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Cartografando a Ditadura Militar no Brasil: memórias coletivas e mapas
digitais colaborativos
Brazilian Military Dictatorship cartographies: collective memories and
collaborative digital maps
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Allysson Martins / Ana Migowski
Resumo: A atual busca, on e offline, pela ressignificação de lugares de memória
relativos ao período da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985) motiva nossa
investigação. Dois mapas colaborativos digitais, que ilustram práticas memoriais
coletivas, foram selecionados como estudos de caso. A descrição e análise dos
projetos a partir dos conceitos de espaço, tempo, silenciamento e participação
indicam que a) há um movimento pela visibilização de memórias silenciadas e
postas em segundo plano no espaço urbano; b) as cartografias carregam sentidos
relacionados à intencionalidade de produtores e participantes; c) a legitimação
dos dados é trabalhada através de links para outros sites jornalísticos e de
referência, além de depoimentos; e d) prevalece a apresentação de memórias de
algumas regiões brasileiras. Esse fenômeno cultural reflete, portanto, formas de
elaboração de memórias coletivas potencializadas pelos meios digitais de
comunicação.
Palavra chave: Mapas digitais colaborativos; Memórias coletivas; Ditadura
Militar; Internet
Abstract: The current quest, on and offline, for the resignification of sites of
memory referring to the Brazilian Military Dictatorship (1964-1985) motivates this
investigation. Two collaborative digital maps, that illustrate collective memorial
practices, have been selected as case studies. The description and analysis of these
projects based on concepts such as space, time, silencing and participation
indicate that: a) there is a movement drawing attention to silenced memories that
are left aside within the urban space; b) the cartographies carry on meanings
related to the intentionalities of their producers and participants; c) the data
legitimacy is fostered by the usage of links to news and other important websites,
as well as testimonies; and d) predominate the presentation of certain brazilian
regions' memories. The cultural phenomena indicate, therefore, ways of
elaborating collective memories supported by digital media.
Keywords: Collaborative digital maps; Collective memories; Military dictatorship;
Internet
Introdução
Cidades são carregadas de memórias, consideradas até arquivos com os quais interagimos
cotidianamente (Hetherington, 2013). Ao nos deslocarmos de um ponto a outro qualquer, expomonos a memórias diversas que remetem a distintos períodos históricos e que podem ser, por vezes,
contraditórias. No Brasil, ruas, praças, estátuas, escolas e bairros homenageiam, entre
personalidades diversas, os envolvidos na Ditadura Militar (1964-1985), com destaque para os
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agentes do Estado. Essa realidade, no entanto, não é muitas vezes problematizada, ou sequer
percebida.
A internet pode democratizar, potencialmente, o acesso aos meios de produção, destacandose suas possibilidades de colaboração (Jenkins, 2008; Levy, 2007). Permite, assim, que memórias
daqueles que não possuíam “escuta”, e cujas narrativas eram omitidas da história oficial (Pollak,
1989), tornem-se públicas, acessíveis e até manipuláveis (Hoskins, 2009, 2011a, 2011b; Reading,
2011). Mas que processos memoriais podem surgir da relação entre espaço físico urbano e as
potencialidades da comunicação digital?
A partir desse contexto, selecionamos dois mapas colaborativos que tratam da memória da
Ditadura Militar brasileira. As duas cartografias são distintas do ponto de vista da autoria, dos
conteúdos que apresentam e dos contextos em que aparecem. Todavia, guardam semelhanças
quanto à articulação entre o tempo e o espaço, imprescindíveis para a compreensão de processos
memoriais. Enquanto o mapa do site Memórias da Ditadura possui três camadas distintas de
conteúdos relacionados ao regime militar brasileiro, o do Roteiros da Consciência coloca em
primeiro plano ruas que receberam nomes de mortos e desaparecidos durante o período. Enquanto
o primeiro é promovido através do estímulo do Estado, o outro é criado a partir das iniciativas
sociais autônomas.
Esses mapas são configurados enquanto lugares de memórias (Nora, 1993) através de uma
articulação entre memórias individuais e coletivas, visando a reconciliação e a reparação da história
recente do país. Há um engajamento no Brasil para a ressignificação dos lugares memoriais
consagrados aos agentes de Estado, através da mudança de nomes dessas ruas, praças, escolas etc.
Este movimento memorial será considerado no texto apenas à guisa de ilustração, uma vez que
inscreve-se em uma dinâmica memorial semelhante à investigada.
Nos casos analisados, identifica-se a reivindincação sobre a memória do acontecimento.
Isso ocorre, sobretudo, a partir dos usos e apropriações de plataformas digitais de comunicação. Os
pontos marcados nos espaços urbanos dos mapas colaborativos exploram perspectivas diferentes
daquelas dos mapas oficiais. Eles exploram sentidos presentes na história do território, ao destacar
contradições valorativas das referência históricas presentes no espaço urbano. Algumas dessas
contradições são, por exemplo, a nomeação de avenidas maiores e escolas dedicadas a
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representantes de governos militares, enquanto vielas de bairros periféricos ou pequenas estátuas
em subúrbios são dedicadas aos resistentes ao regime. Não defendemos aqui uma ingênua
igualdade, especialmente porque os lugares de maior destaque continuam a ter evidência em
regiões ainda não marcadas nos mapas - isto é, ainda sem a interferência dos colaboradores. Os
oprimidos, de modo geral, criam esses mapas digitais colaborativos buscando a reparação das
memórias coletivas oficiais e da história narrada por quem detinha o poder.
Objetivamos analisar a formulação e o uso de mapas colaborativos, evidenciando como
suas características articulam-se com conceitos que permeiam a elaboração de memórias coletivas
sobre a Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). Verificamos ainda como as contradições e disputas
de sentidos memoriais se manifestam no espaço urbano e de que forma a colaboração através da
internet dá visibilidade para tal situação.
Memória e cartografia: apontamentos iniciais
Por trás da elaboração de mapas há intencionalidades. No ocidente, por exemplo, muitos
mapas-mundi apresentam em primeiro plano o continente europeu, uma herança do processo de
colonização do “Velho Mundo”. O imaginário e a identidade dos diferentes países estão ligados às
memórias culturais (Assman, 1995) suscitadas nesta representação cartográfica. Esse caso ilustra a
problematização e as reflexões discutidas neste trabalho, pois qualquer cartografia organiza um
espaço a partir de específicas concepção, representação e interpretação de mundo (Silva et al.,
2008, p. 2). Em suas palavras, os mapas estão associados a “uma configuração imaginária
construída a partir de uma perspectiva que privilegia determinados elementos e processos em
detrimento de outros”.
A representação cartográfica reflete, portanto, um determinado ponto de vista sobre a
estrutura e organização de territórios e lugares, revelando também sobre aquele que o produz. Para
autores como Alderman (2002) e Halbwachs (2006), a divisão de ruas, a instituição de
monumentos e a preservação de lugares de memória refletem as práticas políticas e históricoculturais de uma sociedade. A definição de nomes de ruas é, possivelmente, a forma mais explícita
de refletir sobre essa questão, uma vez que pode “envolver-se nas políticas que indicam o que é
historicamente significante e o que merece ser lembrado publicamente” (Alderman, 2002, p. 99).
Ainda assim, os locais em que cada nome é encontrado revelam também a importância que se
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concede a determinado personagem. Os oprimidos pela Ditadura Militar, normalmente, são
homenageados em lugares de visibilidade restrita, sem muita identificação ou informação de quem
seria aquele indivíduo que nomeia a rua.
Mas quem define o que deve ser lembrado e, por consequência, o que é silenciado ou até
mesmo esquecido? No sistema brasileiro, a concessão de nomes a ruas é de responsabilidade dos
vereadores de cada município, embora a proposta possa estar atrelada a demandas e solicitações da
sociedade civil. Isso ocorre quando minorias se valem dessa estratégia para “receber
reconhecimento público de seus feitos históricos” (Aderman, 2002, p. 102). Não apenas a geografia
física, mas também seus aspectos históricos e políticos, estão intimamente relacionadas às práticas
e às disputas memoriais. A partir dos mapas digitais colaborativos sobre os espaços associados à
Ditadura, verificamos como os sentidos memoriais podem emergir ao articularmos a prática
cartográfica com os conceitos de tempo, espaço, silenciamento e participação.
Representações do tempo e do espaço
Os conceitos de tempo e espaço ajudam a pensar sobre a elaboração de memórias coletivas
(Halbwachs, 2006), uma vez que é justamente na articulação desses dois aspectos que as
lembranças,
bem
como
a
referência
a
acontecimentos
e
experiências
passadas,
se
processam. Quando nos lembramos de algo, compartilhamos quadros e referências socialmente
estabelecidos, posicionando a memória em determinado espaço e tempo: “tempo porque a memória
continua viva conforme persiste a relação com o grupo; e no espaço porque a memória está
relacionada com certas imagens espaciais” (Aguilar, 2002, p. 11).
Nesse sentido, é impossível abranger em um artigo as infinitas possibilidades de análise da
memória a partir do tempo e do espaço. A presente proposta estará concentrada principalmente em
aspectos que permitem a identificação de processos memoriais em representações cartográficas
colaborativas.
A criação de uma represeantação cartográfica - sempre intencional e alusiva a determinadas
interpretações, como percebido anteirormente - requer a escolha de um espaço e de um período
temporal. Essa decisão já carrega uma série de sentidos. Como argumenta Halbwachs (2006), a
vida é regida por formalizações quanto ao tempo e ao espaço, como forma de convencionar e
padronizar as referências compartilhadas socialmente. Pode-se mencionar, nesse sentido, a
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organização de nosso tempo em anos, meses, semanas, dias, horas, entre outros; de nosso espaço
em continentes, países, estados, cidades, bairros, avenidas, ruas, vielas etc. A apresentação de um
mapa a partir dessas convenções e discursos oficiais, com foco em um determinado território, com
características demográficas ou naturais correspondente a um período específico oferece algumas
leituras possíveis. Do ponto de vista da memória, essa representação seria uma fonte de
lembranças, uma vez que “conserva os traços do período ao qual se reporta” (Halbwachs, 2006, p.
101).
A conservação de determinadas lógicas espaciais reflete também a ocorrência de
acontecimentos e suas marcas históricas, bem como pode ocultar outras. É importante frisar esse
aspecto uma vez que, contraditoriamente, “há tantas maneiras de representar o espaço quanto sejam
os grupos” que o habitaram (Halbwachs, 2006, p. 187). Com isso aponta-se que a experiência de
diferentes grupos (étnicos, ideológicos, políticos, religiosos, profissionais, familiares etc.) podem
ser igualmente projetadas no espaço e no tempo. Elas requerem, por consequência, representações
distintas. Sobre os nomes de ruas em uma cidade, uma figura homenageada, porque regida por
relações de poder em um momento específico, revele apenas parte da história daquele território e
seus habitantes.
É possível encontrar formas plurais de representação do espaço e de sua leitura ao longo do
tempo, as quais nem sempre são incorporadas à cartografia oficial, mas que fazem parte da duração
presente na memória das várias peças do palimpsesto, conforme pesperctiva de Hetherington
(2013). Esse processo identifica-se diante das disputas de sentido sobre o espaço urbano que
questionam as homenagens a ditadores em nomes de ruas, escolas, bairros e praças em todo
mundo. Essa característica introduz o próximo ponto, que trata sobre as políticas memoriais e sua
relação com o silenciamento e a ocultação de aspectos e traumas do passado no presente.
Mapas do silenciamento
Em um mapa, os símbolos gráficos, bem como as legendas e escalas, dão ênfase a pontos
que se destacam na representação pretendida. Essa disposição, muitas vezes, segue a organização
do espaço urbano, na qual avenidas concentram um maior fluxo de trânsito, o centro da cidade os
principais monumentos e instituições públicas, as ruas e acessos vicinais uma relevância
secundária. Essa distribuição, bem como as homenagens localizadas em locais mais relevantes,
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conservam uma leitura do espaço que é construída historicamente e marca a visão dominante e a
representação intencional de um determinado espaço. Coexistem e persistem, no entanto, outras
leituras e interpretações que são preservadas de formas alternativas, através da escrita de livros de
memórias, documentários, história oral etc.
Em momentos históricos nos quais as versões silenciadas do passado encontram espaço,
durante as revisões desses acontecimentos conduzidas por comissões da verdade ou transições de
regimes políticos, podem emergir disputas e negociações. Isso acontece quando símbolos e lugares
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de memória passam a ser questionados e até mesmo destruídos . “Uma vez rompido o tabu, uma
vez que as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público, reivindicações múltiplas e
dificilmente previsíveis se acoplam a essa disputa da memória” (Pollak, 1989, p. 3).
Chega-se a esse estágio, no entanto, porque muitos momentos de reconciliação histórica
pressupõem o silenciamento de fatos traumáticos e irreparáveis experienciados por vítimas e
derrotados. Não é à toa que, como Aguilar (2002) destaca, as palavras amnesty (anistia em inglês) e
amnésia apresentem a mesma raiz. Ao se propor a anistia geral e irrestrita, como ocorreu em países
da América Latina com regimes ditatoriais durante a Guerra Fria, acorda-se em um pacto de
silenciamento, levando-se à amnésia social sobre diversos aspectos. Certas circunstâncias
históricas, no entanto, podem reabrir feridas e trazer à tona versões que desafiam aquilo que era até
então tido como oficial.
Os lugares de memória (Nora, 1993) são, em geral, os principais alvos dessas disputas. Ao
mesmo tempo em que permitem que as memórias sejam materializadas e representadas, elas
também legitimam, em geral, pontos de vista dominantes. São, portanto, artificialmente
construídos, não sendo produtos da memória espontânea. A presente obsessão pelo passado
(Huyssen, 2000) com um boom e surto memorial (Nora, 1993), refletem-se numa sociedade
temerosa em relação ao esquecimento. Esse fenômeno contemporâneo dá lugar a cada vez mais
conflitos e possibilidades de resgate de possíveis leituras sobre o passado no presente. De acordo
com Aguilar (2002, p. 18), “a memória coletiva desempenha claramente um papel inflamatório
aqui, legitimando conflitos precisamente como o resultado da existência e memórias plurais e
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conflitivas, e da inexistência de uma única memória compartilhada de eventos passados” .
Pollak (1989) aponta que os silenciamentos seriam também formas de resistência de uma
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sociedade impotente diante da opressão do Estado. De fato, ao observar-se que locais
movimentados e importantes de cidades brasileiras mantêm o nome de presidentes da Ditadura e
que apenas ruas secundárias e de acesso local serviram de homenagem a alguns militantes da
resistência ao regime, essa lógica de silenciamento se reproduz. Nunca se esqueceu do que
sofreram os militantes e cidadãos atuante na resistência aos militares, eles apenas têm menos
espaço na memória social e coletiva devido ao controle dos discursos legitimados e dominantes.
Os mapas colaborativos analisados, no entanto, vão justamente explicitar tais lógicas
memoriais. Identifica-se que essa ação é feita, sobretudo, a partir da colaboração de atores sociais
que defendem e reivindicam a participação na narração da história recente do Brasil.
Participação e colaboração: novos mapeamentos possíveis
Há um movimento no campo da história que aponta para a importância de dar voz aos seus
agentes (Pollak, 1989), não apenas às interpretações e às sistematizações propostas por
historiadores. De acordo com autores como Themen (1998, s/p.), o passado tem de ser pensado
como uma experiência compartilhada, em que micro histórias (Burke, 2006), testemunhos e relatos
sejam preservados e interpretados, como o são os arquivos sobre os quais se debruçam os
historiadores.
Os meios digitais conectados potencializam esses processos de democratização sobre a
narrativa da história, de acordo com a teoria da Inteligência Coletiva proposta por Lévy (2007). A
possibilidade de movimentos emergentes (bottom-up), que caracterizam diversas práticas sociais
presentes em ambientes digitais de comunicação, dão vazão à reivindicação de leituras sobre o
passado que eram, até então, silenciadas ou ocultadas do discurso dominante. É o que Hoskins
(2009) definiria como “emergent digital network memory”. Com a articulação de tais inteligências
e o estabelecimento de laços entre os atores sociais detentores de memórias subterrâneas, através
dos dispositivos técnicos digitais, processos memoriais tomam forma.
A cultura da convergência (Jenkins, 2008), que vai além dos aspectos puramente
tecnológicos e desenvolve-se na interloculação de práticas culturais, dá margem para a exploração
de produtos como os mapas colaborativos. Eles são o resultado do poder representacional da
atividade cartográfica, aliada à expressão de memórias marginalizadas e a inteligências coletivas. A
geolocalização de depoimentos e o destaque gráfico dado ao pontos que são referências para as
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memórias sobre a Ditadura Militar brasileira encontram, assim, espaço no tempo e tecnologias do
presente.
A intenção de reivindicar memórias e versões sobre o tempo e o espaço urbano, marcados
pela história recente, tem na Internet uma plataforma que tanto potencializa quanto imprime
significados às memoriais. A intencionalidade, portanto, não está atrelada apenas aos indivíduos,
mas também às programações e às limitações do próprio meio (Silva et al., 2008). A comunicação
digital, além potencializar a conexão desses atores sociais, também imprime suas marcas sobre as
memórias que suporta. Nos próximos pontos, serão expostos de que forma os mapas analisados
articulam os conceitos acima descritos a partir das práticas memoriais neles inscritas.
Cartografias da Ditadura
O mapa colaborativo do Roteiro da Consciência do Brasil é realizado sem patrocínio do
Estado ou de uma grande empresa privada, com a intenção de identificar espaços públicos
brasileiros que possuam relação com a Ditadura Militar a partir da tecnologia do Google Maps. Ao
abrirmos o mapa do território brasileiro, observamos símbolos gráficos distintos, mas que
apresentam conteúdos semelhantes: fotos, marcadores padrão do sistema (pins) e interrogações.
Essas marcações podem se referir a uma rua, praça, escola etc. A seleção de um dos símbolos ou
fotos presentes no mapa carrega caixas com detalhes sobre a pessoa homenageada no local. Essas
informações advêm do site Desaparecidos Políticos, referência e fonte da maioria das marcações.
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Figura 1: Mapa Roteiros da Consciência do Brasil. Fonte: http://goo.gl/HEz5w5 (2015)
Ainda que marcações de personagens já reconhecidos como importantes durante a Ditadura
Militar apareçam normalmente com fotos, percebemos a predominância de “desconhecidos”,
alguns até com interrogações e marcações padrão, sem imagem. A referência a personagens
participantes da resistência ao regime militar, nesse mapa, tem a função de chamar a atenção para
histórias silenciadas por sua visibilidade desprivilegiada no espaço urbano.
De modo abrangente, percebemos um predomínio de marcações no Sudeste, especialmente
Rio de Janeiro e São Paulo, seguido do Sul, com destaque para Rio Grande do Sul e a capital de
Santa Catarina, Florianópolis, e do Nordeste, com as capitais de Pernambuco e Ceará, isto é, Recife
e Fortaleza. Os outros pontos do mapa praticamente não têm marcações. Carlos Marighella, Frei
Tito e Vladimir Herzog estão mais destacados, com fotos, informações e links para o site
Desaparecidos Políticos, além de cada um ter em média nove marcações de ruas brasileiras em sua
homenagem. O educador Paulo Freire aparece, mas as informações não demonstram sua relação
com a Ditadura, embora seja de conhecimento corrente que ele foi exilado durante alguns anos.
Entre a maioria dos não tão reconhecidos nacionalmente, percebemos em destaque o rosto do
médico João Carlos Haas Sobrinho. O militante, desaparecido desde 1972, possui seis marcações
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no mapa, com foto, informação e link também do site Desaparecidos Políticos.
A disposição e a ênfase dadas a determinados personagens, cujas histórias receberam mais
atenção no movimento de resistência, demonstram um discurso hegemônico no relato da memória
subterrânea. No entanto, a participação e a colaboração que dão forma ao mapa trazem para
narrativa também a micro história de militantes e outras figuras da resistência.
A marcação única do militante Eduardo Antônio da Fonseca foge à regra do site. A rua em
sua homenagem não possui muitas informações e ou fonte indicada, somente com data e local do
seu nascimento e participação da ALN (Ação Libertadora Nacional). Outro ponto desviante é o 2º
Sargento do Exército Manuel Alves d liveira. O militar morreu pouco mais de um mês após o golpe
e possui mais cinco marcações em cidades diferentes, todas sem foto, mas com informações e links
para o site Desaparecidos Políticos. O militante Adherbal Teixeira Rocha não morreu pelas mãos
dos agentes militares. Embora tenha sido preso e perseguido, faleceu de câncer em 1993. Com uma
marcação única na cidade de Belo Horizonte, a foto e as informações advém do livro Rua viva, de
Betinho Duarte. Ainda que só esteja marcado em uma rua, sua foto dá mais destaque ao militante
do que a outros que estejam marcados na cidade Belo Horizonte por interrogação ou marcador
padrão.
Embora a marcação em ruas seja predominante, alguns outros espaços também são
apontados. Clérigo influente durante a Ditadura Militar, Dom Helder Câmara tem sua antiga casa
paroquial marcada no mapa, com uma foto, mas sem fonte de informação. Apesar de não ter
morrido ou desaparecido por causa do regime, o arcebispo foi abertamente perseguido graças às
inúmeras afrontas ao regime. Entre outras exceções, temos a Casa de Cultura em Recife, que serviu
de espaço para torturas e assassinatos pelos agentes militares. O lugar hoje conta com um memorial
em homenagem ao Frei Caneca e abriga expressões artísticas e gastronômicas da cultura
pernambucana. Próximo à Casa, sem foto, temos o monumento em homenagem ao Frei Caneca e
uma marcação com foto do Monumento Tortura Nunca Mais. Uma navegação detalhada mostrará
aos interessados auditórios, delegacias, placas, teatros, viadutos e outros locais que possuem
alguma relação com a Ditadura Militar, especialmente em Recife.
Podemos identificar a intencionalidade impressa nesse mapa nas formas gráficas e
marcações, como por exemplo a utilização do rosto dos resistentes, que dão visibilidade a ruas e
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lugares de memória pouco valorizados no espaço urbano. As histórias e personagens silenciados,
assim, vêm para o primeiro plano do mapa, disputando a narração da memória com avenidas,
praças e ruas - muitas levando o nome de presidentes da ditadura - já destacadas pela cartografia
oficial aplicada ao mapa do Google Maps. Essas inversões na lógica da narrativa sobre o
acontecimento, ainda que não alterem fisicamente as homenagens presentes no espaço urbano,
chamam a atenção para outras formas de ler a história do Brasil a partir da cidade. Em diversos
estados há projetos encaminhados a Câmara de Vereadores buscando a troca efetiva de nomes de
ruas, praças e outros locais.
De modo geral, o mapa articula tempo e espaço ao destacar a história de participantes da
resistência no presente da cidade. O fato de que as marcações estão predominantemente em locais
periféricos, mas concentradas em apenas alguns estados da Federação, também contribui para uma
leitura crítica da história e da maneira como a narração do acontecimento passado continua
presente, de maneira desigual e pouco problematizada.
Memórias da Ditadura
Diferentemente da cartografia realizada pelo Roteiro da Consciência do Brasil, o Mapa da
Ditadura é produzido pelo Instituto Vladimir Herzog, com apoio da Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República, e faz parte do site Memória da Ditadura, lançado em
dezembro de 2104. O projeto traz diversos aspectos nem sempre abordados sobre o período:
relação do futebol com o regime, corrupção na Ditadura, militares que não apoiaram o golpe e civis
que o fizeram, entre outros temas. Na página inicial, vemos chamadas para uma linha do tempo,
um memorial com imagens, informações e links para o site Desaparecidos Políticos, um espaço
para interação – no qual se pode enviar comentário sobre o período –, além de três mini
documentários. Temos ainda o link para o Mapas da Ditadura, sobre os quais nos debruçamos aqui.
O mapa explica que trata dos resquícios da Ditadura através das marcas nas memórias das
pessoas e dos lugares, convocando os leitores para a contribuição. A cartografia é composta por
três mapas: “Resquícios da ditadura”, “Marcos da história” e “Memórias da gente”. O primeiro
mapa busca perceber a continuidade da presença do regime nos espaços urbanos, atualmente
questionados. O segundo se destina aos espaços de memória que foram palco de alguma situação
histórica. Por fim, temos as marcações destinadas às lembranças de pessoas afetadas ou que
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experienciaram o regime militar. Abaixo dos mapas, temos uma série de depoimentos em vídeo e
escritos que remetem ao terceiro mapa.
Figura 2: Mapas da Ditadura. Fonte: http://memoriasdaditadura.org.br/mapas-da-ditadura
(2015)
O primeiro fato observado ao abrir os três mapas é que não há praticamente, assim como no
Roteiros da Consciência, marcações na região Norte. A maioria está no Sudeste, seguido do Sul e
Nordeste. O que é destinado aos espaços históricos possui poucas marcações, concentradas no Rio
de Janeiro, São Paulo, Paraná e Pernambuco. Em Pernambuco, a marcação fica na Região
Metropolitana de Recife e destaca a morte de dois estudantes a tiros durante uma manifestação
contra a deposição e prisão do ex-governador Miguel Arraes. A foto de uma das vítimas aparece
logo abaixo do documentário O dia que durou 21 anos, sem explicar a relação entre eles. Rio de
Janeiro e São Paulo têm uma marcação cada, mas de lugares realmente marcantes para o regime.
Na primeira, vemos o local onde houve o sequestro em 1970 do embaixador suíço para a libertação
de presos políticos. Os quatro links que aparecem no detalhe da marcação guiam para as
informações contidas na Wikipédia, além de três fotos do acervo das Organizações Globo. Em São
Paulo, temos o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), que serviu para reprimir
manifestações no Estado Novo e na Ditadura Militar. Hoje, o espaço recebe o Memorial da
Resistência, cujo site é referenciado. Os outros dois links levam para as informações sobre o
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espaço no Arquivo Público do Estado de São Paulo e um curto vídeo que narra sua história.
A cidade de Curitiba, capital do Paraná, possui quatro marcações, mais do que os outros
estados reunidos. Duas são para edifícios, o palácio das telecomunicações presidente Costa e Silva,
do qual não obtemos nenhuma informação além da localização, e a antiga sede do Dops da cidade,
que conta com uma foto recente. O local se transformou em fast food, estacionamento e funilaria,
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motivos que indignaram quem marcou o espaço no mapa . As outras marcações são para o busto
de Flávio Suplicy de Lacerda, ex-Ministro da Educação nos dois primeiros anos do regime, e a
avenida Castelo Branco. Aqui, percebemos mais marcações destinadas aos apoiadores do regime,
resquícios da Ditadura. Vemos uma articulação salutar entre tempo e espaço, em que este até se
transforma e não preserva seu conteúdo histórico, provocando reflexões sobre as contradições que
permeiam a memória do acontecimento a partir do espaço urbano. Esse fato ganha visibilidade em
mapas digitais colaborativos.
O mapa dedicado aos resquícios do regime traz diversas marcações. As duas no Nordeste,
duas no Centro-Oeste e uma no Sul são todas para ruas, avenidas e escolas que levam o nome dos
presidentes da Ditadura Militar. Elas, normalmente, possuem informações básicas sobre o
presidente, com links que guiam, sobretudo, para sites jornalísticos, mas também para fotos, vídeos
no Youtube e endereço institucional – caso da escola mato-grossense em homenagem ao expresidente Médici. A marcação única no Rio de Janeiro é para a Ponte Costa e Silva. A página traz
informações sobre o ex-presidente militar e links para notícias jornalísticas.
O estado de São Paulo apresenta uma maior diversidade. Além das ruas e avenidas
destinadas aos presidentes, encontramos marcações em dois viadutos: o Minhocão - homenagem ao
ex-presidente militar Costa e Silva - e o 31 de março - em referência ao dia do Golpe. Ambos
trazem informações básicas, links para matérias jornalísticas e o documentário 30 Anos de Anistia
no Youtube - na última marcação. Observamos ainda marcações em duas praças dedicadas a
generais apoiadores do regime. No interior paulista, em Bauru, temos ainda uma marcação no
núcleo residencial do ex-presidente Geisel, acompanhada de um pequeno bloco de texto, link para
uma matéria em site jornalístico e uma reportagem no Youtube sobre a posse de Geisel.
O último mapa, “Memórias da gente”, também sob a alcunha “depoimentos”, é o que
possui mais marcações e que parece ter, de fato, um viés colaborativo, com as novas contribuições
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avaliadas pelos administradores do site antes de publicadas. A marcação no mapa está vinculada ao
local em que a pessoa viveu o fato relatado. Por isso, alguns nomes possuem marcações em mais
de um lugar. É o caso do professor da Faculdade de Educação da UFBA, Nelson Pretto. Em seu
depoimento em vídeo, conta situações de quando era militante e estudante de física da UFBA. Em
Joaçaba, interior de Santa Catarina, há outro depoimento do professor, que relata a sensação,
quando ainda criança, do dia exato do Golpe de 1964 e de quando saiu de seu estado natal. Na
página, nenhuma informação é disponibilizada sobre Pretto e os locais não possuem ligação. No
Ceará, Elias Rodrigues Moura conta como era ter um pai militante ainda no governo Vargas,
quando fazia reuniões em sua própria casa com Luís Carlos Prestes. O depoimento em texto não
traz muitas informações sobre Moura, mas explica que seu pai morreu apenas em 1991, apesar de
toda a perseguição em vida. O que importa, nesse caso, não é necessariamente o narrador, mas o
fato contado a partir da sua memória.
Entre Tocantins e Pará, temos Creuza e Dona Dilva, mas sem praticamente nenhuma
informação sobre as mulheres ou o período específico a que se referem, embora possivelmente seja
o da Guerrilha do Araguaia. Da capital brasileira, Laís Abramo faz um longo relato em texto sobre
sua infância e situações logo após o Golpe de 1964, passando pela história dos seus pais,
professores da UnB. O depoimento traz ainda um texto escrito por sua mãe em 1978,
disponibilizado na íntegra.
As colaborações não têm uma forma padronizada. Em Mato Grosso do Sul, temos o
depoimento de três linhas de Sérgio Souza sob o título de: “Meu parente é uma besta”. Ingrid
Cabral Soares, de Governador Valadares, em Minas Gerais, narra, em um texto memorial, quase
literário, como foi descobrir a história do seu bisavô na escola e não em casa. Claret Ximenes, na
cidade de Três Corações, em Minas Gerais, brada no seu texto: “levaram o professor”. Em cinco
linhas, seu depoimento narra como o pai de um amigo foi levado pela repressão. A história não foi
presenciada por ele, seus colegas que o contaram.
A diversidade de formas de representação do acontecimento através dos três mapas
corrobora com o objetivo geral do site: discutir contrastes e versões sobre a história do regime
militar no Brasil. Os nomes dos mapas já indicam a intencionalidade presente nessa cartografia:
apresentar disputas de sentidos e apontar, no espaço urbano, diferentes leituras possíveis. A
utilização de depoimentos, localizados conforme o local ocupado pela pessoa durante a ditadura,
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contribui para a presentificação de experiências do passado, ou seja, da elaboração de memórias.
Apesar de ser possível participar da cartografia, com a inclusão de novas marcações, não há
agilidade na sua publicação. Esse aspecto pode ser prejudicial para o caráter colaborativo, que fica
apenas na potência da plataforma. Apesar disso, o fato de intencionar dar visibilidade a vozes
desviantes em relação ao discurso oficial e enfatizar, através dos depoimentos principalmente,
experiências de pessoas comuns, abre-se espaço para uma leitura crítica sobre o acontecimento.
Considerações finais
O presente estudo sobre a elaboração de memórias coletivas na internet, através de mapas
colaborativos, permite-nos identificar aspectos semelhantes e destoantes nas práticas analisadas.
Podemos apontar que o mapa Roteiro da Consciência do Brasil enfatiza a referência a mortos e
desaparecidos cujos nomes foram vinculados aos espaços públicos, especialmente a ruas
secundárias e de menor circulação. Já os Mapas da Ditadura apresentam os conflitos, testemunhos
e tensões que marcaram esse período da história do Brasil e que ainda continuam a reverberar no
presente. A partir dessas intenções e das respectivas representações cartográficas, disputas de
memórias adquirem visibilidade e espaço para reflexão.
Nesse sentido, o mapa Roteiros da Consciência desempenha o papel de um índice de casos
de silenciamento, uma vez que destaca e traz informações detalhadas, acompanhadas de links,
sobretudo, para o site Desaparecidos Políticos. Proporciona a visualização dessas informações de
uma maneira contextual, relacionando-as com o espaço urbano. De forma complementar, os mapas
do site Memórias da Ditadura abarcam aspectos variados, com formatos de mídia mais
diversificados, associados às marcações memoriais relativas ao período. O seu caráter pedagógico,
no entanto, parece sobrepor-se ao colaborativo, uma vez que as contribuições nem sempre são
agregadas ao mapa. Uma estrutura mais up-down, contrariando a lógica da cultura da convergência
e as potencialidades da Inteligência Coletiva.
As contribuições em ambos são anônimas, exceto pelos depoimentos presentes no site
Memórias da Ditadura. Os links utilizados para confirmar as informações foram para vídeos do
Youtube e, principalmente, para matérias e outros formatos midiáticos de sites jornalísticos, como
EBC, O Globo, G1, Estadão, Folha, dos portais UOL e Terra e das revistas Veja e Carta Capital.
Há uma busca por legitimação das versões e perspectivas defendidas, com a tendência - muitas
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vezes implícita - de contrastar o ponto de vista dos movimentos de resistência ao dos apoiadores do
regime. Estes últimos são, portanto, frequentemente silenciados ou referenciados como
representantes da memória que precisa ser questionada e revisada.
O predomínio de marcações ocorre em todos os mapas nas regiões Sudeste e depois Sul e
Nordeste. A penetração nesses espaços é mais considerável, uma vez que há um lastro histórico
para discussão da memória e das ações na Ditadura Militar. A disseminação e a colaboração nessas
regiões se apresentam de forma mais intensa. No entanto, não desconsideramos que as
representações seguem a hegemonia das regiões mais influentes geopoliticamente no país.
As cartografias colaborativas apresentam uma relação própria entre tempo e espaço,
ressignificando-os através das marcações, informações e depoimentos disponibilizados. O mapa
financiado pelo governo traz marcações em épocas e lugares diferentes de um mesmo personagem,
como é o caso de Nelson Pretto. Outras marcações exaltam como o espaço mudou ao longo dos
anos, como a Casa de Cultura em Recife, que servia como espaço para opressão dos militares e
hoje traz aspectos da cultura pernambucana e um memorial em homenagem ao Frei Caneca. E um
caso mais marcante como o do Dops da Curitiba. O espaço se transformou em um restaurante,
estacionamento e funilaria, causando revolta a quem realizou a marcação no mapa. O
acontecimento é presentificado também através da visibilização dos nomes de ruas dedicados aos
mortos e desaparecidos do regime militar brasileiro. Esse movimento encontra lugar no presente
sobretudo em função das ações desenvolvidas nos últimos dois anos através das Comissões da
Verdade. A memória oficial - no qual os presidentes-ditadores eram homenageados – passa a ser
questionada através desses mapas colaborativos.
As marcações, por sua vez, não priorizam o que está na parte “principal da cidade”, ou seja,
onde turistas e moradores de diversos bairros circulam; ao contrário, os colaboradores prezam pelas
memórias dos bairros periféricos. Os mapas colaborativos analisados valorizam o que só os
transeuntes “sem rumo” encontrariam, conforme perspectiva de Hetherington (2013). Desta forma,
buscam dar voz e rosto, principalmente, àqueles que sofreram e não obtiveram muito
reconhecimento na história oficial. Muitos que transitam pela rua Marighella sabem da sua
importância, mas quem passa pela rua Adherbal Teixeira Rocha possivelmente não tem noção do
que ela representa. Esses mapas fazem com que essa “contra-memória” não apareça apenas de
forma casual, apesar de ser escondida pela cartografia oficial das cidades. Cumpre-se, assim, o
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objetivo de desenvolver uma consciência memorial em relação ao espaço e ao tempo da história.
Esses mapas cumprem a função de “lupas” que ampliam a visibilidade daqueles que
recebem menos destaque na narrativa oficial da história, pois seus nomes muitas vezes não estão
vinculados à Ditadura Militar e poucos dos passantes sabem, de fato, quem é o homenageado. A
marcação dos resquícios do acontecimento também é realizada, mas o foco principal é dar voz aos
marginalizados. Definimos assim os representantes da resistência à Ditadura Militar, uma vez que
eles não são necessariamente esquecidos, mas silenciados e apartados das narrativas memoriais
predominantes. Novos estudos focados na problemática apresentada poderão explorar formas de
integração das memórias e narrativas compartilhadas em mapas colaborativos e o espaço urbano
concreto. A consciência histórica e a busca por reparação através da ressignificação de lugares de
memória, reivindicada por movimentos sociais contemporâneos, pode ser favorecida pelas
potencialidades de disseminação e comunicação dos meios digitais. Deve-se, contudo,
compreender as suas lógicas representacionais de tempo e espaço estimuladas pelo debate que a
esfera pública digital potencializa.
1
Doutorando, Universidade Federal da Bahia, em intercâmbio no Centre National de la Recherche
Scientifique, França, [email protected]
2
Doutoranda, Justus Liebig Universität - Giessen, Alemanha, [email protected]
1 Um exemplo é a estátua na cidade de Praga dedicada a Stalin que foi destruída após a “desestalinização” da Europa
Ociedental.
2 Tradução nossa: “Collective memory plays a clearly inflammatory role here, legitimasing conflict precisely as a result
the existence of plurality of conflicting memories and the nonexistance of a [unique] shared memory of past events”.
3
Disponível
em:
http://memoriasdaditadura.org.br/mapas-da-ditadura/antiga-sede-do-dops-curitiba/#!/loc=25.436514099999986,-49.26355040000001,17. Acesso em: 18 fev. 2015.
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Cartografando a Ditadura Militar no Brasil: memórias