A CONSTITUIÇÃO DOS SABERES DOCENTES: UMA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL HOBOLD*, Márcia – PUC SP [email protected] Resumo O presente texto tem como objetivo conhecer a constituição dos saberes docentes de uma professora alfabetizadora ao longo da sua trajetória profissional. Utilizou-se de uma entrevista com a professora que trabalha a 54 anos no magistério, dos quais, 45 anos alfabetizando crianças. A entrevista revela como a professora acompanhou as mudanças surgidas ao longo da sua trajetória profissional. Ela se expressa, aos 74 anos de idade, de uma maneira quase que poética sobre a educação. Atribui um valor significativo ao trabalho de alfabetização das crianças da primeira série do ensino fundamental. A aprendizagem dos saberes da docência sempre foi construída, segundo sua fala, pelo direcionamento que as próprias crianças lhe indicavam. Ou seja, a professora alfabetizadora enfatizou a participação ativa das crianças na condução e construção dos seus saberes profissionais, assim como, da sua primeira diretora e de uma amiga professora com quem trocava, freqüentemente, idéias sobre as questões pedagógicas. Diz que os professores de hoje são mais companheiros e trocam mais informações uns com os outros, comparados aos professores do início da sua carreira (1953). Também se refere às crianças de hoje, dizendo que são mais curiosas e participativas. As crianças do início da sua carreira profissional eram mais contidas e disciplinadas, mas, prefere trabalhar com as crianças “ativas” de hoje. Ela trabalha em uma escola particular que valoriza a formação continuada dos professores e, diz que estes momentos, são essenciais para a formação profissional do professor. Costuma ler livros e revistas educacionais. Para a construção do aporte teórico do texto, foram utilizados os seguintes autores: Tardif (2002), Altet (2001), Azzi (2001) e Pimenta (200). Palavras-chave: Saberes Docentes; Identidade Docente; Profissionalidade docente; Trabalho Docente. Introdução Os saberes dos professores é um assunto de grande interesse e relevância, pois como diz Tardif (2002) o saber dos professores é um saber deles e está relacionado com a identidade da pessoa do professor, considerando sua trajetória de vida e, conseqüentemente, sua trajetória profissional. Este saber, ainda segundo o autor, é construído por meio das relações sociais estabelecidas com os demais indivíduos. Pode-se dizer que o saber profissional é constituído nas e pelas experiências sociais. A alteridade estará presente para * Doutoranda em Educação: Psicologia da Educação na PUC SP. 3700 que ocorra a constituição da identidade profissional e, nesta relação com o outro, os saberes profissionais são apreendidos. Tendo como preocupação central a construção dos saberes profissionais, realizou-se uma entrevista com uma professora alfabetizadora. O objetivo da entrevista foi o de conhecer sua trajetória profissional e, conseqüentemente, a constituição dos seus saberes profissionais. Dará os elementos para a escrita deste texto, uma entrevista feita com uma professora alfabetizadora que trabalha a 54 anos no magistério, dos quais, 45 anos como alfabetizadora. A entrevistada iniciou sua trajetória profissional nos anos de 1953 e relatou os principais fatos que contribuíram para a sua permanência no magistério e como adquiriu os saberes da profissão docente. O referencial teórico do texto abrange o conceito de saber, saberes profissionais, profissionalidade, identidade profissional e trabalho docente. O Conceito de Saber Profissional Beillerot† (1989 apud ALTET, 2001, p. 28) afirma que “[...] saber é aquilo que, para um determinado sujeito, é adquirido, construído, elaborado através do estudo ou da experiência”. No entanto, o (a) autor (a) ainda faz a distinção entre os conceitos de informação, conhecimento e saber, importantes para o entendimento da questão. Para o (a) autor (a), a informação é de ordem social e refere-se aos assuntos externos ao sujeito; o conhecimento é de ordem pessoal e está integrado ao sujeito; o saber situa-se entre os dois pólos, ou seja, é a interface entre a informação e o conhecimento. O saber, segundo Altet (2001), constrói-se na interação entre o conhecimento e a informação, entre o sujeito e o ambiente, na mediação e por meio dela. Assim, pode-se considerar o saber como algo apreendido por meio da junção entre informação externa ao sujeito e experiência pessoal. O saber torna-se incorporado quando aceito pelo próprio sujeito. Para a incorporação do saber, há a necessidade de sua aceitação e de sua reelaboração. Neste sentido, a fusão entre o saber existente e a nova informação resulta em um outro saber – saber diferenciado ou saber reelaborado. Nesta perspectiva, pode-se dizer que o professor reelabora o seu saber em um constante processo de construção/reconstrução, por meio das diversas experiências do contexto pedagógico. Esta junção entre saber e conhecimento resulta nos saberes da experiência, ou seja, no saber fazer do professor. As histórias dos professores e sua † BEILLEROT, J. Savoir et rapport au savoir. Paris: Universitaires, 1989. 3701 profissionalidade são tecidas também na instituição em que leciona o professor, no sistema escolar, na sociedade, na formação inicial, na história de estudante desde que ingressou na escola, dentre outros. Os Saberes da Docência Pimenta (2000) apresenta três modalidades de saberes docentes que constroem a identidade profissional do professor. Para a autora, os saberes da docência se constituem pela experiência, pelo conhecimento e pelos saberes pedagógicos. No que tange à experiência, Pimenta (2000) afirma que os estudantes que chegam à formação inicial já trazem a imagem dos bons professores, aqueles que foram significativos em suas vidas, bem como os estereótipos frisados pela sociedade quanto à profissão de professor (baixo salário, dificuldade para se lidar com jovens rebeldes e crianças desobedientes). Em outro nível, os saberes da experiência são também aqueles que os professores constroem no seu cotidiano docente, num processo permanente de reflexão sobre sua prática, mediatizada pela de outrem – seus colegas de trabalho, os textos produzidos por outros educadores, dentre outros (PIMENTA, 2000). O conhecimento, enquanto saber docente, segundo Pimenta (2000), está representado pelos conhecimentos que perpassam os bancos escolares. A autora enfatiza a distinção entre informação e conhecimento. Apoiada em Edgar Morin (1993), a autora apresenta a idéia de conhecimento: “conhecimento não se reduz à informação. Esta é um primeiro estágio daquele. Conhecer implica um segundo estágio: o de trabalhar com as informações, classificando-as, analisando-as e contextualizando-as” (PIMENTA, 2000, p. 21). Por sua vez, os saberes pedagógicos, para a autora, se produzem na ação. Conforme ela, “[...] os saberes sobre educação e sobre pedagogia não geram os saberes pedagógicos. Estes só se constituem a partir da prática, que os confronta e os reelabora” (PIMENTA, 2000, p. 26, grifo da autora). Neste sentido, é na prática do dia-a-dia da sala de aula que o professor conhece a si mesmo e se reelabora como profissional da educação. O conceito de saber pedagógico para Azzi, significa, [...] o saber que o professor constrói no cotidiano de seu trabalho e que fundamenta sua ação docente, ou seja, é o saber que possibilita ao professor interagir com seus alunos, na sala de aula, no contexto da escola onde atua. A prática docente é, simultaneamente, expressão desse saber pedagógico construído e fonte de seu desenvolvimento (AZZI, 2000, p. 43). 3702 Já Altet (2001), apresenta dois tipos de saberes construídos pelos professores no cotidiano escolar: os saberes teóricos e os saberes práticos. Os saberes teóricos, segundo a autora, são da ordem do declarativo e, dentre eles, podemos distinguir os saberes a serem ensinados e os saberes para ensinar. Os saberes a serem ensinados compreendem os saberes disciplinares, constituídos pelas ciências e tornados didáticos a fim de permitir aos alunos a aquisição desses saberes; os saberes para ensinar incluem os saberes pedagógicos sobre a gestão interativa em sala de aula, os conhecimentos sobre os procedimentos didáticos para ensinar as diferentes disciplinas e os saberes da cultura dos conhecimentos que estão sendo transmitidos pelo professor. Esses saberes teóricos são indissociáveis. Os saberes práticos, por sua vez, advêm das experiências cotidianas da profissão, são contextualizados e adquiridos em situação de trabalho; são também chamados de saberes empíricos ou da experiência. Pode-se, conforme Altet (2001), distinguí-los em saberes sobre a prática e saberes da prática. Os saberes sobre a prática são os saberes procedimentais sobre o ‘como fazer’ ou formalizados. Os saberes da prática advêm da experiência, constituindo-se como o produto da ação que teve êxito, são os saberes da práxis, representados pelos saberes condicionais de Stemberg (1985, apud ALTET, 2001) (saber quando e onde), ou seja, os savoirs-faire‡, e pelos saberes de ação, muitas vezes implícitos. Já Tardif (2002), apresenta quatro saberes que constroem a profissão docente: os saberes da formação profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica), os saberes disciplinares, os saberes curriculares e os saberes experienciais. O autor reforça a concepção dos saberes experienciais como saberes surgidos na e pela prática, validados pelo professor e acoplados na constituição de seu profissionalismo. Para o autor, os saberes experienciais se constituem a partir da prática pedagógica e são renováveis. O quadro a seguir apresenta a forma como, segundo Tardif (2002, p. 63), os saberes dos professores são constituídos: ‡ Para Altet, essa expressão refere-se ao ‘saber-fazer’ em determinada situação (idem, p. 30). 3703 Saberes dos Professores Saberes pessoais dos professores Fontes sociais de aquisição Modos de integração no trabalho docente A família, o ambiente de vida, a Pela história de vida e pela educação no sentido lato etc. socialização primária. Saberes provenientes da formação A escola primária e secundária, os Pela formação e pela socialização escolar anterior estudos pós-secundários não pré-profissionais. especializados etc. Saberes provenientes da formação Os estabelecimentos de formação de Pela formação e pela socialização profissional para o magistério professores, os estágios, os cursos profissionais nas instituições de de reciclagem etc. formação de professores. Saberes provenientes dos programas A utilização das ‘ferramentas’ dos Pela utilização das ‘ferramentas’ de e livros didáticos usados no trabalho professores: programas, livros trabalho, sua adaptação às tarefas. didáticos, cadernos de exercícios, fichas etc. Saberes provenientes de sua própria A prática do ofício na escola e na Pela prática do trabalho e pela experiência na profissão, na sala de sala de aula, a experiência dos pares socialização profissional. aula e na escola. etc. Fonte: Tardif (2002, p. 63). Pode-se constatar a unanimidade dos autores estudados no que se refere a questão da construção do saber pedagógico por meio dos conhecimentos apreendidos do contexto social e significados como aprendizagem individual. Em síntese, o principal objetivo dessa abordagem teórica foi apresentar os conceitos dos saberes profissionais que constituem a profissionalidade dos professores. Concorda-se com os autores quanto à questão do professor interagir com o contexto educacional e, por meio deste, ir se constituindo professor sendo que, não se desprezam as experiências anteriores ao ingresso na atividade profissional. Nesta interação dialética, na qual o sujeito não é passivo, a construção ocorre por meio da história de cada professor e, as experiências profissionais agregam e desagregam conhecimentos na constituição da profissionalidade docente. O Desenvolvimento da Pesquisa O presente texto resulta da análise de uma entrevista realizada com uma professora alfabetizadora de uma escola particular. Para a realização da entrevista foi elaborado um roteiro com questões que contemplassem o percurso profissional, o papel da docência e o relacionamento interpessoal 3704 entre ela e os demais colegas de trabalho. O objetivo da entrevista estava direcionado para conhecer a constituição dos saberes docentes da alfabetizadora ao longo da sua trajetória profissional. A entrevista teve duração de uma hora e meia e foi gravada em fita cassete após a permissão da professora. Para a análise dos dados da entrevista foi utilizada a técnica de análise de conteúdo. Segundo Franco “[...] a análise de conteúdo é uma técnica de pesquisa cujo objetivo é a busca do sentido ou dos sentidos de um texto”. Seu ponto de partida é, ainda conforme Franco (2003, p. 13), “[...] a mensagem, seja ela verbal (oral ou escrita), gestual, silenciosa, figurativa, documental ou indiretamente provocada”. Análise dos Dados O Percurso Profissional da Professora Alfabetizadora e sua Prática em Sala de Aula A professora entrevistada trabalha a 54 anos na educação, dos quais trabalha há 45 anos com a alfabetização de crianças da primeira série do ensino fundamental. Nasceu no ano de 1933 e tem 74 anos de idade. Iniciou no magistério em 1953 e se aposentou aos 47 anos pelo INSS, mas não deixou a sala de aula. É formada no magistério, no tempo que se chamava curso normal. Trabalhou durante muitos anos na rede estadual e nunca trabalhou na rede municipal. Atualmente ela trabalha em uma escola particular. Durante a entrevista a professora demonstrou um vigor físico e falou com alegria e entusiasmo da educação. Sua paixão pela sala de aula e pelas crianças foi percebida pelo olhar brilhante e pela entonação animada de sua voz. Ela é viúva e teve cinco filhos. Quando os filhos eram pequenos, ela fez a opção de trabalhar somente meio período para se dedicar, no outro período, às atividades da casa e as questões educacionais das suas crianças. Sobre a sua trajetória profissional, a própria professora se refere de forma quase poética: Como professora é longa a trajetória do meu caminho, mas eu penso assim, que tudo o que é bom permanece, que a passagem permanece mesmo que o tempo vai passando, e a passagem do tempo não foi inútil, porque o sentido da vida não está no passado irrecuperável, nem no presente problemático, só no futuro é que podemos colher aquilo que no passado e no presente nós semeamos. A minha trajetória é de grandes alterações, mudanças, transformações, uma busca constante de querer aprender mais, de estudar para acompanhar esse movimento de transformações, procurando sempre dar o primeiro passo para o caminho do saber. Penso que hoje, a escola de hoje ou nós temos uma relação democrática, aberta, dialógica, fraterna com os nossos alunos, ou não vamos a lugar nenhum. Houve muita mudança e, para 3705 acompanhar tudo isso, a gente precisa estudar bastante, pois são cinqüenta e quatro anos de uma caminhada e, nesse percurso, as mudanças foram muitas, mas é um percurso bom e gostoso (sic). O percurso profissional esteve pautado por mudanças, mas ela diz que sempre teve cautela com as “inovações” defendidas pelo sistema escolar. Foi uma professora que não mergulhou prontamente nos modelos educacionais surgidos ao longo dos anos. Optava sempre em acompanhar as mudanças que as próprias crianças lhe apontavam. Seus saberes profissionais foram construídos observando as necessidades das crianças na sala de aula. É uma professora que adora as estórias de Monteiro Lobato e confecciona grande parte dos personagens do autor, no tamanho da criança, com tecidos de diferentes cores e modelos. Diz utilizar os personagens confeccionados por ela para ilustrar as estórias que conta às crianças. Considera que esta é uma forma interessante de despertar o desejo da criança pela leitura e, conseqüentemente, pela escrita. Brinca dizendo que costuma fazer diariamente a hora do “Conto da Vovó” para as crianças. Os Saberes Docentes Construídos ao Longo da Trajetória Profissional Quando fez o magistério, a professora alfabetizadora estudou em colégio de freiras e menciona que teve bons professores. Era um colégio muito conceituado na cidade em que morava. Isto revela que o professor, quando entra na escola, traz consigo os saberes que adquire em sua história pré-profissional. Para Tardif (2002), “antes mesmo de ensinarem, os futuros professores vivem nas salas de aula e nas escolas – e, portanto, em seu futuro local de trabalho – durante aproximadamente 16 anos (ou seja, em torno de 15.000 horas)” (p. 20). Talvez, por isso, que a professora alfabetizadora fez questão de mencionar sua formação no magistério e os bons professores que teve. Isto nos dá pistas que os bons professores estiveram presentes em sua trajetória profissional, principalmente, no início da carreira. Destaca que, a formação continuada, sempre esteve presente em sua vida profissional e a manteve atualizada. Diz que aprendeu e aprende muito nos momentos de estudos organizados pelas instituições em que trabalhou e, ainda, trabalha. Na escola em que trabalha, segundo ela, os momentos de estudos e troca de experiência profissional são freqüentes. A professora diz que gosta muito de ler e se mantêm atualizada por meio dos livros e revistas, das palestras e dos momentos de formação continuada propostos pela escola. A formação continuada, valorizada e realizada pela professora alfabetizadora, em detrimento de estudos formais (faculdades ou universidades), corrobora a idéia de Placco e Silva: 3706 É importante destacar que se entende formação continuada como um processo complexo e multideterminado, que ganha materialidade em múltiplos espaços/atividades, não se restringindo a cursos e/ou treinamentos, e que favorece a apropriação de conhecimento, estimula a busca de outros saberes e introduz uma fecunda inquietação contínua com o já conhecido, motivando viver a docência em toda a sua imponderabilidade, surpresa, criação e dialética com o novo (2003, p. 27). Na aprendizagem da docência sempre procurou se virar para resolver suas dificuldades e diz que: (...) eu me virei sozinha, a diretora era muito boa [...]. Dizia para nós nos virarmos e, na minha caminhada, eu sempre procurei me virar sozinha. Eu estudava, eu buscava, eu ia atrás das coisas, eu perguntava quando eu não sabia. Eu acho importante fazer isso, eu não tinha a preocupação de chegar para a direção e perguntar como eu deveria trabalhar isso ou aquilo, porque orientação pedagógica a gente não tinha, então eu sempre olhava assim, buscando caminhos que facilitasse o aprendizado do meu aluno. [...] Eu tive uma pessoa, que nós trabalhamos juntas, acho que uns doze ou quinze anos na mesma escola, por ai ou mais, e ela sempre dizia para mim que eu era a irmã que ela não teve, nós trabalhávamos juntas, as duas com primeiras séries, sempre compartilhando as coisas [...], essa foi uma pessoa que marcou muito a minha vida [...]. Quando eu vim embora, foi uma despedida bem chorosa, e de vez enquanto ela vem me visitar (sic). É importante perceber o quanto uma diretora pode incentivar e desafiar os professores a resolverem as suas dificuldades. Mesmo se disponibilizando a auxiliar os docentes, caso da ex-diretora da professora entrevistada, seu papel foi fundamental na construção dos saberes da docência da alfabetizadora. Foi uma pessoa que impulsionava os professores a se virarem, a ousarem, a arriscarem, mas, caso precisassem, ela estaria próximo para lhes ajudar, segundo a professora alfabetizadora. Pelo visto sua primeira diretora era uma pessoa próxima, pois a entrevistada não tinha receio de perguntar a ela quando sentia necessidade. Enfatiza que no início da sua profissão, na escola em que trabalhava, não existia a pessoa da orientadora educacional e nem da coordenadora pedagógica. Sua diretora fazia este papel e incentiva os professores a resolverem suas questões. Estava sempre presente para dar suporte, caso fosse necessário. Neste sentido, é importante destacar o papel do diretor, coordenador pedagógico, orientador educacional, mesmo naqueles anos tão distantes em que a professora alfabetizadora iniciou sua carreira no magistério. Para Garrido: O trabalho do professor-coordenador é fundamentalmente um trabalho de formação continuada em serviço. Ao subsidiar e organizar a reflexão dos professores sobre as razões que justificam suas opções pedagógicas e sobre as dificuldades que encontram para desenvolver seu trabalho, o professor-coordenador está favorecendo a tomada de consciência dos professores sobre suas ações e o conhecimento sobre o contexto escolar em que atuam (2000, p. 9). 3707 Outro ator importante na vida profissional da professora alfabetizadora foi uma amiga. Existiu no início da sua profissão a troca de experiência e de materiais com a sua amiga, e isto ela diz que foi uma das coisas que a ajudou muito. O saber foi sendo construído na interlocução entre ela e sua amiga. Isto demonstra o quanto é importante compartilhar as atividades e realizar estudos com outros colegas de trabalho. Para Tardif: [...] os professores partilham seus saberes uns com os outros através do material didático, dos ‘macetes’, dos modos de fazer, dos modos de organizar a sala de aula, etc. Além disso, eles também trocam informações sobre os alunos. Em suma, eles dividem uns com os outros um saber prático sobre sua atuação. A colaboração entre professores de um mesmo nível de ensino que constroem um material ou elaboram provas juntos e as experiências de team-teaching também fazem parte da prática partilhada dos saberes entre os professores (2002, p. 53). Na visão da professora alfabetizadora os professores da atualidade são mais generosos e companheiros para a troca de materiais e conteúdos, do que no início da sua carreira, em 1953. Ela diz que os professores eram mais individualistas e não trocavam informações como agora. Ainda, segundo sua opinião, as crianças de hoje também mais fáceis de trabalhar. Hoje em dia, as crianças são mais curiosas e participativas, enquanto que, antigamente, as crianças eram mais contidas. Isto, certamente, reflete bem o modelo educacional de cada contexto social, político e pedagógico. Para a professora, acompanhar as mudanças do contexto social e educacional foi um dos pilares da sua longa e satisfatória trajetória profissional: [...] tudo foi mudando e a gente teve que ir acompanhando para não ficar para traz nessas mudanças. [...] antes era mais na memorização e hoje já é mais na pesquisa, indagando, queremos um relacionamento crítico com nossos alunos. [...] hoje o ensino é outro, hoje o que nós fazemos é termos uma consciência de que nós intermediamos os nossos alunos na busca, no processamento das informações, e que nós não somos mais a fonte única e exclusiva dessas informações [...] hoje é melhor para ensinar. Antigamente, a disciplina era uma disciplina mais formal, mais rígida, o trabalho era mais calmo, hoje não, já é tudo diferente, é outra paisagem. Acho melhor ensinar hoje, apesar de termos problemas disciplinares com a família, pois a família mudou muito, a família delegou muita coisa para a escola [...] (sic). É interessante perceber como a professora expressa sua opinião dizendo que é melhor trabalhar com as crianças de hoje. Será que isto tem relação diretamente com esta alfabetizadora que se direcionou pelas crianças para as mudanças das estratégias pedagógicas? Ela mesma diz gostar de ouvir as crianças, pois estas sempre lhe mostraram o caminho do ensinar. A professora diz sempre ter acreditado, antes de qualquer discurso e/ou teoria que 3708 mudasse a forma de alfabetizar, na criança, pois era ela que lhe indicava o caminho do processo de ensino-aprendizagem. Assim, além da diretora e da colega de trabalho, foram às crianças as grandes responsáveis pela construção dos seus saberes profissionais. A percepção, a sensibilidade e o desejo de ensinar foram os fios condutores do seu trabalho docente. Para ela: “o papel essencial de um professor é viver intensamente o seu tempo, é caminhar ao lado do aluno, ajudando a construir o seu conhecimento. Deve abrir as janelas que estão fechadas pelo desânimo, pela ausência de sonhos; acreditar no silêncio, ajudá-lo e desafiá-lo a querer aprender” (sic). Destaque de Algumas Questões Na análise da entrevista da professora alfabetizadora, algumas questões emergiram dos dados levantados para a constituição dos seus saberes docentes pertinentes de serem destacados: 1) A menção dos seus “bons professores” no curso secundário do magistério. Ela destaca com veemência que ao estudar em um colégio de freiras, seus professores foram muitos bons. Neste caso, destaca-se a responsabilidade da formação continuada para a vida profissional de um professor. Com diz Tardif (2002) a história escolar do professor contribui para sua vida profissional. 2) A importância do papel do professor-coordenador/diretor, supervisor ou orientador educacional na formação profissional do professor. Foi pela proximidade e incentivo da sua primeira diretora que sua aprendizagem da docência foi sendo construída. Apesar da diretora não interferir diretamente no seu trabalho, segundo sua fala, existia uma confiança e incentivo para que ela resolvesse as questões do cotidiano da sala de aula. Ela sabia que podia recorrer à diretora sempre que necessitasse. 3) O papel da sua amiga professora na troca de informações e saberes pedagógicos. Com esta interlocução sistemática a professora diz que aprendeu muito sobre os conteúdos a serem ensinados. Conseqüentemente, a professora acredita e valoriza a formação continuada de professores. Diz que estes momentos são preciosos para a formação dos professores, por meio das trocas de experiências e estudos coletivos. 4) Valorização da criança como direcionadora das atividades escolares. A professora alfabetizadora diz que os “modismos pedagógicos” foram analisados com cautela e que valorizava as solicitações das próprias crianças para aprender. Diz sempre ter valorizado a leitura e a escrita para e das crianças. Os personagens de Monteiro 3709 Lobato acompanham suas aulas até hoje e, ela mesma, mesma costuma confeccionar os personagens das histórias que conta as crianças. Sistematicamente costuma realizar a hora do “conto da vovó”, segundo sua fala, e realiza as leituras e dramatizações para as crianças. Diz que as mesmas ficam vibradas pelas histórias e, esta prática, costuma despertar interesse pela leitura e escrita. 5) É interessante destacar a menção da professora às crianças de hoje. Ela diz que, as crianças de hoje são mais “agitadas”, mas mesmo assim é melhor trabalhar. Ela diz que os questionamentos e curiosidade das crianças de hoje são mais desafiadores para a sua atividade profissional. Segundo ela, a forma de ensinar hoje é mais dinâmica, pois acompanha a dinamicidade (inquietude) das crianças. Este é um ponto de vista que nos faz pensar: será que podemos comparar isto a opinião de outros alfabetizadores que estejam a tantos anos na profissão? Ou, será que não encontraremos mais professoras com tantos anos de profissão em sala de aula? O que diriam professoras na mesma situação que a entrevistada? 6) Quanto aos colegas professores, uma questão chama a atenção, o aumento da socialização de atividades e estudos entre os professores. Segundo a professora, os colegas professores passaram do individual para o social. Será que os professores estão trocando mais idéias, informações e valorizando mais os estudos coletivos? Segundo a opinião da professora alfabetizadora isto tem acontecido mais nas últimas décadas. Ela diz que os professores estão mais companheiros uns dos outros. Pode-se dizer que o espírito coletivo tem aumentado entre os professores? Caso isto seja realmente verdade, o fortalecimento para a construção dos saberes profissionais beneficiará a prática cotidiana dos professores. Vale lembrar que está é foi uma entrevista realizada somente com uma professora e que as questões apontadas por ela, não foram confrontadas com relatos de outros professores alfabetizadores de mais tempo na profissão. Desta entrevista, pode-se refletir sobre algumas questões das mudanças ocorridas no contexto educacional, social e político do Brasil. É uma entrevista que relata a experiência de 54 anos de atuação docente, a qual pode ser considerada uma memória viva que ajuda a entender a construção dos saberes profissionais da docência. 3710 REFERÊNCIAS ALTET, Marguerite. In: PERRENOUD, Philippe et al. 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