda agora dessa atitude de serena elevação. Abstenho-me de analisar os graves acontecimentos que me levaram a renunciar ao Governo a fim de evitar ao país maiores males e abalos irreparáveis. A História e o tempo falarão por mim, discriminando responsabilidades. Ao afastar-me da vida pública quero apenas dizer aos brasileiros palavras de compreensão e de confiança nos seus juízos definitivos. Não tenho razões de malquerença para com as gloriosas Forças Armadas da minha Pátria, que procurei sempre prestigiar. Nenhum governo se esforçou mais do que o meu pelo seu fortalecimento. Nenhum outro cuidou tanto da sua preparação profissional, do selecionamento dos seus quadros, do seu aparelhamento material, da melhoria de suas condições de trabalho e conforto. Ao povo brasileiro procurei servir sempre, defendendo com intransigência as suas aspirações e legítimos interesses. Manifesto à Nação, de Getúlio Vargas, em 29 de outubro de 1945. A Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938-1945. v. XI, p. 205-206. A Deposição de Vargas em 1945 Tendo como base a estrutura do sindicalismo corporativista implantado no país a partir de 1930, formase, entre agosto e setembro, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que tem a pretensão de constituir uma organização moderna, inspirando-se no Partido Trabalhista britânico. Na verdade, o PTB capitaliza os esforços do Ministério do Trabalho no sentido de transformar Getúlio Vargas em líder trabalhista moderno. 209 Bibliografia CARONE, Edgard. A Terceira República (1937-1945). São Paulo: DIFEL, 1976. A Deposição de Vargas em 1945 CARONE, Edgard. O Estado Novo (1937-1945). São Paulo: DIFEL, 1977. 210 CARVALHO, José Murilo de “ Vargas e os militares: aprendiz de feiticeiro”. D’ARAÚJO, Maria Celina (org.). As instituições brasileiras da Era Vargas. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1999. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 5ª ed. São Paulo: Editora da USP; Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1997. SILVA, Hélio. 1945: por que depuseram Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. A campanha eleitoral de 1950: Vargas volta ao poder Sérgio Lamarão C orria o ano de 1948 quando tiveram início as articulações em torno da sucessão do presidente Eurico Gaspar Dutra. No campo governista, as negociações começaram em Minas Gerais, quando líderes dos dois maiores partidos nacionais - o Partido Social Democrático (PDS) e a União Democrática Nacional (UDN) -, buscaram um acordo em torno de nomes comuns, cabendo em princípio aos pessedistas a chefia do governo federal, enquanto os udenistas indicariam o governador do estado. Buscava-se, assim, adotar uma fórmula de “união nacional”, baseada no acordo interpartidário firmado em janeiro daquele ano, reunindo, além do PSD e da UDN, o pequeno Partido Republicano (PR). As três agremiações formaram o bloco de sustentação política do governo de Dutra no Congresso. Contudo, os avanços em relação à escolha de um candidato único, nessas bases, eram praticamente nulos. Em março de 1949, o presidente da UDN, José Eduardo Prado Kelly, deixou claro que seu partido só negociaria com o PSD na base de um candidato extrapartidário. Em junho, o governador gaúcho, o pessedista Válter Jobim, apresentou a Dutra uma proposta conciliatória, denominada “fórmula Jobim”, que preconizava a consulta a todos os presidentes de partidos a respeito da sucessão presidencial, incluindo-se aí Getúlio Vargas, chefe inconteste do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e Ademar de Barros, líder do Partido Social Progressista (PSP). Em fins de julho, aceitando a “fórmula Jobim”, Prado Kelly, Nereu Ramos (presidente do PSD) e Artur Bernardes (presidente do PR) assinaram uma declaração pela qual resolviam ouvir todos os partidos sobre a escolha de candidatos comuns à presidência e vice-presidência da República. Os entendimentos, contudo, não evoluiriam porque, entre outros motivos, Nereu Ramos reivindicava sua própria candidatura. De fins de setembro a fins de outubro, Prado Kelly, Nereu e Bernardes voltariam a se reunir, mas sem nenhum resultado prático. A “fórmula Jobim” foi substituída em novembro pela chamada “fórmula mineira”, proposta ao diretório nacional do PSD por Benedito Valadares, que também propunha um candidato de união nacional, porém necessariamente pessedista e mineiro. 211 A Campanha Eleitoral de 1950: Vargas Volta ao Poder 212 Vargas volta ao poder, tomando posse em 31 de janeiro de 1951. Na frente, da esq: Café Filho, Epitácio Pessoa Filho e Estillac Leal. Arq. Nac. A consolidação da “fórmula mineira” provocou o afastamento da UDN. Otávio Mangabeira, governador da Bahia, rompeu com Dutra em dezembro declarando que o candidato do partido seria o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato do partido em 1945, iniciativa ratificada pela comissão executiva do partido dias mais tarde. Na verdade, a candidatura do brigadeiro começara a ser articulada no começo de outubro, quando foi criado no Rio de Janeiro o Movimento Nacional Popular Pró-Eduardo Gomes e realizado um comício. Entretanto, o nome de Eduardo Gomes seria homologado em convenção nacional somente em maio de 1950, por conta da expectativa de uma definição mais ampla do quadro sucessório. Ainda em maio, a convenção nacional do Partido Libertador (PL) resolveu apoiar sua candidatura, atitude que seria seguida pelo conselho nacional do Partido de Representação Popular (PRP), de Plínio Salgado. Em setembro, Odilon Braga, presidente nacional da UDN, foi inscrito como candidato à vice-presidência da República na chapa do brigadeiro Eduardo Gomes. O apoio dos antigos integralistas agrupados no PRP impediu que o Partido Socialista Brasileiro (PSB) aderisse ao candidato udenista. Assim, ainda em junho, o PSB decidiu lançar chapa própria, formada por João Mangabeira e Alípio Correia Neto, de modo a preservar a identidade do seu programa. A convenção nacional do partido, realizada em 29 de julho, ratificou a escolha. Em 6 de setembro, um mês antes das eleições, o PSB entrou com o pedido de registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) das candidaturas. No interior do PSD, a questão sucessória estava nas mãos da sessão mineira do partido que, no início de dezembro, apresentou uma lista de cinco possíveis candidatos, mas os diretórios estaduais do PR e da UDN não aceitaram os nomes sugeridos. No início de 1950, foram sugeridos nomes fora do PSD, inclusive o do ministro da Guerra, general Canrobert Pereira da Costa, proposto por Juraci Magalhães, Prado Kelly e outros líderes udenistas. No início de abril, o PSD rejeitou a candidatura extrapartidária e em meados de maio os dirigentes pessedistas acabaram se definindo pela candidatura do deputado federal por Minas Gerais, Cristiano Machado. A decisão foi homologada em convenção nacional realizada em junho. Em julho, a maioria do Partido Republicano (PR) manifestou-se favorável ao candidato oficial do PSD, desde que um de seus membros ocupasse a vice-presidência na chapa, e, no dia 11 deste mês, a convenção nacional do PR homologou o nome de Cristiano, indicando Altino Arantes para a vice-presidência. A indicação foi aprovada três dias depois pelo conselho nacional do PSD. A Campanha Eleitoral de 1950: Vargas Volta ao Poder Na verdade, como afirma a cientista política Maria Celina Soares d’Araújo, a figura-chave desse intrincado processo eleitoral era o próprio Getúlio Vargas. Sabidamente um grande eleitor, partidos e elites políticas se perguntavam com quem ficaria Getúlio, quem ele apoiaria. E tudo indicava que Vargas apoiaria Vargas. Detendo um controle inconteste da máquina partidária do PTB, Vargas, então senador pelo Rio Grande do Sul, selou um acordo político com Ademar de Barros, urdido desde dezembro de 1949, que se revelaria de fundamental importância para o resultado do pleito. O cacife eleitoral do chefe nacional do PSP fora cabalmente demonstrado em 1947, quando se elegeu governador, em janeiro, e quando garantiu a eleição de seu candidato a vice-governador, Luís Novelli Júnior, derrotando, nas duas oportunidades, concorrentes de peso, inclusive os apoiados por Getúlio. Criava-se, segundo Maria Celina Soares d’Araújo, uma “frente populista”, calcada numa troca explícita de favores. O apoio de Ademar em 1950 teria como preço o apoio de Vargas a Ademar, nas eleições presidenciais de 1955. Essa aliança foi formalizada no início de maio, numa declaração conjunta à nação. Em meados desse mês teve lugar, na avaliação de Mauro Malin, um evento de crucial importância para Vargas decidir colocar sua campanha na rua. Nas eleições para a diretoria do Clube Militar, ocorrida após as convenções nacionais da UDN e do PSD terem homologado as candidaturas de Eduardo Gomes e Cristiano Machado, os generais Newton Estillac Leal e Júlio Caetano Horta Barbosa, encabeçando a chapa nacionalista, derrotou a chapa conservadora, que tinha à frente os generais Osvaldo Cordeiro de Farias e Emílio Ribas Júnior. No dia 8 de junho, o PTB decidiu-se finalmente pela candidatura de Vargas,. Para companheiros de chapa de Getúlio Vargas, como candidato à vice-presidência, foi escolhido João Café Filho, indicado pelo PSP em agosto e aceito pelo PTB em setembro, menos de um mês antes do pleito, previsto para 3 de outubro. A campanha eleitoral de Getúlio Vargas foi aberta no dia 9 de agosto de 1950, em Porto Alegre, e encerrada em 30 de setembro, em São Borja. Da capital gaúcha, o ex-presidente seguiu para São Paulo e daí para o Rio de Janeiro. Da capital federal dirigiu-se para o interior de Minas Gerais (Pirapora) e daí para o interior maranhense (Carolina). Percorreu o Norte e veio descendo o Nordeste, parando na Bahia, onde falou em quatro cidades. Em seguida, visitou o Espírito Santo e o Estado do Rio, onde falou igualmente em quatro cidades. A etapa posterior incluiu os estados de Minas, Goiás e Mato Grosso, visitando depois o interior de São Paulo e finalmente o Sul. Nesses 53 dias, Vargas esteve em todos os 20 estados brasileiros e no Distrito Federal, tendo visitado todas as capitais estaduais e o Rio de Janeiro e mais 54 cidades. Dedi- 213 24.10.1951. Momento da visita ao Supremo Tribunal Federal. Ag. Nac. A Campanha Eleitoral de 1950: Vargas Volta ao Poder cou atenção especial a três estados: Rio Grande do Sul (21 cidades), São Paulo (14) e Minas Gerais (sete). No total, Vargas pronunciou 80 discursos. Sua estratégia foi abordar, em cada cidade, o tema que falava mais de perto à platéia local. Assim, se na Amazônia os pontos enfatizados foram nacionalismo e borracha, no Paraná, dedicou-se sobretudo ao café e no Mato Grosso à pecuária. O nacionalismo foi novamente a palavra-chave na Bahia, ao lado de petróleo, cacau e aproveitamento do rio São Francisco. No Estado do Rio, a tônica foi a situação da lavoura canavieira, em Campos, e a siderurgia, em Volta Redonda, ao passo que no Ceará os problemas da seca concentraram as suas atenções. A empolgante campanha de Getúlio demonstrou o forte apelo popular de seu nome, bem como a ampla receptividade às idéias defendidas por ele. Em linhas gerais, as duas principais bandeiras levantadas pelo candidato foram a questão nacional e os programas de reforma social. A primeira fez-se presente nas referências à criação da Companhia Vale do Rio Doce, da Fábrica Nacional de Motores e da Companhia Siderúrgica Nacional (usina de Volta Redonda), destacadas por Vargas como os três marcos na luta pela independência econômica do Brasil. A nacionalização das riquezas do subsolo também constituiu um ponto central no projeto nacionalista de Vargas. Vale frisar que esse projeto tinha limites muito claros, não pretendendo colocar em risco a presença do capital estrangeiro nem promover mudanças mais profundas na ordem econômica. 214 Em relação às reformas sociais, elas foram associadas à continuação dos princípios renovadores que teriam sido as forças propulsoras da Revolução de 1930. Falando como “pai” do trabalhismo e da legislação social, Getúlio defendia a extensão das leis trabalhistas aos trabalhadores do campo, deixando claro que isso se daria sem o apelo à luta de classes. Por intermédio do trabalhismo, a sociedade brasileira conseguiria a harmonia entre as classes: o capital e o trabalho deveriam se unir para atingir o bem comum. A retórica populista também estava presente, quando Vargas se proclamava um candidato mais do que estritamente partidário. Seu nome teria surgido do reclamo popular, do anseio de todas as classes, mas sobretudo dos mais humildes, dos pobres e dos desempregados. 21.10.1953. Getúlio (esq.) recebe José Maria Alkmin no Palácio do Catete. Arq. Nac. Em sua campanha, Vargas também criticou a política econômica seguida pelo governo Dutra, advogando a necessidade de ser acelerada a industrialização. A grande votação alcançada por Vargas pode ser explicada não apenas pelos votos colhidos juntos aos eleitores do PTB e do PSP, mas também porque muitos setores do PSD, inclusive em Minas Gerais, orientaram seus eleitores para apoiá-lo, acarretando um sério prejuízo à da candidatura de Cristiano Machado. Esse processo de esvaziamento eleitoral ficou conhecido no jargão político como “cristianização”. Além de beneficiado pela divisão do PSD, Getúlio recebeu os sufrágios de parcela expressiva dos eleitores comunista, que não atendeu à orientação dos dirigentes do PCB pelo voto em branco. Contou ainda, em Pernambuco, com o apoio do udenista João Cleofas, candidato derrotado às eleições para o governo estadual. Getúlio venceu em 18 das 24 unidades da federação, sendo superado apenas nos territórios do Acre e do Amapá, e nos estados do Pará, Maranhão, Piauí, Ceará e Minas Gerais. Neste último, o segundo colégio eleitoral do país, a votação ficou eqüitativamente distribuída entre os três principais concorrentes: Eduardo Gomes obteve 441.690 votos, seguido por Getúlio, com 418.194 e Cristiano Machado, com 409.402. Em compensação, Vargas dominou por ampla margem em São Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia e Distrito Federal, que reuniam, respectivamente o primeiro, o terceiro, quarto e quinto maiores eleitorados. Só em São Paulo, contando com a ajuda eficiente de Ademar de Barros, recolheu praticamente um quarto de sua votação nacional, derrotando de forma esmagadora seus adversários. Entre os candidatos a vice-presidente, o companheiro de chapa de Getúlio, Café Filho, foi eleito com 2.520.790 votos, suplantando em cerca de 175 mil votos o seu principal concorrente, o udenista Odilon Braga (2.344.841 votos). Altino Arantes, da chapa pessedista, veio em terceiro, apresentando um número de votos – 1.649.309 – bastante próximo ao do cabeça da chapa, Cristiano Machado. Vitorino Freire, que se lançou à disputa como candidato avulso pelo Partido Social Trabalhista, ficou bem atrás, obtendo 524.079 vo- A Campanha Eleitoral de 1950: Vargas Volta ao Poder No dia 3 de outubro de 1950, compareceram às urnas 8.254.989 eleitores, o equivalente a 15,88% do total da população brasileira estimada 51.976.000 habitantes. Esses números revelavam um incremento tanto em termos absolutos quanto em termos relativos em relação aos registrados no pleito de dezembro de 1945. Nessa ocasião, o número de eleitores alcançou um total de 6.200.805, correspondendo a 13,42% do total da população estimada do país, que somava 46.215.000 habitantes. Vargas obteve uma vitória maiúscula no pleito, quase alcançando a maioria absoluta com 3.849.040 votos (48,7%). Eduardo Gomes ficou bem abaixo, com 2.342.384 votos (29,6%) e Cristiano Machado não passou de um distante terceiro lugar com 1.697.193 votos (21,5%). O quarto candidato, o socialista João Mangabeira, teve uma votação simbólica, não atingindo a casa dos dez mil votos (9.466, em números precisos, 0,1% do total). O número de votos anulados foi de 145.473, enquanto 211.433 eleitores votaram em branco. 215 A Campanha Eleitoral de 1950: Vargas Volta ao Poder 216 tos. E, finalmente, em último lugar, o candidato do PSB, Alípio Correia Neto, que reuniu apenas 10.800 sufrágios em seu favor. Logo após a divulgação dos resultados, a UDN, por iniciativa do deputado federal baiano Aliomar Baleeiro, tentou impugnar a posse dos eleitos. Com base numa leitura equivocada da Constituição, o partido alegou que nem Vargas nem Café obtiveram a maioria absoluta dos votos, o que implicaria a realização Advertência Oportuna Ainda que para isso seja preciso fazer uma revolução no Brasil, tenhamos a coragem de dizer claramente ao Sr. Getúlio Vargas: desista porque não voltará à presidência da República. (...) A campanha divide opiniões. (...) A eleição do Sr. Getúlio Vargas porém seria diferente. Ela não dividiria opiniões dos brasileiros, ela dividiria os próprios brasileiros. Verdadeiramente não seria uma luta política, seria uma luta de vida ou morte, entre os que acreditam na democracia e os que acreditam na democracia com anti-democratas. (...) O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar. Ele já fez várias, isso para ele não é novidade. Sentimo-nos no dever de lealmente lhe dizer que a advertência do ministro da guerra não é apenas a do oficialismo, a do governo, e das forças armadas. É a de uma parte considerável e também responsável da nação, que está pronta a se unir com o governo ou com quem quer que seja para evitar que ele, o traidor de 10 de novembro de 1937, volte a governar o Brasil com a sua camorra. O Sr. Getúlio Vargas já teve tudo o que podia esperar do Brasil – e muito mais. Deixe-o agora em paz, se quiser ter paz. Pois, se quiser guerra, ele a terá, também, e não poderá se queixar dos resultados. Advertência Oportuna, de Carlos Lacerda. Tribuna da Imprensa, 1º de junho de 1950. Entrevista de Getúlio Vargas à Folha da Noite Conheço meu povo e tenho confiança nele. Tenho plena certeza de que serei eleito, mas sei também que, pela segunda vez, não chegarei ao fim do meu governo. Terei de lutar. Até onde resistirei? Se não me matarem, até que ponto meus nervos poderão agüentar? Uma coisa lhes digo: não poderei tolerar humilhações. (...) Tenho 67 anos e pouco me resta da vida. Quero consagrar esse tempo ao serviço do povo e do Brasil. Quero, ao morrer, deixar um nome digno e respeitado. Não me interessa levar para o túmulo uma renegada memória. Procurarei, por isso mesmo, desmanchar alguns erros de minha administração e empenhar-me-ei fundo em fazer um governo eminentemente nacionalista. O Brasil ainda não conquistou a sua independência econômica e, nesse sentido, farei tudo para consegui-lo. Cuidarei de valorizar o café, de resolver o problema da eletricidade e, sobretudo, de atacar a exploração das forças internacionais. Elas poderão, ainda, arrancar-nos alguma coisa, mas com muita dificuldade. Por isso mesmo, serei combatido sem tréguas. Eles, os grupos internacionais, não me atacarão de frente, porque não se arriscam a ferir os sentimentos de honra e civismo de nosso povo. Usarão outra tática, mais eficaz. Unir-se-ão com os descontentes daqui de dentro, os eternos inimigos do povo humilde, os que não desejam a valorização do homem assalariado, nem as leis trabalhistas, menos ainda a legislação sobre os lucros extraordinários. Subvencionarão brasileiros inescrupulosos, seduzirão ingênuos inocentes. E, em nome de um falso idealismo e de uma falsa moralização, dizendo atacar sórdido ambiente corrupto que eles mesmos, de longa data, vêm criando, procurarão, atingindo minha pessoa e meu governo, evitar a libertação nacional. Terei de lutar. Se não me matarem. Entrevista de Getúlio Vargas à Folha da Noite, julho de 1950. Citado em Hélio Silva e Maria Cecília Ribas Carneiro. História da República Brasileira. Apud Paulo Brandi. Vargas: da vida para a História. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 229. A Campanha Eleitoral de 1950: Vargas Volta ao Poder de novas eleições. A maior parte dos oficiais superiores do Exército não apoiou essa pretensão e, em 18 de janeiro de 1951, o TSE, afirmando que a Constituição não previa a necessidade de maioria absoluta, rejeitou o recurso. Nesse mesmo dia, Vargas e João Café Filho foram proclamados legalmente eleitos presidente e vice-presidente da República. Em 31 de janeiro de 1951, Vargas recebeu a faixa presidencial das mãos de Dutra. 217 A Campanha Eleitoral de 1950: Vargas Volta ao Poder 218 Bibliografia ARAÚJO, Maria Celina Soares d’. O segundo governo Vargas 1951-1954: democracia, partidos e crise política. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. ________ . E ele voltou. In: A República nas urnas/100 anos (suplemento especial de O Globo, Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1989). DICIONÁRIO Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Coord. Alzira Abreu, Israel Beloch, Fernando Lattman-Weltman e Sergio Tadeu de Niemeyer Lamarão. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. MALIN, Mauro. “A margem do poder”. In: BRANDI, Paulo. Varga: da vida para a história. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. RAMOS, Guerreiro. A crise do poder no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1961. A Crise de Agosto de 1954 e o Suicídio de Vargas Pedro do Coutto Vargas, o Gigante Solitário que Escreveu o Endereço do Brasil V argas é-sem dúvida-o maior político brasileiro de todos os tempos e, sem favor, um dos maiores do mundo, se analisarmos bem sua trajetória, os obstáculos com os quais se defrontou e que superou ao longo de sua vida. O poder era quase tudo para ele, sua motivação, sua emoção, seu impulso, sua razão. Mas não em função pessoal, narcisista. Mas sim para realizar. E realizou muito. As suas impressões digitais estão na história. 219 Para reforçar a afirmativa de ter sido ele e um dos maiores políticos do mundo, àqueles que colocarem dúvida, lembro sua atuação na Segunda Guerra Mundial, fase extremamente crítica do tempo. Nela se jogou o destino da humanidade e do Brasil. O presidente não podia errar-destacou Osvaldo Aranha, numa entrevista à antiga TV-Tupi, quatro anos depois de sua morte. Ao mesmo tempo, de 39 a 45, tratou com os dois maiores estadistas internacionais, Winston Churchill e Franklin Roosevelt e, simultaneamente, com os dois maiores assassinos da história: Hitler e Stallin, o segundo a seu lado a partir de 42. Antes não. Inclusive-ironia do destino-enfrentou a intentona comunista de 35, financiada pela União Soviética e o ataque ao Palácio Guanabara, em 38, desfechado pelo Integralismo, movimento de nítida e total inspiração nazista. Ele, que sempre se empenhou em neutralizar os extremos e os extremistas, teve sua vida colocada em risco por eles. Especialmente em 38, Getúlio Vargas que, ao desfechar o golpe ditatorial de 37 foi elogiado por Goebbels, Ministro da Propaganda de Hitler, em 38 fechou o Partido Nazista no país e, a partir de agosto de 42, tornou-se o único presidente da América do Sul a declarar guerra ao eixo Alemanha-Itália-Japão. De 39 a Funeral de Vargas. Da esq. Osvaldo Aranha, discursando, João Goulart e Tancredo Neves. O Globo A Crise de Agosto de 1954 e o Suicício de Vargas 220 dezembro de 41, quando o Japão atacou a base americana de Pearl Harbour, articulou e equilibrou o Brasil entre os blocos em luta. Ele foi-definiu o senador Afonso Arinos de Mello Franco, em 74, vinte anos depois de sua morte-um gigante solitário. Um enigma até para si mesmo. A partir de 7 de dezembro de 41, Vargas naturalmente ficou sem linha de manobra. Assim, já em fevereiro de 42, convocou a Conferência Pan-americana, dirigida pelo chanceler Osvaldo Aranha, a maior liderança civil do país, a favor de nossa aproximação concreta com a Inglaterra e os Estados Unidos. Sentindo o quadro internacional antes do Itamarati, Vargas o havia nomeado embaixador em Washington, onde Aranha se tornou amigo pessoal de Roosevelt. No início de agosto de 42, demitiu o jurista Francisco Campos do Ministério da Justiça e Filinto Müller da Chefia da Polícia. Eram simpatizantes do Eixo. Vinte navios mercantes brasileiros foram afundados por submarinos alemães. No final daquele mês, com incisivo apoio americano e ing1ês, sem o qual nada poderia fazer, declarou guerra a Hitler, Mussolini e Hiroito. O povo está consternado e perplexo com o desfecho final da Era Vargas. Arq. Nac. Getúlio Vargas foi também-por aí se redescobre a dimensão de sua obra-o estadista das reformas sociais. Foi quem escreveu o endereço do Brasil no cenário internacional. Em 43 Roosevelt veio encontrar-se com ele na cidade de Natal. No governo desde 30, vitorioso na Revolução que mudou a face do país, foi o homem que fez a passagem da escravidão urbana disfarçada para o direito do trabalho, que sequer existia. Não havia limite para a jornada diária, férias remuneradas, repouso semanal obrigatório. Não havia Previdência Social, tampouco aposentadoria custeada, tanto pelos empregados quanto pelos empregadores. O país vivia em tempos medievais. Além da legislação trabalhista, Vargas criou a Cia. Siderúrgica Nacional, a Vale do Rio Doce, hoje a maior mineradora do mundo, a Fábrica Nacional de Motores, a Cia. Nacional de Álcalis, decisiva para a siderurgia. Isso até 29 de outubro de 45, quando foi deposto a pouco mais de um mês das eleições de 2 de dezembro. A deposição militar quis bloquear uma nova candidatura sua a qual, no fundo, Vargas desejava, pois o poder - sob todos os sentidos – era sua própria vida. Vitorioso nas eleições de 50 com 49,7 % dos votos, a partir de 51, Getúlio criou o BNDE, hoje BNDES, a Petrobrás, uma das maiores empresas do planeta, enviou ao Congresso o Projeto de Lei da criação da Eletrobrás. Implantou o sistema de categorias (cinco) para as importações, alterando o valor do dólar para cada uma delas, de acordo com a essencialidade dos produtos, medida, fundamental para equi1ibrar o quadro cambial brasileiro. No auge da chamada crise da Rua Toneleros, Vargas afirmou, citando Lacerda pela única vez:-O tiro no pé de Lacerda foi vibrado nas costas do governo; só morto deixarei o Catete. A afirmação foi a manchete do extinto jornal Última Hora, no dia 23 de agosto. Numa entrevista ao repórter Miguel da Costa Neto, publicada em agosto de 50 (sempre agosto na rota de Vargas) destacou:-Tenho absoluta certeza de que serei eleito (outubro), mas tenho dúvida se chegarei ao final de meu governo. Enfrentarei de peito aberto os grandes interesses estrangeiros que prejudicam o país e subjugam o povo brasileiro. Previu, digo eu, a real dimensão do embate, nas duas frentes, a externa e a interna. Poderia prever o atentado de Toneleros, contra o jornalista Carlos Lacerda, a 5 de agosto? O episódio deixa um enigma. Ninguém entendeu a essência profunda da política, ciência e arte, melhor do que Vargas. Ele a interpretava fantasticamente. Foi sua política trabalhista que bloqueou o avanço da esquerda no após-guerra. Um gigante solitário, como lembrei há pouco, recorrendo a Afonso Arinos de Mello Franco. No entanto, esse estadista extraordinário, que lidou com Churchill, Roosevelt, Stalin e Hitler, e a partir de abril de 45 com Harry Truman, o qual assumiu a Casa Branca com a morte de Roosevelt, não conseguiu superar a crise aberta com um atentado com o qual nada tinha a ver, como os fatos logo comprovaram. Vargas, aos 72 anos, teria se exaurido no exercício do poder e da política? Teria se desencantado? Teria envelhecido antes do tempo? Não há resposta lógica para nenhuma destas indagações. A impressão é que a corrupção de colaboradores oblíquos e distantes o enojou. É dele-e não de Lacerda-a frase de que nos porões do Catete corria um “rio” de lama. Lacerda a transformou em “mar” de lama. A carta testamento. Texto, contexto e releitura Por tudo isso, a Carta Testamento de Vargas, escrita há 50 anos na véspera do trágico desfecho de agosto, está exigindo uma releitura, pois seu texto, no fundo, é mais forte do que o contexto em que foi escrita. Necessita uma análise atual e clara, que só o passar do tempo proporciona. Para interpretá-la, creio, é necessário tentar compreender Getúlio como o definiu Afonso Arinos, exatamente vinte anos depois de sua morte, em entrevista à Tribuna da Imprensa. Para A Crise de Agosto de 1954 e o Suicício de Vargas A Instrução 70 da Superintendência da Moeda e do Crédito (hoje Banco Central) também chamada de Plano Aranha, retornava ao varguismo depois de nove anos de afastamento. Aranha havia deixado o Ministério das Relações Exteriores a 24 de agosto de 44. Assumiria a Fazenda em 24 de agosto de 53, um ano antes do desfecho trágico de 54. Com a implantação da Petrobrás, o projeto da Eletrobrás e a classificação dos ágios de importação, Vargas enfrentava poderosíssimos interesses internacionais. A crise externa explodiu internamente. 221 A Crise de Agosto de 1954 e o Suicício de Vargas 222 tentar entender Vargas, é preciso também enfocar com nitidez a colocação de Carlos Heitor Cony que o separou em duas pessoas: Getúlio e Vargas. Foi de fato um gigante e dual, mas não dúbio. Não vacilava. Os grandes vultos são assim. Hoje, inclusive, ele parece muito maior que ontem. Um reformador notável, fez a passagem da semi-escravidão ao Direito do Trabalho. Mas, para se perceber sua motivação mais forte, no sentido do poder e conteúdo da Carta Testamento, indispensável é identificar a origem do homem que por mais tempo na República governou o Brasil. A explicação está no Positivismo, doutrina meio científica, meio mística, espécie de religião sem Deus, que teve grande presença abolição da escravatura e na Proclamação da República.-A Ordem por base, o amor por princípio, o progresso por fim, preconizava seu criador, Augusto Comte. A ordem e o progresso estão na Bandeira Brasileira. Os dois responsáveis pelo ingresso de Vargas na política, Borges de Medeiros e Júlio de Castilhos, eram positivistas. Como Vargas, antes dele governaram também o Rio Grande do Sul. O Positivismo foi lançado por Augusto Comte, em Paris, em 1848. Seus princípios: a valorização do trabalho humano, o fortalecimento da justiça social, pouca importância concedida ao Legislativo, concentração de poderes no Executivo. Chegamos agora a Vargas. Ainda um outro aspecto capaz de traduzi-lo mais claramente: em 1852, igual- Discurso de Getúlio Vargas em 12 de agosto de 1954 Espalhando o germe da discórdia, procurando subverter a força e o prestígio da autoridade, falseando os fatos e fantasiando as intenções, há um propósito de gerar a confusão pela mentira, para levar o país à desordem, ao caos e à anarquia. (...) Empenharei a autoridade do governo para que a ordem seja mantida, as garantias constitucionais asseguradas e as próprias eleições realizadas num clima de ordem e tranqüilidade. As injúrias que me lançam, as pedras que me atiram, (...) a mentira e a calúnia não conseguirão abalar o meu ânimo, perturbar a minha serenidade, nem me afastar dos princípios de amor e humildade cristã por que norteio a minha vida e que me fazem esquecer os agravos e perdoar as injustiças. Por outro lado, não terei condescendência para aqueles que se fazem agentes do crime ou instrumentos da corrupção. No governo, represento o princípio da legalidade constitucional que me cabe preservar e defender. Dele não me separarei e advirto aos eternos fomentadores da provocação e da desordem que saberei resistir a todas e quaisquer tentativas de perturbação da paz e da tranqüilidade pública. Discurso de Getúlio Vargas em Belo Horizonte, pronunciado em 12 de agosto de 1954, transcrito em Correio da Manhã, 13 de agosto de 1954. Sua vida, de outro lado, foi marcada por um impulso para a Reforma. Tanto assim que, não sendo religioso, deu o nome de Lutero a seu filho. O poder e a Reforma cristã o fascinavam na sombra de seus pensamentos interiores. A ruptura com o passado também. Afinal, quem foi Lutero, senão um dissidente da História (o maior depois de Cristo), o autor da Reforma religiosa cristã? Reforma social cristã, eis aí um ponto de convergência na encruzilhada que possivelmente leva ao âmago da compreensão de Vargas. O senso de poder e autoridade, a valorização do trabalho, a denúncia contra a espoliação praticada pelos grupos internacionais de então, o sentido do caminho solitário para a História. Agora, o conteúdo mais profundo do último ato de sua vida a torna mais clara diante da morte. Um ponto, porém, do texto derradeiro, deve ser observado intensamente. Afirmou Vargas: - Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Hoje, o número parece não muito significante sob a ótica financeira, diante da balança comercial do país de 60 bilhões de dólares. Mas é indispensável considerar que a balança comercial de 54 era de 1 bilhão de dólares. As fraudes representavam dez por cento das nossas relações comerciais. Mantida atualmente a mesma taxa de corrupção, sem considerar o seu enorme crescimento, como todos sabem, os 100 milhões do passado são hoje 6 bilhões de dólares. Isso por ano. Multiplique-se tal fato por décadas e encontraremos uma das maiores razões de nosso subdesenvolvimento. Vargas foi o gigante solitário a que se referiu Afonso Arinos, senador da antiga UDN. Mas além do enigma que senador citou, existe outro: o mistério do 24 de agosto. Basta ler a biografia editada pela FGV. A 24 de agosto de 30, Aranha obtém de Borges de Medeiros o apoio à Revolução. A 24 de agosto de 44, Aranha é demitido das Relações Exteriores. O principal articulador da vitória na Discurso de Afonso Arinos (...) presidente, lembrese Vossa Excelência das incumbências e das responsabilidades do seu mandato; lembre-se dos interesses nacionais que pesam não sobre a sua ação somente, mas sobre a sua reputação (...). Tenha a coragem de perceber que o seu governo é hoje um estuário de lama e um estuário de sangue; observe que os porões do seu palácio chegaram a ser um vasculhadouro da sociedade; verifique que os desvãos de sua guarda pessoal são como subsolos de um sociedade em podridão. (...) lembre-se, homem, pelos pequeninos, pelos humilhados, pelos operários, pelos poetas: - lembre-se dos homens e deste país e tenha a coragem de ser um desses homens não permanecendo no governo, se não for digno de exercê-lo. Discurso de Afonso Arinos na Câmara dos Deputados, em 13 de agosto de 1954. Anais da Câmara dos Deputados, 1954, v. XIV (sessões ordinárias, sessões de 9 a 17 de agosto de 1954). Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do IBGE, 1962. p. 561-562. A Crise de Agosto de 1954 e o Suicício de Vargas mente na França, Comte lança a teoria do Grande Ser, acrescentando-a à doutrina positivista. Vargas assumiu este papel, daí porque em sua Carta Testamento não cita pessoa alguma. Deixa a vida e parte sozinho para a História, aliás, como ele próprio afirmou. 223 A Crise de Agosto de 1954 e o Suicício de Vargas 224 guerra não estava nas ruas comemorando a vitória com Vargas. Osvaldo Aranha crescera politicamente muito e ameaçava uma nova candidatura de Getúlio. A 24 de agosto de 45, os generais Dutra e Góis Monteiro dão ultimato a Vargas para convocar as eleições diretas. A 24 de agosto de 53, Aranha é nomeado Ministro da Fazenda e retorna ao varguismo. A 24 de agosto de 54, Vargas deixa a vida e parte para a História. Solitário, sempre e para sempre. Ninguém a seu lado nas páginas do tempo. Manifesto dos generais à nação Considerando que o inquérito policial-militar em andamento na Base Aérea do Galeão já apurou, indiscutivelmente, que foi a guarda pessoal do presidente da República, sob a chefia de Gregório Fortunato, homem de sua absoluta confiança, que planejou e preparou dentro do palácio presidencial, e fez executar, o atentado em que foi assassinado o major-aviador Rubens Florentino Vaz; Considerando, que depois de haver o presidente da República assegurado à Nação que o crime seria apurado e os culpados entregues à justiça, elementos de sua imediata confiança, ainda dentro do palácio presidencial, alertaram os criminosos e lhes forneceram meios necessários à fuga, inclusive vultosa quantia em dinheiro; Considerando que é assim duvidoso que se possa chegar à punição de todos os culpados; Considerando que as diligências do inquérito trouxeram à luz farta documentação em que se demonstra a corrupção criminosa os círculos mais chegados ao presidente da República; Considerando que tais fatos comprometem a autoridade moral indispensável ao presidente da República para o exercício do seu mandato; Considerando, enfim, que a perduração da atual crise político-militar está trazendo ao país irreparáveis prejuízos em sua situação econômica e poderá culminar em graves comoções internas, em face da intranqüilidade geral e da repulsa e indignação de que se acham possuídas todas as classes sociais do país: Os abaixo-assinados, oficiais-generais do Exército, conscientes de seus deveres e responsabilidades perante à Nação, honrando compromissos públicos e livremente assumidos, e solidarizando-se com o pensamento dos camaradas da Aeronáutica e da Marinha, declaram julgar, em consciência, como melhor caminho para tranqüilizar o povo e manter unidas as Forças Armadas, a renúncia do atual presidente da República, processando-se a sua substituição de acordo com os preceitos constitucionais. Manifesto dos generais à nação, de 22 de agosto de 1954. Apud Impasse na democracia brasileira: 1951-1955. Coletânea de documentos. Adelina Maria Alves Novaes et al. Rio de Janeiro: FGV, 1983. p. 305. Carta-Testamento de Getúlio Vargas M ais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao Governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores de trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder. Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome Perante multidão aglomerada em frente ao Palácio do Catete, o repórter da Rádio Nacional, Heron Domingues, lê a CartaTestamento. Cor. da Manhã 225 A Carta Testamento de Vargas 226 bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram o meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.