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TERRA BRASILIS:
do paraíso de deus(es)
e de gentes (in)crédulas
ou do lugar d’onde
“não existe pecado do
lado debaixo do equador”
THE LAND BRASILIS: the paradise of the god(s)
and (in)credulous people or the place where
“there is no sin below the equator”
RESUMO Este ensaio tem por objetivo pensar a religião no contexto dos 500 anos de Brasil. No entanto, o fenômeno
do “descobrimento” do Brasil não pode ser pensado em separado do “descobrimento” do Novo Mundo, pois são momentos de um mesmo fenômeno: o “encobrimento” do outro enquanto outro. Conquista e evangelização são portadoras de lógicas eurocêntricas que, em última instância, dizimaram povos e culturas eminentemente complexas e
semioticamente proliferantes. É no contexto global dessa discussão que se quer colocar em questão, então, a religião
no Brasil, sempre conectada com outros fenômenos da cultura e da história.
Palavras-chave descobrimento/encobrimento – eurocentrismo – religião – filosofia – semiótica – América Latina – Caribe.
ABSTRACT The objective of this essay is to consider religion within the context of the 500 years of Brazil. However,
the phenomenon of the “discovery” of Brazil cannot be considered separately from the “discovery” of the New World,
since they are aspects of the same phenomenon: the “covering” of the other as other. The conquest and evangelization
brought a Eurocentric logic that, in the end, greatly reduced the eminently complex and semiotically proliferate peoples and cultures. It is within the global context of this discussion that the question of religion in Brazil is placed,
always connected to other phenomena of culture and history.
Keywords discovery/covering – eurocentrism – religion – philosophy – semiotics – Latin America – Caribbean.
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EDIVALDO JOSÉ BORTOLETO
Professor de Filosofia da UNIMEP,
do Colégio Piracicabano e do Curso
de Vida Religiosa dos Frades Capuchinhos
em Piraciccaba. Doutorando em
Comunicação e Semiótica pela PUC-SP
[email protected]
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Em nome do Deus de todos os nome – Javé
Obatalá / Olorum / Oió
NASCIMENTO/CASALDÁLIGA/TIERRA
Sê plural como o universo!
FERNANDO PESSOA
Como memorial às 115 milhões de gentes crédulas que sofreram o primeiro holocausto da espécie humana.
EM TORNO DO DESCOBRIMENTO/ENCOBRIMENTO
“o sentido
destes 500 anos:
descoberta, invasão,
evangelização,
encobrimento do
outro?
”
N
o ano de 1992 comemoraram-se os 500 anos de América.
Inúmeros foram os encontros, debates e simpósios, na ordem
do dia realizados, tendo por objetivo celebrar “festeiramente”
ou refletir mais criticamente – não só na América e Caribe,
como também na Europa, especialmente Espanha e Portugal – o sentido destes 500 anos: descoberta, invasão, evangelização, encobrimento do outro?1
Oito anos depois, está-se a comemorar os 500 anos de Brasil. Inúmeros,
também, estão sendo os eventos comemorativos da grande façanha histórica. Se
bem me recordo, as comemorações dos 500 anos de América não marcaram tanto,
como estão a marcar os 500 anos de Brasil. No entanto, o processo de encobrimento do outro é o mesmo, pois não podemos nos pensar separadamente do continente. O continente americano foi a primeira “periferia” da Europa moderna e
marcou o “processo originário da constituição da subjetividade moderna”. Como
diz Enrique Dussel:
Fomos a primeira “periferia” da Europa moderna; quer dizer, sofremos
globalmente desde nossa origem um processo constitutivo de “modernização” (embora naquele tempo não se usasse esta palavra) que depois se
1
A questão do “encobrimento” aparece tanto em Leopoldo Zea como em Enrique Dussel. Zea afirma: “(...)
Pero hablamos más de encubrimiento que de descubrimiento, ya que tanto España como Europa encontraron en este nuestro Continente lo que querían encontrar; descobrieron lo que querían descubrir. Ahora toca
a la inteligencia de esta región realizar su próprio descubrimiento, partiendo precisamente del encubrimiento que significó la hazaña del encuentro intercontinental, la conquista y colonización del nuevo continente. Hazaña que España inicia en el siglo XVI y es continuada por la Europa occidental en el siglo XVII,
dándose origen a las dos Américas que vienen enfrentadas en lucha dialéctica para imponer hegemonías o
para librarse de ellas” (1988, pp. 8-9). Já para Dussel, a América “foi a primeira região da Europa a ter a ‘experiência’ originária de constituir o Outro como dominado e sob o controle do conquistador, do domínio do
centro sobre a periferia. A Europa se constitui como ‘centro’ do mundo (em seu sentido planetário). É o
nascimento da Modernidade e a origem de seu ‘Mito’!” (1993, p. 15).
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aplicará à África e Ásia. Embora nosso continente já fosse conhecido –
como prova o mapa múndi de Henricus Martellus em Roma em 1489 –
, só a Espanha, graças à habilidade política do rei Fernando de Aragão e
à ousadia de Colombo, tentou formal e publicamente, com os correspondentes direitos outorgados (e em franca competição com Portugal), lançar-se ao Atlântico para chegar à Índia. Este processo não é anedótico ou
simplesmente histórico: é, além disso, o processo originário da constituição da subjetividade moderna.2
O “descobrimento” da América e o do Brasil são momentos de um mesmo
fenômeno, portanto. Assim, ao se falar de Brasil no momento em que se está a comemorar os 500 anos de “descobrimento”, faz-se necessário um pensamento mais
alargado, pois as realidades no continente latino-americano e caribenho, mais do
que díspares, são realidades complementares, mesmo quando falamos de uma
América hispânica e de uma América lusa.
Aliás, aqui reside um sério problema. É como se o Brasil, à maneira de Portugal, desse as costas para o resto do continente, da mesma forma como o faz Portugal com o continente europeu. Nós brasileiros não nos sentimos fazendo parte do
continente latino-americano, grosso modo. O mesmo sucede com os portugueses
em relação à Europa.
Assim, pensar a questão do fenômeno religioso – bem como outros fenômenos – no Brasil, neste contexto de comemoração dos 500 anos, implica necessariamente pensá-lo conectado ao contexto da América Latina e do Caribe. Não podemos mais nos ver separados desse grande e complexo semiótico que já é o nosso
continente. Aqui existem, então, questões e razões de ordem ontológica, epistemológica, metodológica, cultural, ética, estética, política e, por que não dizer, revolucionário-subversiva também.
O continente, em sua complexidade cultural, foi encoberto quando para cá
acorriam os primeiros europeus em suas naus e caravelas. Esta tese de Enrique
Dussel será assumida por mim ao longo e ao largo deste breve ensaio, que tem por
objetivo pensar o fenômeno religioso no Brasil. Outra tese, “desconhecida” por nós
e pela tradição cultural européia moderna, é a de que estamos no “processo originário da constituição da subjetividade moderna”, também no dizer de Dussel.
Estamos na antecâmara de um “novo horizonte”. No contínuo e descontínuo da modernidade, o terceiro milênio já desponta, embora não tenha mostrado
a cabeça por cima do muro do horizonte e somente vêem-se-lhe as pontas dos seus
dedos. Parece-me que vivemos pressionados pelo tempo, pois se os 500 anos de
2
DUSSEL, 1993, p. 16.
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América e os 500 anos de Brasil nos remetem ao passado, por outro lado o advento
do terceiro milênio nos arremete ao futuro.
Passado e futuro, assim, nos colocam num presente crucial. Notadamente
para nós da Latinoamérica e do Caribe. Num estado de tensão existencial, de insatisfação daquilo que fomos e pouco sabemos e daquilo que seremos – e sobre o
que precariamente ou quase nada sabemos –, três atitudes são possíveis. A primeira, a de indiferença. A segunda, a de esquivar-se. Já a terceira – em se permanecendo na tensão existencial, na insatisfação, como momento de negatividade –, a
de se suportar e manter-se no sentido da afirmação: dizer o ser, tanto em relação
ao passado como em relação ao futuro. Porque, de acordo com José Ortega y Gasset, em seu prólogo das Lecciones sobre la Filosofía de la Historia Universal, de
Hegel, “lo que vale más en el hombre es sua capacidad de insatisfacción. Si algo divino posee es, precisamente, sua divino descontento, espécie de amor sin amado y
como dolor que sentimos en miembros que no tenemos”.3 E no dizer também de
Hegel: “O Espírito só conquista a sua verdade com a condição de encontrar-se a si
mesmo na devastação absoluta”.4
Portanto, a terceira atitude parece ser a que deva ser escolhida e assumida.
Primeiro porque a mais penosa, pois o assumir a negatividade na sua compreensão
aqui acenada coloca-nos na radicalidade do nada e, depois, porque a mais libertadora, pois nos coloca na conquista da verdade, ou da meia-verdade. E em função
também desta atitude ser inerente à exigência do filosofar, do poetar e do acreditar.
Filósofos, poetas, teólogos e místicos, por terem vivido nesta ambiência radical do nada, “souberam dizer o ser”, o “absoluto”, o “sagrado”, o “tudo”. Não
vão ser “o ser e o nada” que em última instância caracterizarão o pensamento de
Heidegger? Não vão ser o “nada e tudo” que irão resumir o pensamento ascético de
São João da Cruz? Não vão ser o “ser e não-ser” os pontos-chave da metafísica da
alteridade de Enrique Dussel?
Como veremos mais adiante, a América Latina e o Caribe, em especial o Brasil, no contexto do continente, é algo de difícil apreensão. Somente o difícil é estimulante, diz José Lezama Lima em A Expressão Americana.5 Sendo ela difícil, já
é portadora de complexidade também. “A complexidade é uma palavra problema
e não uma palavra solução”, afirma Morin.6 Portanto, pensar o fenômeno religioso
3 ORTEGA y GASSET, 1989, p. 15. Lições (HEGEL, 1989) foi publicado pelos discípulos de Hegel (1770-1831),
após sua morte.
4 REALE & ANTISERI, 1991, p. 105.
5 LIMA, 1988, p. 47.
6 MORIN, s/d, p. 8.
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entre tantos outros – de per si, fenômenos interligados – no contexto dos 500 anos
é já algo eminentemente difícil e complexo.
AMÉRICA LATINA E CARIBE:
TEXTUALIDADES COMPLEXAS E CONTÍGUAS
Mas, afinal, o que é a América Latina e o Caribe?
César Fernándes Moreno começa a introdução do livro América Latina em
sua Literatura com o seguinte trecho em epígrafe tirado das Lições de Hegel:
Por conseguinte, América é o país do porvir. Em tempos futuros se evidenciará sua importância histórica, quem sabe na luta entre América do
Norte e América do Sul... É um país de nostalgia para todos os que estão
enfastiados do museu histórico da Velha Europa... Até agora o que aqui
acontece não é mais do que eco do Velho Mundo e reflexo de uma vida
alheia. Mas como país do porvir, América não nos interessa, pois o filósofo
não faz profecias.7
Se o filósofo não faz profecias, como afirma Hegel, pois a América como
“país do porvir” não lhe interessa, é verdade que hoje, um século e meio depois do
dito de Hegel, a América é totalmente outra.
O que para ele era porvir já é presente para a América; o continente que
era para ele natureza, é história já. Ele falava de América do Norte e América do Sul: na do norte situa-se atualmente a nação mais forte do mundo; a do sul, sob o nome atualizado de América Latina, representa uma
das idéias mais dinâmicas do mundo atual. Uma série de fatores promoveu-a ao primeiro plano da expectativa pública: o primeiro, a explosão
demográfica, se se aceitando essa etiqueta tecnológica aplicada ao fato de
alguém nascer; seu crescimento continental é o maior do mundo: 2,9%
anual. Atualmente, conta com mais de 270 milhões de habitantes, irregularmente distribuídos em 21 milhões de quilômetros quadrados. Esta
explosão, que se produz no contexto econômico chamado subdesenvolvimento, ameaça transformar-se, por sua vez, em explosão política. Mas
o que agora nos interessa especificamente é que a partir desta cadeia de
explosões, ou explosão em cadeia, a América Latina vai antecipando uma
outra: a cultural.8
Dado o objetivo deste trabalho, não tem lugar aqui discutir a América Latina
– como o faz César Fernández Moreno – em seus múltiplos conceitos, como histórico, antropológico, político e geográfico (ordem geológica). Mas, sim, reter a
idéia de explosão cultural.
7
8
MORENO, 1972, p. 15. Cf. também: HEGEL, 1989, p. 177.
Ibid., pp. 15-16.
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A despeito da explosão cultural que é a América Latina e o Caribe, o próprio
conceito de América Latina não abarca sua complexidade nem sua dificuldade. O
conceito é impreciso, portanto.
A origem da idéia de latinoamérica segue um desenvolvimento processual
nada simples.
Primeiramente, encontramos o nome de Las Índias no século XVI, presente
no imaginário de Colombo, “que desejava chegar à Ásia de Marco Polo”. Como
também um outro nome para Las Índias no pensamento do historiador e franciscano do século XVI Gerónimo de Mendieta: El Nuevo Mundo. E, já na década
de 1860, na França de Napoleão III, quando o economista político de fama Michel
Chevalier (1806-1879) propunha a construção de um canal interoceânico no Panamá, em 1844, tem-se um outro nome que permanece até nossos dias: L’Amérique Latine.9
Dizer a América Latina, para além ou aquém do seu próprio conceito, é
dizê-la não só a partir das questões da ordem do racial, do lingüístico, do religioso,
mas sim enquanto um complexo sim(b)iótico em (e de) te(n)são. Dizendo d’outra
maneira, a América Latina é mestiça, como afirma José Martí em Nuestra América.10 Na mestiçagem há sim(b)iose de raças e interpenetração mental-neuronal.
Real ou metaforicamente, a Europa foi modificada pela América; a América foi
modificada pela Europa.
Portanto, falar em 500 anos de América, em 500 anos de Brasil – pois o fenômeno do encobrimento é o mesmo – é falar de algo extremamente grandioso.
Por quê? Porque, como diz Ricardo Vélez Rodrigues, “no dudo en afirmar que se
trata de um hecho de tamaña magnitud, por cuanto es a partir del descubrimiento
del Nuevo Mundo que la humanidad pasó a tener conciência de su dimensión planetária”.11
Enrique Dussel, por sua vez, diz que “o descobrimento da América por espanhóis e portugueses significa uma revolução geopolítica sem precedentes na história mundial”.12
Assim, explosão cultural é, no dizer de César Fernándes Moreno, uma concepção sintética na cultura latino-americana, formada por culturas autóctones,
culturas européias descobridoras, cultura africana (através da escravidão) e, cultura dos imigrantes do século XIX.
9
Cf. PHELAN, 1993, pp. 463-475.
MARTÍ, 1992, pp. 480-487.
11 RODRIGUES, 1991, vol. 2, p. 80.
12 DUSSEL, 1985, p. 166.
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A América Latina e o Caribe, enquanto um complexo sim(b)iótico em (e de)
te(n)são, são territórios de linguagens adquiridas, de linguagens devoradoras e de
linguagens nativas.
Portanto, não podemos ter uma leitura con-clusiva da América Latina e o
Caribe, pois esta seria uma compreensão fechada. Segundo César Fernándes Moreno, “dentro de um tal complexo de tensões na América Latina, são quase infinitas
as possibilidades de ações e reações e, correlativamente, a tentação intelectual de diluir seus problemas em outros próximos ou análogos”.13 Devemos ter sim uma leitura pluralista e aberta, portanto.
Uma leitura con-clusiva da América Latina e do Caribe é, em última instância, portadora de uma linguagem que se fecha com o poder, cuja pretensão é esgotar o real que ela é. Como, por exemplo, o Mercosul, que fica circunscrito tãosomente às questões de ordem econômico-jurídica. Uma linguagem assim parece
ser de uma prepotência imbecil, portanto. Fenômenos culturais, como o religioso,
também comumente, grosso modo, são tratados dessa maneira, notadamente em
ambientes acadêmicos, nos quais a assepsia do conhecimento se faz presente de
maneira petulante.
É sabido que o mundo ocidental é pensado hierarquicamente, e não anarquicamente, e, em que pese que já se tinha notícias da América bem antes de ser
“descoberta”, ela nasce, portanto, já moderna. Como já sinalizado, esta é a tese central de Dussel em 1492 – O Encobrimento do Outro, em que dialoga com toda
a tradição do pensamento filosófico do ocidente moderno e pós-moderno, como
Edmund O’Gorman, Alberto Caturelli, Richard Rorty, Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas.
A tese de Dussel passa pelas diveras figuras (gestalt) de leituras da América
Latina, como “invenção”, “descobrimento”, “conquista” e “colonização”, revelando
os seus conteúdos teóricos, espaciais e diacrônicos distintos, mostrando como o Outro não foi descoberto como Outro, mas sim como o “si-mesmo” e, portanto, afirmando que o Outro foi negado como “encobrimento”. Essa tese de Dussel já teria
anteriormente influenciado a obra de Tzvetan Todorov, A Conquista da América
– a questão do outro.
Outra tese de Dussel é a sinalização de “uma ‘teoria’ ou ‘filosofia do diálogo’
– como parte de uma ‘filosofia da libertação’ do oprimido, do incomunicado, do
excluído, do Outro”.14
O pensamento de Enrique Dussel tem a América Latina e o Caribe como horizonte, o que significa uma ruptura com o pensamento eurocêntrico, que, segundo
13
14
MORENO, 1972, p. 18.
DUSSEL, 1985, p. 8.
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sua tese, inicia-se a partir de 1492, quando a Europa-centro traz para sua órbita
econômica, política e cultural as outras três partes do planeta, ou seja, a América,
a África e a Ásia. Isso pode ser melhor precisado na evolução do pensamento moderno em termos teológico, científico e filosófico na forma de tecer os dizeres sobre
o Novo Mundo. É o que mais adiante veremos.
Ao introduzir a questão central do outro e da escuta do outro, Dussel já está
postulando a questão da ética – filosofia primeira do seu discurso filosófico. Nem
uma ética eurocêntrica nem helenocêntrica, pois para ele é necessário nos descentrar dos provincianismos ocidentalistas e universalistas. Assim, ao colocar a questão
da escuta do outro Dussel está apresentando a questão da exterioridade frente à totalidade totalizada, ou seja, à totalização do sistema.
Assim, é a experiência do cara a cara na exterioridade que permite destruir
o fechamento, a totalização do sistema, superar os limites do sistema para ver o
próximo, o outro enquanto semelhante e não mais idêntico, enquanto o mesmo.
Estar cara a cara é se abrir ao infinito. Isso é o que Dussel irá chamar de experiência metafísica da alteridade.
Mas a experiência metafísica da modernidade foi a da mesmidade, ou seja,
o Novo Mundo foi tratado como o mesmo, como o idêntico. No bojo de lógicas fechadas e identitárias (como o eurocentrismo, o lingüicentrismo, o etnocentrismo,
o logocentrismo, o monoculturalismo), deixou-se de compreender um Novo Mundo, portador de lógicas abertas, em expansão, e proliferantes em signos, formando
um manancial de multiplicidade e contigüidade textuais. Ou seja, já éramos ricos,
no “princípio”, em linguagens da oralidade, gestualidade, sonoridade, ritmicidade,
visualidade, olfaticidade e gustatividade. Já éramos totalmente alfabetizados.15 Essa
experiência metafísica moderna da mesmidade empreendeu o primeiro grande
holocausto da história da espécie humana. O descobrimento como encobrimento
do outro foi o primeiro grande holocausto, no qual um complexo semiótico cultural foi todo dizimado, começando pela destruição das hierofanias antigas, dos
templos, dos sacerdotes, dos deuses, de símbolos, de ritos, de gestos, de textos, de todas as gentes crédulas.
Esse discurso metafísico da mesmidade da totalidade totalizada do centro
começou a receber como contra-texto um discurso metafísico da alteridade da periferia enquanto exterioridade, que se principia com Antonio de Montesinos (?1545), a primeira voz profética na América. Essa voz profética vai ser seguida por
Bartolomeu de Las Casas (1474-1566), por Josué de Acosta (1539-1600), Bernardino de Sahagún (?-1590), continuando no herói, santo, apóstolo e mártir José Ju15
Cf. BORTOLETO, 1999, pp. 335-342.
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lián Martí (1853-1895), Ernesto Che Guevara, Fidel Castro Ruz, Leopoldo Zea, Arturo Andres Roig, Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Hugo Assmann, Enrique Dussel, Pablo Guadarrama Gonzalez, Raúl Fornet-Betancourt, entre tantos outros.
Com José Lezama Lima, Alejo Carpentier e Severo Sarduy, a nossa estética
neobarroca, vai ser pensada como contra-texto da latinoamerica e o Caribe. Lezama Lima, autor de Paradiso, afirmará que, depois de apropriado e transformado,
o barroco entre nós foi uma arte da contra-conquista: “Repetindo a frase de Weisbach, adaptando-a ao que é americano, podemos dizer que entre nós o barroco foi
uma arte da contraconquista”.16
A apropriação que Lezama Lima faz do barroco americano é distinta da do
barroco europeu, pois, além de ser original, sinaliza três aspectos fundamentais:
nosso barroco se apresenta como uma tensão, é portador de um plutonismo e é
também portador de um estilo plenário.
Esse barroco vivo, pleno e dinâmico, associado às culturas periféricas, possibilitará a Lezama falar do Señor Barroco, que fará a arte da contra-conquista: “O
primeiro americano que vai surgindo dominador de seus caudais é o nosso senhor
barroco”.17 Aqui, em nossa estética neobarroca, reside o conteúdo subversivo, revolucionário e político dos barrocos americano e caribenho.
Toda essa literatura neobarroca que emerge nas décadas de 60 a 80, e que
apresenta o barroco como um “novo cânone” da estética pós-moderna latino-americana e caribenha, está muito próximo da problemática tanto filosófica como teológica que também se apresenta neste período, ou seja, o de uma Filosofia da Libertação e uma Teologia da Libertação, discursos e contra-textos proféticos. Assim são
as palavras preliminares de Enrique Dussel, em Filosofía de la Liberación: “Filosofía de la liberación, filosofía postmoderna, popular, feminista, de la juventud, de los
oprimidos, de los condenados de la tierra, condenados del mundo y de la historia”.18
Tanto a literatura neobarroca, como a filosófica e a teológica, como formas elevadas
e não estanques de pensamento profético da cultura latino-americana e da caribenha, estão a problematizar esse complexo real que é o continente latino-americano
e Caribe em sua complexidade textual de multiplicidade e contigüidade.19
Vejamos como o discurso metafísco da mesmidade (da totalidade totalizada
do centro) e o discurso metafísico da alteridade da periferia (enquanto exterioridade) se dialetizam. Ou, como os dizeres dos respectivos discursos do centro sobre
16
17
18
19
LIMA, 1988, p. 80.
Ibid., p. 80.
DUSSEL, 1985, p. 9.
Cf. BORTOLETO, 2000, p. 96.
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a América (teológico, científico e filosófico) e como o Señor Barroco vão inaugurando seu contra-texto e seus dizeres como arte da contra-conquista.
“Un gran debate se desenvuelve desde el descubrimiento de América hasta la
Ilustración. Este debate sirve de prólogo, por decir así, al sistema de valores que Europa y Estados Unidos opondrán luego desde su altura imperial al pueblo de América Latina.”20 Qual debate é este? É o debate iniciado na Europa, logo após o descobrimento, pelo dominicano espanhol Bartolomeu de Las Casas. Esse frade dominicano, de formação tomista e cristã, do movimento da segunda escolástica hispânica, denunciou os abusos e explorações do colonialismo espanhol. Denúncia
esta que colocava em questão na metrópole espanhola a natureza e os objetivos últimos da conquista.
Protestos advindos dos britânicos, holandeses e franceses não faltaram ao
frade dominicano. O mais violento a Las Casas vem do próprio clero dividido a respeito de tal questão. Juan Ginés de Sepulveda (1490-1573), cronista de Carlos I e de
Felipe II, denunciará Las Casas em defesa dos índios, afirmando em sua obra Demócrates o tratado sobre las causas de la guerra justa que a guerra da conquista das Índias e a guerra contra a população americana eram justificadas.21
Dessa maneira Sepulveda reformula a teoria da “escravidão natural”, contida na Política, de Aristóteles. Eis o que diz o estagirita: “Todos aquellos que difieren de los demás tanto como el cuerpo del alma o el animal del hombre (y tienen
esta disposición todos aquellos cuyo rendimiento es el uso del cuerpo, y esto es lo
mejor que pueden aportar) son esclavos por naturaleza”.22
Na mesma linha de reflexão de Juan Ginés de Sepulveda estará também o
padre Oviedo, historiador das Índias e inimigo de Bartolomeu de las Casas. Oviedo
afirma: “Los que sobresalen por su prudência y por su ingenio, pero no por sus
fuerzas corporales, éstos son señores por naturaleza; al contrário, los tardos y torpes
de entendimiento, pero corporalmente robustos para llevar a cabo las tareas necesarias, éstos son siervos por naturaleza”.23
Esse debate em torno e sobre a inferioridade da América e a justificação da
exploração do novo continente e da guerra justa contra a sua população deslocarse-á do âmbito do pensamento teológico para o âmbito do pensamento filosófico
da Ilustração, amparado pelas ciências naturais no século XVIII.
Vejamos, por exemplo, o que diz Buffon no âmbito das ciências naturais:
20
21
22
23
RAMOS, 1973, p. 79.
Cf. Diccionário de Filosofía, con autores y temas latinoamericanos, 1986, p. 91.
RAMOS, 1973, p. 80.
Ibid., p. 81.
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El salvaje es dócil y pequeño por los órganos de la generación; no tiene
pelo ni barba, y ningún ardor para com su hembra...quitadle el hambre
y la sed, y habréis destruido al mismo tiempo el principio activo de todos
sus movimientos; se quedará estúpidamente descansado en sus piernas o
echado durante días enteros.24
Voltaire, por sua vez, fundamentado-se no pensamento de Hume, sobretudo
em sua teoria climática, diz o seguinte:
Hay alguna razón para pensar que todas naciones que vivem más allá de
los círculos polares o entre los trópicos son inferiores al resto de la espécie”
cuando afirma que “los puebros alejados de los trópicos han sido siempre
invencibles, y que los pueblos más cercanos a los trópicos han estado sometidos a monarcas.25
Assim, desde Sepulveda e Oviedo, teólogos católicos do século XVI, até os filósofos e naturalistas céticos do século XVIII, passando por De Paw, Bacon, De Maistre, Monstequieu e Bodin, até culminar no grandioso e, ao mesmo tempo, cínico
pensamento de Hegel, não só ocorreu o processo de “encobrimento do Outro”, para
usar linguagem dusseliana, mas encobriu-se toda realidade de complexidade e
contigüidade textual que é a América Latina – nome este bem impreciso, como já
visto, que não dá conta de abarcar todo o complexo manancial lingüístico, em termos semióticos, ou seja, as linguagens: oral, gestual, rítmica, sonora, visual, olfatodegustativa. Nesse sentido, vejamos o que Hegel diz em suas Lecciones:
América se há revelado siempre y sigue revelándose impotente en lo físico como en lo espiritual. Los indígenas, desde
el desembarco de los europeos, han ido pereciendo al soplo de la actividad
europea. En los animales mismos se advierte igual inferioridad que en los
hombres. La fauna tiene leones, tigres, cocodrilos, etc.; pero estas fieras,
aunque poseen parecido notable con las formas del viejo mundo, son, sin
embargo, en todos los sentidos más pequeñas, más débiles, más impotentes. Aseguran que los animales comestibles no son en el Nuevo Mundo
tan nutritivos como los del viejo. Hay en América grandes rabaños de vacunos; pero la carne de vaca europea es considerada allá como un bocado
exquísito.26
Jürgen Habermas, positivamente e acertadamente, afirma em O Discurso
Filosófico da Modernidade que “a descoberta do ‘Novo Mundo’ bem como o Re24
Ibid., p. 82.
Ibid., p. 83. Nessa mesma direção seguida por RAMOS (1973), vale também conferir e referenciar a obra
de GERBI, 1996.
26 HEGEL, 1989, pp. 170-171 (destaque meu).
25
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nascimento e a Reforma – os três grandes acontecimentos à volta de 1500 – constituem a transição epocal entre a Idade Moderna e a Idade Média”.27 Ele desenvolve
uma Teoria da Ação Comunicativa. Nela há uma teoria da racionalidade, uma teoria da comunicação e uma teoria da modernidade. Na Teoria da Ação Comunicativa, Habermas mantém uma conexão entre a racionalidade, a modernidade e a
sociedade. Com isso ele quer criticar o adeus à modernidade realizado pela pósmodernidade e seus autores – que, nesta sua obra, são aqueles que rompem com
a promessa do Iluminismo –, chamados de neoconservadores, como, por exemplo,
Derrida, Foucoult, Deleuze e Bataille.
Segundo Habermas, em o Discurso:
Foi Hegel quem inaugurou o discurso da Modernidade. Foi Hegel que introduziu o tema da certificação autocrítica da modernidade; foi Hegel
quem estabeleceu as regras, pelas quais se torna possível submeter o tema
a variações – a dialética do iluminismo. Ao mesmo tempo que elevou a
história contemporânea a um nível filosófico, Hegel pôs o eterno em contacto com o transitório, o intemporal com o actual e, deste modo, transformou radicalmente o carácter da filosofia. É certo que Hegel não queria de modo nenhum cortar com a tradição filosófica; é só a geração seguinte que toma consciência deste corte.28
Se é verdade que foi Hegel quem inaugurou o discurso da modernidade, é
verdade que o “Novo Mundo” do qual Habermas fala, um “dos grandes acontecimentos à volta de 1500”, ficou excluído deste discurso. Hegel exclui o “Novo Mundo” por causa de suas determinações naturais, porque este “Mundo Novo” está cindido em duas partes e mantém uma conexão externa, enquanto o “Velho Mundo”,
embora dividido em três, suas porções, ao contrário de uma conexão externa, mantêm uma conexão interna, essencial e necessária exigência da totalidade. O Mar
Mediterrâneo é a região natural da “comunicação trinitária”, ou seja, Europa, África e Ásia. Assim diz Hegel:
Una vez que hemos terminado con el Nuevo Mundo y los sueños que puede suscitar, pasemos al Viejo Mundo. Este es, esencialmente, el teatro de lo que constituye el objeto de nuestra consideración, de la historia universal. (...) El Viejo Mundo consta de tres partes; ya el sentido que de la naturaleza tenían los antiguos, supo distinguirlas acertadamente. Esta división no es casual, sino que responde a una
necesidad superior y es adecuada al concepto.(...) Las tres partes del
mundo mantienen, pues, entre sí una relación esencial y constituyen una
27
28
HABERMAS, 1990, pp. 16-17.
Ibid., p. 57.
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totalidad. Lo más característico es que se hallan situadas alrededor de un
mar, que constituye su centro y que es una vía de comunicación. Tiene
esto gran importancia. El mar Mediterráneo es elemento de unión de estas tres partes del mundo, y ello lo convierte en el centro de toda la historia
universal. El Mediterráneo, com sus muchos golfos y bahías, no es un
Océano, que empuja hacia lo indeterminado y con el cual el hombre solo
mantiene una relación negativa. El Mediterráneo invita al hombre a utilizarlo. El Metiderráneo es el eje de la historia universal. Todos los grandes Estados de la historia antigua se encuentran en torno de este ombligo de la tierra.29
Se o “Novo Mundo” não faz parte da constituição natural e essencial do
“ombligo de la tierra”, tanto Hegel como Habermas também estão a dizer, em última instância, que o “Novo Mundo” não faz parte constitutiva do “princípio dos
tempos modernos: a subjetividade”.30
No Discurso, Habermas estabelece a conexão entre o princípio de subjetividade e a modernidade:
Na modernidade, portanto, a vida religiosa o Estado e a sociedade, bem
como a ciência, a moral e a arte transformaram-se em outras tantas encarnações do princípio da subjetividade. A sua estrutura é englobada
como tal na filosofia, nomeadamente como subjectividade abstracta no
Cogito ergo sum de Descartes, na forma da autoconsciência absoluta em
Kant. Trata-se da estrutura da auto-relação do sujeito congnoscente que
se debruça sobre si como sobre um objeto para se compreender como
uma imagem reflectida num espelho, precisamente, ‘numa atitude especulativa’. Desta abordagem da filosofia da reflexão faz Kant a base das
suas três “Críticas”. Faz da razão o supremo tribunal perante o qual tem
de apresentar uma justificação tudo aquilo que de uma forma geral reclama qualquer validade.31
A tese dusseliana diverge frontalmente da perspectiva hegel-habermaseana.
A “descoberta” da América, que já é essencialmente “conquista”, será de fundamental importância à fundação da modernidade em sua conexão com a subjetividade, para ficar excluída, como também deixando de fora dessa conexão Espanha e Portugal, como momentos constitutivos da subjetividade moderna. Em 1492
– O Encobrimento do Outro, magistralmente Dussel enfrenta tal questão e sinaliza sua posição de uma mundialidade transmoderna a partir da “razão do Outro”, perante o debate dos modernos (comunicativos) e dos pós-modernos (não comunicativos): “Para Habermas, como para Hegel, o descobrimento da América
29
30
31
HEGEL, 1989, pp. 177-178 (destaques meus).
HABERMAS, 1990, p. 27.
Ibid., p. 29.
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não é um determinante constitutivo da Modernidade. Desejamos demonstrar o
contrário. A experiência não só do ‘descobrimento’, mas especialmente da ‘conquista’ será essencial na constituição do ego” moderno, mas não só como subjetividade ‘centro’ e ‘fim’ da história”.32
Se o Novo Mundo nasceu “moderno” com a modernidade européia e se foi
tecido no “processo originário da constituição da subjetividade moderna”, como
demonstrado até o momento, pode-se dizer que toda a tradição ocidental teológico-filosófico-científica, enquanto um sistema de linguagens logocêntrico, lingüicêntrico e hierárquico, transplantou-se toda ao Novo Mundo como um sistema de
valores significantes, como por exemplo idiomático-lingüístico, ético-religioso, político-econômico-jurídico. E nós, além de já sermos “alfabetizados” desde o “princípio”, também já tínhamos tudo isto aqui, como dito anteriormente.
NOSSA PROTO-HISTÓRIA:
COISAS DE ÍNDIOS, BRANCOS E NEGROS
E o que aconteceu com a complexa linguagem religiosa já existente aqui no
Novo Mundo?
Vale dizer que o Novo Mundo pré-colombiano como um todo era já eminentemente religioso. É a nossa proto-história.33
O mundo dos maia-astecas, dos incas, dos chibchas e os índios da América
do Norte e os da América do Sul era constituído por um complexo lingüístico religioso, pensado como um sistema vivo e dinâmico relacionado com os ritmos dos
astros, das águas, da vegetação, dos animais, da existência humana, formando, assim, um lar cósmico demoradamente e penosamente construído e criado.34
Desde tiempos inmemoriales, América Latina há sido una tierra de dioses
y de ídolos. Pirámides al Sol y a la Luna, vestigios de templos y de cuevas
sagradas nos recuerdan la riqueza simbólica de civilizaciones del eterno
retorno, del tiempo sagrado cuyo calendario estaba movido por los dioses.
Con las conquistas ibéricas, aquellas manifestaciones sagradas, fruto de
grandes civilizaciones, han sido sustituidas por el dios de un cristianismo
que encubrió a las hierofanías antiguas. Templos y catedrales cristianos se
construyeron en el lugar mismo de los antiguos centros ceremoniales precolombinos.35
32
DUSSEL, 1993, p. 23.
Cf. DUSSEL, 1985, t. II, p. 45: “Chamo a tudo isso de proto-história. Nossa história só começaria no dia em
que o mais ocidental do ocidente, Colombo e a Espanha, e o mais oriental do oriente, que são os índios (os
índios são asiáticos), confrontam-se no que fundamentalmente será o processo de conquista e evangelização, captada esta como um grande processo de aculturação. Em 1492 começa a história da América Latina,
que não é nem o pai-Espanha nem a mãe-Índia, mas um filho que não é Ameríndia nem é Europa, mas algo
diferente”.
34 Cf. DUSSEL, 1985, t. II, pp. 35-39.
33
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No que diz respeito ao Brasil, sem perder as conexões com a dimensão maior
do continente americano, bem como com o processo de encobrimento do outro e
do originário da constituição da subjetividade moderna, algo semelhante aconteceu, e vem ocorrendo mesmo hoje em dia, no que tange às nações indígenas ainda
existentes e resistentes. O discurso metafísico da mesmidade da totalidade totalizada
do centro reduziu o complexo mundo pluricultural e pluriétnico debaixo da expressão índio. Eduardo Hoornaert assim indica como um etnocentrismo e monoculturalismo foram se impondo sob o domínio dos portugueses:
Outra sorpresa: los portugueses no lograron ciertamente evaluar, durante
todo el período de su dominio sobre Brasil (1500-1822), la complejidad
etnológica de este país. Nunca sospecharon que Brasil fuese uno de los
países más complejos del mundo en términos de cultura humana, con
casi mil cuatrocientos pueblos distintos pertenecientes a cuarenta familias
lingüísticas, de las cuales apenas dos troncos lingüísticos – el tupi y el macro-jê – fueron de alguna forma estudiados. Sin embargo había otras familias lingüísticas como el aruak, el karib, el tukano, aparte de lenguas
aisladas o desaparecidas como el kariri. El ‘mapa etnohistórico’ elaborado
por Curt Nimuendajú en 1944, nos vino a mostrar esa complejidad, que
no aparece en ningún texto portugués sino de forma muy velada. Los
portugueses de manera simple lo cubrían todo bajo el camuflaje de la expresión ‘indio’: ‘En Brasil no hay nada: sólo indios’. Ese indio, en
el modo de pensar de los colonizadores, era un ser genérico y estereotipado, un salvaje y un pagano o gentil. El necesitaba de civilización y evangelización.36
A complexidade etnológica, portanto, já semiótica, em momento algum foi
considerada nem avaliada no contexto do processo de conquista e evangelização.
Como bem diz Gilberto Freire, “com a intrusão européia desorganiza-se entre os
indígenas da América a vida social e econômica; desfaz-se o equilíbrio nas relações
do homem com o meio físico”.37
35
BASTIAN, 1997, p. 7. O astrônomo brasileiro Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, no prefácio ao livro
Chuen: o novo calendário maia, de Franz Joseph Hochleitner (Juíz de Fora/Campinas: EDUFJF/Pontes,
1994), assim diz: “Estes documentos, habitualmente denominados Códigos de Dresden, Paris, e Madri, comprovam que o desenvolvimento dos Maias em assuntos aritméticos e astronômicos era equivalente ou
mesmo superior ao de outras civilizações ocidentais contemporâneas. Um dos bons exemplos disto é o fato
de terem conhecido o conceito do zero muito antes da sua utilização na Europa” (p. 8). E mais adiante: “A
astronomia desenvolveu-se entre os maias por ser um dos elementos fundamentais para a prática dos rituais
religiosos, na maioria das vezes realizados durante a noite. Para provar este costume, existe uma gravura no
Código de Mendoza na qual aparece um sacerdote tocando algum instrumento musical enquanto outro
observa as estrelas para determinar a hora do início das cerimônias” (p. 10). Por outro lado, sabe-se que nos
dois eixos civilizatórios americanos, ou seja, os maia-astecas e os incas, a escrita, por exemplo, já conhecida,
era tida como dádiva dos deuses.
36 HOORNAERT, 1995, p. 294 (destaque meu).
37 FREYRE, 1997, p. 89.
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Como sinalizado anteriormente, com o processo do encobrimento todo um
sistema lingüístico-semiótico-cultural-ocidental é introduzido nestas bandas de cá.
E nós já tínhamos tudo isso também já de modo elevado, porém, completamente
distinto do sistema vigoroso e articulado do europeu em forma de império, com
uma moral e uma religião, bem como com uma noção de pecado e de culpa. E o
pecado e a culpa nós não conhecíamos. Por aqui eles foram introduzidos pelos portugueses, menos ortodoxos que os espanhóis, e pelos ingleses puritanos.
De acordo com Gilberto Freyre, “o ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual”. E prossegue o autor:
O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé
em carne. Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as
mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses.
Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho.38
Longe da mulher legítima, o português vai se dispor da mulher indígena, a
não legítima, e ela, no dizer de Luis da Camara Cascudo, será nossa primeira cozinheira, ou seja, a cunhã. Não podemos nos esquecer que “todos os indígenas brasileiros conheciam o fogo, sabendo acendê-lo e utilizar para preparo de alimentos,
aquecimento e defesa, guerreira e mágica”.39
O Português encontrou no Brasil mulher fácil, abundante, amorosa. Anchieta indignava-se em Piratininga, julho de 1554, ‘onde as mulheres andam nuas e não sabem se negar a ninguém, mas até elas mesmas cometem e importunam os homens, jogando-se com eles nas redes porque
têm por honra dormir com os Cristãos.40
José de Anchieta em sua poética assim diz dos rapazes que corriam atrás das
mulheres: “Aépe kunuminguasú / kuñã oimomosémbae, / tapuipéra potá ñe / ñaimbyára pupé katú / ojekotirúng baé?”.41
O processo de aculturação do índio se deu nos aldeamentos ou reduções na
América lusa e em missões na América hispânica. Na verdade não passavam de
verdadeiros campos de concentração de índios presos manu militari, como afirma Eduardo Hoornaert.42 Esses aldeamentos ou reduções, bem como as missões,
38
Ibid., p. 93.
CASCUDO, 1983, p. 95.
40 Ibid., p. 172.
41 ANCHIETA, 1954, “Na festa do natal”. Versão portuguesa: “E êsses rapazes / que perseguem mulheres, /
cobiçam escravas / e pelos matos / se emboscam?” (p. 764).
42 Cf. HOORNAERT, 1995, p. 297.
39
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vão dar início àquilo que se pode chamar de origem das primeiras cidades no continente latino-americano, no sentido moderno do termo.
(...) la reducción puede ser definida como un procesamiento de gente, un
proceso de producción de ‘gente nueva’, sin memoria del pasado, o com
memoria ‘negativa’, de rechazo del pasado. En lo fundamental, se trataba
de ‘convertir’ al indio específico – ya hablamos aquí de los 1.400 pueblos
que vivían en el actual territorio brasileño antes del 1500 – en un indio genérico denominado caboclo, tapuio, caipira, o simplemente cabra,
com toda la carga de rachazo que recaía sobre esos nombres.43
Hegel enfatiza muito bem esse processo de produção de “gente nova” que,
destituídos de moral, de espírito elevado, de civilização e, portanto, de história, precisam ser pedagogizados quanto às necessidades de se elevarem à atividade do ser
homem, pois nossos índios seriam apenas natureza e viveriam num estado natural
de selvagens e como inculturados. Assim Hegel ilustra esta realidade do índio:
(...) Los hemos visto en Europa, andar sin espíritu y casi sin capacidad de
educación. La inferioridad de estos individuos se manifiesta en todo, incluso en la estatura. Solo las tribus meridionales de Patagonia son de fuerte naturaleza; pero se encuentran todavía sumidas en el estado natural del
salvajismo y la incultura. Las corporaciones religiosas los han tratado
como convenía, imponiéndoles su autoridad eclesiástica y dándoles trabajos calculados para incitar y satisfacer, a la vez, sus necesidades. Cuando
los jesuitas y los sacerdotes católicos quisieron habituar a los indígenas a
la cultura y moralidad europea (es bien sabido que lograron fundar un
Estado en el Paraguay y claustros en Méjico y California), fueron a vivir
entre ellos y les impusieron, como a menores de edad, las ocupaciones diarias, que ellos ejecutaban – por perezosos que fueran – por respeto a la
autoridad de los padres. Construyeron almacenes y educaron a los indígenas en la constumbre de utilizarlos y cuidar previsoramente del provenir. Esta manera de tratarlos es indudablemente la más hábil y propia para elevarlos; consiste en tomarlos como a
ninõs. Recuerdo haber leído que, a media noche, un fraile
tocaba una campana para recordar a los indígenas sus deberes conyugales. Estos preceptos han sido muy cuerdamente ajustados primeramente hacia el fin de suscitar en
los indígenas necesidades, que son el incentivo para la actividad del hombre.44
43
44
Ibid., p. 297.
HEGEL, 1989, pp. 171-172 (destaque meu).
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Com o “processamento de gente nova”, toda uma complexa cultura vai sendo instaurada. Por exemplo, o tupi foi dando lugar à língua portuguesa; a religião
original usava o nome Jurupari para identificar o deus indígena, que foi sendo
substituído por Tupã (trono), significando, na expressão do jesuíta Nóbrega, um
deus terrível de “meter medo nos índios”; as normas reguladoras das sociedades indígenas foram trocadas por comportamentos ocidentais e coloniais, através das
mãos dos jesuítas.45 Isso equivale a dizer que uma moral foi se impondo, fundamentalmente a moral cristã dos primeiros tempos da modernidade. Outro nome
que o índio genérico recebeu, além de caboclo, tapuio, caipira e cabra, foi o de
bugre, portador já de uma conotação moral-teólogica, portanto de homens que
portavam já um pecado imundo. Gilberto Freyre assim diz:
A denominação de bugres dada pelos portugueses aos indígenas do Brasil
em geral e a uma tribo de São Paulo em particular talvez exprimisse o
horror teológico de cristãos mal saídos da Idade Média ao pecado nefando, por eles associado sempre ao grande, ao máximo, de incredulidade ou
heresia. Já para os hebreus o termo gentio implicava idéia de sodomita;
para o cristão medieval o termo bugre ficou impregnado da mesma idéia
pegajosa de pecado imundo. Quem fosse herege era logo havido por sodomita; como se uma danação arrastasse inevitavelmente à outra.46
A primeira religião de nosso continente, e de forma particular de nosso país,
foi sendo substituída pela religião da tradição bíblica, mas, como diz Hoornaert,
“para la formación del cristianismo en Brasil, más importante que las reducciones
fue el mundo de los ingenios”.47 Foi para o trabalho no engenho e para o plantio
da cana-de-açúcar que o negro fez seu ingresso no mundo americano, especialmente na América Latina e no Caribe e de forma especial no Brasil, como mão-deobra escrava. Isso porque o Brasil foi o maior produtor mundial de açúcar até o século XVII.
Segundo Eduardo Galeano, em As Veias Abertas da América Latina,
(...) as colônias espanholas proporcionaram, em primeiro lugar, metais.
Muito cedo descobriram-se, nelas, os tesouros e os veios. O açúcar, relegado a um segundo plano, foi cultivado em São Domingos, depois em Veracruz, mais tarde na costa peruana e em Cuba. Entretanto, até meados
do século XVII, o Brasil foi o maior produtor mundial de açúcar. Simultaneamente, a colônia portuguesa da América era o principal mercado de
escravos: a mão-de-obra indígena, muito escassa, extinguia-se rapida45
46
47
Cf. HOORNAERT, 1995, pp. 297-299.
FREYRE, 1997, p. 119.
HOORNAERT, 1995, p. 299.
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mente nos trabalhos forçados, e o açúcar exigia grandes contingentes de
mão-de-obra para limpar e preparar os terrenos, plantar, colher e transportar a cana e, por fim, moê-la e purgá-la. A sociedade colonial brasileira, subproduto do açúcar, floresceu na Bahia e Pernambuco, até que o
descobrimento do ouro transferiu seu núcleo central para Minas Gerais.48
O mercado internacional estava a exigir que o Brasil construísse seu primeiro
projeto econômico em torno da cana-de-açúcar. Para isso, então, um intenso tráfico de escravos negros entre regiões brasileiras, como São Luís, Olinda/Recife, Salvador e Rio de Janeiro, e a África Ocidental e Moçambique foi desenvolvido.49 No
entanto, “jamais saberemos o número exato e as origens certas dos africanos embarcados para o Brasil, desde a primeira metade do século XVI”.50 Eduardo Hoornaert diz ser 3,6 milhões o número de africanos oficialmente remetidos ao Brasil,
sem considerar o contrabando, muito importante, em especial no século XIX.51 Elias
Wolff, citando frei Hermínio Bezerra de Oliveria, afirma que, “de cada 100 mil negros arrancados das costas africanas, apenas 65 mil chegavam às costas brasileiras
e destes cerca de 5 mil morriam de banzo nos primeiros meses” e, citando Júlio J.
Chiavenato, que “100 milhões de africanos foram ‘escravizados e mortos para atender ao sistema escravocrata das Américas (...). Não houve um genocídio maior na
história da humanidade, nem em número nem em brutalidade, do que o cometido
contra os escravos africanos’”.52
Os números neste caso contam muito. No século XVI, cerca de 15 milhões de
índios foram mortos; no sistema escravocrata das Américas, algo em torno de 100
milhões de africanos foram escravizados e mortos; no século XX aproximadamente
6 milhões de judeus foram exterminados sob o regime nazista. Com isso quero tãosomente ilustrar que, antes do extermínio de judeus durante a Segunda Guerra
Provincial, cerca de 115 milhões de pessoas, entre índios e africanos, foram vítimas
do primeiro grande holocausto e o maior da história da espécie humana no planeta. Aldeamentos e engenhos foram na verdade os primeiros campos de concentração da história, e a América foi o cenário disto. O descobrimento, como encobrimento do outro, foi o primeiro grande holocausto da história humana. Nenhuma filosofia, nenhuma teologia, nenhuma teoria científica e cultural pode ficar insensíveis a isto. Nenhum centro de saber, nenhuma igreja, nenhum Estado podem
ignorar tal realidade. Nenhuma pessoa pode não querer ver tal evento humano de
pulsão destruidora.
48
GALEANO, 1996, p. 73.
49 Cf. HOORNAERT, 1995, p. 295.
50
51
52
CASCUDO, 1983, vol. 1, p. 182.
Cf. HOORNAERT, 1995, p. 295.
WOLFF, 1999, p. 15.
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Estamos aqui diante daquilo que Dussel chama de a razão dominadora, vitimária e violenta, ou seja, o momento irracional do mito sacrificial da modernidade, que se fundamenta na “falácia eurocêntrica” e “desenvolvimentista”. Esse
núcleo irracional da razão moderna tem de ser negado, e não o lado emancipador
da razão que precisa subsumir.53
A África é nosso horizonte; é lá que temos de nos olhar e nos escutar, portanto. Mais que o mundo eurocêntrico, é a África o diapasão e a escala do nosso
olhar e do nosso escutar. “No se puede entender a Brasil sin mirar hacia el horizonte africano, de donde nos vino vida e inspiración, aparte de una mano
de obra tan importante que sin ella no se hace nada en este país. El jesuita del siglo
XVII, Antônio Vieira, afirmaba: ‘El Brasil es el azúcar, y el azúcar es el negro’, y ‘el
Brasil tiene su cuerpo en América y su alma en Africa’.”54
O que dá a garantia de saudabilidade do continente americano como um
todo é o processo de amalgamação da presença negra. Pode-se dizer que tal presença está a nos “salvar”. Esta presença está já entranhada em todos os poros da
complexa cultura americana em sua totalidade e, de forma toda particular, no Brasil e no Caribe: na sonoridade, na gustabilidade, na gestualidade, na oralidade, na
ritmicidade, na cromalidade etc. Gilberto Freyre nos sinaliza isso:
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam
nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama
que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos
contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata
que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que
nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da
cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem.
Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.55
Mas o negro não foi evangelizado nem cristianizado por processos de catequese, à maneira e semelhança dos índios nos aldeamentos. Muito pelo contrário.
Eles foram já, no dizer de Eduardo Hoornaert, no mundo devocional do engenho,
cristianizados por “imersão cultural”, isso porque não havia uma sistemática catequese com catecismos e vocabulários próprios ao aprendizado da fé, mas tão-somente o universo devocional que se praticava no engenho, muito distinto da orto53
54
55
Cf. DUSSEL, 1993, p. 24.
HOORNAERT, 1995, p. 295 (destaque meu).
FREYRE, 1997, p. 283 (destaques meus).
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doxia e burocracia católico românica européia. Daí nasceria um cristianismo devocional que subsumiria outras práticas religiosas vindas de fora, por exemplo o islamismo, bem como das tradições indígenas. Assim nos diz Gilberto Freyre:
O catolicismo das casas-grandes aqui se enriqueceu de influências muçulmanas contra as quais tão impotente foi o padre-capelão quanto o padre-mestre contra as corrupções do português pelos dialetos indígenas e
africanos. É ponto a que nos havemos de referir com mais vagar, esse da
interpenetração de influências de cultura no desenvolvimento do catolicismo brasileiro e da língua nacional. A esta altura apenas queremos salientar a atuação cultural desenvolvida na formação brasileira pelo Islamismo, trazido ao Brasil pelos escravos malês.56
E, mais adiante, prossegue:
Os negros maometanos no Brasil não perderam, uma vez distribuídos pelas senzalas das casas-grandes coloniais, o contato com a África. Não perderam-no aliás os negros fetichistas das áreas de cultura africana mais
adiantada. Os Nagô, por exemplo, do reino de Ioruba, deram-se ao luxo
de importar, tanto quanto os maometanos, objetos de culto religioso e de
uso pessoal. Noz-de-cola, cauris, pano e sabão-da-costa, azeite-de-dendê.57
A presença dos negros africanos no Brasil está ligada a dois grandes grupos
étnico-culturais, os bantos e os sudaneses. No eixo da tradição sudanesa em termos
religiosos encontra-se a crença num Ser Supremo, isto é, em Olorum, que juntamente com Obatalá é responsável pela criação. Entre estes e os homens, encontram-se de 400 a 600 orixás, como Exu, Ogum, Oxossi, Ossaim, Xangô, Iansã,
Oxum, Omulu-Obaluaê, Iemanhá e Oxalá. Já no eixo da tradição dos bantos, o Ser
Supremo corresponde a Zambi. O orixás correspondem aos ancestrais, que são
cultuados. Na macumba se cultua o Preto Velho.
Vão ser nestas duas grandes matrizes que se originarão as religiões afro-brasileiras. Do eixo dos sudaneses tem-se: candomblé, xangô, batuque, casa ou tambor
de mina; já do eixo dos bantos, tem-se: macumba, umbanda e quinbanda. Outros
grupos são encontrados, como pajelança, catimbó e jurema. Em que pese que haja
multiplicidade e a diferença seja grande entre as tradições religiosas afro-brasileiras, existem elementos comuns. Elias Wolff sinaliza os seguintes: idéias reencarnacionistas, o monoteísmo, o fenômeno da possessão e, o rito de iniciação de um novo
membro.58
56
57
58
Ibid., 1997, p. 313.
Ibid.
Cf. WOLFF, 1999, pp. 16-17.
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Mas esses homens crédulos – à maneira da redução genérica de índios – foram vistos tão-somente na perspectiva do sistema escravocrata, ou seja, “sempre
que consideramos a influência do negro sobre a vida íntima do brasileiro, é a ação
do escravo, e não a do negro per si, que apreciamos”.59
A presença do negro, e conseqüentemente a presença da África Mãe, nos
complexificou, semioticamente falando. E no entanto a visão dominante e ainda
imperante do negro, bem como da África, passa pela dimensão da inferioridade
cultural e da raça deletérea. O negro foi acusado de introduzir uma moral deletéria
pela sua condição de escravo mesmo. O erotismo, a luxúria e a depravação comunicado ao brasileiro têm a ver com o defeito da raça africana. Foi ela a responsável
por corromper a vida sexual da sociedade brasileira. Também foi responsável pela
sifilização do Brasil. Não é o que acontece com a aids hoje em dia, quando se afirma ter sido ela originada no continente africano? Nas palavras de Freyre,
Joaquim Nabuco salientou “a ação de doenças africanas sobre a constituição física do nosso povo”. Teria sido esta uma das terríveis influências
do contágio do Brasil. Um ou outro viria já contaminado. A contaminação em massa verificou-se nas senzalas coloniais. A “raça inferior”, a que
se atribui tudo que é handicap no brasileiro, adquiriu da “superior” o
grande mal venéreo que desde os primeiros tempos de colonização nos
degrada e diminui.60
Em Hegel, essa visão encontra sua justificativa filosófico-teológica à maneira da visão do indígena. O continente africano e o negro no pensamento hegeliano
encontram a visão acabada e definitiva do pensar eurocêntrico. Ainda que considere a África, como continente, um momento da tríade, porque conectada à Europa e à Asia pelo Mar Mediterrâneo – ou seja, por fazer parte do “ombligo de la
tierra” –, ela não deve ser esquecida nem abandonada tão-somente por fazer parte
da soleira da história universal, do umbral da história, residindo aí, ainda segundo
Hegel, o que de mais terrível pertence à natureza humana: o negro, não tendo nenhuma moral, e, sendo indomável, não pode desenvolver-se nem educar-se, e assim sempre tem sido. Hegel, assustadoramente, desse modo diz:
De todos estos rasgos resulta que la característica del negro es ser indomable. Su situación no es susceptible de desarollo y educación; y tal como
hoy los vemos han sido siempre. Dada la enorme energía de la
arbitrariedad sensual, que domina entre ellos, lo moral no
tiene ningún poder. El que quiera conocer manifestaciones
terribles de la naturaleza humana, las hallará en África. Lo
59
60
FREYRE, 1997, p. 315.
Ibid., p. 317.
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mismo nos dicen las noticias más antiguas que poseemos acerca de esta
parte del mundo; la cual no tiene en realidad historia. Por eso abandonamos África, para no mencionarla ya más. No es una parte
del mundo histórico; no presenta un movimiento ni una evolución, y lo
que há acontecido en ella, en su parte septentrional, pertenece al mundo
asiático y europeo.61
No entanto, para não cairmos em tentação, com o poeta que canta sua lira
e sua mística, podemos invocar a esta altura a África Mãe para não nos esquecermos mais da complexidade cultural vinda das várias etnias indígenas e africanas, para não nos esquecermos mais do primeiro grande holocausto cometido contra essas gentes crédulas, para não nos esquecermos mais do quão somos devedores
e tributários de valores que estão a manter este continente como um todo eminentemente saudável, para não nos esquecermos de não vos esquecer, oh! Mãe África,
porque nos esqueceríamos a nós mesmos, diferentemente do Velho Mundo, sempre
portador da razão dominadora, vitimária, violenta, da morte, deste mundo, conforme disse Napoleão citado pelo próprio Hegel, “Cette vieille Europe m’ennuie”.
Portanto, oh! Mama “África / me devolve meu canto... / Meu sofrimento foi tanto
/ que até deixei de cantar! / Conta, minha mãe preta bonita, / como se faz essa luta...
/ Meu povo vai te escutar”.62
Eduardo Hoornaert afirma que “una historia del cristianismo en Brasil no
puede evitar la confrontación con esas dos realidades básicas: el mundo indígena
y el mundo africano”.63 Pode-se dizer que tal princípio é válido para a compreensão cultural mesma do Brasil. O cristianismo que aqui se desenvolve e a forma
como ele se manifesta não podem ser pensados sem os elementos da expressão religiosa indígena e sem os elementos da expressão africana, embora seja verdade que
bem poucos elementos indígenas tenham influenciado o cristianismo no Brasil. Diferentemente, por exemplo, do México, onde os elementos da expressão indígena
formam o substrato de todo catolicismo cristão, resultando um sincretismo barroco
dinâmico. No Brasil, ao contrário, este sincretismo barroco dinâmico vai se dar
muito mais com os elementos da expressão africana. Daí nosso barroquismo latino-americano e caribenho, muito mais de inspiração indígena no México e Peru
e muito mais de inspiração africana no Brasil e no Caribe. Mas vale sempre ressaltar
que a ortodoxia burocrática e romana sempre está a vigiar este sincretismo, que
não é tolerado. Assim, vale dizer, com Hoornaert, que “la burocracia romana repercutió en Brasil en todos los campos de la vida eclesial, en la liturgia y en la te61
62
63
HEGEL, 1989, p. 194 (destaques meus).
TAIGUARA, entre 2/mar./94 e 17/abr./94.
HOORNAERT, 1995, p. 296.
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ología, en la pastoral y en la espiritualidad”.64 Somente o sul do Brasil escapou dessa influência e desse condicionamento no cristianismo dos elementos africanos,
uma vez que sofreu a influência direta dos imigrantes europeus.
SINALIZAÇÕES PARA UMA SEMIÓTICA DAS RELIGIÕES
No entanto, nestes últimos decênios a paisagem religiosa na América Latina
e no Caribe, e de modo especial no Brasil, vem se modificando e se alterando rapidamente.
Desde algunos años atrás, se presentan claros indicios de que por primera
vez desde los tiempos de la Conquista, la Iglesia católica romana está perdiendo el control sobre el campo religioso y sobre los dioses. Sus desesperadas y redobladas cartas pastorales y encíclicas condenando duramente
a las sectas reflejan esta impotencia para contrarrestar una corriente de
autonomía religiosa que la sorprende cuando pensaba poder celebrar firmemente el quinto centenario de una evangelización totalizadora. El
campo religioso se está fragmentando en decenas de sociedades religiosas
rivales, combatiéndo-se las unas a las otras. Ya no es la antigua lucha entre dioses paganos y cristianos; es la lucha entre divinidades cristianizadas
que hacen suya la expresión libertaria de un panteón en expansión sin límites. En cierto sentido, se puede afirmar que la iglesia católica ya no logra regular ni controlar la dinámica religiosa creativa de las poblaciones
latinoamericanas.65
Atualmente o catolicismo romano não detém mais a hegemonia religiosa no
País. A diversidade religiosa e novas denominações religiosas que vão surgindo a
cada dia são extremamente grandes. A título de exemplo, sem entrar nas especificidades de cada seguimento religioso, pois não é o objetivo deste ensaio, valeria nomear tão-somente alguns nomes de distintas tradições religiosas no Brasil, a partir
da obra Sinais dos Tempos – diversidade religiosa no Brasil: Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade; as Igrejas Brasileiras; as Igrejas Orientais no Brasil; Assembléia de Deus; Congregação Cristã no Brasil; Igreja
Pentecostal Deus É Amor; Testemunhas de Jeová; Mórmons; Umbanda; Candomblé; Jurema; Xangô; Espiritismo; Judaísmo; o Islã no Brasil; o Budismo Japonês no
Brasil; Seicho-no-iê; Instituição Religiosa Perfeita Liberdade; Hare Krishna; Rajneesh; a Astrologia e sua prática na sociedade brasileira; Matéria Vida; Ananda
Marga; Igreja da Unificação; a Doutrina do Santo Daime.66
64
65
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HOORNAERT, 1995, p. 307.
BASTIAN, 1997, p. 10.
Cf. LANDIM, 1990.
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Há um outro fenômeno de extremada importância que mais do que nunca
merece a atenção: o aparecimento dos fundamentalismos neopentecostais. Estes
fundamentalismos estão conectados no contexto do mercado e de suas lógicas de
globalização e exclusão. Com linguagens, cantos, simbologias, gestos, danças, leituras bíblicas sem mediações analíticas e hermenêuticas teológicas, esses movimentos tomam as mais diversas geografias, como novos espaços do sagrado, como
campo de futebol, emissora de televisão, com os megacultos e as megamissas, sempre com seus pop stars, como por exemplo padre Marcelo Rossi, para os carismáticos católicos, e o pastor Marcelo Crivella, para os carismáticos da Igreja Universal
do Reino de Deus.
Esse fenômeno merece ser estudado com seriedade e profundidade, pois está
conectado, por um lado, à lógica do mercado e, por outro, às estruturas psicológicas da grande massa seguidora de tais movimentos. Se a fé e a religião podem libertar, também podem gerar doenças e distúrbios. E o nosso tempo está a gerar patologias religiosas entre tantas outras. Por outro lado, não podemos perder a sensibilidade quanto a religião ser, num contexto de miséria extrema, o jeito de muitas
pessoas fazerem a caminhada necessária. “Na América Latina a religião – dizia um
antropólogo – não é simples muletas. Ela é os pés e boa parte da caminhada dos
pobres.”67
Pensar a religião no contexto dos 500 anos de Brasil, quando se está a celebrar o quinto centenário de evangelização e do “descobrimento”, não é algo tão
simples. Pelo contrário. É demasiado complexo, pois não se pode esquecer também
que evangelização e descobrimento têm a ver com conquista e encobrimento do
outro, como já ficou demonstrado ao longo deste ensaio. Pode-se dizer que este
tempo é fundamentalmente tempo de reflexão (reflectere = voltar atrás). É tempo
de voltar atrás para se poder re-signi-ficar, semioticamente falando, o sentido e o
valor de todos os processos pluriculturais e pluriétnicos que vivemos e estamos a viver, e que são infinitos.
Segundo Oswald de Andrade, em A Marcha das Utopias,
(...) nós brasileiros, campeões da miscigenação tanto da raça como da
cultura, somos a Contra-Reforma, mesmo sem Deus ou culto. Somos a
Utopia realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e mecânico do Norte. Somos a Caravela que ancorou no paraíso ou na desgraça da selva, somos a Bandeira estacada na fazenda. O que precisamos
é nos identificar e consolidar nossos perdidos contornos psíquicos, morais
e históricos.68
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ASSMANN, 1981, p. 80.
ANDRADE, 1978, p. 153.
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Consolidar e identificar nossos perdidos contornos psíquicos, morais e históricos, é trabalho de toda uma cultura. E do lugar da religião, como lugar complexo e rico de signos, nos dias de hoje pode-se fazer isso, no sentido de buscas resigni-ficativas.
Então, faz-se necessário inaugurarmos uma semiótica das religiões.
Uma semiótica das religiões que possa ajudar na compreensão das múltiplas
e infinitas correlações – misteriosas e sobre as quais muito pouco sabemos, ainda
–, no âmbito das culturas e tradições religiosas, no tempo e no espaço; uma semiótica das religiões que possibilite uma visão e escuta mais alargadas das infinitas
correlações e conexões das tradições religiosas entre si, bem como com outros campos de linguagem, como a filosofia, a teologia, a psicanálise, a ciência, a arte, a política, a ética, a técnica e as linguagens do mundo da vida cotidiana; uma semiótica
das religiões que possa explicitar melhor o sentido e os mecanismos de libertação/
opressão das estruturas e linguagens religiosas; uma semiótica das religiões que,
sendo barroca, já seja nosso contra-texto, como jeito de captar nossa complexidade
cultural em semiose proliferante e infinita; uma semiótica das religiões que já seja
ciências da religião, portanto, sem culpa e sem pecado do lado debaixo do Equador.
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