Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 1 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ DISPONÍVEL EM: <http://www.cnbb.org.br/documento_geral/Caderno%20DSI%20-%20FINAL3.doc>. PROJETO NACIONAL DE EVANGELIZAÇÃO QUEREMOS VER JESUS Caminho, Verdade e Vida TEMAS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA CADERNO N° 1 __________________________________________________________________________________________________________________________________ 1 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] 2 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Sumário Apresentação Pág.04 Introdução à leitura desse caderno Pág. 05 Capítulo 1 Introdução à Doutrina Social da Igreja O que é Doutrina Social da Igreja Fundamentos ou fontes da Doutrina Social Quando e em que contexto nasceu a DSI Pág.06 Pág.08 Pág.10 Capítulo 2 Princípios Gerais e o Dinamismo da DSI Linhas Mestras da Doutrina Social da Igreja Conceito de Pessoa Humana na DSI Pág.13 Pág.17 Capítulo 3 Caráter Histórico da Doutrina Social da Igreja A abertura ao processo dinâmico da história A evolução da DSI ao longo da história Os desafios da DSI para os dias de hoje Pág.19 Pág.20 Pág.24 Capítulo 4 Ordem Social: comunidade, sociedade e bem comum Introdução Desafios à ordem social O porquê dessa situação Princípios que a Igreja nos propões no campo social Como podemos organizar-nos para enfrentar esses desafios Conclusão: um convite Pág.26 Pág.27 Pág.28 Pág.33 Pág.34 Capítulo 5 Cultura, Religião e Sociedade Justa Cultura, promoção humana e justiça social Religião e prática da justiça social Pág 36 Pág.41 Capítulo 6 O Estado e suas funções: bem público e privado Escritura e Padres O bem comum Princípios e fundamentos do bem comum Tarefas do Estado O cristão e a polis Pág.44 Pág.45 Pág.45 Pág.46 Pág.48 Capítulo 7 Transformações e Reformas Nos passos de Cristo Pág.49 __________________________________________________________________________________________________________________________________ 2 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] 3 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Um país rico com muitos pobres Brasil: casa grande e senzala; de onde vem, a onde vai? À luz do Ensino Social da Igreja Transformações e reformas Como fazer? Estratégias de transformação Pág.50 Pág.51 Pág.52 Pág.53 Pág.54 Capítulo 8 A Comunidade Internacional A formação de uma comunidade internacional Etapas e ferramentas históricas da comunidade internacional À raiz da crise civilizatória Novos desafios para a comunidade internacional Valores na base da construção da comunidade internacional Caminhos na construção da comunidade internacional Pág.55 Pág.56 Pág.57 Pág.58 Pág 58 Pág.59 Bibliografia ....................................................................................................................... pág. ... Documentos da Doutrina Social da Igreja........................................................................ pág. ... Siglas e abreviaturas ......................................................................................................... pág. ... __________________________________________________________________________________________________________________________________ 3 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] 4 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Apresentação A Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz tem a satisfação de apresentar o primeiro de uma série de três Cadernos de Doutrina Social da Igreja, cujo estudo e prática se integram no Projeto Nacional de Evangelização “Queremos Ver Jesus, Caminho, Verdade e Vida”. O objetivo do estudo e da prática do ensino social cristão é criar condições para a formação de lideranças que atuam na construção da sociedade mais justa e solidária. Existe um vínculo indissociável entre a evangelização e a promoção da vida e da dignidade humana. Não haveria uma verdadeira evangelização sem um compromisso de conversão e transformação na ordem social, política e econômica. O Ensino Social da Igreja é um critério seguro para a urgente formação de agentes cristãos para que, com conhecimento e experiência, possam oferecer sua presença qualificada, atuando na transformação das comunidades e da sociedade. Assim se expressam os Bispos no Sínodo de 1971 sobre a Justiça no Mundo: “A missão de pregar o Evangelho requer, nos tempos que correm, que nos comprometamos em ordem à libertação integral do homem, já desde agora na sua existência terrena. Se, efetivamente, a mensagem cristã sobre o amor e a justiça não mostra sua eficácia na ação pela justiça no mundo, muito dificilmente ela será aceitável para os homens do nosso tempo”. O Santo Padre o Papa João Paulo II, falando dos desafios do novo milênio, encarece aos cristãos, sobretudo aos fiéis leigos, uma atuação decidida no campo social, “com autonomia e competência”, inspirando-se no Ensino Social da Igreja. Para o Papa, “essa vertente ético-social é uma dimensão imprescindível do testemunho cristão: há que rejeitar a tentação de uma espiritualidade intimista e individualista que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação e, em última análise, com a própria tensão escatológica do cristianismo” (Novo Millennio Ineunte - No Início do Novo Milênio, 2001, n. 52). A Doutrina Social da Igreja é um tesouro referencial de inspiração e uma fonte perene de aprendizado prático para que as lideranças ocupem os espaços nos canais de participação popular, tais como Conselhos, Organismos e Movimentos, assumindo empenhos de transformação e inclusão social nos diversos campos da política, da economia, da cultura, da família. Nestes espaços de participação popular é que nascem as decisões corajosas em prol da concidadania, nascem sugestões valiosas que se desabrocham em encaminhamento de políticas públicas, correspondentes às necessidades básicas de inclusão social. Nosso Senhor, Bom Pastor, Divino Mestre nos ensine a buscar os valores “novos e velhos” (Cf. Mt 13,52), no tesouro da práxis cristã, cuja Tradição leva-nos a construir a civilização do Amor, da Justiça e da Paz. “Para que em toda a parte sejam respeitados os princípios fundamentais dos quais dependem o destino do ser humano, e o futuro da civilização”, como nos lembra o Documento (id. Justiça no Mundo - Sínodo de 1971). Que Maria de Nazaré, Mãe do Senhor, Mãe da Igreja, a convidada atenta nas Bodas de Cana (Cf. Jo 2,3), nos inspire e nos torne mais sensíveis, a fazer parte das soluções, percebendo as necessidades de nossos irmãos, tornando-nos, solícitos, no empenho solidário em prol da justiça social. Brasília/DF, 07 de setembro de 2004 (Grito dos Excluídos) Dom Aldo di Cillo Pagotto, SSS Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade da Justiça e da Paz __________________________________________________________________________________________________________________________________ 4 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 5 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Introdução à leitura desse caderno Esse caderno tem duas partes: os primeiros três capítulos oferecem uma visão sintética do conjunto da doutrina social: conceitos básicos, fontes, dinamismo e caráter histórico do Ensino ou Doutrina Social da Igreja (DSI). Os demais capítulos tratam de temas específicos, tendo como pano de fundo a exposição dos capítulos iniciais, mas acrescentando novos elementos de reflexão específicos ao tema. Em cada capítulo temático, expõe-se a problemática em foco, busca-se iluminar a realidade com os princípios da DSI e apontam-se desafios e pistas de ação. Os temas foram selecionados a partir de um levantamento feito por um grupo da Comissão Episcopal Pastoral do Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, identificando assuntos que estão no debate atual. O conjunto dos temas levantados foi distribuído em três blocos, a serem tratados em um caderno anual no triênio 2004-2006 (veja o plano conjunto, a seguir). O presente caderno insere-se no Projeto Nacional de Evangelização. Por essa razão, tem em vista a aplicação prática da DSI e não sua fundamentação teórica. Busca-se oferecer uma ajuda às comunidades para que realizem o discernimento das opções e compromissos a serem assumidos, para as transformações da realidade em atuam, segundo os princípios da ética social cristã. Para estimular a reflexão pessoal e encaminhar o debate em grupos, colocamos algumas questões no final de cada capítulo. Quem deseja aprofundar algum tema ou realizar um estudo sistemático da DSI, encontra sugestões na Bibliografia, no fim do caderno. As siglas usadas nesse caderno aparecem num elenco único, no final, onde se encontra também uma relação dos principais documentos do ensino social da Igreja, tanto em nível universal, como no contexto latino-americano e brasileiro. Reações ao presente caderno e sugestões de temas para os próximos cadernos podem ser encaminhadas aos seguintes endereços eletrônicos: [email protected]; [email protected] A Equipe de Redação __________________________________________________________________________________________________________________________________ 5 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 6 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Esquema Geral dos Cadernos de Doutrina Social da Igreja Caderno 1: Capítulo 1: Introdução à Doutrina Social da Igreja Capítulo 2: Princípios Gerais e Dinamismo da DSI Capítulo 3: Caráter Histórico da DSI Capítulo 4: Ordem Social: Comunidade, Sociedade e Bem Comum Capítulo 5: Cultura, Religião e Sociedade Justa Capítulo 6: O Estado e suas Funções: Bem Público e Privado Capítulo 7: Transformações e Reformas Capítulo 8: A Comunidade Internacional Proposta de temas para os próximos cadernos (a ordem dos temas pode mudar): Caderno 2 (previsto para 2005): - Direitos humanos: econômicos, sociais e políticos Propriedade: riqueza e pobreza, funções da propriedade Trabalho, salários e emprego; desemprego e marginalização Reforma agrária e agrícola, agricultura familiar e segurança alimentar Participação política e ordem democrática: partidos, eleições, reformas A questão da segurança do cidadão e do Estado: Justiça, prisões, desarmanento... Bio-ética como questão social: bio-segurança, transgênicos... Ecologia e meio-ambiente Outros Caderno 3 (previsto para 2006): - Desenvolvimento sustentável: objetivos e modelos - capitalismo, socialismo e alternativas Família: natureza, funções, desafios, proposta cristã Educação: realidade, reformas, contribuição da Igreja Movimentos e organizações sociais: economia solidária, cooperativismo, terceiro setor Mobilidade humana: migrantes, desalojados, despejados, refugiados O direito das minorias: etnia, gênero, jovens, idosos, portadores de necessidades especiais. Paz e guerra: desafio e missão - guerras, terrorismo, tráfico, construção da paz Outros __________________________________________________________________________________________________________________________________ 6 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 7 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Capítulo 1 Introdução à Doutrina Social da Igreja Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS O que é Doutrina Social da Igreja? De início é preciso definir o que se entende por Doutrina Social da Igreja (DSI). Esta expressão designa o conjunto de escritos e mensagens – cartas, encíclicas, exortações, pronunciamentos, declarações – que compõem o pensamento do Magistério católico a respeito da chamada “questão social”. Os principais documentos da Doutrina Social da Igreja são as chamadas “Encíclicas Sociais” dos papas, desde Leão XIII, em 1891. Mas temos também um documento doe Concílio Vaticano II e um texto do Sínodo dos Bispos, realizado em Roma em 1971. A seguir, a lista dos principais documentos da DSI. Rerum Novarum1 (A Condição dos Operários), Leão XIII, 1891 Quadragesimo Anno (A Restauração e Aperfeiçoamento da Ordem Social), Pio XI, 1931 Mater et Magistra (A Recente Evolução da Questão Social), João XXIII, 1961 Pacem in Terris (Paz na Terra), João XXIII, 1963 Gaudium et Spes (A Igreja no Mundo de Hoje), Concílio Vaticano II, 1965 Populorum Progressio (O Desenvolvimento dos Povos), Paulo VI, 1967 Octogesima Adveniens (Necessidades de um Mundo em Transformação), Paulo VI, 1971 Justiça no Mundo, Sínodo dos Bispos, 1971 Evangelii Nuntiandi (A Evangelização no Mundo Contemporâneo), Paulo VI, 1975 Laborem Exercens (O Trabalho Humano), João Paulo II, 1981 Sollicitudo Rei Socialis (Solicitude Social da Igreja), João Paulo II, 1987 Centesimus Annus (Centenário da Rerum Novarum), João Paulo II, 1991 Novo Millennio Ineunte (No Início do Novo Milênio), João Paulo II, 2001 No decorrer de nossa reflexão, teremos oportunidade de ver como e porque grande parte dos estudiosos deste tema prefere o termo ensino ou ensinamento, em lugar de doutrina. Por agora vamos começar nossa busca resgatando dois textos que se tornarão duas referências básicas para a tarefa de estabelecer os contornos do que é a DSI. Ambos serão como que o mapa por onde iniciaremos nosso estudo da doutrina social. Claro que os dois documentos, por sua vez, fundamentam-se nas fontes originais da Palavra de Deus. 1 As encíclicas (cartas coletivas) dos Papas costumam ser citadas pelas palavras iniciais, em latim. Damos a tradução usada no Brasil pelas coleções, publicadas por Editoras Católicas (por ex., Vozes, Paulinas, Loyola e Paulus). __________________________________________________________________________________________________________________________________ 7 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 8 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ O primeiro texto refere-se a um documento publicado em dezembro de 1998 pela Congregação para a Educação Católica, com o título Orientações para o estudo e o ensino da Doutrina Social da Igreja na formação dos sacerdotes. Ao discorrer sobre os elementos constitutivos da DSI, o documento assim a define: “O ensinamento origina-se do encontro da mensagem evangélica, e de suas exigências éticas, com os problemas que surgem na vida da sociedade. As questões que daí emergem passam a ser matéria para a reflexão moral que amadurece na Igreja por meio da pesquisa científica, e inclusive mediante a experiência da comunidade cristã. Esta doutrina projeta-se sobre os aspectos éticos da vida, sem descuidar dos aspectos técnicos do problema, para julgá-los com critério moral. Baseando-se em ‘princípios sempre válidos’, leva consigo ‘julgamentos contingentes, já que se desenvolve em função das circunstâncias dinâmicas da história e se orienta essencialmente para a ‘ação ou práxis cristã’ ”(n. 3). Um olhar atento a essa definição da DSI permitirá desdobrar seus elementos constitutivos, como faz Ildefonso Camacho2. Quatro componentes se destacam: a) exigências éticas derivadas da dimensão social do Evangelho; b) imperativos da realidade sócio-econômica e político-cultural do mundo em que vivemos; c) reflexão moral que confronta a mensagem evangélica com a situação histórica; e d) ação ou práxis sócio-transformadora. Evidente que estes quatro elementos agem em constante interação e procuram adaptar-se aos mais diferentes contextos históricos. DSI segundo o Sínodo dos Bispos O segundo documento em que vamos no apoiar para identificar o que vem a ser a DSI nos remete ao enfoque da doutrina social a partir do Vaticano II. Paradoxalmente, o texto onde vamos encontrar tal enfoque de forma mais elaborada e contundente não pertence aos documentos do Concílio, nem costuma figurar sequer entre os principais textos que formam a bibliografia da DSI. Trata-se do documento sobre A Justiça no Mundo, resultado do Sínodo dos Bispos de 1971. Vale a pena determo-nos um pouco nesta síntese sinodal, reproduzindo trechos de sua introdução: “Ao prescrutarmos os ‘sinais dos tempos’ e ao procurarmos descobrir o sentido do curso da história, e compartilhando ao mesmo tempo as aspirações e as interrogações de todos os homens desejosos de construírem um mundo mais humano, queremos escutar a Palavra de Deus, para nos convertermos para a atuação do plano divino acerca da salvação no mundo” (JM, Introd., 2). “Ao ouvirmos o clamor daqueles que sofrem violência e se vêem oprimidos pelos sistemas e mecanismos injustos, bem como a interpelação de um mundo que, com a sua perversidade, contradiz os desígnios do Criador, chegamos à unanimidade de consciência sobre a vocação da Igreja para estar presente no coração do mundo e pregar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos oprimidos e a alegria aos aflitos. A esperança e o impulso que animam profundamente o mundo não são alheios ao dinamismo do Evangelho que, pela virtude do Espírito Santo, liberta os homens do pecado pessoal e das conseqüências do mesmo na vida social” (JM, Introd., 5). “A ação pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer da missão da Igreja, em prol da redenção e da libertação do gênero humano de todas as situações opressivas (JM, Introd., 6. Grifo nosso). 2 Ildefonso Camacho. Doutrina Social da Igreja – Abordagem histórica, Edições Loyola, São Paulo/SP, 1995. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 8 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 9 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ O último parágrafo citado, no dizer de Camacho, “constitui uma espécie de coluna vertebral de todo o documento”3. De fato, por dimensão constitutiva entende-se que a ação sócio-transformadora é parte inerente do Evangelho. Não se trata, portanto, de mero desdobramento da fé cristã e menos ainda de simples apêndice de uma vida segundo o Evangelho. Nada disso! A ação social é elemento integrante da mensagem evangélica. Numa palavra, não haverá verdadeira evangelização sem um correspondente compromisso de ordem social e política. Na história do magistério da Igreja é certamente uma das expressões que melhor estabelecem o vínculo indissolúvel entre a justiça e a evangelização. Não há como escapar: o seguimento de Jesus Cristo, para ser genuíno e autêntico, exige participação ativa no trabalho de transformação da sociedade. Esta ação, vale insistir, não é uma excrescência da doutrina - como lembra Henri Bazire mas parte essencial dos dogmas da tradição católica. Convém voltar ainda ao mesmo documento para dar-nos conta da força e da novidade desta perspectiva na história da Igreja. Diz o texto: “A situação atual do mundo, vista à luz da fé, faz-nos um apelo no sentido de um retorno ao núcleo mesmo da mensagem cristã, que cria em nós a consciência profunda do seu verdadeiro sentido e das suas urgentes exigências. A missão de pregar o Evangelho requer, nos tempos que correm, que nos comprometamos em ordem à libertação integral do homem, já desde agora na sua existência terrena. Se, efetivamente, a mensagem cristã sobre o amor e a justiça não mostra a sua eficácia na ação pela justiça no mundo, muito dificilmente ela será aceitável para os homens do nosso tempo” (JM, II, 35). Ou seja, retornar ao núcleo da mensagem cristã é, também, resgatar sua dimensão social. Sem esta o próprio Evangelho perde credibilidade, perde seu fermento mais fecundo, mais vital e mais eficaz. De resto, o Vaticano II, como fonte de elementos da DSI, transpira em todos os seus documentos essa nova sensibilidade diante das reais condições do gênero humano. É fácil perceber isso na frase de abertura da Gaudium et Spes, a qual reflete e sintetiza o espírito de todo o Concílio: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo (GS,1). Em síntese, a DSI procura atualizar a dimensão social do Evangelho para os distintos contextos da vida cotidiana, levando sempre em conta que “o gênero humano encontra-se em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo inteiro” (GS, 4). Em poucas palavras, é o Evangelho tornado vivo e atual nos diferentes desafios da realidade social, política, econômica e cultural. Inspirado pelo Espírito Santo, o magistério da Igreja procura interpretar a mensagem evangélica diante das situações mais diversas. Assim nasce uma palavra, uma reflexão, um ensinamento, uma doutrina de caráter social - isto é, escrita para iluminar os problemas relacionados à condição social do gênero humano e conduzir as pessoas à busca de soluções. Resumindo, é a atualização da Palavra de Deus para os dias de hoje, traduzida na sensibilidade e na solicitude da Igreja para com aquelas situações onde a vida encontra-se mais ameaçada. Fundamentos ou fontes da DSI Nos embates com os desafios sócio-históricos, a Doutrina Social da Igreja acumula uma série de orientações em que convergem várias fontes distintas, mas complementares. É de tais fontes que ela 3 Ildefonso Camacho, op. cit., p. 256. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 9 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 10 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ retira sua seiva, sua força e seu vigor. Seus fundamentos mergulham aí as raízes mais profundas. Vejamos resumidamente as principais delas: a) O clamor dos oprimidos, como as vítimas de uma história que produz, simultaneamente, concentração de renda e exclusão social. Dessa solicitude histórica da Igreja para com os “caídos” à beira da estrada, os excluídos ou “condenados da terra”, vai consolidar-se, especialmente a partir do Concílio Vaticano II, a opção preferencial pelos pobres. b) A Palavra de Deus, Antigo e Novo Testamentos, como luz que ilumina a realidade e desnuda as contradições da organização social e política em confronto com o plano da criação. Neste caso, é evidente que a prática de Jesus ganha particular relevo. c) A sabedoria e a experiência multissecular do Magistério da Igreja, em que se desenvolvem uma série de orientações fundamentais quanto ao seguimento de Jesus Cristo no cumprimento do seu mandamento novo, do amor ao próximo. d) A prática cotidiana dos cristãos e das comunidades eclesiais junto aos setores mais marginalizados e empobrecidos da população. Através de ações desse tipo surgem soluções criativas e novas organizações. e) A produção teológica, como uma reflexão a partir da fé que acompanha a práxis dos cristãos, com especial atenção para a teologia da libertação, da teologia negra, da teologia política e da teologia feminina – além de outras reflexões na linha sócio-transformadora. f) A contribuição da ciência em suas mais variadas disciplinas, como aproximação aos dados de uma realidade sempre cambiante. É inegável hoje o suporte teórico das ciências sociais e humanas para um conhecimento mais profundo do relacionamento entre as pessoas e as sociedades, como também da história da humanidade. g) A abertura à riqueza inesgotável de pessoas, culturas e povos distintos, processo em que prevalece o ecumenismo e o diálogo inter-religioso e em que aquilo que nos une é bem mais do que aquilo que nos separa. O pluralismo cultural e religioso faz do planeta um grande mosaico de experiências humanas, o que exige um intercâmbio contínuo e reciprocamente enriquecedor. h) Uma mística ou espiritualidade que, diante das tensões e conflitos sociais, possa ser ao mesmo tempo encarnada, libertadora e inculturada. Está em jogo, neste caso, a busca permanente das motivações mais fundas para a existência humana. Como diria Dostoieski, “o segredo da existência hunana não está somente em viver, mas, sobretudo em saber porque se vive”. Veremos mais adiante como tais princípios, longe de aparecer como dogmas hermeticamente fechados e imutáveis, são antes orientações que procuram se renovar de acordo com os desafios constantes do progresso histórico. Características da Doutrina Social da Igreja A encíclica Centesimus Annus (CA), de João Paulo II, publicada em 1991, faz um retrospecto da DSI ao longo de um século de sua existência. Nela, segundo o estudo já citado de Camacho, iremos identificar as características mais marcantes da visão da DSI, no capítulo VI dessa Encíclica. Como podemos notar, tais características reúnem elementos de todas as fontes assinaladas. Citamos a síntese feita por Camacho: - “A Doutrina Social da Igreja justifica-se a partir da atenção ao homem real e concreto, entendido como ser social (CA 53). __________________________________________________________________________________________________________________________________ 10 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 11 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ - A Doutrina Social da Igreja é um instrumento de evangelização: com os olhos voltados para o anúncio da salvação, preocupa-se com todos os demais problemas que afetam o homem (CA 54). - A Doutrina Social da Igreja é uma parte da teologia: para conhecer o homem de hoje, é preciso conhecer a Deus; anunciar a salvação enriquece a dignidade do homem (CA 55). - A Doutrina Social da Igreja supõe a colaboração das igrejas locais para aplicá-la às diversas situações (CA 56). - A Doutrina Social da Igreja é, antes de mais nada, fundamento e estímulo para a ação; hoje, mais do que nunca, tornar-se-á digna de crédito pelo testemunho das obras: é aí que encontra seu sentido a opção preferencial pelos pobres (CA 57). - A Doutrina Social da Igreja exige a promoção da justiça: não só dando do supérfluo, mas ajudando os povos a entrar no círculo do desenvolvimento, transformando as estruturas, criando órgãos internacionais de controle e orientação (CA 58). - A Doutrina Social da Igreja tem uma dimensão interdisciplinar e uma dimensão prática e experimental (CA 59). - A Doutrina Social da Igreja exige a colaboração de todos para ser posta em prática: das Igrejas cristãs, das religiões, de todos os homens de boa vontade (CA 60). - A Doutrina Social da Igreja vem mantendo uma constante ao longo destes cem anos: a defesa do homem (CA 61)”4. Alguns textos, citados por extenso, nos permitirão saborear melhor a beleza dessa mensagem. “A Igreja está consciente hoje mais do que nunca de que sua mensagem social encontrará credibilidade primeiro no testemunho das obras e só depois na sua coerência e lógica interna. Desta sua convicção provém também a sua opção preferencial pelos pobres, que nunca será exclusiva nem discriminatória, relativamente aos outros grupos” (CA, 57). “O amor ao homem – em primeiro lugar ao pobre, no qual a Igreja vê Cristo – concretiza-se na promoção da justiça (...) Não se trata apenas de ‘dar do supérfluo’, mas de ajudar povos inteiros que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo do desenvolvimento econômico e humano. Isso será possível não só fazendo uso do supérfluo, que o nosso mundo produz em abundância, mas sobretudo alterando os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades” (CA, 58). “(A doutrina social) situa-se no cruzamento da vida e da consciência cristã com as situações do mundo e exprime-se nos esforços que indivíduos, famílias, agentes culturais e sociais, políticos e homens de Estado realizam para lhe dar forma e aplicação na história” (CA, 59). “O mundo de hoje está sempre mais consciente de que a solução dos graves problemas nacionais e internacionais não é apenas uma questão de produção econômica ou de uma organização jurídica ou social, mas requer valores ético-religiosos específicos, bem como mudanças de mentalidade, de comportamento e de estruturas” (CA, 60). Quando e em que contexto nasceu a DSI? O documento inaugural daquilo que se convencionou denominar Doutrina Social da Igreja é a encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII, publicada a 15 de maio de 1891. De fato, é a primeira 4 Ildefonso Camacho, op. cit., p. 516. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 11 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 12 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ vez que um documento do magistério católico dedica-se integralmente à chamada “questão social”. No decorrer do texto, o papa propõe-se abordar a “condição dos operários”. Isto não quer dizer que os problemas sociais estivessem ausentes das publicações anteriores na história da Igreja. São inúmeras as referências à situação real e concreta dos pobres desde os primeiros séculos do cristianismo e da tradição católica. O próprio Leão XIII, na introdução da Rerum Novarum, refere-se à abordagem do tema em encíclicas precedentes sobre soberania política, liberdade humana e constituição cristã dos Estados, publicadas respectivamente nos anos de 1831, 1885 e 1888. Mas, enquanto anteriormente essas questões apareciam de forma secundária, à margem de outros assuntos de maior relevância, agora o papa faz da condição social dos operários o tema central de sua carta. De cara, nota-se aqui uma mudança de enfoque ou de perspectiva: a Igreja, na pessoa do papa, deixa em segundo plano os assuntos internos e volta-se para os problemas que afligem os trabalhadores da época. O olhar da Igreja dirige-se ao mundo exterior, identificando nele os principais desafios sociais à fé cristã e buscando alternativas às contradições da sociedade em que vive. A revolução industrial e a Rerum Novarum O contexto da Rerum Novarum é uma sociedade profundamente transformada pela Revolução Industrial. Uma sociedade formada de pessoas que vivem na alma e no corpo os efeitos de um salto gigantesco em termos científico-tecnológicos. A revolução industrial trouxe avanços inegáveis, especialmente através da imensa capacidade de produção por meio da máquina. Na verdade, representou uma revolução em quatro dimensões: uma de ordem sócio-econômica, com surgimento e consolidação da indústria; outra de ordem política, através do fortalecimento dos Estados-nação a partir da Revolução Francesa; outra, ainda, de ordem científica, que se afirma pelo aprofundamento e sistematização do conhecimento e do método experimental; outra, enfim, de ordem filosófica, fundada no pensamento da razão ilustrada e na emergência da subjetividade. Mas esse conjunto de transformações trouxe também efeitos negativos. Se é verdade que o poder das máquinas multiplicou em muito a capacidade de produzir bens, alimentos e equipamentos, também é verdade que os benefícios de semelhante progresso não foram eqüitativamente distribuídos. Os “tempos modernos” ou a “era da máquina” vieram acompanhados, simultaneamente, de um enorme potencial produtivo e de uma crescente desigualdade social. É importante dar-se conta que o pano de fundo da encíclica é constituído por graves distorções sociais. A indústria nasce sob o domínio do sistema capitalista de produção e sob a orientação da filosofia liberal. O lucro é o motor da economia. No mesmo campo, como forças desiguais, patrões e operários lutam por seus interesses. Uns detêm o capital e os meios de produção, outros apenas a força de trabalho. Em tais condições assimétricas, instala-se a lei do mais forte. Na verdade, o liberalismo econômico é um jogo de cartas marcadas, aonde os mais fortes vão devorando os mais fracos, numa espécie de “seleção natural”. Em tais condições, a realidade apresenta-se sob um duplo aspecto: por um lado, as fábricas crescem, multiplicam-se por toda parte; a revolução, que tem seu epicentro na Inglaterra, chega rapidamente ao continente europeu e não demorará em cruzar o Atlântico com suas chaminés e parques gigantescos. Por outro lado, os trabalhadores, primeiramente expropriados de suas terras, vêem-se depois submetidos a condições de trabalho e de vida extremamente precárias e desumanas. A riqueza de poucos é a contraface da pobreza de muitos. Outra conseqüência da Revolução Industrial constitui a intensificação das migrações de um continente a outro. O êxodo rural foi tão intenso que as fábricas não conseguiam absorver toda a mão __________________________________________________________________________________________________________________________________ 12 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 13 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ de obra dispensada pelo campo. Enquanto muitos se empregam na indústria nascente, outros, aos milhões, vêem-se forçados a emigrarem para as Américas e a outros continentes. É nesse cenário que nasce a Rerum Novarum. O papa está preocupado com a forma de vida dos operários. Procura uma melhor distribuição de uma riqueza que dobra com a velocidade do tempo medido agora em segundos. A Rerum Novarum e a Fundação de Obras Sociais Durante o século XIX, principalmente em sua segunda metade (de 1850 a 1900), no auge da Revolução Industrial, surgiram os chamados “Santos Sociais”. Entre eles, destacam-se por exemplo, São João Bosco, Madre Cabrini, Scalabrini, Adolfo Kolping, o bispo von Ketteler, Frederico Ozanan e tantos outros. No Brasil, pertencem a esse ciclo, por exemplo, as Casas de Caridade criadas no Nordeste pelo Pe. José Antônio Maria Ibiapina (1808-1883) ou os Círculos Operários, criadas a partir do Rio Grande do Sul por iniciativa do Pe. Leopoldo Brentano (1884-1964). Preocupados com o clima e as conseqüências da Revolução Industrial e com a condição dos operários, esses “Santos Sociais” do século XIX imprimem na Igreja um novo ardor pela dimensão sócio-transformadora. Por isso, nessa época, surgem várias Congregações Religiosas (masculinas e femininas), preocupadas com as várias dimensões da chamada “questão social”. No fundo, elas ajudam a Igreja a avançar em direção ao Concílio Vaticano II. Nesse sentido, seus fundadores são precursores da abertura que o Concílio representa para o mundo moderno. Nesse período, estabeleceu-se um paralelo entre as preocupações específicas de cada Congregação (os jovens, os migrantes, os pobres, etc) e a preocupação do Papa Leão XIII. A Rerum Novarum, como sabemos, surge nesse mesmo clima das conseqüências da Revolução Industrial, em que os problemas sociais ganham particular relevância. Não é por acaso que o subtítulo da encíclica é justamente “a condição dos operários”. Resumindo os/as fundadores/as e suas respectivas Congregações exemplificam em termos concretos aquilo que a Doutrina Social da Igreja considera como questão social. Ao mesmo tempo que o papa Leão XIII concentra sua solicitude pastoral sobre a situação concreta dos operários, procurando a defesa dos trabalhadores da indústria, o bispo Scalabrini atravessa o oceano e se volta para os emigrados de além-mar e suas famílias. Procura levar-lhes “o sorriso da pátria e o conforto da fé”, como ele mesmo afirma. Ambos sinais proféticos de uma determinada época, filhos do seu tempo. Duas respostas diferentes, mas igualmente evangélicas, aos desafios de um mundo conturbado por rápidas e profundas transformações sócio-econômicas e políticas, palco para enormes e desenfreados deslocamentos humanos. Outro pioneiro foi Adolf Kolping (1813-1865), criador das Uniões ou Círculos Operários, para jovens trabalhadores e suas famílias, na Alemanha. O Padre Kolping, de origem humilde, entendeu que para elevar a classe operária e transformá-la em protagonista de uma nova sociedade, não bastava ensinar-lhes os princípios da fé, mas que era preciso dar-lhes oportunidade de aperfeiçoamento técnico e profissional e oferecer-lhes chances de lazer e cultura. A obra Kolping está hoje presente em dezenas de países, também no Brasil, mantendo cooperativas, escolas e cursos profissionalizantes. Kolping foi beatificado por João Paulo II em 1991. Frederico Ozanam (1813-1853), cristão fervoroso, escritor e democrata convicto, exerceu intensa atividade de reforma social e política. È o criador das Conferências de São Vicente de Paulo ou Vicentinos, de larga difusão no mundo católico e com forte presença no Brasil. Citamos uma frase de seus escritos: ”Há exploração quando o patrão considera o operário não como um associado, um __________________________________________________________________________________________________________________________________ 13 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 14 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ colaborador, mas como um instrumento do qual é preciso extrair o maior serviço possível pelo menor preço. Mas a exploração do homem é a escravidão”5. Não custa perguntar, por fim, a quem se refere o texto da Rerum Novarum quando aconselha “fugir dos homens perversos”. Certamente o alvo é a organização socialista, que então ganhava terreno e se consolidava em termos internacionais. Desde logo a Igreja, tentando proteger suas “ovelhas” do “lobo mau”, coloca-se numa postura de combate frontal aos princípios do socialismo. Como se pode ver, o contexto é marcado pelo início dos conflitos entre capital e trabalho. Temendo perder os fiéis para a “religião do comunismo”, a Rerum Novarum adota do começo ao fim um tom conciliatório entre patrões e operários e combativo frente à “onda vermelha”. Não podemos esquecer que o Manifesto Comunista tinha vindo à luz quatro décadas antes, em 1848. Entretanto, se é certo que o ano de 1891 é considerado o início da Doutrina Social da Igreja, seus fundamentos mergulham as raízes nos primórdios da tradição judaico-cristã. É o que veremos no capítulo que segue. Questões para reflexão e debate: 1. Como definir a Doutrina Social da Igreja a partir dos desafios de hoje? 2. Quais seus principais documentos? 3. Quais as fontes e os elementos constitutivos da DSI? 4. Relacionar o contexto em que nasceu a DSI com os tempos atuais. 5 Apud: Fernando Basto de Ávila, Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja. S. Paulo: Loyola, 1993, p. 337. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 14 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 15 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Capítulo 2 Linhas Mestras da Doutrina Social da Igreja Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS A pergunta que está por trás deste item poderia ser formulada da seguinte forma: quais as linhas mestras da DSI e como fazer de cada uma delas um instrumento no combate à pobreza, à miséria e à fome nos dias atuais? Como aplicá-las na realidade da América Latina? Centralidade e a dignidade da pessoa humana: A mais incisiva preocupação dos Papas, de Leão XIII a João Paulo II, sempre foi a centralidade e a dignidade da pessoa humana. A promoção integral do homem, a liberdade de expressão e de religião, a defesa incondicional da vida, o combate a todo tipo de preconceito, discriminação e racismo são temas correlatos que enriquecem as páginas dos documentos. O ser humano, como lembra a Gaudium et Spes, é autor, centro e fim do desenvolvimento econômico. Nada o atinge mais profundamente do que o fato de ter se tornado mero instrumento diante dos imperativos da economia de mercado ou do coletivismo. A dignidade da pessoa humana deve ser o objetivo último da produção de bens, da organização política e das expressões culturais. Nos dias de hoje, a pobreza, a fome e a violência, entre outros males, ameaçam esse princípio desde os seus fundamentos. Daí a necessidade de manter viva a opção preferencial pelos pobres, como sujeitos da própria libertação. Não podemos falar de dignidade humana sem falar de condições reais de vida, o que em termos concretos significa o respeito aos direitos fundamentais, tais como: alimentação, saúde, educação, trabalho, habitação, entre outros. O primado do trabalho sobre o capital: Uma segunda orientação que acompanha a DSI desde a Rerum Novarum é o primado do trabalho sobre o capital. Questões relativas ao salário justo, à subsistência familiar e à grande chaga que é desemprego são as principais preocupações do magistério nas relações entre patrões e empregados. Hoje, com o fenômeno da economia globalizada e a crescente precarização das relações empregatícias, tende a acirrar-se o conflito capital-trabalho. Palavras como flexibilização das leis trabalhistas ou terceirização representam verdadeiras ameaças. As conseqüências para a imensa maioria dos pobres de todo planeta são as mais desastrosas. João Paulo II, na Laborem Exercens, com muita propriedade, recoloca o trabalho como chave da questão social. É por ele que o ser humano se realiza plenamente, ao mesmo tempo, que colabora com a obra da criação. Nesta perspectiva, o desafio é encontrar formas de reafirmar com novo vigor a primazia do trabalho sobre a acumulação de lucros por parte do capital. Cabe aqui um olhar mais atento para as iniciativas populares de economia solidária, as quais se multiplicam por toda parte, e que precisam do estímulo e do incentivo da Igreja. Transparece, nas páginas do ensino social, a espiritualidade do trabalho. Por suas próprias mãos, o ser humano é capaz de modificar a matéria bruta em algo novo e útil. O minério de ferro transformase em automóvel ou eletrodoméstico, a madeira em mesa ou banco, a lã ou algodão em roupa e abrigo, e assim por diante. Da mesma forma, o trabalhador torna-se capaz de modificar a si mesmo. Poderá fazer de sua vida e de seu espírito uma constante metamorfose. Poderá recriar-se e recriar as __________________________________________________________________________________________________________________________________ 15 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 16 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ relações com outros seres humanos. Se, tijolo a tijolo, aprende a levantar um edifício, também aprenderá a erguer-se, passo a passo, enquanto criatura renovada. Pelo trabalho, transforma as coisas e transforma-se a si mesmo e à convivência com os demais. Participa da nova criação. Torna-se coautor do novo céu e da nova terra. Artífice da cidade, do progresso e da história, será igualmente sujeito de seu próprio renascer para uma vida nova. Em síntese, buscando a perfeição de sua obra, o trabalhador pode, ao mesmo tempo, iniciar o processo de aperfeiçoamento de si mesmo e da sociedade. Ou, em termos teológicos, da construção do Reino de Deus. As mãos que aprendem a manipular a matéria estão aptas a transformar o espírito. O bem comum: A busca do bem comum é outra das grandes metas da DSI. Expressões como função social da propriedade, destino universal dos bens, deveres do Estado para com o bem estar da população, participação de todos na busca do bem comum, entre outros, são chaves para entender o pensamento social da Igreja. O fio condutor é que o bem comum está acima do individualismo, dos interesses de classe e do lucro privado. Como interpretar isso diante dos ganhos exorbitantes das instituições financeiras com suas mega operações, por exemplo? Convivem, lado a lado, a especulação crescente e indiscriminada e a exclusão de setores cada vez mais amplos da sociedade. Como justificar a existência de enormes latifúndios ao redor dos quais perambulam multidões famintas, sem terra, sem trabalho e sem moradia? Em termos concretos, especialmente para o Brasil, como pensar numa reforma agrária e agrícola que fortaleça o pequeno produtor, particularmente a agricultura familiar? Por outro lado, em termos mundiais, como controlar o fluxo e refluxo de capitais, em defesa de políticas públicas que possam beneficiar as populações pobres e excluídas de todos os países? Desde Leão XIII, insiste a doutrina social: o bem de cada um está subordinado ao bem comum. O Estado é responsável pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais de cada cidadão. Neste sentido, vale uma palavra sobre a família, a qual deve ser protegida pela ação das autoridades. O desenvolvimento integral: Em quarto lugar, a expressão desenvolvimento integral chama a atenção para um dos escândalos que mais tem incomodado a DSI, isto é, a profunda discrepância entre crescimento econômico e desenvolvimento social. Numa palavra: por que os benefícios do progresso não são igualmente desfrutados por todos? Como entender que uma era de enormes avanços tecnológicos seja, ao mesmo tempo, uma era de tanta fome e miséria? Como é possível que as máquinas possam, simultaneamente, multiplicar quase sem limite o volume dos bens e o desemprego? A ciência e a tecnologia, que deveriam estar a serviço do bem comum, são utilizadas em prol do lucro, do acúmulo indevido e do enriquecimento de poucos. Daí o desenvolvimento desigual, seja entre as nações, seja entre as regiões de um mesmo país. Neste perspectiva os Papas não se cansam de denunciar o colonialismo e neocolonialismo, a dependência crônica e, mais recentemente, as exigências dos organismos financeiros internacionais, como FMI. Na América Latina, em especial, esse tema é bem conhecido. O dilema atual se coloca no sentido de reorientar a política econômica para um desenvolvimento social e ecologicamente sustentável, subordinado a princípios éticos. Por exemplo, como pensar programas que incentivem uma melhor distribuição de riqueza? Surgem, mais atuais do que nunca, as palavras de Paulo VI na Populorum Progressio: o desenvolvimento é o novo nome da paz! Como não lembrar também do imperativo do profeta Isaías, citado por João XXIII na Pacem in Terris: a paz é fruto da justiça? Não basta uma paz fundamentada sobre o equilíbrio das armas. Não basta a paz do medo, a paz dos cemitérios. É necessário buscar e __________________________________________________________________________________________________________________________________ 16 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 17 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ construir a paz, alicerçada numa justa distribuição dos bens do progresso. Enquanto a fome e o luxo constituírem dois pólos opostos de uma mesma realidade, duas faces da mesma moeda – a da injustiça social – não haverá verdadeira paz! Os avanços tecnológicos dos últimos tempos constituem uma das maiores obras do ser humano. A razão aplicada à ciência experimental, abrem horizontes nunca imaginados. A ficção científica tornase realidade. Tudo isso traz um imperativo que os documentos da Igreja não se cansam de repetir: a tecnologia é um instrumento a serviço do homem e do bem comum. Hoje parece predominar o contrário. O ser humano torna-se uma peça nos imensos complexos industriais. Pior que isso, uma peça muitas vezes descartável, como qualquer outra. Com reverter a situação? A revolução científico-tecnológica que marcou os derradeiros séculos deve ser acompanhada, segundo a doutrina social, de princípios éticos que garantam a dignidade inviolável do ser humano. Este, como já vimos, é o fim de todo e qualquer progresso. A técnica é simplesmente meio e, como tal, deve submeter-se a realização integral da pessoa humana. A Laborem Exercens, sobre o trabalho humano, sublinha bem esse caráter instrumental da técnica. A crítica a todo tipo de ideologia materialista é outra preocupação que atravessa a DSI desde o final do século XIX. Se é verdade que a Rerum Novarum se opunha como muito mais veemência ao socialismo do que ao capitalismo, no decorrer do século irão crescer as críticas à filosofia da livre concorrência. Coloca-se em evidência, por um lado, os males da economia centralizada, onde o poder do Estado anula as liberdades pessoais. Por outro lado, aponta-se as conseqüências nocivas de uma economia individualista e orientada para o lucro, em que o mercado, cego a todo drama pessoal ou social, impera, domina e explora trabalhadores e consumidores. Tanto a burocracia estatal quanto o liberalismo desenfreado constituem alvo das palavras dos pontífices. Na Laborem Exercens, João Paulo II vai deixar claro que tanto o “capitalismo rígido” quanto o coletivismo marxista são sistemas em que uma minoria se apropria indevidamente dos frutos do trabalho da maioria. O economicismo e o materialismo, presentes em ambos os sistemas, contradizem o princípio da prioridade do trabalho sobre o capital. Disso resulta, que o decisivo não é tanto a coletivização da propriedade, e sim a relação que se constrói entre os trabalhadores e os bens produzidos. Como diz o texto: “o direito à propriedade privada como subordinado ao direito ao uso comum”. O papel do Estado: O papel do Estado é uma das preocupações recorrentes na doutrina social do magistério católico. Questões como a previdência social, a saúde pública, a educação, a abertura de novos postos de trabalho, garantia dos direitos trabalhistas, entre outras, devem estar na ordem do dia das autoridades responsáveis. A idéia do Estado de bem estar ou Estado providência encontra-se presente em muitos textos da DSI. Ao mesmo tempo, os textos não se cansam de chamar a atenção para a demasiada intervenção do Estado, a qual pode ferir a autonomia das instituições da sociedade civil. Trata-se de salvar aqui um outro princípio que tem sido caro à doutrina social: o da subsidariedade. O Estado não deve tomar sobre si as tarefas que podem ser realizadas pelas organizações ou instâncias da sociedade civil, nem, inversamente, jogar sobre estas o peso de certos encargos que são de competência das autoridades maiores. Além disso, desde a Rerum Novarum, o Estado aparece como aquele que deve intermediar tensões entre capital e trabalho, patrões e empregados. Parte-se do pressuposto de que é possível conciliar as duas classes em jogo. A história irá mostrar como essa tentativa de buscar a concórdia e a harmonia entre as classes se torna difícil, dado o antagonismo intrínseco de interesses tão contraditórios. A respeito da necessidade de abrir novas frentes de trabalho, João Paulo II, na Laborem Exercens, distingue entre empresário direto e empresário indireto, definindo este último __________________________________________________________________________________________________________________________________ 17 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 18 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ como “o conjunto de instâncias, em escala nacional e internacional, responsáveis por todo o ordenamento da política trabalhista” (LE, 18). Ainda como tarefa imprescindível e intransferível do Estado está a construção de relações internacionais que possam garantir a paz. Daí a importância de organismos especializados e de uma política ou, na expressão de João Paulo II, uma cultura da paz e da solidariedade. Levanta-se aqui, uma vez mais, a crítica vigorosa à corrida armamentista e à postura belicosa dos governos nacionais, em detrimento de seus povos. Embora desde a Rerum Novarum já se encontrem várias referências às associações operárias católicas e às corporações é, sobretudo Pio XI, na Quagragesimo Anno, que irá conferir atenção especial ao direito de organização dos trabalhadores. Tal organização, em sua maneira de ver, muito podem contribuir para superar a questão social. Enquanto as palavras de Leão XIII estão marcadas pelo temor da “onda vermelha” e pelo fascínio da organização internacional socialista, a partir de Pio XI nota-se nos documentos maior incentivo e apoio ao associativismo. Depois do Vaticano II, o tema ganhará cada vez mais espaço, até merecer a dedicação de parágrafos inteiros e exclusivos. Com Paulo VI e João Pulo II, a Igreja não apenas reconhecerá o direito dos trabalhadores à organização, mas fortalecerá os sindicatos e as diversas formas de luta da classe trabalhadora. O direito à greve, por exemplo, combatido pela Rerum Novarum, será progressivamente aceito como um meio legítimo de buscar seus interesses. Propriedade privada: Entra aqui o tema da propriedade privada. Também neste caso, verifica-se uma evolução de um princípio rígido de propriedade para uma visão mais atenuada. No decorrer do pensamento social, passa-se de um conceito de direito natural à categoria de função social da propriedade. A ênfase não está no título de propriedade, mas em seu uso correto, segundo esta, toda a propriedade, antes de ser um bem pessoal e privado, deve estar subordinada aos interesses maiores da sociedade, ou seja, ao bem comum. No dizer de João Paulo II em sua visita ao México “sobre toda a propriedade pesa uma hipoteca social”. No caso do Brasil, tomemos como exemplo os enormes latifúndios cercados por multidões famintas. O direito ao “uso” da terra para buscar o pão e matar a fome está acima do direito à sua “propriedade”. A titularidade legal está subordinada às necessidades legítimas da população. Pelo conceito de função social, as urgências básicas e prementes de garantir a vida estão acima da simples manutenção do título. Em termos mais populares, a posse supera a propriedade. A busca de Caberá especialmente a João Paulo II erguer-se com energia diante dos graves problemas do atual modelo neoliberal de economia globalizada. Sua voz, tanto mais incisiva quanto mais debilitada com o passar dos anos, não se cansa de denunciar os efeitos perversos, sobretudo para os países periféricos, dos enormes endividamentos externos, da destruição do meio ambiente e uso indiscriminado dos recursos naturais, da guerra de mercado, da precarização das relações de trabalho, do consumismo exacerbado, do mercado como um novo ídolo, do desemprego crescente e da exclusão social. A vida está em primeiro lugar! – tem sido seu grito nas viagens por todo o planeta. Evangelização inculturada: Por fim, ainda uma última orientação que permeia toda a DSI: a evangelização inculturada. Predomina hoje o pluralismo, seja em termos étnicos seja em termos religiosos. Valores e contravalores se cruzam e se entrelaçam. A evangelização passa necessariamente por esse novo cenário polifônico e multifacetado. Daí a importância do diálogo e da abertura, aliás, uma herança do Concílio Vaticano II. Os meios de comunicação hoje facilitam o intercâmbio e o enriquecimento __________________________________________________________________________________________________________________________________ 18 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 19 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ recíproco. Por outro lado, com o fenômeno da economia mundializada, a idolatria do mercado espalha-se com a velocidade de um toque na tecla do computador. Luxo e miséria coexistem lado a lado. A pobreza e a fome tornam-se um fenômeno tanto mais escandaloso quando colocado frente a frente com toneladas de alimento armazenado, e não raro em vias de apodrecer. Coloca-se em pauta, uma vez mais, a urgência de João Paulo II, com esforços incansáveis para divulgar a globalização da solidariedade, em contraposição à globalização neoliberal, concentradora e excludente. Conceito de Pessoa Humana na DSI: fundamentos Podemos começar perguntando quem são os destinatários e o sujeito da DSI. Os destinatários constituem um público muito diversificado, que vai desde as autoridades intra-eclesiais até as autoridades civis e governamentais, chegando, especialmente com João XXIII, a todos os homens de boa vontade. Quanto ao sujeito da DSI, podemos afirmar que, no coração da mensagem, a pessoa humana em sua dignidade plena torna-se o protagonista inquestionável. Evidente que este protagonista número um manifesta-se sempre por meio da hierarquia ou da comunidade eclesial. Vale a pena abrir um espaço para refletir um pouco sobre o conceito de pessoa humana. Nele, como veremos, fundem-se e entrelaçam-se os valores de vários tradições, as quais convergem para enriquecer tal conceito. Menos rígido que a noção marxista de classe ou a noção trabalhista de categoria, por exemplo, a noção de pessoa humana revelou-se bem mais permeável à recepção de novos ingredientes produzidos pelo avanço da história. Foi capaz de receber e remodelar diferentes valores de diferentes origens, engendrando um processo de acúmulo que se reflete nos documentos da DSI. Vejamos sumariamente algumas tradições que, em maior ou menor grau, contribuíram para o enriquecimento progressivo do Ensino Social da Igreja. A tradição judaico-cristã, com a idéia de filiação divina. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, a dignidade inviolável da pessoa humana está diretamente subordinada à sua origem, “criada à imagem e semelhança de Deus”. Convém não esquecer a noção paulina de “corpo místico” e a idéia de que o corpo humano é tempo do Espírito Santo. A tradição greco-romana em que se destacam termos como cidadania e direitos. Abstraindo-se a chaga da escravidão antiga, a cultura grega, especialmente com a contribuição de seus filósofos mais proeminentes, bem como a cultura romana tinham pelo cidadão um respeito inquestionável. A organização da “pólis” não só era aberta à participação dos cidadãos como também subordinava-se a suas necessidades fundamentais. A tradição humanista, que vem desde o renascimento, passando pelo iluminismo até chegar nos ideais da “igualdade, liberdade e fraternidade” da Revolução Francesa. Aqui um rio de valores novos vai se formando e engrossando durante os séculos engendram os “tempos modernos”, com a emergência da individualidade e da subjetividade humana. A razão humana, a ciência, a tecnologia e o progresso apontam com grande otimismo para horizontes insuspeitados. Claro que o século XX se encarregaria de revelar os limites dessa euforia. A pessoa humana nas tradições mais recentes A tradição democrática é muito cara ao mundo ocidental, apesar de suas contradições entre o aspecto jurídico-formal e a democratização efetiva dos benefícios do progresso. O fato é que ela reclama uma maior participação das pessoas nas decisões e na condução dos assuntos humanos. Infelizmente, Paulo VI será o grande porta-voz dessa enorme contradição entre a democracia legal e a injusta repartição da riqueza produzida. Enquanto o trabalho é coletivo, os lucros são privatizados. Crescimento e distribuição correm em sentidos opostos. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 19 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 20 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ A tradição dos Direitos Humanos, a qual ganha extraordinário relevo a partir dos horrores da Segunda Guerra Mundial, sobretudo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Sobre as cinzas e escombros do conflito e sobre a ameaça de novas conflagrações, os indivíduos reclamam maior autonomia e mais respeito frente aos poderes do Estado. Integridade física, direitos sociais, políticos, econômicos e culturais passam a fazer parte da agenda das nações. A tradição da consciência ecológica, que emerge, sobretudo com as lutas dos movimentos ambientatlistas. Cresce e dissemina-se a certeza de que ou defendemos a vida em todas as suas formas, ou perecemos junto com o planeta terra. Ganha relevo o respeito à biodiversidade, o uso mais racional dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente. Multiplicam-se os alertas sobre a destruição e a depredação indiscriminadas das riquezas que Deus nos deixou. Ao mesmo tempo, cresce a idéia de um desenvolvimento sustentável, seja do pinto de vista ecológico, seja do ponto de vista humano e social. A esse respeito, não custa lembrar que a aliança de Deus com Noé, simbolizada pelo arco-iris, foi estabelecida não apenas com os homens, mas “com todos os seres vivos e com todas as gerações futuras” (Gn 9,12-17) A tradição dos movimentos sociais. Além dos movimentos ambientalistas, citado no item anterior, outros movimentos abrem novas perspectivas e novas dimensões à dignidade da pessoa humana. Alguns exemplos: a organização dos jovens pelo mundo inteiro, a luta das mulheres, as mobilizações de minorias excluídas ou minorias étnicas, de povos indígenas, de grupos negros, as mais diversas organizações por melhor qualidade de vida, os movimentos da terceira idade... enfim, todo uma série de novos problemas que fazem despontar novas sujeitos históricos. Todas as tradições apontadas acima formam uma herança cultural da humanidade onde distintos valores vão se mesclando e remodelando, num mútuo enriquecimento. Se passarmos os olhos pelos documentos do Ensino Social da Igreja, tropeçaremos a cada momento com valores oriundos de uma ou mais das fontes citadas. A título de exemplo, veja-se como os escritos de Paulo VI estão permeados com a problemática dos direitos humanos e como os últimos escritos de João Paulo II passam a incorporar a questão ecológica. A categoria de pessoa humana tem se revelado dinâmica e aberta o suficiente para absorver e incorporar muitos desses valores, num processo permanente de crescimento. Infelizmente, mostrouse menos permeável às reivindicações dos movimentos de mulheres e de homossexuais, por exemplo, como também às lutas de certas minorias étnicas e raciais. Quanto à herança democrática, especialmente no que diz respeito ao seu exercício diário, não podemos deixar de constatar que ela tem sido utilizada muito mais ad extra do que ad intra. Questões para reflexão e debate: 1. Relacionar as linhas mestras da DSI com os principais problemas da atualidade. 2. Conversar sobre a centralidade da pessoa humana no Evangelho e na DSI. 3. Refletir sobre o conceito de pessoa humana ao longo da história. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 20 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 21 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Capítulo 3 Caráter Histórico da Doutrina Social da Igreja Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS Abertura ao processo dinâmico da história Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a DSI não é um conjunto de “verdades” definitivamente acabadas, a serem transmitidas à posteridade. Mais do que um museu a ser visitado em suas antigüidades raras, trata-se de um tesouro a ser permanentemente enriquecido. Seu conteúdo e seus métodos evoluem com os tempos. Aliás, como vimos, a DSI nasceu num tempo em que as transformações sociais têm uma velocidade espantosa. A Igreja procura adaptar-se à evolução da história. A discussão entre doutrina ou ensinamento tem aqui sua razão de ser. A palavra doutrina denota uma série de princípios fechados, definidos, dogmas imutáveis. Já o termo ensino ou ensinamento mantém seu caráter aberto, dinâmico e flexível, disposto sempre a aprofundar a compreensão os valores de acordo com o passar do tempo. Ou seja, estamos diante de um processo em permanente crescimento. Mais do que um corpus cristalizado no tempo e no espaço, a DSI constitui um organismo vivo que é capaz de adaptar-se às circunstâncias da história e recolocar as questões diante de acontecimentos imprevistos. Sim, um organismo vivo que respira a atmosfera de um determinado contexto social. Nele nasce, cresce e se desenvolve. Embora localizado no tempo e no espaço, vai forjando princípios de validade universal, numa permanente releitura da mensagem evangélica e de uma constante interpretação dos sinais dos tempos. Foi Paulo VI, na Octogesima Adveniens (1971) quem melhor apresentou esta mudança de enfoque, isto é, a passagem do conceito de doutrina para o de ensinamento. Assim se expressa o Papa: “Com todo seu dinamismo, o ensinamento social da Igreja acompanha os homens nesta busca. Embora não intervenha para confirmar, com sua autoridade, uma determinada estrutura estabelecida ou pré-fabricada, não se limita a recordar princípios gerais. Desenvolve-se por meio da reflexão, amadurecida no contato com situações dinâmicas deste mundo, sob o incentivo do Evangelho, como fonte de renovação, desde o momento em que sua mensagem é aceita na plenitude de suas exigências. Desenvolve-se com a sensibilidade própria da Igreja, marcada pela vontade desinteressada de serviço e atenção aos mais pobres; finalmente alimenta-se de uma rica experiência multissecular, que lhe permite assumir, na continuidade de suas preocupações permanentes, as inovações atrevidas e criativas que a situação presente do mundo exige” (OA, 42). A noção de ensinamento busca fundir duas dimensões da solicitude da Igreja no campo social. Por um lado, está atenta à tradição, aos princípios gerais consolidados pela sabedoria e pela experiência de séculos; por outro lado, permanece aberta aos valores novos que os desafios históricos vão engendrando. É nessa dialética entre um corpo de doutrinas sólidas e um constante aprendizado diante dos fatos que o magistério procura navegar. Trata-se, como se vê, de uma perspectiva ao mesmo tempo doutrinal e pastoral, preocupada, simultaneamente, com o rigor dos fundamentos bíblico-teológicos e com as exigências éticas da ação social. Tendo presente essa realidade, daqui para a frente utilizaremos os termos doutrina e ensinamento social da Igreja com significado idêntico. De acordo com Camacho, ao comentar a Octogesima Adveniens, o ensinamento social estruturase na convergência de três elementos: o contato com as situações dinâmicas, o incentivo do evangelho e a experiência multissecular da Igreja. É assim que ele conclui apontando o “modo como __________________________________________________________________________________________________________________________________ 21 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 22 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Paulo VI concebe o ensinamento social da Igreja: não prioritariamente como uma doutrina, mas como um complexo processo de análise, julgamento e discernimento para a ação; um processo no qual participa toda a comunidade cristã, e em que a hierarquia atua como animadora e como encarregada da dimensão doutrinal”. Protagonismo das Comunidades locais Convém assinalar, de passagem, uma outra novidade que aparece de forma sutil mas inegável na Octogesima Adveniens. Estamos falando não apenas da mudança de enfoque em relação à DSI, mas também de um novo protagonismo da doutrina. Esta não será mais prerrogativa da hierarquia, mas tarefa das próprias comunidades locais. “A essas comunidades cristãs compete discernir, com a ajuda do Espírito Santo, com comunhão com os bispos responsáveis, em diálogo com os demais irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade, as opções e os compromissos que convém assumir para realizar as transformações sociais, políticas e econômicas que se consideram de urgente necessidade em cada caso” (OA 4). No espírito do documento, verifica-se uma dupla mudança de foco: em termos de responsabilidade pelo aprofundamento e depósito da DSI, o acento desloca-se da hierarquia para a comunidade eclesial; em termos de enfoque, o centro da atenção passa claramente de uma preocupação estritamente doutrinal para o discernimento e a ação. Esse duplo deslocamento envolve tanto a hierarquia quanto a comunidade num alerta permanente aos acontecimentos diários. O rigor da doutrina está subordinado aos desafios que o mundo contemporâneo não se cansa de apresentar. Retoma-se aqui em toda a profundidade o espírito que animou as reflexões do concílio Vaticano II. E é ainda Camacho quem nos apresenta dois conceitos que dão conta de explicar essa natureza dinâmica e flexível da DSI. O primeiro é a contínua remodelação da doutrina. Ou seja, situações históricas novas exigem uma releitura dos fundamentos doutrinários; e estes, por sua vez, trazem nova luz aos desafios que a realidade levanta dia a dia. Entra aqui o segundo conceito, o de círculo hermenêutico: o contato vivo com a realidade leva-nos a descobrir, a cada curva do caminho, um sentido mais profundo da Palavra de Deus. Por outro lado, esta redescoberta constante de novos enfoques da mensagem evangélica joga luz nova sobre as realidades concretas e orienta os passos dos caminhantes. Numa palavra, o evangelho ilumina a vida e a vida ilumina o evangelho. Na expressão de Camacho, o processo “vai da fé à práxis histórica, e da práxis histórica à fé”. Evolução da DSI ao longo da História De Leão XIII a João Paulo II, da Rerum Novarum à Centessimus Annus, decorreu um século de reflexão sobre a Doutrina Social da Igreja. Passados hoje mais de cem anos desse pensamento social, é possível identificar uma certa periodização, a qual aponta para uma inegável evolução no tempo. Embora cientes de que todo corte histórico é arbitrário, não será difícil perceber determinadas etapas no percurso da DSI. Seguindo aproximadamente o esquema de Camacho, podemos falar em cinco períodos em que a doutrina social e a história do ocidente apresentam inquestionável correspondência. O primeiro período é o próprio contexto do surgimento da DSI, no final do século XIX e início do século XX. Como já ficou claro em capítulos anteriores, a Igreja está diante de duas ameaças: o liberalismo e o comunismo. De um lado, os males provocados por uma economia centralizada na maximização do lucro e na acumulação capitalista. Destacam-se nesse quadro, entre outras coisas, a __________________________________________________________________________________________________________________________________ 22 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 23 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ exploração do trabalho, as precárias condições de habitação e salubridade, o uso indiscriminado da mão de obra infantil e feminina, os baixos salários, as longas e penosas jornadas de trabalho e os deslocamentos humanos de massa. Em resumo, é o cenário já descrito referente às conseqüências da Revolução Industrial. A produção e a produtividade dão um salto nunca visto na história, mas a grande maioria da população fica à margem desse progresso. É o que leva a solicitude pastoral de um Leão XIII a preocupar-se com a “condição dos operários”. Por outro lado, a chamada “onda vermelha” do socialismo ganha terreno a olhos vistos. Desde o Manifesto Comunista, em 1848, consolida-se a organização internacional que se desdobra em uma imensa rede de núcleos espalhados por todo continente europeu. Podemos mesmo afirmar que a Rerum Novarum nasce sob essa dupla motivação: uma mais explícita, voltada para a “questão social”, e uma mais encoberta, marcada pelo temor do avanço socialista. Trava-se na Europa de então uma batalha surda entre liberalismo econômico e teoria marxista. Iremos ver como Leão XIII se vê como que premido entre essas duas forças ideológicas, as quais, vale dizer, expressam interesses distintos e contraditórios. Se, por uma parte, procura impedir que os pobres e indefesos, especialmente os operários, sejam devorados pela ganância selvagem do capitalismo nascente, por outra, procura defendê-los do que ele chama o “principal inimigo da doutrina da Igreja”. O contexto ideológico encontra-se carregado. Aliás, esse confronto entre economia de mercado e planejamento centralizado, como veremos, deverá ser um tema recorrente nos documentos da DSI. Talvez não seja difícil, na época, vislumbrar no horizonte ainda distante os rumores da Primeira Guerra Mundial. Dois fantasmas rondam o período seguinte, já nas primeiras décadas do século XX: o fascismo/nazismo e o comunismo. Os escombros da Primeira Guerra Mundial, a Revolução Soviética e a crise de 1929 espalham instabilidade e insegurança por todo mundo. Como solução desesperada, nascem os movimentos integralistas e os regimes totalitários, com Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália, Stalin na União Soviética, Franco na Espanha e Salazar em Portugal. A Quadragesimo Anno (1931), encíclica de Pio XI em comemoração ao 40º aniversário da Rerum Novarum, e as mensagens radiofônicas de Pio XII, alertam para os perigos do poder absoluto do Estado, ao mesmo tempo que se levantam em defesa dos direitos do cidadão. A Segunda Guerra Mundial, com um saldo de milhões de mortos e de mutilados, constitui o desfecho trágico dessa experiência de totalitarismos. Aliás, de acordo com alguns autores, ao invés de falar em duas guerras mundiais, seria mais acertado falar de um conflito único, com duas grandes conflagrações generalizadas, intermediadas por vinte anos de relativa trégua, em que a crise e o medo tomam conta de tudo. O resultado final após explosão das duas bombas atômicas, em meados dos anos 40, é um mundo devastado por extrema violência e pelos genocídios, repleto de cinzas, escombros e pânico. Feridas profundas, jamais cicatrizadas, exibem o poder de destruição a que chegou a humanidade. Apesar dessa experiência traumática, os anos que vão do pós-guerra ao Vaticano II constituem um período de euforia, se avaliados do ponto de vista dos índices econômicos. Impõe-se um duplo desafio: para os países centrais, após o vendaval devastador dos conflitos armados, trata-se de consolidar a democracia e os direitos humanos; já nos países periféricos, o dilema é como estender os benefícios do progresso às regiões mais pobres do planeta. Em ambos os casos, como equilibrar crescimento econômico e desenvolvimento social? É neste cenário que vemos surgir a figura paterna e materna de João XXIII. Emerge com ele uma nova preocupação de pastor com a renovação da Igreja, voltada para horizontes igualmente novos, com vistas à manutenção de uma paz duradoura. Terreno fértil para duas encíclicas: primeiro, a Mater et Magistra (1961), com acento na doutrina social, revela a __________________________________________________________________________________________________________________________________ 23 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 24 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ sensibilidade viva para com os novos problemas da sociedade moderna; segundo, a Pacem in Terris (1963), enfocando a doutrina política, aponta a necessidade de um compromisso conjunto para a construção da paz mundial. Paradigma da modernidade Reafirma-se, em termos gerais, o paradigma da modernidade. O credo moderno – feito de quatro palavras chaves: razão, ciência, tecnologia e progresso – adquire novo impulso. João XXIII, com seu otimismo nato, é uma figura emblemática da época. Acredita-se na evolução do gênero humano para um patamar mais elevado, crença esta que voltará a ser fortemente questionada a partir dos anos 70. Como pano de fundo desse oxigênio de euforia, percorrem os céus nuvens sombrias da guerra fria entre os dois blocos mais poderosos do planeta – Estados Unidos e União Soviética. Do ponto de vista geopolítico, estamos diante de um mundo bipolarizado, em que demais nações figuram como alinhadas a um dos lados. A corrida armamentista constitui um equilíbrio sempre precário entre as forças militares. A humanidade convive com perigo constante de uma guerra total de conseqüências imprevisíveis em termos de destruição e morte. Teme-se pelo fim da vida em todas as suas formas. Logo em seguida, o mesmo João XXIII, com uma sensibilidade surpreendente, desencadeará uma reviravolta na Igreja, ao abrir suas portas ao Concílio Vaticano II (1962-1965). Trata-se de sintonizar a mensagem e a solicitude do magistério eclesial com os dilemas do mundo moderno. Dois sentimentos aparentemente contraditórios revestem o período em que ocorre o concílio. Ao lado da permanente ameaça de guerra total, o clima ainda é de otimismo quanto à reconstrução do diálogo e da paz. Não é à toa que o ecumenismo será, entre outras, uma das marcas do evento conciliar. Entre os documentos do concílio, do ponto de vista social, ganha relevância a Gaudium et Spes, Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje, ao constatar que “o gênero humano encontrase em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo inteiro” (GS, nº 4). Seu espírito, assinalado logo no primeiro parágrafo, irá traduzir o clima geral de todo o Concílio: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco em seu coração” (GS, nº 1). Abrem-se novos caminhos e novos enfoques para o ensino social da Igreja. Esta, por fim, resolve acertar os passos com o ritmo desenfreado do mundo contemporâneo. A chamada modernidade deixa de ser uma espécie de bicho papão para converter-se em campo de diálogo. Reconhece-se os avanços e benefícios dos “tempos modernos”, ao mesmo tempo que se apontam seus estrangulamentos e incongruências. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 24 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 25 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Período pós-Concílio Vaticano II Caberá a Paulo VI, imediatamente após o Vaticano II, colocar em cena a contradição mais flagrante da vida moderna: a extrema discrepância entre, de um lado, o progresso humano, fruto da revolução científico-tecnológica e, de outro, a profunda desigualdade que divide as nações, os povos e as pessoas. Esse será o tema recorrente de seus escritos, tais como a encíclica Populorum Progressio (1967), a carta apostólica Octogesima Adveniens (1971) e a exortação apostólica Evangelli Nuntiandi (1975). O período que vai do início dos anos 70 aos dias de hoje, será marcado pela crise estrutural do neoliberalismo e pelos desafios de uma economia cada vez mais globalizada. Aprofunda-se o questionamento sobre os “valores da modernidade”. Na verdade, durante todo o decorrer do século XX, esses valores já vinham sofrendo constantes ataques. Este século de profundos enfrentamentos bélicos, de genocídios e etnocídios e de matanças indiscriminadas irá corroer pelas raízes o chamado credo da modernidade. João Paulo II, com as encíclicas Laborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e Centesimus Annus (1991), abordará e denunciará com energia os males deste novo tempo. Iniciada no começo dos anos 70, as crises se agravam cada vez mais. Segue-se como se sabe, duas décadas perdidas. O clima de descrença e instabilidade contamina não apenas a economia e o mercado mundial, mas estende-se também ao campo da política e da sociedade em geral. Trata-se, para alguns estudiosos, de uma verdadeira transformação cultural, uma transição paradigmática. Não somente uma época de mudanças, e sim uma mudança de época. A polêmica em torno do pós-modernismo tem suas raízes nesse cenário de crises, dúvidas e interrogações crescentes. Ressurgem como dilemas antigos e sempre novos os problemas relativos ao endividamento externo e interno, ao desenvolvimento desigual, ao neocolonialismo, à contaminação e depredação da natureza, à nova corrida armamentista e à exclusão social, entre outros. Temas que, aliás, ganharão contornos cada vez mais vigorosos na carta apostólica Tertio Millennio Adveniente (1994), na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in America (1999) e na carta apostólica Novo Millennio Ineunte (2001). América Latina e Caribe Na América Latina e Caribe, como se sabe, os documentos conclusivos dos encontros da Conferência Episcopal Latino-americana (Celam) em Medellín, Colômbia, em Puebla, México e em Santo Domingo, República Dominicana, tiveram o mérito de traduzir para este continente as orientações gerais da DSI, em particular do Concílio Vaticano II. Fizeram-no com grande coragem e inegável profetismo, desafiando inclusive os poderes constituídos. Voltaremos aos textos do Celam quando abordarmos mais de perto o conteúdo da doutrina social em cada documento. No momento, é oportuno lembrar que o núcleo central das intervenções dos bispos latino-americanos é, sem dúvida, a opção pelos pobres, com vistas a fortalecer ações pastorais para a erradicação da pobreza e da violência institucionalizada no continente. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 25 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 26 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Desafios da DSI para os dias de hoje Qualquer abordagem da DSI nos tempos atuais levanta, de imediato, alguns desafios que se apresentam como uma espécie de pano de fundo da reflexão. O próprio estudo dos princípios fundamentais desse ensinamento social vem inevitavelmente acompanhado de algumas interrogações cruciais para os dias de hoje. Vejamos, entre outras, as seguintes questões. A primeira delas é dirigida especialmente aos cristãos, e pode ser enunciado da seguinte forma: como passar da concepção de caridade entendida como esmola ou simples assistência para a caridade solidária? Como unir a visão personalizada, importante e necessária, com a visão estrutural, em vista das transformações mais profundas? Ou então, como passar de uma noção apenas pessoal da caridade que dá o devido destaque à dimensão estrutural, na linha das reflexões de Paulo VI e de João Paulo II? Em segundo lugar, do ponto de vista da hierarquia, no embate cotidiano com a sociedade moderna, como passar de uma atitude moralista e moralizante diante dos problemas sociais, a uma participação efetiva, crítica e responsável, na busca de soluções conjuntas? Convém recordar, por exemplo, a nova sensibilidade de João XXIII e do Vaticano II, ao abrir as portas da Igreja ao mundo contemporâneo e ao apelar para a boa vontade de todos. Isso leva, por outro lado, a deslocar o protagonismo da hierarquia, na DSI, para uma participação mais efetiva da “comunidade eclesial”, de acordo com a Octogesima Adveniens, de Paulo VI. Quanto aos Estados, com seus governos e poderes constitutivos, o grande desafio é a superação das chamadas políticas compensatórias, de mera assistência social, com vistas a um programa sólido de políticas públicas, particularmente nas áreas da saúde, da educação, da alimentação, da habitação, da agricultura, do meio ambiente, e assim por diante – preocupação que acompanha a DSI desde Leão XIII até os dias atuais. No que se refere ao conjunto da sociedade, não deixa de angustiar o fato de nossos países latinoamericanos, em sua maioria, serem simultaneamente católicos e democratas, ao mesmo tempo que abrigam e até legitimam tamanhas desigualdades e injustiças sociais. Ou, para usar a expressão cunhada na Assembléia do Celam, em Medellín, a “violência institucionalizada”. Aqui a pergunta é inevitável: como passar de uma democracia jurídico-formal, com seu funcionamento regular, a uma democratização real e profunda dos benefícios do progresso? Como lembram Paulo VI e João Paulo II, é necessário estender os frutos do crescimento econômico e do progresso tecnológico a todos os setores da população, na busca de um desenvolvimento humano e integral. Em todo mundo, mas especialmente para os países periféricos, o desafio da urbanização, acompanhado ou não da industrialização, constitui um dos maiores problemas a serem enfrentados. O trinômio metrópole, pobreza e violência reflete-se hoje nos imensos cinturões de miséria e fome das chamadas megalópoles, como Cidade do México, São Paulo, Buenos Aires, Lima – para nos restringirmos apenas ao nosso continente. Podem nos servir de orientação as luzes contidas nos documentos de Medellín, Puebla e Santo Domingo. Para a população de todo planeta, vale apontar um último desafio, procurando resgatar, digamos assim, o lado positivo da pobreza, em sua dimensão evangélica. Numa palavra, como superar o vírus do consumismo e do desperdício, tão presentes hoje na civilização ocidental, em vista de uma utilização sóbria, frugal e responsável dos bens que o Criador colocou à disposição da humanidade? Ou seja, como evitar a contaminação e destruição do meio ambiente e o uso predatório dos recursos naturais, buscando um desenvolvimento social e ecologicamente sustentável? Não custa sublinhar __________________________________________________________________________________________________________________________________ 26 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 27 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ que a aliança de Deus com o Povo de Israel, celebrada entre Javé e Noé e simbolizada no arco-íris, foi feita não apenas com os seres humanos, mas com “todos os seres vivos” e com “todas as gerações futuras” (Cfr. Livro do Gênesis 9,12-16). Nesta perspectiva, não podemos deixar de lembrar os apelos de João Paulo II, em seus mais recentes escritos, quando enfatiza a necessidade de construir a cultura da solidariedade ou a civilização do amor, usando nossa capacidade inventiva para criar uma nova fantasia da caridade, que se manifesta pela eficácia da ação e pela capacidade de ser solidário (Cf. NMI, 50). Por último, se põe o desafio de como pôr em prática os ensinamentos sociais da Igreja. A quem cabe discernir e aplicar essa doutrina nas situações concretas? A DSI não é um receituário pronto, mas um conjunto de princípios cuja aplicação demanda análise e discernimento. Nesse discernimento cabe um papel ativo às comunidades cristãs, sempre em comunhão com seus pastores e em diálogo com toda sociedade. Um texto luminoso de Paulo VI pode ajudar-nos a entender melhor a missão das comunidades na aplicação da DSI, missão que fica como um desafio: “Às comunidades cristãs cabe analisarem, com objetividade, a situação própria do seu país e procurarem iluminá-la com a luz das palavras inalteráveis do Evangelho; a elas cumpre haurirem princípios de reflexão, normas para julgar e diretrizes para a ação, na doutrina social da Igreja (...) A essas comunidades cristãs incumbe discernirem, com a ajuda do Espírito Santo, em comunhão com os bispos responsáveis e em diálogo com os outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade, as opções e os compromissos que convém tomar, para se operarem as transformações sociais, políticas e econômicas que ser apresentam como necessárias, com urgência, em não poucos casos” (OA, 4) Questões para reflexão e debate: 1. De Leão XIII a João Paulo II, como evoluiu a DSI? 2. Além dos desafios apontados, que outros desafios os tempos de hoje apresentam à DSI? 3. Quais as principais marcas dos documentos do CELAM e da CNBB? __________________________________________________________________________________________________________________________________ 27 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 28 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Capítulo 4 Ordem Social: comunidade, sociedade e bem comum Pe. Matias Martinho Lenz, SJ Introdução Os primeiros três capítulos desse caderno apresentaram uma visão geral do ensino social da Igreja: conceito, princípios gerais e evolução histórica. A partir do presente capítulo estaremos enfocando temas específicos. Cada problemática è discutida à luz dos princípios do ensino social da Igreja e busca-se discernir desafios e linhas de ação. Nesse quarto capítulo enfocamos a ordem social e a participação dos cidadãos na promoção do bem comum. Esse tema procura fazer uma ponte entre a visão geral dos primeiros três capítulos e os temas subseqüentes. Para encaminhar bem a discussão, é importante colocar algumas premissas. A primeira premissa: nossa fé não é assunto privado, nem se resume a práticas de devoção ou a “ir à Igreja”. A verdadeira religião tem a ver com cidadania, com a vida profissional e engajamentos políticos. A separação entre fé e vida é um das piores erros em que muitos cristãos incidem, como nos lembrou o Concílio Vaticano II: “O divórcio entre a fé que professam e o comportamento quotidiano de muitos deve ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo” (GS, 43). Segunda premissa: somos chamados a conviver em paz, no respeito mútuo, na colaboração entre sociedade e Estado. Deveríamos poder sair à rua sem medo de sermos assaltados, poder confiar na honestidade de quem exerce um cargo público e no respeito aos direitos constitucionais das pessoas. Mas não é isso que acontece. Surge a pergunta: de onde vêm as infrações à ordem social? Desconhecimento das normas básicas? Falta de cumprimento das mesmas? Como podemos, enquanto cidadãos e cidadãs, contribuir para a observância das normas éticas básicas do convívio social? 1. Desafios à ordem social Comecemos com o desafio mais grave à ordem social, que é o desrespeito à vida. No mapa da violência, divulgado pela UNESCO em junho de 2004, o Brasil é o quinto em mortes de jovens e o quarto na classificação geral. Só fica atrás da Colômbia, de El Salvador e da Rússia. O número anual de homicídios de jovens (entre 15 e 24 anos) aumentou nos últimos 24 anos, passando de 30 a 54,5 para cada grupo de 100 mil habitantes, segundo a mesma fonte. Entre as vítimas, há 65,3% mais negros que brancos. A maioria morre nos fins de semana, atingida por armas de fogo. A pesquisa revela um outro dado assustador: depois de 1999, a violência passou a crescer mais no interior que nas capitais e regiões metropolitanas. Autoridade ligada à Secretaria de Direitos Humanos comentou assim esses dados: “Vamos ter que decidir se queremos uma sociedade da paz ou se vamos alimentar essa cultura da violência”. Uma das medidas que está sendo implantada é o desarmamento da população e a restrição ao porte de armas de fogo. Mas sabemos que isso não basta. A Comissão Brasileira Justiça e Paz - CBJP está engajada na luta por uma nova cultura de paz, através do Projeto “Por uma Cultura de Paz no Brasil: Superando as Violências”, comemorativo dos 40 anos da Encíclica Pacem in Terris (Paz na Terra), do Papa João XXIII, publicada em 1963. Outro grande desafio no Brasil é a pobreza e a fome de grande parcela da população. Essa pobreza é, em grande medida, fruto da desigualdade social e de uma política macro-econômica que gera desemprego. Hoje o Brasil tem potencial de riqueza, renda e tecnologia suficientes para saciar a fome de __________________________________________________________________________________________________________________________________ 28 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 29 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ todo o seu povo, a fome de pão, de justiça, saber e de beleza. Mas somos um país tremendamente desigual, com poucos ricos e muitos pobres. O terceiro Atlas da Exclusão Social no Brasil, organizado por Márcio Pochmann e outros, publicado em abril de 2004, mostra que o Brasil possui 1.162.164 famílias ricas, 2,4% das famílias existentes no país. Essas famílias tinham renda mensal acima de R$ 10.982, em setembro de 2003. Essa renda era 14 vezes maior do que a renda familiar mensal média do país e cerca de 80 vezes superior à linha de pobreza, abaixo da qual se situam os 20% mais pobres do país. As famílias mais ricas respondiam por mais de 1/3 de toda a massa de renda familiar do Brasil. No outro extremo da pirâmide estão as famílias pobres, em torno de 11 milhões, num total de 46 milhões de pessoas e que sobrevivem com renda igual ou inferior a seis reais por dia; 22 milhões desses tem menos de três reais por dia para viver (linha da miséria). A pobreza tem muitas causas. Uma das mais graves é, certamente, o desemprego, que em maio de 2004 atingia um em cada cinco trabalhadores nas metrópoles brasileiras. As altas taxas de juros, implantação de tecnologias poupadoras de mão-de-obra e uma política restritiva de investimentos não permitem a expansão da economia e a criação dos empregos tão necessários. Para sobreviver, nove milhões de trabalhadores brasileiros enfrentam a batalha da sobrevivência por conta própria, na informalidade. Aproveitando-se da existência de um exército de desocupados, muitos setores empregam sem assinar a carteira dos trabalhadores. Em meados de 2004, 72,8% dos empregados na construção civil no Brasil não tinham vínculo empregatício, e assim, vivem sem previdência nem direitos trabalhistas. Completando esse quadro, registremos outra chaga social: o trabalho infantil. Não é só o trabalho doméstico, muitas vezes pesado (559 mil em todo Brasil, segundo relatório da OIT, publicado em 11-0604), mas em situação de exploração por empresas, em trabalhos semelhantes à de escravos, por ex., em carvoarias e em lixões. Essas últimas em geral estão fora da escola, fazem trabalho de adultos por pagamento ínfimo. O trágico é que para muitas famílias pobres, o trabalho de crianças ou adolescentes é uma alternativa à fome. Na verdade, são infâncias roubadas, pela ganância ou pela miséria. Há tantos outros problemas que nos desafiam: a corrupção em todos os níveis e de todos os tipos, a ponto de se falar em uma cultura da corrupção, difusa e que nos contamina; seqüestros, narcotráfico, violência policial, um sistema penitenciário à beira do colapso, a discriminação contra minorias. E ainda a lentidão ou omissão do Estado em cumprir sua função: o sistema de segurança precário; a justiça morosa e nem sempre isenta; um Legislativo distante dos sofrimentos do povo e, por fim, as freqüentes situações de descaso da própria população em cobrar direitos e em cumprir deveres. 3. O porquê dessa situação Quais as causas dos nossos males sociais? Algumas têm origem histórica, derivando de um passado de trezentos anos de latifundismo, de escravidão e de governos oligárquicos. Há também causas mais próximas. Fatores freqüentemente citados são a crise da família, as graves deficiências do nosso sistema educativo, a exaltação dos valores materiais acima de qualquer outro valor, a influência nociva de muitas programações da mídia e, de maneira geral, a desagregação de valores. Mas, podemos ir mais fundo em nosso diagnóstico. Vamos então descobrir que à raiz de muitos desses males está o vírus do egoísmo, a tendência do egocentrismo erigido em sistema, a “violência institucionalizada” (Medellín), o desamor que leva ao desprezo dos direitos e da própria vida do próximo. Pecado é o mal praticado, ou não evitado, a indiferença diante da injustiça e do sofrimento do próximo. O pecado, como nos ensina a Igreja, tem sempre uma dupla dimensão: pessoal e social. O pecado é “social” não só por prejudicar os demais, mas por contribuir na difusão do mal, na criação de “estruturas de pecado”, como as chamou o Papa João Paulo II. O materialismo se introduz como uma forma de idolatria: os deuses do dinheiro, da busca do poder e do prazer tomam o lugar que é devido só a Deus. O mesmo Papa identifica, basicamente, duas atitudes pecaminosas como as mais características de __________________________________________________________________________________________________________________________________ 29 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 30 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ nosso tempo: “a avidez exclusiva do lucro e a sede de poder”, cada um delas “a qualquer preço” (SRS, 37). Outra fonte que alimenta a relativização de valores é a tendência pós-moderna do subjetivismo exacerbado, pelo qual as pessoas tendem a criar sua própria moral, seus próprios códigos de conduta, sem referência a uma lei natural nem divina, sem referência à consciência do bem e do mal que nos é dada pela natureza racional, e completada pela revelação cristã. A superação do pecado, individual e social, exige uma dupla transformação, que se apóia na graça de Deus: a conversão pessoal e a conversão social. A conversão implica em uma profunda mudança de mentalidade, uma adesão firme aos valores perenes da verdade e do bem, ao qual Deus nos atrai. Esses valores se transformam em princípios e atitudes, colocadas em prática na vida pessoal e na construção de estruturas sociais condizentes. Vejamos alguns princípios básicos, segundo o ensino social da Igreja. 4. Princípios que Igreja nos propõe no campo social. a) A pessoa humana é um ser social. O ser humano, na visão da Igreja, é um ser pessoal e social, ao mesmo tempo. As pessoas se realizam na tensão dialética entre essas duas dimensões. Quem age sob o impulso do egoísmo está em contradição com sua própria natureza e não vai encontrar sua realização e sua felicidade por esse caminho. Ademais, as coisas, os bens materiais, as estruturas sociais, as próprias leis existem em função do bem das pessoas. O fim da sociedade é a realização de todos os seres humanos, colaborando uns com os outros. A pessoa humana, assim entendida, é “autor, centro e fim” de toda vida econômica, social e política. Nas palavras do Concílio Vaticano II: “Uma vez que a pessoa humana, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social, é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais. Não sendo, portanto, a vida social algo acrescentado ao homem, esse cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se capaz de responder à própria vocação, graças à interação com os demais, o mútuo serviço e o diálogo com seus irmãos” (GS, 25). Cada um é chamado a ser autor de seu desenvolvimento, colaborando na realização das demais. No centro da economia e da sociedade não pode estar o interesse do capital, nem o prestígio político da nação, mas o bem-estar das pessoas. O fim não pode ser o crescimento material sempre maior, mas a vida cada vez mais plena e feliz de todos os cidadãos. Na visão cristã, o caráter social das pessoas tem semelhança com a vida íntima da Trindade e a precedência da pessoa sobre as coisas deriva, em última análise, do fato de ele ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Dessa condição deriva também sua liberdade e insuperável dignidade. b) a sociedade deve fundar-se na verdade As relações entre as pessoas, organizações e estados devem ter seu fundamento na verdade, não na mentira nem no engano. A verdade fundamenta a confiança nas pessoas e o bom relacionamento entre elas. A verdade é fonte de liberdade, pois livra do temor de ser enganado (e de ser induzido a enganar os outros como forma de sobrevivência ou de busca de vantagens). “A verdade vos libertará”, é palavra de Cristo (Jn 8, 32). A verdade, em sentido bíblico, tem tudo a ver com firmeza, autenticidade, veracidade, fidelidade. Essa veracidade é fundamento da vida social bem ordenada e feliz. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 30 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 31 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ c) justiça e amor se integram e completam A justiça e o amor são as duas colunas sobre as quais se apóia a convivência humana. Sem a prática da justiça, a caridade se torna ilusória. Caridade sem justiça é hipocrisia. Sem amor, a justiça é incompleta e pode transformar-se no seu contrário, por exemplo, em casos em que se aplica a lei ao pé da letra, sem considerar as circunstâncias. Falamos aqui de uma forma especial de justiça, a chamada “justiça social”. Essa é uma virtude moral que “dispõe a respeitar os direitos da cada um e a estabelecer, nas relações humanas, a harmonia que promove a equidade a respeito das pessoas e do bem comum” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1807). A Constituição Pastoral Gaudium et Spes (Alegria e Esperança), do Concílio Vaticano II, em muitas passagens, recomenda a prática da justiça e da caridade, ambas necessárias para a realização do bem comum (Cf, GS, n. 30). João Paulo II explica assim a relação entre ambas: “A justiça por si só não é suficiente e, por si só, pode conduzir ao aniquilamento de si mesma, se não se permite a essa forma mais profunda que é o amor plasmar a vida humana nas suas diversas dimensões. Foi essa a experiência da história, que levou a formular a afirmação: ‘summum ius, summa iniuria’ (máxima justiça, máxima injúria). Tal afirmação não diminui o valor da justiça nem atenua o significado da ordem instaurada por ela; indica somente o outro aspecto, a necessidade de recorrer às forças do espírito, muito mais profundas, que condicionam a própria ordem da justiça” (DM, n. 12). A conexão íntima entre justiça e amor não anula a diferença entre elas: a justiça é uma virtude moral, que se refere aos meios para se alcançar o fim da reta ordem. O amor é uma virtude teologal, ou divina, que nos orienta totalmente para Deus como fim último, e que deve informar todas as nossas ações, não só os atos de justiça. A virtude do amor ou da caridade transfigura o homem completo. Ela nos leva a amar a Deus e a amar o próximo assim como Deus o ama, isto é, desinteressadamente. O amor ao próximo e vontade de justiça não admitem distâncias nem oposições. A virtude da caridade exige a realização da justiça como condição necessária de sua verdade. O amor é identificação comunicativa e é inseparável do respeito à alteridade e à singularidade de cada pessoa. A justiça considera o próximo como um outro, a caridade cristã o percebe como um outro eu, identifica-se com seus sofrimentos e alegrias. Não se deve confundir a virtude teológica da caridade com “fazer caridade”, isso é, dar esmola. A verdadeira caridade cristã ultrapassa infinitamente qualquer gesto de benemerência. Importante é acentuar que amor e justiça são inseparáveis. “O amor implica, de fato, uma absoluta exigência de justiça, que consiste no reconhecimento da dignidade e dos direitos do próximo. A justiça, por sua vez, alcança a sua plenitude interior somente no amor” (JN, n. 34). d) A solidariedade constitui a base da organização da sociedade Esse princípio de refere ao conjunto de vínculos que unem as pessoas entre si e os impulsiona à ajuda recíproca. Sem negar os conflitos, esse princípio afirma que o que marca a sociedade humana é uma crescente interdependência, tanto em nível pessoal, associativo, organizativo e político. A solidariedade não só um fato, mas uma conduta desejável. Nesse sentido, a solidariedade é vista por Paulo VI como “um fim e um critério maior do valor e da organização social” (OA, 26). Aprofundando esse princípio, João Paulo II acentua que não se trata de vago sentimento de compaixão pelos males sofridos por outros, mas “determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum” (OA, 38). As atitudes e estruturas de pecado, diz ainda o Papa, só serão vencidas por atitudes diametralmente opostas: “a aplicação em favor do bem do próximo, com a disponibilidade, em sentido evangélico, de ‘perder-se’ em benefício do próximo em vez de o explorar e para servi-lo em vez de o oprimir para proveito próprio” __________________________________________________________________________________________________________________________________ 31 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 32 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ (Cf. Mt 10, 40-42; 20, 25; Mc 10, 42-45; Lc 22, 25-27; SRS, 38). A solidariedade se aplica não só em nível de cada país, mas internacionalmente: “A interdependência deve transformar-se em solidariedade, fundada sobre o princípio de que os bens da criação são destinados a todos: aquilo que a atividade humana produz, com a transformação das matérias primas e com a contribuição do trabalho, deve servir igualmente para o bem comum de todos” (SRS, 39). A organização da sociedade em nível mundial leva ao desafio da “globalização da solidariedade” (Ecclesia in América, 55), que ultrapassa fronteiras nacionais e que se deve consolidar por uma nova ordem mundial. e) A busca do bem comum é a meta maior da sociedade O bem comum é um conceito básico do ensino social. Em sentido geral, significa o bem de todos e para todos, a ser buscado e construído com a colaboração de todos. Deve ser a meta da sociedade e da ação dos governos. Nas condições atuais de interdependência entre as nações, esse bem não se restringe às condiçãoes internas de cada país, mas adquire dimensão mundial, como nos adverte o Concílio Vaticano II: “A interdependência cada vez mais estreita e progressivamente estendida a todo mundo, faz com que o bem comum – ou seja, o conjunto de condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição – se torne hoje cada vez mais universal e que, por esse motivo, implique direitos e deveres que dizem respeito a todo gênero humano. Cada grupo deve ter em conta as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos e mesmo o bem comum de toda família humana” (GS 26). As pessoas, famílias ou comunidades menores, não são capazes, por si sós, de chegarem ao pleno desenvolvimento. Daí a necessidade da organização política da sociedade, cuja meta é cuidar que as pessoas consigam os bens necessários – bens materiais, culturais, morais e espirituais – para viver uma vida autenticamente humana. O bem comum guarda uma referência ao bem comum universal e a toda nossa história, que começa, se insere e culmina em Cristo. As encíclicas têm muitas indicações sobre o conteúdo do bem comum. Por exemplo: a moralidade pública, e educação e a cultura, o empenho para preservar e fomentar a paz interna e no exterior; a organização correta dos poderes do Estado, a preservação do ambiente e do território nacional, os serviços essenciais de saúde, o transporte, habitação e comunicações. O bem comum tem uma dimensão essencialmente ética. Por isso, ele ultrapassa a busca de bens materiais, pois seu fim é contribuir à maturação e aperfeiçoamento das pessoas em todas as suas dimensões. A responsabilidade de promover o bem comum é de todos: “é necessário que todos participem, cada um segundo o lugar que ocupa e o papel que desempenha na promoção do bem comum” (CIC, 1913). Meta do bem comum é estabelecer uma “civilização do amor”. f) O princípio da subsidiariedade deve ser respeitado Consiste na promoção dos diversos âmbitos de liberdade e responsabilidade, no estímulo ao dinamismo e à criatividade de cada grupo ou instância, evitando a interferências de níveis superiores em assuntos que os níveis inferiores podem muito bem resolver. Pio XI, já em 1931, nos deu uma definição precisa desse princípio: __________________________________________________________________________________________________________________________________ 32 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 33 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ “Assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e empenho, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que as sociedades menores e inferiores podem conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social” (QA 79). A ajuda solidária que se presta a pessoas, grupos ou países deve ter como finalidade principal apóialos na sua capacidade de se desenvolverem por si mesmos e a contribuírem para o bem comum. A experiência mostra que, quanto mais as pessoas interessadas se envolvem na tomada de decisões, maior é a chance de eles também se envolverem e empenharem na execução. g) A participação é um direito e um dever Constitui um direito e um dever e consiste não só em “ser parte”, mas em “fazer parte” e “ter parte”. Significa ser sujeito ativo na tomada de decisões, na gestão, nas ações comuns e na partilha dos resultados. Na convivência humana, o modo das pessoas se conhecer, de trabalhar e se relacionar, “exprime-se cada vez mais nítida, nesses novos contextos, uma dupla aspiração, mais viva à medida em que se desenvolvem a sua informação e educação: a aspiração è igualdade e aspiração à participação; trata-se de dois aspectos da dignidade do homem e da sua liberdade” (OA, n. 22). Na mesma encíclica, João Paulo II constata que “a dupla aspiração à igualdade e à participação procura promover um tipo de sociedade democrática” (OA, n. 24). Há diversos modelos de democracia, nenhum deles plenamente satisfatório. O cristão tem a obrigação de participar na busca pela melhor organização da sociedade, no estabelecimento das leis e na gestão dos negócios públicos, bem como na eleição dos governantes e na participação em eleições. “A Igreja considera digno de louvor e consideração o trabalho daqueles que se dedicam ao bem da coisa pública e ao serviço dos homens e assumem as responsabilidades desse cargo” (GS, n. 75). Entretanto, não basta eleger governantes, é preciso acompanhar suas ações e cobrar que prestem contas dos seus mandatos. É preciso prevenir e combater toda forma de corrupção eleitoral e de captação ilícita de votos. O direito à participação perde eficácia “por causa de favoritismos e de fenômenos da corrupção, que não só impedem a legítima participação na gestão do poder, mas dificultam o acesso eqüitativo de todos aos bens e serviços comuns” (João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz em 1999, n. 6). Na busca de uma justa igualdade, é preciso prestar atenção especial às pessoas não têm atendidas as suas necessidades humanas fundamentais (Cf. CA, n. 34). Enfim, é fundamental lembrar que participação cidadã implica no reconhecimento e gozo de direitos e no cumprimento de deveres: “Reconheçam-se, conservem-se e promovam-se os direitos de todas as pessoas, famílias e grupos, assim como o seu exercício, juntamente com os deveres, aos quais estão obrigados todos os cristãos” (GS, n. 75). É importante lembrar que a cada direito corresponde um dever. Quem não cumpre com seus deveres, tem pouca moral para cobrar os próprios direitos. Além disso, respeitar e promover o direito do próximo constitui dever de cada cidadão. Nisso se cumpre um princípio básico da convivência humana, isto é, a reciprocidade, ligada ao dever de justiça. h) O desenvolvimento humano genuíno é integral e inclui a todos Constitui o objetivo da vida social. O desenvolvimento não pode ser reduzido ao crescimento econômico. A visão economicista entrou em crise, por que “hoje, compreende-se melhor que a mera acumulação de bens e serviços, mesmo em benefício da maioria, não basta para realizar a felicidade humana” (SRS, n. 28). A experiência mostrou que, se o crescimento econômico não for regido por uma intenção moral, esse pode voltar-se contra o homem para o oprimir. O enriquecimento sem o crescimento __________________________________________________________________________________________________________________________________ 33 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 34 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ espiritual pode levar a pessoa a afastar-se dos outros, torna-a prisioneira de si e pode causar divisões, como afirma Paulo VI: “Tanto para os povos como para as pessoas, possuir mais não é o fim último. Qualquer crescimento é ambivalente. Embora necessário para o homem ser mais homem, torna-se contudo prisioneiro no momento em que se transforma no bem supremo que impede ver mais além. Então os corações se endurecem, os espíritos fecham-se, os homens já não se reúnem pela amizade mas pelo interesse, que bem depressa os opõe e os desune. A busca exclusiva do ter forma então um obstáculo ao crescimento do ser e se opõe à sua verdadeira grandeza: tanto para as nações como para as pessoas, a avareza é a forma mais evidente do subdesenvolvimento moral” (PP, n. 19). O desenvolvimento genuíno é integral. Refere-se ao homem todo e de todos os homens, especialmente aos pobres e excluídos, resgatados em sua dignidade de filhos de Deus. Desta forma, “entre evangelização e promoção humana, desenvolvimento e libertação, existem, de fato, laços profundos” (Ecclesia in África, n. 68). O desenvolvimento humano não exige apenas o concurso de técnicos, mas a contribuição de pessoas que proponham um humanismo novo, “que permita ao homem moderno o encontro com si mesmo, assumindo os valores superiores do amor, da amizade, da oração e da contemplação. Assim, poderá realizar-se em plenitude o verdadeiro desenvolvimento que é, para todos e para cada um, a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas” (PP, n. 20). i) O exercício da cidadania se expressa na responsabilidade social Uma referência importante ao tema da cidadania no magistério da Igreja diz respeito à colaboração entre os cidadãos e as autoridades públicas na promoção do bem comum. A busca do bem comum deve reger as ações dos cidadãos nas diversas esferas. A ligação dinâmica e criativa entre os empreendimentos da iniciativa privada e a busca do bem comum ou do interesse público não é fácil de se estabelecer, sobretudo no sistema capitalista, em que dinâmica no setor privado é regido pela busca do lucro. A participação cidadã, que ultrapassa o interesse privado, deve ser aprendida, debatida publicamente e expressa em ações concretas. Ela se realizar tanto na dimensão da vida pessoal de cada cidadão como no âmbito da ética empresarial e da responsabilidade social das empresas. Tendo em conta as limitações impostas às empresas dentro do sistema capitalista, e as críticas que a Igreja faz ao sistema do capitalismo liberal, os cidadãos conscientes se empenham por buscar alternativas de organização social da produção. As experiências de empresas de economia solidária e o sistema cooperativista são formas alternativas de organização, que buscam conferir a prioridade do processo ao trabalho e não ao capital, privilegiando o atendimento das necessidades humanas, “num processo de livre auto-organização da sociedade, com a criação de instrumentos eficazes de solidariedade, capazes de sustentar um crescimento econômico mais respeitador dos valores da pessoa” (CA, 16). 5- Como podemos organizar-nos para enfrentar esses desafios? Os desafios apontados no início desse capítulo poderiam ser enfrentados com sucesso, se houvesse vontade política e ações estruturadas que encaminhassem soluções eficazes, levando em conta os princípios acima apontados. O que falta para que isso aconteça? Podemos apontar duas exigências, que estão em íntima correlação. A primeira é uma profunda conversão, pessoal e social. A segunda consiste na organização de forças e a geração de processos que possam produzir e sustentar as mudanças necessárias. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 34 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 35 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Há necessidade de transformação profunda em nível das pessoas, que façam a experiência de uma vida mais sóbria, da partilha de bens e do empenho solidário em projetos a serviço do bem comum. Pessoas e grupos assim renovados passarão a organizar-se e a acreditar na mudança. Questão fundamental é a mudança de mentalidade, isto é, mudança do inteiro modo de pensar e de agir, ponto de partida para uma mudança na ordem social. Escrevem os bispos do Brasil: “O resgate da dignidade dos pobres não pode limitar-se à assistência emergencial, mas exige a transformação da sociedade e da economia, numa nova ordem voltada para o bem comum. Apresenta-se aqui um impasse de difícil superação, uma vez que as transformações estruturais exigem, para serem empreendidas com eficácia, alteração nas leis que não pode ser concretizada sem mudança profunda de mentalidade. Estamos dispostos a reconhecer a nossa conivência com o apego aos bens materiais? Percebemos que toda convocação para uma ação conjunta por parte da Igreja, em colaboração com as demais entidades da sociedade, requer como pressuposto, o testemunho evangélico e ético? Como implantar na própria Igreja uma economia de solidariedade?” (CNBB,Doc. 69, n. 21). Uma segunda exigência é formação de organizações e movimentos sociais, com a participação cada vez mais ampla dos cidadãos. Sem essa mobilização, as mudanças não saem. E quando saem, ou chegam tarde ou são tímidas, parciais e não abrangentes. O problema maior, como lembram os bispos, muitas vezes, não é a falta de boas leis, mas a falta de cumprimento das leis existentes. Como reverter essa situação? No mesmo texto, podemos ler o seguinte: “A principal lição desse processo no qual os direitos são reconhecidos, mas pouco implementados, é que só prevalecem, na agenda da política social, os direitos respaldados pela consciência de cidadania e pela participação política de entidades e movimentos sociais organizados. São eles que, em última instância, resgatam as conquistas jurídicas para a vida prática” (CNBB, Doc. 69, n. 52). Exigência básica feita aos cidadãos para a construção de uma nova ordem social é a participação organizada na defesa e promoção do bem comum da sociedade. Vamos citar agora, a título de exemplo, alguns setores em que a nossa participação como cidadãos ativos pode ser decisiva para provocar mudança de mentalidade, induzir novas práticas sociais e fazer ressurgir a utopia e a esperança. a) b) Conselhos paritários e de direitos: após a implantação da Constituição de 1988, surgiram muitos conselhos de cidadãos, somando-se a outros já existentes, voltados ao controle social das políticas públicas: Conselho tutelar da Criança e do Adolescente, Conselho de Saúde, Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, Conselho da Merenda Escolar e muitos outros. O que se observa é que em muitos desses conselhos as mesmas pessoas se revezam e às vezes repetem mandatos por falta de quem queira assumir. A ação de tais conselhos tem contribuído para avanços na implementação de políticas que beneficiam largas camadas da população, sobretudo populações pobres. Integrar tais conselhos exige preparação (quem cuida de oferecê-la?) e uma quota de sacrifício. Sindicatos e associações de classe: a participação ativa nos sindicatos e associações de classe, em muitos casos, de tem diminuído nos últimos anos. Qual a razão? Um mal de muitas dessas entidades é um acentuado corporativismo em eles se enclausuraram. Há como sair desse fechamento? Como garantir os direitos dos muitos que estão fora, na informalidade? Há uma proposta de reforma sindical, em andamento no Brasil. Que posição assumimos no nosso sindicato? Estamos dispostos a abrir mão de privilégios? Colaboramos para viabilizar a inclusão dos que estão fora? Como podemos trabalhar as motivações para a participação na vida sindical e associações profissionais? __________________________________________________________________________________________________________________________________ 35 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 36 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ c) d) e) O cooperativismo: é um caminho eficaz de inclusão social, de valorização do trabalho frente ao capital e de fortalecimento dos pequenos e médios produtores. Há no Brasil mais de três mil cooperativas, dos mais diversos tipos, segundo dados da OCB – Organização das Cooperativas do Brasil. Elas adotam princípios que são fruto de longa experiência. As cooperativas autênticas são escolas de cooperação econômica e exercício democrático. Quem é membro de cooperativa, pode se examinar a qualidade de sua participação e de como pode melhorar. O que podemos fazer para colaborar na criação de novas cooperativas, especialmente de pessoas carentes, como são os trabalhadores de material reciclável? Partidos Políticos: são estruturas em crise, embora detenham ainda muito poder. A militância política é uma das formas mais nobres de viver a caridade cristã. Muitos Partidos vivem praticamente em função das eleições. Também nessa área há a proposta de uma reforma política ampla, tratando de temas polêmicos como a questão do financiamento público dos partidos, e a representação mais equilibrada das bancadas estaduais na Câmara, entre outros. Como vai a discussão desses temas no meu partido? Que critérios inspiram as discussões? Movimentos sociais, Fóruns, ONGs: Os movimentos sociais são ações coletivas, que ocorrem fora dos canais institucionais. Cumprem uma função importante de serem “profetas do presente”, isso é, de anteciparem mudanças necessárias cuja efetivação se encontra barrada por conta dos que tiram vantagem da atual situação e não querem abrir mão de privilégios. Exemplos são os movimentos a favor do reconhecimento dos direitos de minorias (indígenas, portadores de deficiências ou de necessidades especiais) e as entidades que lutam por uma distribuição mais justa da terra e pela defesa e promoção da agricultura familiar. Além dos movimentos sociais, temos a ação dos Fóruns, de ONGs e associações, que defendem interesses de segmentos, com maior ou menor legitimidade, ou que assumem causas de interesse público (os ambientalistas são um bom exemplo). Achamos tempo e interesse para participar? Como interessar jovens para lutar por causas de justiça social? 6. Conclusão: um convite à participação “Participar da construção de uma sociedade ‘justa e solidária’, escrevem os bispos do Brasil, constitui um dos objetivos da ação evangelizadora da Igreja no Brasil” (DG, 2003-2006, n. 156 - itálico do original). Entre as práticas e iniciativas solidárias citam-se as Campanhas da Fraternidade anuais e o Mutirão Nacional para a Superação da Miséria e da Fome. Incentiva-se também o engajamento no voluntariado, tanto em ações da Igreja Católica, tais como a Pastoral da Criança e as Conferências Vicentinas, quanto em Organizações Não-Governamentais (cf. DG, n. 157 e n. 160). Propõe ainda a reivindicação de políticas públicas para as diversas áreas sociais e a participação política, na busca de uma democracia autêntica, e não apenas formal. Nas pistas de ação, os bispos pedem às comunidades cristãs que “empenhem-se formar uma consciência moral e uma prática social de inspiração cristã e incentivem o diálogo e a reflexão de teólogos, pastoralistas, cientistas e outros profissionais acerca dos novos problemas de ordem ética que o avanço das ciências suscita em campos do saber e do agir humanos” (DG, n.185). Além das questões de bioética, cita-se a preservação do meio ambiente e outras questões que tocam um desenvolvimento humano genuíno. Sistematizando o debate sobre as questões sociais, a Igreja no Brasil vem realizando, desde 1991, as chamadas “Semanas Sociais Brasileiras”. Centradas em torno de eixos temáticos, as Semanas Sociais buscam envolver todas as camadas sociais em diversas iniciativas de análise, debate e busca de soluções. A 4ª Semana Social realiza-se de 2004 a 2006, nas diversas regiões do Brasil, primeiro em nível de paróquias e dioceses ou regionais, depois em nível nacional (com um grande momento nacional em outubro de 2005) e, por fim, com semanas por grandes regiões. O tema geral é: “articulação das forças sociais, participando na construção do Brasil que queremos”. Os eixos temáticos são: a) o Estado e seu __________________________________________________________________________________________________________________________________ 36 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 37 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ papel na transformação da sociedade: os três poderes e a participação popular; b) soberania versus império: dívida interna e externa, FMI, ALCA e OMC; c) forças sociais, resistência e organização; crise de sustentabilidade e Direitos Humanos; e) precarização do trabalho, migrações e exclusão social. Esses eixos são perpassados pela mística e espiritualidade e pelas questões de ética, gênero e etnia. Site: www.semanasocialbrasileira.com.br Fica o convite à participação na Semana Social da sua cidade ou região e em outros debates que envolvam nossa participação na construção de um Brasil mais justo, mais fraterno e menos desigual. Perguntas para reflexão e debate: 1. Quais os desafios mais graves à ordem social em sua comunidade (cidade, bairro, vizinhança)? 2. Entre os princípios apontados no texto, quais são os que fazem mais falta no contexto em que você vive ou trabalha? 3. Você tem alguma experiência de militância social ou política? Partilhe-a com seu grupo. 4. Você tem conhecimento da 4ª Semana Social? Gostaria de participar da programação? __________________________________________________________________________________________________________________________________ 37 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 38 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Capítulo 5 Cultura, Religião e Sociedade Justa Pe. Matias Martinho Lenz. SJ “A ruptura entre o Evangelho e a cultura é, sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras. Assim, importa envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou, mais exatamente, das culturas” (EN, 20). Essa constatação do Papa Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi, uma Exortação Apostólica sobre a Evangelização no Mundo Contemporâneo, feita em 1975, continua muito atual e constitui um bom motivo para discutirmos o tema da cultura nesse capítulo. Ainda mais, porque no mesmo documento, o Papa afirma que existem laços profundos entre evangelização, promoção humana, desenvolvimento e libertação. O mesmo se pode dizer em relação às religiões e ao modo como nós católicos vivemos nossa religião. Nossa fé promove a justiça e fraternidade? Vamos perguntar-nos em que consiste a ruptura entre fé e cultura, suas origens e efeitos, bem como sobre o que podemos fazer para evangelizar a cultura e a religião, para que elas possam contribuir para um desenvolvimento humano e social pleno, fundamento da paz que todos almejam. 4.1. Cultura, promoção humana e justiça social Cultura e Culturas A cultura é a maneira como em determinado povo se cultivam as relações com a natureza, com as outras pessoas e com Deus (GS 53b), o que se faz e o modo como se fazem as coisas. Ganha expressão maior no mundo das ciências e das artes, mas o conceito de cultura é bem mais amplo que o saber erudito. Não é um setor, mas algo que envolve a vida e a pessoa toda. No ser humano, que se constrói continuamente, tudo é cultura. “A cultura é o ser humano, transcendência e superação” (Emmanuel Mounier). Ao falarmos de cultura, convém deixar de lado o que pode constituir uma caricatura, encarnada no espírito superficial, para privilegiar o que é essencial: a busca de uma coerência vital entre o antigo e novo, a tradição e o futuro, permitindo a cada pessoa “aprofundar sua comunhão e cultivar a sua diferença” (André Malraux). Tratar de cultura é voltar-se para o drama da existência, a busca de sentido para a vida, o problema dos fins últimos. A cultura atual, sobretudo na sua versão pós-moderna, não pergunta pelos fins últimos e abstrai da consideração de valores. Alguns traços dessa cultura são: - a racionalidade técnico-científica: nossa cultura não é só baseada na ciência e na tecnologia, mas em geral abstrai de outras considerações. Tende a considerar a ciência e a técnica como valores supremos e com isso, muitas vezes, ignora outros valores (caindo no racionalismo e no cientificismo); - a fragmentação: a cultura moderna se apresenta como um mosaico de elementos autônomos, de múltiplas faces e influências, e nela não se busca a referência a um todo, a um sentido maior; é um traço que induz a valorizar partes em detrimento do conjunto ou de uma hierarquia de valores; __________________________________________________________________________________________________________________________________ 38 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 39 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ - o pensamento débil: a cultura atual desconfia da verdade e da busca da objetividade; rejeita as convicções profundas, os princípios adquiridos ou intocáveis (por exemplo, a sacralidade da vida), é uma cultura vazia de espiritualidade (como diz Wittgenstein). A cultura moderna assume hoje dimensões planetárias, oferecendo à humanidade imensas possibilidades de humanização e de bem-estar, mas também tem o poder de voltar-se contra o homem. A ciência sem ética e sem Deus produz armas cada vez mais sofisticadas, instrumentos de dominação e meios de destruição em massa. Há uma dinâmica libertadora e uma dinâmica escravizante no processo cultural do nosso tempo (Cf. RH, 7). As diversas culturas locais ou nacionais são formações históricas concretas e distintas da cultura moderna, cujos traços descrevemos acima. Cada povo tem sua cultura, suas crenças e costumes, sua forma original e própria de ser e de se expressar. As culturas distinguem os povos entre si, e permitem a eles de exprimir-se e de reforçar a sua consciência coletiva. As culturas variam entre si não só em função do grau de impregnação pela cultura moderna, sobretudo através dos meios de comunicação, mas pela capacidade de dar um sentido maior ou menor às conquistas da ciência e da técnica, pondo essas conquistas a serviço do bem comum, na promoção da vida plena e da dignidade humana. A riqueza cultural de um povo não está somente na sua cultura letrada ou erudita, mas também nas muitas expressões de sua cultura popular. A Igreja e a Cultura A Igreja, “perita em humanidade” (Paulo VI), quer estar presente aos desafios que a cultura moderna coloca para os diversos povos. Quer ser uma ajuda na humanização das culturas. Entende que a humanização mais completa se fará pela evangelização das culturas, impregnando-as com a sabedoria e os valores do Evangelho de Jesus Cristo. Tem consciência que isso só se fará, inculturando essa mensagem nas diversas culturas, respeitando sua diversidade e originalidade e ajudando a livrar-se de contra-valores. O modo dessa presença só pode ser o de Cristo, o Mestre Divino: o convite à reflexão, ao diálogo e ao testemunho. Esse diálogo vem acontecendo em muitos níveis e nas diversas áreas da ciência e da cultura. Em 1982, João Paulo II criou o Pontifício Conselho para a Cultura, com o objetivo de estabelecer e aprofundar o diálogo entre a Igreja e as culturas. Ao fundamentar sua ação na evangelização da cultura, o Papa disse que a Igreja tem consciência: a) da emergência de um novo ciclo cultural dotado de um dinamismo planetário; b) da existência de espaços culturais diferentes da cultura dominante, mas abertos ao diálogo; c) da exigência para a Igreja de manter sua identidade e de preservar a essencialidade de sua mensagem e de sua destinação católica, isso é, universal; d) do fato de que a cultura é o único meio de transmitir a mensagem de Cristo a países e ambientes ainda não atingidos pela pregação do Evangelho. João Paulo II diz com muita clareza que “a fé não é de modo algum extrínseca à cultura, mas antes gera cultura: daqui emerge uma tarefa a realizar e uma tradição a conservar e a transmitir”. Por isso, “no atual contexto de secularização e para muitos aspectos de descristianização, devemos olhar para o futuro com o objetivo que a fé tenha, ou recupere, um papel-guia e uma eficácia atraente, mediante uma presença também pública na sociedade e com a intenção de fazer com que as estruturas sociais sejam ou voltem a ser sempre mais respeitosas daqueles valores éticos, nos quais se manifesta a plena verdade acerca do homem” (Alocução aos membros do Movimento Eclesial de Empenho Cultural, OR, 18-03-1990, p. 18). __________________________________________________________________________________________________________________________________ 39 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 40 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ A cultura nos ensinamentos do Concílio Vaticano II O Concílio Vaticano II expressou duas razões pelas quais a Igreja se interessa pelas culturas dos diversos povos. Primeiro, porque a cultura “deriva imediatamente da natureza racional e social do homem”, o que lhe permite “penetrar o íntimo das coisas, de contemplar, de formar um juízo pessoal e de aperfeiçoar o senso religioso, moral e social”(GS, 59). A outra razão consiste no fato de que o Evangelho só pode ser eficazmente anunciado no contexto cultural próprio de cada sociedade. Esse só aparecerá como boa notícia quando expresso na linguagem e na cultura próprias de cada país. Daí se seguem duas conseqüências, segundo o Concílio: a necessidade de possibilitar o acesso de todos à cultura, sem discriminações de qualquer natureza (de gênero, de nacionalidade, de religião ou de condição social); e de que o acesso à cultura é ligado à livre pesquisa e comunicação da verdade. Na Declaração sobre a Liberdade Religiosa (Dignitatis Humanae) o mesmo Concílio reconhece a liberdade religiosa como o direito à imunidade de qualquer tipo de pressão social pela conversão e a “legítima autonomia” da cultura (DH, 59). O Concílio ainda reconheceu a fecunda diversidade das várias culturas, opondo-se a um inconsciente sectarismo de países cristãos da Europa no passado e do qual algumas missões se libertaram apenas parcialmente. A cultura recebe sua unidade pela unidade das pessoas humanas que a cultura exprime. A unidade da Igreja não é redutora, mas do tipo que promove a comunhão. Respeita e promove a diversidade, manifestando sua catolicidade (universalidade). Muitos conflitos dentro da Igreja tiveram origem na falta de compreensão correta da unidade, que não é uniformidade. A diversidade cultural reconhecida e aceita pela Igreja, manifesta a dimensão universal de sua unidade. A boa nova de Cristo restaura, purifica e eleva os costumes dos povos. “Com as riquezas do alto, ele fecunda, como que por dentro, as qualidades do espírito e os dotes de cada povo e de cada idade, fortifica-os, aperfeiçoa-os e restaura-os em Cristo” (GS, 58). Como evangelizar a cultura O que significa evangelizar a cultura? Uma das melhores definições nos foi dada por Paulo VI: “Chegar a atingir e como que modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação” (EN, 19). “...Importa evangelizar - não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade e isto até às raízes - a cultura e as culturas do homem ...” (EN, 20). Na evangelização das culturas deve haver um profundo respeito pela identidade de cada uma delas. Quando a Igreja anuncia do Evangelho e o povo acolhe a fé, a Igreja se encarna nesse povo e assume sua cultura. Assim, a evangelização não é um processo de destruição, mas de consolidação e fortalecimento dos valores, o que é “uma contribuição ao crescimento dos ‘germes do Verbo’ presentes nas culturas” (DP, 401). Encarnar-se significa impregnar de fé o sentido do trabalho e da festa. Essa encarnação da cultura é fundamental na nossa realidade latino-americana, realidade das culturas indígenas, afro-americanas e mestiças, que hoje sofrem o impacto da civilização urbanoindustrial. Frente a uma cultura universal em ascensão, importa questionar a tendência ao nivelamento e à uniformidade e “uma injusta e lesiva supremacia e domínio de uns povos ou setores sociais sobre outros povos ou setores” (DP, 427). __________________________________________________________________________________________________________________________________ 40 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 41 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ O povo latino-americano, nesses últimos decênios, urbanizou-se em sua maioria, modificando seus modos de vida habituais e as condições de vivência religiosa. Esse meio urbano é marcado por um ateísmo antropocêntrico, prático e militante, e que se expressa no hedonismo e no consumerismo. Mais grave ainda são as situações de miséria e injustiça atingem culturas cujos valores são marcados pela fé cristã. Diz o Documento de Puebla: “Sem dúvida, as situações de injustiça e de pobreza extrema são um sinal acusador de que a fé não teve a força necessária para penetrar os critérios e as decisões dos setores responsáveis da liderança ideológica e da organização da convivência social e econômica de nossos povos. Em povos de arraigada fé cristã impuseram-se estruturas geradoras de injustiça. Estas, que estão em conexão com o processo de expansão do capitalismo liberal e em algumas partes se transformam em outras inspiradas pelo coletivismo marxista, nascem das ideologias de culturas dominantes e são incoerentes com a fé própria de nossa cultura popular” (DP,437). Evangelizar essas realidades urbanas significa criar uma nova síntese vital nesse novo contexto. A inculturação da fé é vista como o grande desafio para a Igreja em nosso tempo, e em nosso continente, segundo o documento de Santo Domingo. Tal inculturação se dá a partir dos três mistérios centrais da nossa fé cristã: a Encarnação, a Páscoa e o Pentecostes. Jesus Cristo se torna assim medida de todo humano e da cultura: encarnando-se, ele assume a nossa realidade sofrida; comunica-lhe uma nova vida pela força que irradia da ressurreição e age em nós, e através de nós, por seu Espírito na transformação do mundo. Quando Cristo se torna medida de nossa conduta moral, ele nos impele a manter os valores cristãos que estão presentes em nossa cultura e a incorporar os valores ausentes. A conduta moral cristã inclui a ética natural, ligada à dignidade da pessoa humana e seus direitos, base de diálogo com os não-crentes. Coloca-nos desafios pastorais: a luta contra a corrupção, a demagogia, a burla da justiça, a falta de distribuição eqüitativa da terra (SD, 233). Leva-nos a enfrentar a “cultura da morte”, a agressão contra a vida, em qualquer uma de suas fases. A vida moral como seguimento de Jesus Cristo implica em “difundir os valores morais e sociais que nos convertem em homens novos, criadores de uma nova humanidade” (SD, 239). A fé inculturada nos leva a perceber a pluralidade de nossa cultura como uma riqueza e respeitar a diversidade das culturas dos povos indígenas, dos afro-descendentes e dos mestiços, a fomentar com eles um diálogo respeitoso, franco e fraterno, no espírito do pedido de perdão que o Papa lhes fez (SD, 248). Induz a participar de seus sofrimentos e acompanhá-los em suas legítimas aspirações. Fruto dessa inculturação será a criação de uma nova cultura, que supere as debilidades da pósmodernidade, a incoerência ente valores e estruturas, o vazio ético e o individualismo reinante. Levará a um diálogo fecundo entre fé e cultura. A cultura de nossos tempos é uma cultura cada vez mais urbana, que não significa somente bemestar e progresso, mas muito sofrimento, desemprego, pobreza e exclusão social em áreas deprimidas e nas periferias das grandes cidades. A evangelização da cultura da cidade exige uma nova criatividade, um anúncio da fé em linguagem urbana e uma reprogramação das paróquias. O documento de Santo Domingo sugere a multiplicação de pequenas comunidades bem como a difusão de movimentos eclesiais, e pede atenção aos grupos de influência e aos responsáveis pelas cidades. Evangelizar a cultura no quotidiano Tudo isso parece muito distante da realidade quotidiana de nossa cultura, impregnada de egoísmo, da competição por vezes selvagem, da indiferença em relação ao sofrimento alheio. Viver segundo os valores que nascem do evangelho significa realizar uma revolução cultural, uma cultura em novas bases, o que representa a verdadeira humanização, pois é uma cultura que promove a vida, fortalece laços, traz alegria, promove a justiça e a solidariedade, constrói a paz. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 41 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 42 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Como construir essa nova cultura, na prática? Que podemos fazer, no nosso quotidiano? Primeiro, não devemos resignar-nos com a cultura da violência, do individualismo, do lucro a qualquer preço, da exploração de crianças e da agressão à vida. Não podermos ser consumidores passivos da cultura de massa e da mentalidade consumista. Nossa ação começa diante do televisor: saber selecionar os programas é o primeiro passo. Depois, protestar contra abusos praticados por certos programas e apresentadores de TV. Devemos organizar nosso protesto. Um bom exemplo é a campanha “Quem financia a baixaria, é contra a cidadania”. Lançado em 2002, é fruto de intensa discussão da sociedade civil e que acabou assumido por um grupo de deputados, coordenado pelo Deputado Orlando Fantazzini, de São Paulo, sendo apoiado por políticos de vários partidos e que tem coordenações em diversos estados. Objetivo é agir contra emissoras cuja grade de programação inclui a humilhação do ser humano, a exposição vulgar do corpo da mulher, atrações de conteúdo que deseduca e incita à violência. Além de denúncias criminais por falta de ética, a campanha tocou no ponto mais sensível das redes: os seus patrocinadores. Vários anunciantes já assumiram publicamente que não vão mais anunciar nos intervalos de programas que atentam contra a dignidade humana ou que sejam classificados como de baixaria. A ação surtiu efeito, tanto que duas redes de TV de S. Paulo, sentindo-se atingidas em seus interesses, entraram com representação contra o coordenador da Campanha. Outro fruto dessa campanha foi o envolvimento do Ministério Público, que aumentou o número de profissionais que fazem o acompanhamento da programação para efeito de classificação etária. Através de Ministérios Públicos estaduais procura-se abrir inquéritos civis para chamar as emissoras, no sentido de obter mudanças nos formatos dos programas. Determinante na criação da campanha foram manifestações de cidadãos e cidadãs para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos deputados. “Eles chegavam a ponto de pedir que, pelo amor de Deus, alguém fizesse alguma coisa, porque o conteúdo da televisão era insuportável”, disse o Presidente da Comissão. Muitas pessoas foram despertadas para o uso consciente dos meios de comunicação em massa através de cursos de “Leitura Crítica da Comunicação”, promovidos pela UCBC – União Cristã Brasileira de Comunicação. Procure conhecer essa iniciativa (page: www.ucbc.org.br). Outra forma de ação é participarmos de produção cultural alternativa. O campo é vasto e não faltam oportunidades. Podemos apoiar bons programas e emissoras que promovem os valores cristãos. O cinema e o teatro esperam por bons produtores de roteiros e de peças teatrais e por bons atores. A música e outras artes são outros tantos espaços de criação e anúncio. Um campo novo e de acesso cada vez mais difuso é a Internet, onde jovens tem a possibilidade de participar em redes solidárias, que promovem a educação cidadã e que divertem de forma sadia. Os cursos à distância é uma das alternativas promovidas pela Rede Solidária de inclusão social e digital, com sede no Regional Sul II da CNBB em Curitiba, PR (www.redesolidaria.org.br ) 4.2 Religião e prática da justiça social A religião verdadeira, segundo o Evangelho de Cristo Hoje há pessoas que se perguntam sobre qual é a verdadeira religião. Há mesmo católicos que vacilam na fé, e, sem deixar de se considerar católicos, freqüentam outros cultos. Alguns se manifestam publicamente contrários a princípios éticos defendidos pela Igreja. Outros, talvez mais numerosos, sem negar esses princípios, na prática os ignoram. Segundo uma pesquisa do CERIS, nas seis maiores regiões metropolitanos do Brasil, esse tipo de católico perfaz 22,5% do total dos que se declaram católicos. Outros, nessas mesmas regiões, recorrem à cartomancia ou a religiosidades alternativas. Isso para não falar dos católicos que simplesmente abandonaram sua fé para aderir a outros credos. Segundo as estatísticas, em 30 anos, a __________________________________________________________________________________________________________________________________ 42 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 43 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ percentagem dos católicos no Brasil caiu de 91,8% da população em 1970 para 73,8%, em 2000. Ocorreu um processo de desfiliação. O trânsito maior foi para o protestantismo, sobretudo para denominações pentecostais. Não é o lugar aqui de entrar na discussão sobre os motivos para vacilar na adesão à Igreja ou para mudar de religião, nem se deve pôr em dúvida o princípio da liberdade religiosa, isto é, “a imunidade de coação em matéria religiosa” (DH, 4). Vamos propor dois critérios pelos quais devemos orientar nossa prática religiosa, se queremos ser fiéis ao seguimento de Jesus no que se refere ao amor ao próximo e à questão da justiça social. Primeiro critério: servir o Evangelho, não servir-se dele. Isto é, buscar a verdade pelo caminho anunciado por Jesus Cristo e seguir seu exemplo de amor, de serviço ao próximo, de prática da justiça e construção da comunhão. A prática de uma religião do amor e do serviço contrasta com a prática de quem troca de religião por interesses pessoais, subjetivos. Por exemplo, pode haver quem mude de religião porque sofreu uma desilusão na vida ou porque quer se divorciar e acha que, entrando em uma igreja menos exigente, vai ser possível divorciar-se sem ferir a lei de Deus. Pode haver católicos que acreditam na promessa de que, entrando em outra igreja, vão resolver seu problema financeiro ou vão “parar de sofrer”. Ou que vão superar seus infortúnios amorosos com uma “sessão de descarrego” ou resolver seus problemas financeiros participando de uma “corrente de prosperidade”. Alguns se deixam convencer por um pregador midiático de que “a pobreza é obra de Satanás”. Numa análise dessas “igrejas de necessidades”, que se dizem cristãs, um recente estudo sobre a “Religião no Brasil”, organizado por Paulo Siepierski e Benedito Gil6, ao falar do neopentecostalismo, mostra que na verdade estamos face a “igrejas de mercado”, localizadas em posições estratégicas, que realizam ‘cultos’ onde, ao contrário da comunhão, se privilegia a transação comercial, troca do “dou para que dês” para resolver uma crise financeira ou para passar num concurso. O templo se transforma numa espécie de “shopping center” da fé, com uma clientela flutuante e móvel, sem os vínculos de uma comunidade eclesial. Fazer da religião um instrumento de prosperidade pessoal, e da igreja um “supermercado da fé”, onde cada um escolhe o que bem lhe agrada e busca resolver seus problemas pessoais, financeiros ou afetivos, é perverter o sentido básico de religião no Novo Testamento. Ser cristão é seguir Jesus Cristo e participar em uma comunidade de discípulos seus. Não é servir-se da fé para interesses pessoais imediatos, mas servir e “dar a vida pelos irmãos” (Jo13,15). O seguimento de Jesus tem como lei primeira o duplo mandamento do amor e como critério básico sua proposta: “buscai primeiro o Reino de Deus e de sua justiça” (Mt 33). A busca do Reino, no seguimento de Jesus, inclui também a cruz e o sofrimento. O Cristão tem como missão ser “sal da terra e luz do mundo” (cf. Mt 5, 13-16; Catecismo da Igreja Católica, n° 782). Isso lhe acarretará incompreensões e sofrimentos, mas Jesus declara felizes os que sofrem perseguições por causa da justiça (cf. Mt 5, 10-11). Critério maior e decisivo do verdadeiro cristianismo é a vivência do mandamento novo do amor, o “amai-vos uns aos outros”, como Jesus nos amou (cf. Jo 13, 34-35), não a busca individualista de sucesso. A salvação não se obtém através de “sessões de descarrego”, mas da conversão, da mudança de vida e do amor fraterno: “Convertei-nos e crede na Boa Nova” (Mc 1,15). A exemplo de Jesus, que veio, não para ser servido, mas para servir (Mt 20, 28), o discípulo de Cristo se põe a serviço dos irmãos e encontra a felicidade ajudando a tornar felizes os demais, a começar pelos de casa e pelos mais pobres. “Religião pura e sem mancha diante de Deus Pai é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas dificuldades e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1, 27). Obra do maligno não é a pobreza, como tal, mas a injustiça e o egoísmo que produzem a miséria, a exclusão, o apego desmedido aos 6 Paulo Siepierski e Benedito Gil (org.s). Religião no Brasil. Enfoques, Dinâmicas e Abordagens. São Paulo: Paulinas, 2003. Ver capítulo de Martim N. Dreher, “Protestantismo na América Meridional”, ítem “Neo-pentecostalismo”, p. 62 a 65. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 43 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 44 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ bens e a falta de empenho em multiplicá-los para todos. É a omissão no serviço aos necessitados, presentes em nosso meio, como escreve o apóstolo Tiago: “Imaginai que um irmão ou irmã não tem com que se vestir e lhes falta a comida de cada dia; se então algum de vós disser a eles: ‘ide em paz, aquecei-vos’ e ‘comei à vontade’, sem lhes dar o necessário para o corpo, que adianta isso? Assim também a fé: se não se traduz em ações, está morta em si mesma” (Tg 2, 15-17). È importante examinar certas manifestações ou vivências do catolicismo, que podem estar incidindo em erros ou distorções semelhantes às que estamos criticando nesse texto. Temos a coragem de fazer essa autocrítica? Segundo critério: a colaboração entre todos os que servem o Evangelho ou que buscam a verdade, em benefícios de todos, especialmente dos mais pobres.. Todos os que buscam servir o Evangelho, precisam unir-se no serviço do próximo. Primeiramente, nossos irmãos na fé, organizados nas diversas pastorais sociais da Igreja. Precisamos superar o isolamento, vaidades pessoais e vontade de aparecer. As pastorais sociais, além de se conhecerem melhor, podem crescer muito no apoio mútuo e colaboração em projetos comuns. Podemos unir cadastros, intercambiar experiências, harmonizar metodologias de ação. O sofrimento dos pobres deve ser um incentivo para que trabalhemos mais unidos. Outra barreira a superar é a divisão entre os cristãos. Essa divisão não pode ser motivo ou pretexto para não juntarmos forças numa ação mais eficaz em favor da justiça e do serviço aos pobres. O fundamento para a colaboração ecumênica no serviço da justiça é a consciência de que “muitos elementos de santificação e de verdade” se encontram e atuam para além das fronteiras visíveis da Igreja Católica. Sem negar a própria identidade, o fiel católico buscará colaborar em tudo que for possível para construir um mundo mais humano. A Igreja, ademais, nos recomenda a colaboração ecumênica em campos tais como o desenvolvimento, o atendimento das necessidades humanas e a defesa da criação. A esse respeito, o Diretório para a Aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo escreve o seguinte: “Essa cooperação deve abranger, entre outras, as atividades em favor de uma sociedade mais justa, para promover a paz, os direitos e a dignidade da mulher e uma distribuição mais eqüitativa dos recursos. Neste sentido, seria possível organizar um serviço comum em favor dos pobres, doentes, deficientes, idosos e de todos aqueles que sofrem por causa das injustas ´estruturas de pecado`. A cooperação nesta área é especialmente recomendada nos lugares onde houver uma grande concentração da população com graves conseqüências para a habitação, a alimentação, a água, o vestuário, a higiene e os cuidados médicos” ( n. 215). Exemplos de colaboração ecumênica no campo social, em nível nacional, são as Campanhas de Fraternidade Ecumênicas de 2000 e 2005, e o Projeto do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (CONIC) “Uma Década para Superar a Violência (2001-2010): Dignidade Humana e Paz”. Certamente podemos avançar mais nessa colaboração, na luta comum pela superação das injustiças, da miséria e da exclusão social. O escândalo da miséria e da pobreza injusta “Escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e da renda. O problema se agrava com a prática generalizada do desperdício” __________________________________________________________________________________________________________________________________ 44 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 45 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ (CNBB, Exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome, Doc. 69, 2). Com essas palavras, os bispos do Brasil, em documento lançando o “Mutirão nacional de superação da miséria e da fome”, expressaram sua indignação frente ao drama da fome de milhões de brasileiros famintos e convidam todos a colaborar na eliminação dessa chaga social. Os bispos se escandalizam porque essa situação é lesiva à dignidade e aos direitos básicos das pessoas e porque, havendo solução, essa não é posta em prática. Essa situação é vista como intolerável, especialmente por existir em um país que se diz cristão. “É inadmissível o contraste entre a situação de miséria e degradação do povo sofrido, refugiado em favelas, cortiços e periferias das cidades, que chega a recorrer à prostituição e até ao tráfico de drogas para sobreviver, e o luxo e sofisticação de condomínios fechados, construções suntuosas e desperdício de riquezas, sem considerar a miséria envolvente. O mais triste para a consciência cristã é o fato de que a escandalosa desigualdade acontece, infelizmente, pela falta de testemunho evangélico de vida, criando ofuscamento da consciência, frieza e alienação diante do sofrimento humano e descrédito para o anúncio da Boa Nova. A injustiça social assume proporções de ofensa a Deus, que nos criou à sua imagem e semelhança e se opõe ao mandamento do amor fraterno que Jesus Cristo instituiu como lei da nova e eterna aliança” (CNBB, Doc. 69, 19- 20). Esse escândalo é tanto maior, dizem ainda os bispos, quando mais consta que “temos recursos e tecnologia para vencer a fome. Falta-nos o espírito solidário e evangélico para renunciar a privilégios e libertar-nos do vírus do egoísmo. Falta-nos ainda decisão política” (Doc. 69, 9). Em nome da fé, os bispos pedem uma mudança profunda de mentalidade, superando o desapego doentio aos bens materiais e ao consumismo, além de um empenho solidário para a eliminação não só da fome crônica, mas das causas que a produzem. Consideram fundamental a organização e mobilização dos próprios interessados, buscando o resgate da sua dignidade e a conquista de sua cidadania plena. Para maior eficácia, a CNBB sugere que o Mutirão seja o elemento unificador de programas e projetos sociais da Igreja e estende essa proposta a outras Igrejas e tradições religiosas (cf. Doc. 69, n. 57) A motivação mais forte que o cristão pode ter para servir seus irmãos os pobres e famintos é reconhecer o rosto de Cristo nos rostos desfigurados pela pobreza e pela fome: “Esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor (que nos questiona e interpela): feições de crianças golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer..., feições de jovens, desorientados por não encontrar seu lugar na sociedade..., feições de indígenas e com freqüência também afro-americanos, que, vivendo segregados e em situações desumanas, podem ser considerados como os mais pobres entre os pobres, feições de camponeses que, como grupo social, vivem relegados..., feições de operários com freqüência mal remunerados..., feições de sub-empregados e desempregados..., feições de marginalizados e amontoados em nossas cidades..., feições de anciãos, cada dia mais numerosos, frequentemente postos à margem da sociedade do progresso, que prescinde das pessoas que não produzem” (DP, nº 31-39). “Queremos ver Jesus” (Jo 12, 21), foi o pedido¨feito por alguns pagãos, que haviam subido à Festa da Páscoa e é título do Projeto de Evangelização da CNBB “Queremos ver Jesus – Caminho, Verdade e Vida”. Também nós desejamos ver Jesus. Não esqueçamos de procurar reconhecer suas feições nos rosto do menor dos seus irmãos, pois com eles o próprio Jesus se identificou: “o que fizestes a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt, 25, 40). __________________________________________________________________________________________________________________________________ 45 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 46 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Rever a própria prática religiosa Porque há cristãos que não assumem sua responsabilidade social, quando ela é parte integrante do seu ser cristão? O que impede um católico a cumprir com sua obrigação de partilhar e vocação de servir? Entre outros motivos, podemos indicar os seguintes: 1. porque há os católicos só de ocasião, católicos apenas por tradição, sem prática efetiva e sem vínculo a uma comunidade eclesial; 2. outros tem uma visão espiritualista de sua fé, sendo até fervorosos nos atos de piedade, mas mostrando pouco interesse pelas outras dimensões do ser cristão; 3. outros, ainda, consideram que é função do governo cuidar dos pobres. Para superar tal mentalidade é preciso retornara ao Evangelho, nas passagens que nos falam do mandamento do amor. Além disso, é preciso analisar as reais causas da pobreza e perguntar-se se o luxo de alguns não contribui para a pobreza de muitos. O caminho da conversão de mente e de coração – graça a ser sempre pedida – nos pode chegar pelo contato direto com o povo pobre, a descoberta das pessoas que se ocultam atrás da prisão da pobreza ou da miséria. Podemos aprender com eles a maneira melhor de o servir. Se queremos encontrar-nos com Jesus, não podemos deixar de procurá-lo também nos famintos e sedentos: “Eu tive fome e me este de comer; eu tive sede e me destes de beber” (Mt, 25, 35). No contato ao vivo com o pobre, em atitude inspirada na fé, com ações que resgatem sua humanidade, estaremos humanizando a nós mesmos. Estaremos também recuperando a capacidade de nos indignar com as injustiças e aprender que, no serviço cristão ao próximo, mais que dar coisas, é preciso doar-se. Compreenderemos também que o governo, por mais que faça (e é obrigação sua de fazê-lo, através de políticas públicas adequadas), jamais dará conta de resgatar a dívida social que a sociedade brasileira acumulou para com os pobres e excluídos do nosso país, que não só pedem pão, casa, saúde e educação, mas respeito, dignidade e cidadania plena. Perguntas para reflexão e debate: 1. Que aspectos positivos você destaca na cultura moderna e globalizada, e quais sãos seus aspectos mais questionáveis? 2. Qual deveria ser nossa reação diante da “baixaria” na TV? Como podemos ser consumidores críticos e que se faz na sua comunidade para fortalecer a mídia alternativa? 3. Uma religião intimista atende as exigências do Evangelho? 4. Na sua comunidade há colaboração no campo social, em base ecumênica? Se não há, como ela poderia ser iniciada? __________________________________________________________________________________________________________________________________ 46 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 47 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Capítulo 6 O Estado e suas funções: bem público e privado Pe. Antônio Abreu, SJ 7 Escritura e Padres A visão da fé judaico-cristã sobre o Estado e a organização política da sociedade, tem sido historicamente o campo de ação de duas vertentes, que às vezes confluem, mas em geral convivem em tensão dialética. As ênfases e matizes variam ao longo do tempo, dos ambientes e contextos, dos autores e pensadores, mas o equilíbrio e o realismo das posições ficam comprometidos se um dos pólos se afirma de modo a anular o outro. Já o Antigo Testamento é sulcado pelas águas dos dois regatos: do pessimismo de Samuel (1 Sam 8,5-22) e do otimismo do autor do Salmo 72, que no Novo Testamento confluem na fusão sem confusão nos lábios de Jesus em Mt 22, 15-22 : “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Ainda no primeiro século, entre os discípulos dos Apóstolos que com eles conviveram, o Pastor de Hermas tematiza e teoriza o sentir dos cristãos pobres – escravos, forasteiros, marginais em Roma - para quem o poder público (no caso concreto, o Império Romano) é um mal inevitável, que o fiel faz bem em ignorar ou ficar mais ou menos de costas para ele. De outra parte, S. Clemente (o “presidente do conselho dos episkopoi” em Roma) vê algo de bom na ordem, na paz, na racionalidade jurídica e administrativa que - entre outros bens - permitiu a difusão do Evangelho. Mais tarde, a posição de Santo Agostinho de Hipona pode ser (drasticamente) resumido assim: como há pecado no mundo, é necessária a autoridade pública para possibilitar a convivência humana com um mínimo de ordem, alicerçada no monopólio do uso da força. Em suas “Duas Cidades”, ele tende a passar sem maior discussão, da cidade do pecado, da rebeldia e do orgulho contra Deus, para o "reino deste mundo”, com seus imperadores, senado e pretores. A seu tempo, a outra vertente, apresentada entre os Padres da Igreja, sobretudo pelos gregos, começa por enfatizar as conseqüências do pecado menos que S. Agostinho. Tem uma visão mais otimista da raça humana e da História, mas vê com mais simpatia a ação do poder público, ainda que muitos destes Padres denunciem profeticamente imperadores, imperatrizes e magistrados batizados. Por isso, muitos desses Padres foram relegados ou banidos. A Teologia da Política e da Economia para estes mestres nasce da Teologia da Criação. A criação não é dada por Deus de uma vez por todas. É processo continuado em que a graça atua na História em colaboração com os esforços humanos, mesmo se o mais das vezes a maioria de nós nem tenhamos consciência disto. S. João Crisóstomo ensina que deve haver autoridade, que esta deve servir ao bem comum, que Deus quer assim, mas que o governante concreto não é constituído por Deus, pode errar por ser pecador ou por sua limitação humana de informação e de juízo; daí caber o direito cristão de oposição e de crítica, sempre olhando o bem maior. 7 O autor contou com a colaboração do Pe. Matias Martinho Lenz, SJ. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 47 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 48 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Embora seja um pouco simplificador, nota-se com freqüência os que pendem para o pessimismo unilateral em relação ao poder público, tendem a apoiar o autoritarismo de governantes concretos, na convicção de que não cabe à Igreja (nem aos cristãos) a crítica da política. O bem comum Para a grande tradição cristã, além de manter a ordem (o que não se negava), é papel do “príncipe” (sobretudo do “príncipe cristão”) cuidar do bem comum, coordenar e animar as iniciativas das pessoas, famílias, grupos, no sentido da criação continuada. Em nossa linguagem moderna, isso significa que a função da autoridade política é cuidar e facilitar que a sociedade desenvolva as forças produtivas e sua própria organização. O bem comum não se resume em ampliar os recursos disponíveis para uma vida humana conveniente. Exige ampliar o acesso do maior número de pessoas às condições materiais que lhe permitam vida digna. Para tal, o dirigente tem que cuidar de forma prioritária do pobre. Para o “dirigente cristão”, a diferença é que nele se supõe consciência mais clara deste seu dever, que mais pessoalmente se comprometa com ele. Por outro lado, a pessoa humana é fim e o poder público é meio. Não se pode dizer “quanto mais Estado melhor”, exatamente como não se pode querer “quanto menos Estado melhor”. Em cada contexto local e temporal, há que modular e adequar a dimensão e a configuração do Estado ao serviço das pessoas organizadas, para servir: a) à manutenção da ordem e da paz; b) à construção de melhores condições de vida; c) à inclusão a mais universal possível no acesso às condições e bens para uma vida mais humana. Este conjunto de metas é chamado “bem comum” na linguagem do ensino social da Igreja. Concretiza-se nas condições materiais e sociais que permitem aos cidadãos - ao maior número possível, o mais plenamente possível - realizar-se como pessoa na situação ordinária de vida e participação social. (Veja no capítulo 4 o que se diz sobre os princípios do bem comum, da solidariedade e da subsidiariedade). Princípios e fundamentos do bem comum Como todos somos chamados a viver em sociedade, devemos nos ocupar com o bem comum. Definir estes deveres nas circunstâncias concretas é a primeira tarefa social a ser conduzida pelo Estado, embora não comandada só por ele. Concretamente, para Leão XIII, o Estado pode (às vezes deve) regulamentar as horas de trabalho (RN, 59). O tempo livre não serve apenas para repouso, mas como condição de con-vivência, de vida familiar e política. Também cabe ao Estado regulamentar um salário mínimo que permita vida decente ao trabalhador (RN 61; QA, 66; LE, 19). É papel do Estado garantir a todos os cidadãos os seus direitos, prevenindo ou punindo sua violação, de modo especial “deve defender o direito dos fracos e indigentes” (RN 54). Dois princípios, complementares e em tensão dialética, norteiam o serviço do Estado ao bem comum: o da solidariedade e o da subsidiariedade. O princípio de solidariedade exige a superação de todo individualismo pessoal e grupal (corporativismo). Baseia-se na antropologia cristã de que não posso ser feliz plenamente, se o outro não é feliz; não sou inteiramente livre se interajo com quem não tem condições de liberdade e, no limite, como disse Pe. Pedro Arrupe no Congresso Eucarístico Internacional de Filadélfia, em 1976, não posso celebrar direito a Eucaristia do Senhor, se uma criança no mundo passa fome. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 48 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 49 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ A solidariedade requer, além disso, que nos sintamos responsáveis uns pelos outros e que estejamos determinados a empreender ações concretas a serviço dos demais. Há um texto na Encíclica Solicitude Social da Igreja, que expressa bem esse significado da solidariedade: “[a solidariedade], portanto, não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos” (SRS, 38). A aplicação deste princípio postula muitas vezes a intervenção de uma autoridade central para correção de desigualdades e desequilíbrios. Por exemplo, o Governo Federal num país como o Brasil, deveria estimular o desenvolvimento das regiões que “ficaram para trás”, por razões políticas e econômicas. A Igreja conserva uma concepção solidária de sociedade, concepção que de fato nasce do Evangelho e se contrapõe ao pensamento moderno individualista do capitalismo. Mas às vezes “cheira” à ordem feudal, harmonia feita de cima para baixo. Cabe aos cristãos discernir, como “decantar” da solidariedade este elemento superado. Leão XIII enfatizou que o Estado deve cuidar especialmente da classe operária exatamente em nome do bem geral (RN 49). O pensamento social cristão daí em diante explicitou e expandiu este conceito, ao refletir que a opção prioritária pelo pobre é o suporte concreto histórico da universalidade. O princípio de subsidiariedade pede que as decisões se tomem o mais próximo possível das pessoas, das famílias, dos grupos face a face. Assim que aquilo que se decide e executa bem em nível estadual, não deve ser avocado ao federal, ou o Estado (mesmo o local) não deve assumir diretamente problemas que uma entidade cidadã voluntária pode resolver, se preciso, com apoio e em parceria com o poder público (QA, 80; PT, 140). O Estado deve proteger e estimular a iniciativa dos cidadãos, visando à sua autonomia, como propõe João XXIII: “É preciso reafirmar sempre o princípio que a presença do Estado no campo econômico, por ampla e penetrante que seja, não pode ter como meta reduzir cada vez mais a esfera da liberdade na iniciativa pessoal dos cidadãos; mas, deve, pelo contrário, garantir a essa esfera a maior amplidão possível, protegendo efetivamente, em favor de todos e de cada um, os direitos essenciais da pessoa humana. Entre estes há de enumerar-se o direito que todos têm de serem e permanecerem normalmente os primeiros responsáveis pela manutenção própria e da família; ora, isso implica que, nos sistemas econômicos, se consinta e facilite o livre exercício das atividades produtivas” (MM, 55). Tarefas do Estado O governo é para os governados, não vice-versa. Não se pode entender o Estado como se ele fosse uma entidade acima e fora dos cidadãos e só pode (mas às vezes deve) limitar um cidadão, em prol do bem comum do todo. Isso supõe uma concepção de Estado de direito, baseado em uma constituição e numa ordem jurídica legítima, no qual os cidadãos escolhem e exercem o controle sobre as ações dos governantes. João Paulo II escreveu um texto incisivo sobre essa dimensão do Estado democrático. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 49 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 50 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ “Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma reta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, que na ´subjetividade´da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e coresponsabilidade” (CA, 46). O atendimento aos direitos e necessidades básicas do indivíduo não pode depender do arbítrio dos governantes. O Estado tem o direito (e o dever) de orientar e regulamentar a distribuição dos recursos. Pode fazer cumprir a função social da propriedade, taxando mais os bens supérfluos e desapropriando terras que não cumprem sua função social, para o bem da maioria. O dever do rico neste caso não é livre benemerência sua, é dever, como nos ensinam os Padres da Igreja. Portanto, o Estado pode (e deve) legislar a respeito de uma distribuição justa dos bens; entre outras, através de uma política tributária que onere mais os ricos que os pobres. A estrutura do poder público deve ordenar-se ao bem comum. Nem sempre vai coincidir com as formas abstratamente ideais, “em si” mais perfeitas. O aperfeiçoamento das estruturas políticas deve dar-se por uma adequação ao serviço do bem comum. Em todo o caso, é fundamental que garanta o melhor possível a repartição eqüitativa dos encargos e benefícios entre cidadãos e grupos sociais. Hoje constatamos a possibilidade e a exigência de ações mais variadas, mais extensas e coordenadas do Estado. Essa possibilidade surgiu graças aos recursos acrescidos de técnica, sobretudo de comunicação. A exigência de uma ação mais variada decorre do fato de o bem comum depender de mais variáveis, e de variáveis mais complexas, que indivíduos e grupos face-a-face não têm como controlar. É papel do Estado, manter a ordem e a paz, que a justiça se guarde entre pessoas, entre grupos sociais, entre regiões. Em termos positivos, o Estado deve promover o desenvolvimento das forças produtivas. Papel fundamental do Estado é atuar para garantir emprego ao maior número. Razão e fundamento é que ter acesso ao trabalho é um direito natural de todo ser humano capaz ao trabalho. Não apenas ao emprego como meio de subsistência, mas à ocupação útil aos outros e que exercite as capacidades e talentos humanos de cada um. Esta tarefa não consiste (ou não sobretudo) em o Estado criar diretamente postos de trabalho: é de apoiar, criar condições, via política macroeconômica, regulamentar o mercado de trabalho, colaborar com iniciativas criativas de associações e empresas. “O Estado tem também o direito de intervir quando situações particulares de monopólio criem atrasos ou obstáculos ao desenvolvimento. Mas, além dessas tarefas de harmonização e condução do progresso, pode desempenhar funções de suplência em situações excepcionais, quando setores sociais ou sistemas de empresas, demasiado débeis ou em vias de formação, se mostram inadequados à sua missão” (CA, 48). Na economia surgem monopólios “necessários” e “inevitáveis”. Se a multiplicação de empresas no mesmo setor representar esbanjamento de recursos por duplicação de equipamento para a mesma produção, temos um monopólio “necessário”. O exemplo seria de várias empresas distribuidoras de eletricidade, cada qual com toda a rede de postes e fios. O monopólio “inevitável” resulta de concorrência que, dada a natureza do setor, elimina rapidamente concorrentes. Há setores em que o próprio tamanho, ao permitir economias de escala, favorece que cresça ainda mais rapidamente quem já cresceu – e liquida quem não cresceu a tempo. Em ambos os casos, para defender os interesses de consumidores, trabalhadores e fornecedores, o Estado tem que assumir a gerência (isolada, ou associada) e o controle através de “agências controladoras”, desde que estas sejam realmente independentes dos produtores. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 50 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 51 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ É direito e dever do Estado legislar novos direitos, acompanhando a evolução histórica da consciência coletiva sobre os direitos humanos. Mas esta função do Estado é limitada (e animada!) pelo direito dos cidadãos a terem respeitados seus direitos e, conseqüentemente, pelo que se chamou “o direito que nasce da rua”, criado pela sociedade organizada e a ser reconhecido pelo Estado. João XXIII (Pacem in Terris 135 e 141) reflete como há cada vez mais inter-relações em nível global, que escapam à possibilidade de intervenção do Estado nacional e afetam as condições de vida de grande número de seres humanos, muitos dos quais nem sabem dos porquês globais das mudanças e dos problemas que os concernem. Assim que se constitui algo como um bem comum planetário, a ser cuidado. A razão de ser da autoridade pública é o cuidado do bem comum e o zelo para que as estruturas jurídicas e técnicas se ajustem a este serviço. Ora, nas novas condições esse bem comum adquiriu dimensões planetárias. Donde parece sempre mais necessário urgir o surgimento de uma verdadeira autoridade mundial, participada, plural, solidária e subsidiária, mas precisamente com tudo isto, efetiva. O problema da inadequação das estruturas globais, identificado por João XXIII em 1963, parece ter se agravado desde então. Os textos da Mater et Magistra revelam uma surpreendente atualidade, não só no diagnóstico como no remédio proposto. “Pode-se, portanto, afirmar que na presente conjuntura histórica não se verifica uma correspondência satisfatória entre a estrutura política dos Estados com o respectivo funcionamento da autoridade pública no plano mundial, e as exigências objetivas do bem comum universal” (PT, 135). “Os poderes públicos da comunidade mundial não têm como fim limitar a esfera de ação dos poderes públicos de cada comunidade política e nem sequer de substituir-se a eles. Ao invés, devem procurar contribuir para a criação, em plano mundial, de um ambiente em que tanto os poderes públicos de cada comunidade política, como os respectivos cidadãos e grupos intermediários, com maior segurança, possam desempenhar as próprias funções, cumprir os seus deveres e fazer valer os seus direitos” (PT, 141). O cristão e a política O objeto da caridade é que “o outro” tenha vida e vida mais plena. “Fazer-me próximo” do outro como o samaritano é assumir o empenho disto. Ora, quanto mais universal, mais efetiva a minha ação. Santo Inácio de Loyola diz “todo bem, quanto mais universal, mais divino” (e já está citando autores anteriores a ele, como sabedoria adquirida do povo cristão). Destarte, como reflete Paulo VI, a ação política dos cristãos é forma exímia e eminente de caridade. Ela deve pautar-se pela coerência de opções com os valores do Evangelho e pela eficácia das ações. Assim se expressa o Papa: A política é uma maneira exigente – se bem que não seja a única - de viver o compromisso cristão, ao serviço dos outros... Reconhecendo muito embora a autonomia da realidade política, esforçar-se-ão os cristãos solicitados a entrar na ação política por encontrar uma coerência entre as suas opções e o Evangelho e, dentro de um legítimo pluralismo, por dar um testemunho, pessoal e coletivo, da seriedade de sua fé mediante um serviço eficaz e desinteressado para com os homens” (OA, 46). __________________________________________________________________________________________________________________________________ 51 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 52 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Para o cristão, não há moral da razão de Estado (ações que servem os interesses do Estado, mas que atentam, por exemplo, contra direitos dos cidadãos). Não há ética pública independente e distinta da ética fundada na dignidade humana e ultimamente no evangelho de Jesus Cristo. Isso não exime o governante e o cidadão, de tomar difíceis decisões morais, na linha do “mal menor”, sobretudo em situações limite de pecado, de miséria, de violência. Pode ser um dever doloroso equilibrar a “moral da convicção”, regida por princípios e a “moral da responsabilidade”, que deve tomar em conta as circunstâncias reais, que às vezes não permite fazer o que seria o mais justo. As razões podem ser diversas, mas freqüentemente não de faz o que seria justo por falta absoluta de recursos. O dever que estão se impõe é examinar se a ordem de prioridades na aplicação dos recursos é a mais correta. A multiplicação e complexificação das relações sociais no nosso mundo torna o papel do Estado também mais complexo. Exige do Estado que penetre mais profundamente em toda a vida social, o que requer tanto mais discernimento dos cristãos e lhes coloca a obrigação de se informarem melhor. Exigência que a fé coloca para o cristão engajado na política é a necessidade de agir. Análises, denúncias e estudo das soluções não bastam. É preciso orientar esses elementos para tomada de decisões e para o empenho na ação. O medo de errar não pode levar o cristão à paralisia, que seria um erro ainda maior. Essa ação será tanto mais eficaz quanto mais ela for acompanhada pela conversão pessoal e do humilde reconhecimento que somos co-responsáveis pelos males sociais que nos cercam. “Não basta recordar os princípios, afirmar as intenções, fazer notar as injustiças gritantes e proferir denúncias proféticas; estas palavras ficarão sem efeito real, se elas não forem acompanhadas, para cada um em particular, de uma tomada de consciência mais viva da sua própria responsabilidade e de uma ação efetiva. É demasiadamente fácil jogar sobre os outros a responsabilidade das injustiças se não se dá ao mesmo tempo conta de como se tem parte nela e de como a conversão pessoal é necessária, mais do que qualquer outra coisa” (OA, 48) O cristão atuante na política é animado de uma profunda esperança. Quais as razões dessa esperança? São, pelo menos, duas. Primeira, a certeza teológica que o Senhor continua no meio de nós e acompanha nossas ações, operando por meio de nós. A outra vem da experiência do bem e de uma visão positiva das coisas. O cristão sabe que não está sozinho. Deus opera em outras pessoas e grupos, inspirando-lhes ações a favor da justiça da paz. Nossa ação se junta à de muitas outras pessoas, até formar uma grande corrente, capaz de mudar mentes e estruturas. Escreve Paulo VI: “A esperança do cristão provém-lhe, antes de mais nada, do fato de ele saber que o Senhor está a operar conosco no mundo, em que ele continua no seu corpo que é a Igreja – e, por ela, na humanidade inteira – a redenção realizada na cruz e que resplandeceu em vitória na manhã da ressurreição. Tal esperança provém-lhe igualmente do fato de ele saber que outros homens estão também a operar no sentido de se empreenderem ações convergentes de justiça e paz” (OA, 48). O cristão crê na renovação do mundo, por força da presença do Verbo de Deus encarnado. De fato, pela encarnação, de algum modo, todo mundo foi assumido por Deus, que assim o prepara para uma nova criação, para fazer novas todas as pessoas e todas as coisas. Nisso reside, talvez, a maior fonte de energia espiritual do cristão engajado na política. Terminamos com palavras de João Paulo II, falando da nova criação realizada em Jesus Cristo, segundo a profecia do Apocalipse “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5): “O cristão sabe que esta novidade, cuja plenitude aguardamos com o regresso do Senhor, esta presente desde a criação do mundo e, mais precisamente, desde que Deus se fez homem em Jesus Cristo, e com Ele e por Ele realizou uma nova criação (2Cor 5,17; Gl 6,15)” (CA, 62). __________________________________________________________________________________________________________________________________ 52 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 53 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Perguntas para Reflexão 1. Concordamos com a afirmação de que “quanto menos governo nos negócios e menos negócios nos governos, melhor”? Ou só com uma parte, ou só em parte? 2. À luz do Evangelho é mais cristão interessar-se por política e participar nela, ou não? Por quê? 3. Quando o poder público faz uma lei (de trânsito, por exemplo), isto tem algo a ver com o amor efetivo do próximo pregado por Jesus? 4. O detentor de cargo público nomear parentes e amigos por serem amigos e parentes, é correto amor do próximo mais próximo? __________________________________________________________________________________________________________________________________ 53 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 54 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Capítulo 7 Transformações e Reformas Pe. Bernard Lestienne, SJ Nos passos de Cristo O nosso Deus, o Pai de Jesus Cristo, é um Deus de amor. A manifestação suprema deste amor se manifestou na encarnação de Cristo. Jesus veio habitar entre nós para revelar o Reino de Deus, próximo de nós. Jesus passou fazendo o bem, curando, anunciando o Reino, mostrando atenção e carinho para os pequenos e pobres, denunciando a hipocrisia dos chefes religiosos do seu povo. Jesus anuncia o Reino do Pai, reino de paz, de justiça, de amor. Vem satisfazer a esperança dos pobres. Esta ainda está muito viva hoje no meio dos empobrecidos e injustiçados. Jesus quis renovar a Lei judaica, transformar os preceitos e as normas em gestos de amor concreto. Pagou caro por esse sonho. Morreu crucificado pelos poderosos que defendiam a ‘ordem’ deles, os seus interesses. A ressurreição é a vitória do Reino de Deus sobre o reino das trevas. É a vitória da paz, da justiça e do amor entre os homens. A missão dos discípulos é de continuar a obra de Cristo, de participar na construção do Reino de paz e amor. Trata-se hoje de libertar os pobres das cadeias da pobreza e miséria, e todos os homens da escravidão da idolatria do dinheiro, do consumismo e do materialismo que destroem a solidariedade e generalizam o egoísmo. Cristo quis, e ainda quer, que os homens possam viver como filhos de Deus, irmãos e felizes, com dignidade, em harmonia entre eles, com a natureza, e com o Pai de amor. O Cristão é cidadão, com compromisso na transformação da sociedade para uma convivência mais justa, fraterna e solidária. Um país rico com muitos pobres Brasil, país abençoado por Deus, do qual os homens não cuidam. Em todas partes, encontram-se recursos naturais em abundância: florestas, terras férteis, pantanais, rios e lagos, minerais e aqüíferos, etc. A beleza das paisagens enche da paz os corações. Múltiplos povos, raças e religiões expressam sua alegria de viver com grande criatividade cultural. Simpatia e solidariedade tecem as redes da vida. Ora, passando pelos campos e periferias urbanas, espanta-se a gente diante de tamanha pobreza, miséria, fome, destruição da natureza, poluição dos rios e do ar, violência, consumo de drogas e prostituição, etc. O povo sofre, passa mal, perde a confiança e a esperança. Em contraste, em outros recintos, nos bancos e atrás dos sistemas de segurança, uns poucos acumulam fortunas infinitas, desproporcionadas. A beleza e as riquezas do país e do seu povo parecem ameaçadas. Algumas estatísticas ilustram o quadro desolador. A Síntese de Indicadores Sociais 2002, lançada pelo IBGE, confirma que o traço mais marcante da sociedade brasileira é a desigualdade. Neste ano, 1% mais rico recebeu a mesma renda que os 50% mais pobres; e os 10% mais ricos receberam 18 vezes mais que os 40% mais pobres! Cerca de 1% dos proprietários são donos de 46% de todas as terras, e 2% de 48% das terras férteis! Para a terra, o índice que calcula a concentração da propriedade (o coeficiente 0 significaria que todos os proprietários tivessem a mesma superfície, e o coeficiente 1 que um só dono tivesse todas as terras) oscilou, entre 1967 e 1999, de 0,831 a 0,854, sendo entre os mais altos do mundo. 5% da população possuem 75% de todas as riquezas do país, e 5.000 famílias 45% delas! Metade dos trabalhadores ganha até dois salários mínimos, mas 71,3% das mulheres recebem este montante. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 54 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 55 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ De acordo com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a distância entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres é de 5 vezes na Índia; 8 vezes, nos EUA; 13 vezes, no México; 18 vezes, no Chile, e 33 vezes, no Brasil. O país tem um terço de muito pobres (57 milhões), com renda inferior a ½ salário por mês (+/- 1 dólar por dia). Dos recursos destinados aos aposentados, quase a metade vai para os 10% mais ricos da população. E mais da metade da população ocupada não contribui para a Previdência. Em 2001, o rendimento médio da população ocupada preta e parda ficou em torno de 50% do rendimento dos brancos. Sete grupos, em situação de monopólio, controlam a mídia e a informação no país. Quarenta mil pessoas são assassinadas cada ano. Há uma guerra social, de classe. No “ranking” da qualidade de vida (renda, saúde, educação), o Brasil está na 69a posição. Em 2001, o Brasil tem a 4a pior distribuição de renda do mundo (de fato, entre os cem paises que têm estatísticas suficientes para medir o índice). O país fica em segundo lugar na América Latina. Esses dados, e outros disponíveis entristecem e provocam a indignação. A Igreja e os cristãos não podem passar sem ‘parar’ ao lado desta realidade brutal, como o sacerdote e o levita passaram ao lado do homem assaltado e jogado na beira do caminho de Jericó (Lc 10, 25-37). A indignação, humana e espiritual, provoca à ação. Querer transformar uma situação inaceitável exige a analise, entender as causas e conseqüências. Brasil: casa grande e senzala; de onde vem, a onde vai? Os resultados do estudo de Gilberto Freire continuam válidos, mesmo que com traços diferentes: uma minoria se apropria dos frutos do trabalho de muitos que vivem na dependência desta ‘elite’. Muitas razões explicam a permanência desta situação; vejamos apenas algumas. O grêmio ruralista, com forte representação no Congresso, continua sendo um dos mais organizados e poderosos na defesa dos seus latifúndios. A propriedade da terra continua sendo sinal de riqueza e de poder. Nenhuma Reforma Agrária veio contestar a estrutura fundiária concentradora do país. Aos poucos, trabalhadores agrícolas e pequenos produtores familiares foram expulsos da terra para as periferias urbanas. São mais de 4 milhões de famílias sem terra. A produção é orientada para a exportação, destruindo a soberania alimentar do povo brasileiro. A democracia, em suma, é recente, ainda fraca, em construção apenas desde 1985, com o fim da ditadura militar. Só desde então o povo se organiza de maneira mais autônoma na defesa dos interesses da maioria. A participação do povo na vida política, com os seus partidos e organizações, é nova, ainda pouco estruturada. Pobreza e falta de preparação crítica mantiveram laços de dependência com respeito aos líderes políticos. Ao longo dos séculos, a maquina do Estado – em particular o poder judiciário fortemente corrompido – foi ‘privatizada’, ao serviço duma minoria, dona da riqueza e do poder, mal disposta a ‘partilhar’ seus privilégios. Por muito tempo, a questão social foi uma questão de polícia. Apesar de tamanhas desigualdade e pobreza, reformas de fundo dos principais sectores da sociedade (agrária, urbana, tributária, trabalhista, política, previdenciária, educacional, fiscal, etc.), para dar mais chances aos desfavorecidos, nunca foram implantadas. Até o atual governo Lula, de extração popular, não consegue fazê-las de verdade. Os investimentos na saúde e educação públicas estão a anosluz das necessidades do povo. A burguesia não quer abrir mão dos seus privilégios. Os meios de comunicação social, nas mãos de poucos, justificam a situação e atacam as lutas em favor duma maior __________________________________________________________________________________________________________________________________ 55 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 56 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ justiça. A mobilização dos ruralistas, inclusive violenta, contra o MST (movimento social de maior atuação social nos últimos 20 anos) ilustra esse bloqueio da ‘elite’ à evolução social e política. Além do mais, esta ‘elite’ implementa um modelo de desenvolvimento competitivo e excludente. No plano moral, tamanha insensibilidade aos sofrimentos do povo traduz a ausência de valores e princípios de solidariedade humana, conseqüência dum profundo egoísmo coletivo, de classe. Já alguns números desenharam a brutalidade da pobreza e miséria no nosso país tão rico. As razões consideradas acima têm outras conseqüências mais profundas além do quadro desolador da injustiça. A segmentação da sociedade em classes (por exemplo: alta burguesia: 1 - 2%; burguesia: 10%; classe media: 20%, trabalhadores: 40%; excluídos: 30%) se consolida e perpetua. A esperança dum avanço na hierarquia social diminui enquanto o risco da marginalização e exclusão aumenta. Crescem então a resignação e o fatalismo – “este país não tem jeito” – que reforçam ainda mais a situação atual e servem os interesses dos dominantes. A mercantilização geral – tudo se compra, tudo se vende – leva ao materialismo, e à perda dos valores e atitudes tradicionais humanos e religiosos do povo, tais como a solidariedade, a comunicação e o calor humano. A natureza mesma sofre as agressões da sua comercialização e da falta de cuidado. As periferias urbanas são reservatórios de muita violência, que atinge também todos os setores da sociedade. É o conjunto da qualidade da vida e a nossa ‘humanidade’ mesma, enquanto seres humanos, que são atacados e ameaçados de destruição progressiva. À luz do Ensino Social da Igreja O Ensino Social da Igreja (ESI) joga um olhar crítico e construtivo sobre a realidade social, à luz do Evangelho e da Tradição espiritual e teológica da Igreja. O seu horizonte é o Reino de paz, justiça e fraternidade, inaugurado e proclamado por Jesus, que é também o horizonte da atuação dos cristãos comprometidos na transformação social. Vejamos alguns princípios e valores deste ESI numa perspectiva crítica e construtiva, como tentamos fazê-lo até agora. Sabemos como é difícil viver o Evangelho na sua radicalidade e aplicar os princípios do ESI na vida política, econômica e social. Estranha, de fato, ver o Brasil, país com uma das maiores porcentagens de cristãos e católicos, com uma das piores distribuições da riqueza. E como explicar que 30 ou 50 milhões de brasileiros passem fome quando o país é um dos primeiros exportadores agrícolas do mundo? Essa situação não corresponde aos valores do Reino. O Evangelho de Jesus Cristo é mensagem de liberdade e força de libertação... A libertação é antes de tudo e principalmente libertação da escravidão radical do pecado. Seu objetivo e seu termo é a liberdade dos filhos de Deus, que é dom da graça. Ela exige, por uma conseqüência lógica, a libertação de muitas outras escravidões de ordem cultural, econômica, social e política que, em última análise, derivam todas do pecado e constituem outros tantos obstáculos que impedem os homens de viverem segundo a própria dignidade. (Libertatis Nuntius, introdução). Por isso, desejo chamar a atenção para alguns índices genéricos, sem excluir outros específicos. Não querendo entrar na análise numérica ou estatística, bastará olhar para a realidade de uma multidão inumerável de homens e mulheres, crianças, adultos e anciãos, isto é, de pessoas humanas concretas e irrepetíveis, que sofrem sob o peso intolerável da miséria. O número daqueles que não têm esperança, pelo fato de que, em muitas regiões da terra, a sua situação se agravou sensivelmente, são milhões e milhões. Perante estes dramas de total indigência e necessidade, em que vivem tantos dos nossos irmãos e irmãs, é o próprio Senhor Jesus que vem interpelar-nos (cf. Mt 25,3146). (Sollicitudo Rei Socialis, n.13) __________________________________________________________________________________________________________________________________ 56 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 57 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Deixar milhões de pessoas viverem nas condições de pobreza ou miséria onde estão é falta de respeito à dignidade dos seres humanos, de filhos/as de Deus. Ora o respeito da dignidade de qualquer ser humano é um principio básico da moral social cristã, correspondendo ao mandamento evangélico do amor. Tampouco tamanha desigualdade combina com o princípio da justiça. A tradição cristã proclama que os bens da terra são para todos, e que ninguém pode ficar excluído da sua distribuição. Ora bem, a riqueza dos ricos se constrói a partir da pobreza dos empobrecidos. A exclusão e marginalização de milhões de pobres significa uma ruptura da unidade da família humana. A situação dramática de muitos trabalhadores desempregados traduz a inversão, ainda mais acentuada na lógica de deregulação do neoliberalismo, da primazia do trabalho sobre o capital, principio fundamental do ESI. Para a Igreja, a mensagem social do Evangelho não deve ser considerada uma teoria, mas sobretudo um fundamento e uma motivação para a ação. Impelidos por esta mensagem, alguns dos primeiros cristãos distribuíram os seus bens pelos pobres e davam testemunho de que era possível uma convivência pacífica e solidária, apesar das diversas proveniências sociais... A Igreja está consciente hoje mais do que nunca de que a sua mensagem social encontrará credibilidade primeiro no testemunho das obras e só depois na sua coerência e lógica interna. Desta convicção provém também a sua opção preferencial pelos pobres, que nunca será exclusiva nem discriminatória relativamente aos outros grupos. (CA, n. 57) É a todos os cristãos que nós dirigimos de novo e ainda de uma maneira insistente, um apelo à ação. Na nossa Encíclica Populorum Progressio (sobre o desenvolvimento dos povos) insistíamos já, para que todos pusessem mãos à obra: “Os leigos devem assumir como sua tarefa própria a renovação da ordem temporal...”(cf. PP, n. 81). Seria bom que cada um procurasse examinar-se, para ver o que já fez até agora e aquilo que deveria fazer. Não basta recordar os princípios, afirmar as intenções, fazer notar as injustiças gritantes e proferir denúncias proféticas; estas palavras ficarão sem efeito real, se elas não forem acompanhadas, para cada um em particular, de uma tomada de consciência mais viva de sua própria responsabilidade e de uma ação efetiva. (OA, n. 48) ...deve voltar-se a atenção antes de mais nada para um problema fundamental. Tratase do problema de ter trabalho ou, por outras palavras, do problema de encontrar um emprego adaptado para todos aqueles sujeitos que são capazes de o ter. O contrário de uma situação justa e correta neste campo é o desemprego, isto é, a falta de lugares de trabalho para as pessoas que são capazes de trabalhar.... E o desemprego torna-se um problema particularmente doloroso quando são atingidos sobretudo os jovens.... A obrigação de conceder fundos em favor dos desempregados, quer dizer, o dever de assegurar as subvenções indispensáveis para a subsistência dos desempregados e das suas famílias, é um dever que deriva do princípio fundamental da ordem moral neste campo. (LE, n. 18) A Igreja sublinha o papel do Estado para promover o Bem Comum. Ora, o Estado privatizado não prioriza os direitos de todos, mas apenas os privilégios duma minoria, nem promove o princípio de solidariedade, básico na concepção cristã da vida social e política. Da mesma maneira, a falta de participação do povo nas decisões políticas é a negação do principio de subsidiariedade (que as decisões sejam tomadas ao nível mais próximo daquele onde elas terão o maior efeito), chave duma verdadeira __________________________________________________________________________________________________________________________________ 57 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 58 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ democracia participativa. A idolatria do dinheiro pelo consumismo, e a regulação da sociedade pelas leis do mercado instalam a competição como atitude relacional básica, e destroem os valores de comunhão e gratuidade, e a dimensão espiritual da vida social que estão na base duma sociedade fraterna. Também neste âmbito, se deve respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apóia-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua ação com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum (CA, n. 48). O que se pede aos governantes é um concurso de ordem geral, que consiste em toda a economia das leis e das instituições; queremos dizer que devem fazer de modo que da mesma organização e do governo da sociedade brote espontaneamente e sem esforço a prosperidade, tanto pública como particular. Tal é, com efeito, o ofício da prudência civil e o dever próprio de todos aqueles que governam.... Assim como, pois, por todos estes meios, o Estado pode tornar-se útil à outras classes, assim também pode melhorar muitíssimo a sorte da classe operária e isto em todo o rigor do seu direito, e sem ter a temer a censura de ingerência; porque, em virtude mesmo do seu ofício, o Estado deve servir o interesse comum. E é evidente que, quanto mais se multiplicarem as vantagens resultantes desta ação de ordem geral, tanto menos necessidade de recorrer a outros expedientes para remediar a condição dos trabalhadores (RN, n. 48). O materialismo e o apetite do lucro desenvolvem uma visão apenas utilitarista da natureza, cuja beleza e gratuidade são ignoradas, que leva a uma exploração incontrolada dos recursos naturais, sem respeito da integridade da criação, nem responsabilidade em relação à possibilidade e às condições de vida das gerações futuras. O sétimo mandamento manda respeitar a integridade da Criação. Os animais, tal como as plantas e os seres inanimados, estão naturalmente destinados ao bem comum da humanidade passada, presente e futura. O uso dos recursos minerais, vegetais e animais do universo não pode ser separado do respeito pelas exigências morais. O domínio dado pelo Criador ao homem sobre os seres inanimados e os seres vivos não é absoluto, é medido através da preocupação pela qualidade de vida do próximo, inclusive das gerações futuras; exige um respeito religioso pela integridade da criação. (CIC, n. 2415) A segunda consideração funda-se, por sua vez, na convicção, dir-se-ia mais premente, da limitação dos recursos naturais, alguns dos quais não são renováveis, como se diz. Usa-los como se fossem inexauríveis, com absoluto domínio, põe em perigo seriamente a sua disponibilidade, não só para a geração presente, mas sobretudo para as gerações futuras. .... Torna-se evidente, uma vez mais, que o desenvolvimento e a vontade de planificação que o orienta, assim como o uso dos recursos e a maneira de os utilizar, não podem ser separados do respeito das exigências morais. Uma destas impõe limites, sem dúvida, ao uso da natureza visível. (SRS, n. 34) __________________________________________________________________________________________________________________________________ 58 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 59 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Transformações e reformas Na perspectiva da construção do Reino de paz e justiça, tanto o Evangelho como o Ensino Social da Igreja chamam os cristãos a participar da transformação da sociedade. Aliás, qualquer que seja o nível de integração e desenvolvimento social da sociedade (com melhor redistribuição da riqueza e do poder) as transformações são sempre necessárias. Nenhuma sociedade é tão perfeita que não necessite melhorias, às vezes muito mais além do que parece. E hoje, a dimensão nacional não é o horizonte definitivo. Num mundo globalizado, qualquer sociedade no seu projeto de progresso deve se abrir aos seus próximos, mais imediatos ou distantes. Transformação, reforma ou revolução sociais? A pergunta parece menos relevante que nos anos 60 ou 70. A situação da sociedade brasileira – e a da sociedade mundial – é tão distante do horizonte do Reino, que precisaria duma ‘revolução’, no sentido duma volta total para se encontrar num novo ponto de partida. Mas sabemos que as mudanças, por radicais ou aceleradas que sejam, se dão por etapas, progressivamente. Definindo a revolução como total, a reforma como ampla e a transformação como parcial, percebe-se que tem reformas e transformações, que, se contínuas e profundas, são revolucionárias. Amplamente implementado, o programa Fome Zero do atual governo teria um teor revolucionário. O problema é que “no Brasil não se fazem nem reformas nem revoluções” escrevia há pouco um cientista reconhecido. “Nem transformações profundas” poderíamos acrescentar. A ‘elite’ tem medo e odeia qualquer transformação que restrinja, mesmo que pouco, os seus privilégios. No começo dos anos 60, a pressão popular em favor de reformas (agrária, tributária, política e sindical) deslanchou o golpe militar em 1964, sob pretexto de ameaça comunista. Quem hoje negaria a necessidade de profundas mudanças para combater a pobreza e a desigualdade? Vários partidos políticos reformistas, em favor duma modernização do Brasil, colocaram nos seus programas eleitorais a necessidade de promover várias reformas: agrária, urbana, trabalhista, sindical, política, previdenciária, tributária, fiscal, da saúde e da educação, etc. No entanto, 40 anos depois, num contexto político e ideológico totalmente diferente do de 1964, parece impossível mudar as estruturas desiguais do país. Esse bloqueio não vem apenas das pressões do ‘mercado’ financeiro internacional, mas também, e sobretudo, das pressões internas de parte duma minoria possuidora, cujos interesses são estreitamente ligados aos do mercado mundial. As duas principais ‘reformas’ feitas às pressas, em 2003, pelo governo Lula, não resultaram de um amplo debate em toda a sociedade. Em 2002, o governo Fernando Henrique Cardoso negociou com o FMI que essas duas reformas seriam feitas no ano seguinte. Pautadas pelas exigências do Fundo, não foram aproveitadas como oportunidades para reduzir as desigualdades. Nesta ocasião, como em muitas outras (especialmente no que diz respeito ao pagamento dos juros das dívidas), foi ainda mais clara a dependência – e submissão – do país ao FMI. Parece que o país não quer afirmar certa autonomia. Uma reforma fiscal que reconsiderasse o pagamento das dívidas externa e interna (auditoria, renegociação, moratória, anulação) é mais urgente do que nunca para liberar recursos para o desenvolvimento social, que o governo pretende promover. A dívida externa de muitos países no mundo já foi paga várias vezes e constitui um dos principais obstáculos ao desenvolvimento. A crescente interdependência global torna mais difícil empreender reformas profundas a nível nacional. (Cf. o capítulo 8. sobre a Comunidade Internacional). No entanto, cada país tem uma margem de autonomia política (tanto maior quanto é o seu poder), para definir políticas próprias. O governo Lula beneficia de um apoio popular que lhe permitiria, se o quisesse, implementar as reformas prometidas. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 59 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 60 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Como fazer? Os métodos e estratégias de transformação Um governo só dificilmente pode empreender e levar a cabo transformações sociais de fundo, para redistribuir as riquezas ou o poder na sociedade. As reformas sólidas e estáveis – sustentáveis – se realizam com a participação consciente dos mais diretamente interessados. Reencontramos aqui uma dimensão da subsidiariedade, que promove a tomada de decisões ao nível mais próximo do qual elas terão o maior efeito. O papa João XXIII nas suas duas encíclicas Mater et Magistra (Mãe e Mestra) de 1961 e Pacem in Terris (A Paz dos Povos) de 1963, e a Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes (Alegrias e Esperanças) promoveram os méritos da democracia, como forma elevada de organização política. O Ensino social tradicional da Igreja promove a participação das organizações intermediárias e de todos cidadãos. Esse modelo está mais perto da democracia participativa, que busca seu caminho, que da democracia representativa, em crise em muitos países. Além da família, também outras sociedades intermediárias desenvolvem funções primárias e constroem específicas redes de solidariedade. Estas, de fato, amadurecem como comunidades reais de pessoas e dinamizam o tecido social, impedindo-o de cair no anonimato e na massificação, infelizmente freqüente na sociedade moderna. É na múltipla atuação de relações que vive a pessoa e cresce a “subjetividade” da sociedade. O indivíduo é hoje muitas vezes sufocado entre os dois pólos: o Estado e o mercado. Às vezes dá a impressão de que ele existe apenas como produtor e consumidor de mercadorias ou então como objeto da administração da Estado, esquecendo-se que a convivência entre os homens não se reduz ao mercado nem ao Estado. (CA, n. 49) A organização do povo para defender ou promover os seus direitos faz parte da democracia. A igualdade e justiça social, sempre frágeis e ameaçadas de retrocesso, são o resultado de longas conquistas, corajosas e dolorosas. A “luta” é parte intrínseca da construção da liberdade e igualdade. Entre muitas outras histórias de luta, a do movimento operário ilustra os numerosos sacrifícios na defesa da dignidade e dos direitos dos trabalhadores. Falar de reformas é falar da necessidade das lutas sociais e populares. Sem pressão das ‘ruas’ é difícil imaginar mudanças de peso. Muitas vezes a palavra ‘luta’ assusta. É que para muitos ela significa violência. Esquece-se muitas vezes a situação de violência pela dominação ou exploração que gera os conflitos. Estes não estouram sem razão. Nunca é para brincar, ou de ‘coração alegre’, que os trabalhadores ou o povo começam um conflito ou uma greve. Sabem os riscos de repressão e de violência que correm, e quais situações ainda mais dolorosas podem sofrer. Mesmo que ilegais, muitas lutas para defender a vida e a dignidade diante da iniqüidade extrema são legítimas. A maioria das vezes, a violência surge do lado dos que defendem os seus privilégios (riquezas e poderes), recorrendo a quaisquer meios. A violência nasce onde falta a disposição para o diálogo e a negociação. A Igreja estende a sua corajosa defesa da classe trabalhadora no Ensino Social da Igreja desde a Rerum Novarum (Coisas Novas) até a Laborem Exercens (O Trabalho Humano) a muitos outros novos grupos empobrecidos, marginalizados e excluídos. A Igreja reconhece que existem conflitos e confrontos quando os caminhos do diálogo e da negociação não permitem chegar a acordos para superar interesses contraditórios. Num contexto de escandalosa injustiça e desigualdade, diante da falta de perspectivas de mudanças pela via legal, muitos pastores expressam a sua solidariedade evangélica com as lutas dos movimentos sociais (invasões de terra improdutiva pelo MST, de edifícios urbanos desocupados pelos sem teto, ou as greves nos setores público e privado, etc.), pois não querem defender uma concepção da propriedade privada ilimitada, oposta ao Ensino Social da Igreja. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 60 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 61 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ É necessário recordar mais uma vez o princípio típico da doutrina social cristã: os bens deste mundo são originariamente destinados a todos. O direito à propriedade privada é válido e necessário, mas não anula o valor de tal princípio. Sobre a propriedade, de fato, pesa “uma hipoteca social”, quer dizer , nela é reconhecida, como qualidade intrínseca, uma função social, fundada e justificada precisamente pelo princípio da destinação universal dos bens. (SRS, n. 42) “Em casos de conflitos econômico-sociais, é preciso esforçar-se para encontrar soluções pacíficas. Mas, ainda que antes de mais nada se deva recorrer ao sincero diálogo entre as partes, todavia, a greve pode ainda constituir, mesmo nas atuais circunstâncias, um meio necessário, embora extremo, para defender os próprios direitos e alcançar as justas reivindicações dos trabalhadores. (GS, n. 68) Ao agiram em prol dos justos direitos dos seus membros, os sindicatos lançam mão também do método da greve, ou seja, da suspensão do trabalho, como de uma espécie de “ultimatum” dirigido aos órgãos competentes e, sobretudo, aos dadores de trabalho. É um modo de procede que a doutrina social católica reconhece como legítimo, observadas as devidas condições e nos justos limites. (LE, n. 20) Muitos cristãos são induzidos a dar autênticos testemunhos da justiça mediante diversas maneiras de atuar em favor da mesma justiça, inspiradas pela caridade em conformidade com a graça que receberam de Deus. Para alguns deles essa atuação verifica-se no âmbito das lutas sociais e políticas, em que os cristãos dão testemunho do Evangelho, demonstrando que na história há fontes de progresso distintas da luta, como sejam, o amor e o direito. Esta prioridade do amor, na história, leva outros cristãos a preferirem o caminho da ação não-violenta e a atuação na opinião pública. (JN, n. 39) A Igreja não condena o conflito social, mas descarta o recurso à violência. No momento de ser preso, Jesus não resistiu pela força, mandou a Pedro guardar a espada na bainha, e, no momento da morte, perdoou a os seus carrascos. Sinal dum amor sem limite, Jesus chama os seus seguidores a amar os seus inimigos. A violência gera mais violência. A não-violência, como resposta à violência, é um sinal de respeito da dignidade e da vida do outro, um gesto de confiança na capacidade dele de deixar a sua própria violência. A não-violência não é renúncia ou abandono da luta. Ela quer ser ativa, como melhor estratégia para a melhor solução dos conflitos. Questões para reflexão e debate: 1)- Quais são as marcas na sociedade que manifestam a necessidade de reformas? 2)- De onde vêm as injustiças profundas e duráveis no Brasil? Por que a situação não muda? 3)- Quais são na sua opinião os melhores métodos de transformação? Quais princípios do Ensino Social da Igreja são implícitos nesses métodos? __________________________________________________________________________________________________________________________________ 61 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 62 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Capítulo 8 A Comunidade Internacional Pe. Bernard Lestienne, SJ A formação duma comunidade internacional Em continuidade do que já foi considerado, este capítulo quer explorar uma outra vertente do nosso ser social: a dimensão além das fronteiras, o lado mundial, a nossa pertença à humanidade comum, considerada como família humana. Vivemos algo novo. Certamente, sempre os homens buscaram ir além das fronteiras. Hoje, porém, o fenômeno é muito mais generalizado e mexe com todos os aspectos da vida. As distâncias se reduzem e as fronteiras são sempre mais virtuais. Estas representam mais um convite para ir além do que um obstáculo para viajar e comunicar. A globalização, que se acelera e se intensifica, representa um enorme potencial de integração do gênero humano. A gente conhece mais e melhor a variedade das culturas e valores. Muitas vezes, esta é percebida como riqueza, como um apelo a mais abertura e unidade. A globalização aumenta a possibilidade duma maior unidade e paz entre todos os povos, alcançando assim o velho sonho da humanidade. As novas tecnologias, que evoluem com toda velocidade, oferecem novas possibilidades insuspeitadas de vida digna para cada um e para todos. Fala-se, não sem razão, da “aldeia global” para significar a redução das distâncias e das fronteiras, a maior comunicação entre todos, e a responsabilidade comum de preservar o nosso planeta único e de construir essa terra nova, esse mundo novo de felicidade e paz, onde todos poderíamos viver como família humana. Com otimismo, a partir de sua reflexão sobre a evolução da criação, o padre Pierre Teilhard de Chardin descreveu o processo de humanização e unificação espirituais crescente da nossa humanidade. O nosso destino, de pessoas ou de países, é comum. Faremos sucesso ou fracassaremos juntos. A interdependência cresce. Muitos problemas não podem ser resolvidos sozinho por um ou outro país por poderoso que seja. Os desafios de erradicar a miséria, de preservar o planeta, de domar a violência, de construir a paz e a justiça para todos só podem ser adequadamente encarados a nível mundial. Não faltam, muitas vezes, motivos para virar céticos, desanimar ou achar que nossa humanidade não tem jeito; tamanhas são as injustiças, desigualdades e violências! Pessoas ou países ricos parecem cegos à miséria dos outros e oprimem os pobres além dos limites humanos. A indignação invade o coração dos justos. Eles são muitos, gente de fé e/ou de boa vontade; sabem que o dom da paz e da justiça é o fruto de muita generosidade, gratuidade e fidelidade. Vejamos alguns passos recentes na formação da comunidade internacional. Etapas e ferramentas históricas na formação da comunidade internacional Puxado pelos avanços tecnológicos, o comércio é o motor principal do encontro entre os povos, hoje chamado globalização. A descoberta da máquina a vapor no final do século 18 deu novo impulso ao comércio internacional e a integração internacional. É interessante notar que a primeira organização pública mundial – a OIT (Organização Internacional do Trabalho), criada em 1919 – diz respeito ao trabalho, chave de leitura da questão social. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 62 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 63 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ A segunda guerra mundial (1939-1945) foi à dramática e absurda experiência, através da qual, à custa de 50 milhões de mortos, os povos sentiram melhor o destino comum que os ligava. Um passo decisivo foi a criação da ONU em 1945 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Para atingir os seus objetivos de paz e bem-estar para todos, as Organizações da ONU devem ser profundamente transformadas, mas a Assembléia Geral da ONU ainda é um dos poucos espaços no mundo, onde cada país é (teoricamente) igual aos outros para se pronunciar sobre questões do mundo. Primeira tentativa de ‘governo’ mundial, a ONU defende o multilateralismo contra o unilateralismo dos mais poderosos. A década dos anos 50 foi a da descolonização e da emergência da voz do “Terceiro Mundo”, expressão forjada no primeiro encontro dos países não alinhados em Bandung (1955; Indonésia). A dos anos 60, com alto crescimento econômico, foi a da esperança duma nova ordem econômica internacional favorável para o Sul. Em 1963, o papa João XXIII, na sua encíclica Pacem in terris (Paz na Terra), louva e apóia os esforços da ONU em favor da paz e da justiça, enquanto, em 1967, Paulo VI, na encíclica Populorum progressio (o Desenvolvimento dos Povos) se faz o advogado do “desenvolvimento integral do homem e do desenvolvimento solidário da humanidade” (PP, 5). Esses dois textos, junto com o documento-constituição Gaudium et Spes (A Igreja no Mundo de Hoje) do Vaticano II, marcam uma etapa decisiva no compromisso novo da Igreja em favor da causa dos países pobres. Em cada país do Norte cria-se uma agência católica de solidariedade internacional, para promover uma nova parceria com entidades do Sul. Fazemos, pois, ardentes votos por que a Organização das Nações Unidas, nas suas estruturas e meios, se conforme cada vez mais com à vastidão e nobreza de suas finalidades, e chegue o dia em que cada ser humano encontre nela uma proteção eficaz dos direitos que promanam imediatamente da sua dignidade de pessoa e que são, por isso mesmo, direitos universais, invioláveis e inalienáveis. (PT, n. 144) Infelizmente, o clima de esperança não durou muito. Os anos 70 foram marcados pela guerra do Vietnam e pelos dois choques do petróleo que abalaram a economia mundial, em particular a dos países pobres, que se endividaram. Durante todos esses anos, o Terceiro Mundo é refém e vítima da guerra fria entre os Estados Unidos de América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS): independentes, os países em desenvolvimento (PD) não acedem a uma verdadeira autonomia nacional. Os anos 80 marcam uma mudança: a dominação exercida sobre o Sul não é só política, mas sempre mais econômica. O aumento unilateral dos juros das dívidas (até 22%) faz estourar o endividamento dos PD. As novas tecnologias da informação e comunicação (TICs) aceleram a liberalização global do comércio. Com Gorbatchev vêm os anos da distensão entre os dois blocos. Em 1989, o desmoronamento geral do bloco soviético abre uma nova era de expansão do neoliberalismo. Nos anos 90, num mundo em plena transformação, a ONU organiza vários encontros mundiais sobre diferentes dimensões do desenvolvimento. Surgem vigorosas alertas sobre os impasses sociais, políticos e ambientais aos quais levam a deregulação e liberalização gerais da economia. Em vão. FMI (Fundo Monetário Internacional), Banco Mundial e OMC (Organização Mundial do Comércio), criada em 1994, em substituição ao GATT, (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) aceleram a implementação da cultura do mercantilização total (“tudo-mercado”). O mundo assiste, assombrado, a uma verdadeira “fuga para frente”: aumenta-se a dose do mesmo remédio, para resolver a crise, sem questionar se o remédio é acertado. No final do século 20, após 20 anos de neoliberalismo, enquanto o mundo nunca teve tantos recursos para resolver os seus desafios globais, amplia-se rapidamente a brecha entre os ricos e os pobres. Dois terços da humanidade vivem na pobreza ou miséria! Já aparece claramente que o compromisso, assinado na ONU, em setembro de 2.000, por 180 chefes de Estado, de reduzir pela __________________________________________________________________________________________________________________________________ 63 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 64 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ metade a pobreza e miséria até o ano 2015, não será alcançado. À ‘guerra fria’ sucedeu a ‘guerra ao terrorismo’ que justifica todas as formas de dominação e de violação dos direitos humanos. Não faltam os meios; falta a vontade política, quer dizer a generosidade e a solidariedade. Dificilmente os ricos abrem mão dos seus privilégios. À raiz da crise civilizatória Para transformar esse panorama pouco animador é importante analisá-lo e entendê-lo. Seria necessário observar a articulação entre as dimensões políticas, econômicas, sociais, culturais e ambientais. Neste breve capítulo, vejamos apenas alguns aspectos da dimensão moral, guiados, na nossa análise, pelas luzes e valores do Evangelho. A crise, parece-nos, enraíza-se na idolatria do dinheiro. A cultura que invade nossas mentes e nossos corações coloca o valor do dinheiro acima de todos os outros valores. Muitos se tornam cegas a outros valores como a gratuidade, a beleza, a amizade ou as relações com outros. Tudo é apreciado em função do seu preço. Na cultura do “tudo-mercado”, tudo se torna mercadoria, tudo se compra e tudo se vende. Muitas formas da vida social (educação, saúde e outras necessidades básicas, segurança, família, religião, etc.) são privatizadas e mercantilizadas. A acumulação e idolatria do dinheiro levam ao consumismo. O modelo de vida que vende a publicidade é de poder ter acesso a tudo, de poder satisfazer todos os meus desejos, tanto quanto quero; de viver no conforto e no luxo, no supérfluo e no desperdício. Esquece-se da alegria e liberdade que a simplicidade e modéstia de vida dão. O consumismo desenfreado destrói velhas tradições de convivência com a natureza e com os outros. Consumo e luxo induzem o materialismo. O que importa é a propriedade, o dinheiro e a riqueza e não a dimensão espiritual, de gratuidade e de beleza da vida e das relações humanas. Reduzida ao que produz e consume, a pessoa humana é ‘coisificada’, fragmentada, objeto da propaganda consumista ou ideológica e não sujeito do seu futuro construído com outros. Estas atitudes são marcadas pelo individualismo e egoísmo. Os bens e a riqueza valem mais que os seres humanos. Presos no desejo de ter mais e mais, muitos já não percebem a pobreza e os sofrimentos dos outros. Perdeu-se o sentido do bem comum e da solidariedade tradicional entre seres humanos, com os mais necessitados em particular. Uma pessoa humana, um país ou um povo valem o dinheiro que têm, e estabelece-se implicitamente uma divisão entre ‘superiores’ e ‘inferiores’. A crise da civilização leva muitos ao desencanto, desânimo e ceticismo; às vezes até mesmo ao cinismo. E, num mundo já globalizado, mas ainda sem contrato social e político entre os países e os povos, parece ainda mais difícil confrontar os desafios internacionais que os nacionais. Novos desafios para a comunidade internacional A interdependência entre países (ou a dependência para os mais pobres) vai aumentando rapidamente. Muitos desafios novos devem ser encarados a nível nacional e mundial ao mesmo tempo. E não se trata apenas de desafios distintos, mas da sustentabilidade do modelo global vigente. Entre os desafios mais urgentes – todos discutidos de uma maneira ou outra nos Fóruns Sociais Mundiais, e em muitas outras ocasiões – podemos destacar: a) a sobrevivência de um bilhão e meio de pessoas miseráveis que não têm as condições básicas para viver como pessoas humanas. O sistema global as considera como ‘sobrando’, mas elas têm rostos concretos, nomes e corpos. A sua dignidade humana é ignorada. Em contraste, um bilhão de pessoas __________________________________________________________________________________________________________________________________ 64 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 65 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ consumem em excesso, usufruindo de 70% dos recursos da terra. A África é considerada e tratada como um continente perdido; b) a preservação do planeta ameaçado de destruição. O perigo não é tanto o excesso de habitantes do que o mau-desenvolvimento e mau-uso pelos mais ricos dos recursos limitados. O planeta é único; queremos deixá-lo habitável para os nossos filhos/as. A nossa responsabilidade de ‘próximos’ não é apenas com os contemporâneos, mas também com as gerações futuras; c) a proteção da identidade, das tradições e valores dos povos. Estes foram elaborados ao longo de séculos e milênios; hoje são ameaçados pelo materialismo e consumismo invasores. A diversidade das tradições é a riqueza do patrimônio da humanidade. A globalização pode ajudar a preservá-lo em vez de destruí-lo; d) o controle das tecnologias e do seu uso. A humanidade está ameaçada pelas suas próprias descobertas: ela é como um ‘aprendiz de feiticeiro’ que não consegue mais controlar as conseqüências do que ele inventou. A vida vegetal, animal e humana pode sofrer transtornos perigosos e irreversíveis, se não houver critérios éticos no controle do uso do desenvolvimento científico e tecnológico; e) a defesa da autonomia, liberdade e soberania das pessoas e dos povos frente à concentração crescente do saber, do poder e do ter. Hoje o maior ‘capital’ é o conhecimento. Quem sabe e controla a informação, domina. A mídia tem um poder assustador. É a democracia mesma que está em jogo. Valores e princípios da DSI na base da construção da Comunidade Internacional O Ensino Social da Igreja, elaborado a partir da análise dos grandes desafios da humanidade à luz do Evangelho, da tradição, e da ação e reflexão das comunidades cristãs, oferece um rico conjunto de valores, princípios e orientações para guiar a atuação dos cristãos e de todos os homens de boa vontade, em todos os níveis, na construção duma sociedade mais justa e fraterna, sinal do Reino de Deus já presente. Os princípios válidos na perspectiva da Comunidade Internacional são os mesmos que norteiam a construção de todo tipo de comunidade, em todos os níveis, mesmo se, de fato, a aplicação destes princípios muitas vezes é mais complexa a nível internacional que nacional. Podemos agrupá-los em três conjuntos, estreitamente articulados. 1) O princípio fundamental é a dignidade essencial de cada pessoa humana, além das culturas e raças. Pobres ou ricos, brancos ou negros, letrados ou analfabetos, etc., todos os seres humanos têm a mesma dignidade e o mesmo valor. O respeito dos direitos humanos para cada um/a, entre os quais se destacam a liberdade e igualdade, significa a expressão concreta desta dignidade fundamental. A pessoa humana vive em comunidade; a sua participação direta na construção de esta configura um caminho certo para a construção da unidade e da paz. A maior garantia destes valores últimos é a construção duma civilização baseada na gratuidade e no amor. O primeiro princípio é a inalienável dignidade da cada pessoa humana, sem distinções relativas à sua origem racial, étnica, cultural e nacional, ou à sua crença religiosa. Não há pessoa alguma que exista só para si mesma; mas encontrará a sua mais completa identidade na relação com os outros; o mesmo se pode afirmar dos grupos humanos. (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1989, n. 3) 2) Sendo todos os seres humanos iguais e dignos, a humanidade toda, na sua extrema diversidade, deve ser considerada e dirigida como uma família humana. Igualdade e justiça são as pedras fundamentais da família humana unida e em paz. Os bens da terra são destinados a todos e devem ser distribuídos conforme as necessidades de cada povo e de cada pessoa. A política internacional deve ser __________________________________________________________________________________________________________________________________ 65 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 66 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ norteada pela busca do Bem Comum Universal, para superar todas as formas de nacionalismos egoístas. Assim como cada pessoa humana, cada povo tem direito ao desenvolvimento para ter acesso a uma vida mais humana, de corpo e alma. Nesta perspectiva, a Igreja coloca na frente a opção preferencial pelos pobres. Os ‘países menos avançados’ e seus povos devem gozar de mais atenção e recursos para o seu desenvolvimento para ter acesso às condições básicas de vida digna. O princípio central da solidariedade é ainda mais significativo, e difícil de ser aplicado, a nível internacional e mundial que a nível internacional. As dependências humanas intensificam-se. Estendem-se aos poucos à terra inteira. A unidade da família humana, reunindo seres que gozam de uma dignidade natural igual, implica um bem comum universal.(CIC, n. 1911) Os indivíduos, as famílias e os diferentes grupos que constituem a sociedade civil, têm consciência da própria insuficiência para realizar uma vida plenamente humana e percebem a necessidade duma comunidade mais ampla, no seio da qual todos conjuguem diariamente as próprias forças para cada vez melhor promoverem o bem comum (GS, n.74). Com efeito, a Revelação insiste no mesmo modo, na unidade da família humana; todos os homens criados em Deus têm a mesma origem; qualquer que seja, no decurso da história, a sua disposição ou a acentuação das suas diferenças, eles estão destinados a formar uma só família, segundo o desígnio de Deus estabelecido no “princípio”. (Documento sobre a Igreja ante o racismo, n.19) A diversidade das tradições, dos valores e culturas representa uma imensa riqueza para toda a família humana. Defender a soberania política e cultural de cada povo é preservar esse patrimônio da humanidade contra os apetites ferozes do mercado (deregulação, ‘livre’ comércio, dívidas) dominado pelos países mais ricos e poderosos. A multiplicidade das tradições religiosas são um valor que, em vez de levar a divisões, poderia levar a unir os povos em torno das grandes causas da humanidade, na busca da justiça e da paz, à qual a maioria senão todas essas tradições aspiram. É preciso ter a coragem da colaboração em base ecumênica (entre igrejas cristãs) e ao diálogo inter-religioso, envolvendo todas as formas de crença e prática religiosa presentes no nosso meio. 3) À dignidade da pessoa e à unidade da família humana, a Igreja acrescenta a integridade da criação. No campo da dignidade humana, a nota mais explicitamente evangélica, é a gratuidade e o amor; no campo da unidade da família humana, é a opção preferencial pelos pobres; no campo da integridade da criação, é a contemplação e o louvor. Longe de ser menos ‘ativas’ que as anteriores, essas duas últimas atitudes têm grande impacto na vida de cada um e de todos. Contemplar é olhar com alegria (e assombro) toda a beleza (e o mal) de tudo o que nos é dado a todos (e que destruímos), e que constitui o berço da nossa vida. A contemplação integra o conhecimento e a compreensão da realidade, e leva ao louvor que é participação na obra criadora de Deus. O louvor inclui o re-encanto do mundo e a obra transformadora que restabelece a criação na sua beleza original: a vida harmoniosa dos seres humanos entre eles, com a natureza e com Deus. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 66 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 67 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Entre os sinais positivos do tempo presente é preciso registrar, ainda, uma maior consciência dos limites dos recursos disponíveis e da necessidade de respeitar a integridade e os ritmos da natureza e de tê-los em conta na programação do desenvolvimento, em vez de sacrificá-los a certas concepções demagógicas. É, afinal, aquilo a que se chama hoje de preocupação ecológica (SRS, n. 26). Igualmente preocupante, ao lado do problema do consumismo e com ele estritamente ligada, é a questão ecológica. O homem, tomado mais pelo desejo de ter e do prazer, do que pelo de ser e de crescer, consome de maneira excessiva e desordenada os recursos da terra e da sua própria vida. Na raiz da destruição insensata da ambiente natural, há um erro antropológico, infelizmente muito espalhado no nosso tempo... (O Homem) pensa que pode dispor arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas à sua vontade, como se ela não possuísse uma forma própria e um destino anterior que Deus lhe deu, e que o homem pode, sim, desenvolver, mas não deve trair. (Centesimus Annus, n.37) Vivemos num mundo dilacerado. O futuro do planeta é ameaçado, conseqüência do apetite destruidor do mercado. É o futuro da família humana mesma que está em jogo. É urgente implantar um modelo de desenvolvimento sustentável, que preserve a vida do planeta, único, hoje e para as gerações futuras. A nossa responsabilidade coletiva de sermos, melhor, de nos fazermos próximos, não diz respeito apenas aos que vivem em outros continentes, mas também às gerações futuras. O desafio não é só econômico ou político, mas antes de tudo ético e moral. Sabemos como é difícil para os mais privilegiados abrir mão de suas riquezas conseguidas às custas do empobrecimento duma maioria. Caminhos na construção da Comunidade Internacional A construção da comunidade internacional só pode ser um processo contínuo e uma obra coletiva. Hoje, sente-se melhor a interdependência entre todos os países e povos. Aos poucos vai se formando nos corações e mentes uma maior consciência da dimensão mundial da nossa cidadania. Percebe-se melhor também os impasses onde pode nos levar um modelo de desenvolvimento construído em grande parte na mentira, na injustiça e na força. Diante do novo dogma do ‘pensamento único’ neoliberal, muitas vozes se fazem ouvir; movimentos sociais e ONGs se articulam. Em todos os níveis, a sociedade civil se estrutura e organiza frente a poderosas forças econômicas e políticas. Os Fóruns são momentos importantes para partilhar as numerosas experiências alternativas. Parece mais claro que a ruptura passa entre os que, por ignorância ou por opção, aceitam e promovem a civilização do Mercado-Rei, injusta, brutal e excludente da metade da população, e os que buscam e constroem alternativas fundamentadas na justiça e democracia, para a vida de todos. Essa divisão atravessa todas as rodagens da sociedade. As Igrejas têm uma longa experiência teórica e prática na construção da sociedade em todos os seus níveis. É porque estão bem inseridas nas bases e porque têm uma mensagem de esperança que as Igrejas podem influir na construção da comunidade internacional. A Caritas Internacional e a rede mundial Justiça e Paz são dois bons exemplos do importante trabalho desenvolvido. No Brasil, o Mutirão para a Superação da Miséria e da Fome, as Semanas Sociais, as Campanhas da Fraternidade, as pastorais sociais e a sua participação na Campanha Jubileu ilustram o empenho da Igreja em favor da justiça e da vida dos pobres. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 67 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 68 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Profundas reformas e transformações são urgentes. Só a pressão e a participação da sociedade civil podem forçar as instituições estabelecidas (em particular os governos dos países mais poderosos) a empreendê-las. É, porventura, este modelo (o capitalismo) que se deve propor aos Países do Terceiro Mundo, que procuram a estrada do verdadeiro progresso econômica e civil? A resposta apresenta-se obviamente complexa. Se por “capitalismo” se indica um sistema econômico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da conseqüente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no setor da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de “economia de empresa” ou de “economia de mercado”, ou simplesmente de “economia livre”. Mas, se por “capitalismo” se entende um sistema onde a liberdade no setor da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem duvida negativa. (CA, n. 42) Os desafios são globais, mas faltam as estruturas mundiais para enfrentá-los: é a carência de governança mundial. As estruturas da ONU, das suas agências especializadas (saúde, direitos humanos, população, cultura, etc.), do FMI e do Banco Mundial, e até da mais recente OMC são obsoletas e utilizadas pelos países ricos para defender e promover os seus interesses. A voz da maioria, dos mais pobres, é abafada. Uma reforma profunda das instituições existentes e a criação de novas instâncias de ‘governo’ mundial, mais adaptadas e democráticas, são urgentes. As soluções só podem ser multilaterais, com a participação de todos os países e da sociedade civil organizada a nível mundial. A nível econômico, várias frentes são prioritárias. Tratar-se-ia de dar ao Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da ONU a mesma autoridade que tem o Conselho Permanente a nível político. O ECOSOC poderia se tornar a instância para estabelecer um controle, que falta tanto, da atuação das empresas multinacionais e dos fluxos de capitais. Só a articulação forte dos paises em desenvolvimento, com o apoio das suas respectivas sociedades civis pode conseguir novas regras nas negociações dos acordos de ‘livre’ comércio, para que estes beneficiem a todos igualmente e não principalmente aos países mais ricos. As dívidas do ‘Sul’ são outro meio de dominação e exploração pelo ‘Norte’; constituem um impedimento decisivo à soberania e ao desenvolvimento dos endividados. A Campanha Jubileu 2.000 para a redução ou anulação das dívidas não deu resultados correspondentes à mobilização. Esta não pode parar. Enfim, vale a pena mencionar as inumeráveis e criativas experiências da sócioeconômia solidária (cooperativas, grupos e oficinas de produção, etc.) que promovem uma economia da partilha, ou das necessidades ou da sustentabilidade. Frente à concentração crescente da riqueza e do poder, a tarefa é árdua, mas urgente, de encontrar novos mecanismos de redistribuição. Os serviços básicos (moradia, saúde, educação, água, energia, transportes, etc.) devem ser acessíveis a todos, pois são condições necessárias para uma vida digna. Multiplicar e apoiar os espaços de partilha, comunicação e solidariedade favorece a expressão e organização do povo, e liberta as suas lutas. A construção duma comunidade internacional para todos não pode ser a obra de alguns poucos, mas de todos. A mídia é um instrumento poderoso para promover a participação ou a desmobilização. Importa que o Estado, servidor do bem comum, garanta que ela seja democrática. A sobrevivência da família humana e o seu maior bem-estar dependem também da integridade do planeta; mais sustentabilidade significa mais vida para todos, hoje e amanhã. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 68 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 69 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ ...De todo o coração, encorajamos as organizações que tomaram a peito esta colaboração no desenvolvimento e desejamos que a sua autoridade progrida. (PP, n.78) É tarefa do Estado prover à defesa e tutela de certos bens coletivos como o ambiente natural e o ambiente humano, cuja salvaguarda não pode ser garantida por simples mecanismos de mercado... Acha-se aqui um novo limite do mercado: há necessidades coletivas e qualitativas, que não podem ser satisfeitas através dos sues mecanismos; existem exigências humanas importantes, que escapam à sua lógica; há bens que, devido à sua natureza, não se podem nem se devem vender e comprar. Certamente os mecanismos de mercado oferecem seguras vantagens: ajudam, entre outras coisas, a utilizar melhor os recursos, favorecem o intercâmbio dos produtos e, sobretudo, põem no centro a vontade e as preferências da pessoa que, no contrato, se encontram com as de outrem. Todavia eles comportam o risco de uma “idolatria” do mercado, que ignora a existência de bens que, pela sua natureza, não são nem podem ser simples mercadoria (CA, n. 40). A comunidade internacional não é só a dos governos e das instituições multilaterais; é também a dos povos, dos pobres e dos excluídos. Todos podem participar na sua construção. Manter viva a esperança, re-encantar os olhares desde a justiça, a solidariedade e o amor gratuito, é estabelecer os fundamentos duma comunidade de vida e paz para todos. Questões para reflexão e debate: 1. Quais são as principais características da Comunidade Internacional atual? Qualidades e defeitos? 2. Quais são os principais sintomas da crise de civilização atual? Como aparecem em sua vida, em sua família e sua comunidade? 3. Quais deveriam ser os principais princípios e valores na construção da Sociedade Internacional? Por que é difícil utilizá-los? Como vocês acham que a Igreja, povo de Deus, pode contribuir na construção da Comunidade Internacional? 4. __________________________________________________________________________________________________________________________________ 69 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 70 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Bibliografia ANTONCICH, Ricardo. Temas de Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Loyola, 1993. 54 p. ANTONCICH, Ricardo e SANS, José M.. Ensino Social da Igreja. Trabalho, Capitalismo, Socialismo, Reforma Social, Discernimento, Insurreição e Não-violência. Petrópolis: Vozes, 1986. 286 p. ARAÚJO, Vera. Jesus e o Uso dos Bens. São Paulo: Cidade Nova, 1994. 78 p. AVILA, Pe. Fernando Bastos de, SJ. Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja. Centro João XXIII – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (IBRADES). São Paulo: Loyola, 1993. 472 p. BIGO, Pierre SJ, e AVILA, Fernando Bastos de, SJ. Fé Cristã e Compromisso Social. Elementos para uma Reflexão sobre a América Latina à luz das Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1983. 471 p. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. A Doutrina Social da Igreja na formação sacerdotal. Petrópolis: Vozes, 1989. 111p. (Documentos Pontifícios 229). GUIMARÃES, Pe. Marcelo Rezende e GÖRGEN, Frei Sérgio (Orgs.) Ensino Social da Igreja: Desafio às Comunidades. Petrópolis: Vozes, 1992. 33 p. (São 8 cadernos). GUTIÉRREZ, Ezequiel Rivas. De Leão XIII a João Paulo II: Cem Anos de Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1995. 126 p. HENRIOT, Peter J. et alii. Nosso Grande Segredo: Ensino Social da Igreja. Herança e Compromisso. Tradução e adaptação de Dom Orlando Dotti. Petrópolis: Vozes, 2004 (2ª Ed.). 183 p. IVERN, Francisco; BINGEMER, Maria Clara L. (Orgs.). Doutrina Social da Igreja e Teologia da Libertação. São Paulo: Loyola, 1994. 356 p. (Seminários especiais Centro João XXIII; 7). JOÃO PAULO II. Catecismo da Igreja Católica. Edição Típica Vaticana. S. 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B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 71 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ SIEPIERSKI, Paulo e GIL, Benedito (Orgs.). Religião no Brasil. Enfoques, Dinâmicas e Abordagens. São Paulo: Paulinas, 2003. 158 p. Documentos da Doutrina Social da Igreja (Magistério Conciliar e Pontifício, em ordem histórica): Rerum Novarum (A Condição dos Operários), Leão XIII, 1891 Quadragesimo Anno (A Restauração e Aperfeiçoamento da Ordem Social), Pio XI, 1931 Mater et Magistra (A Recente Evolução da Questão Social), João XXIII, 1961 Pacem in Terris (Paz na Terra), João XXIII, 1963 Gaudium et Spes (A Igreja no Mundo de Hoje), Concílio Vaticano II, 1965 Populorum Progressio (O Desenvolvimento dos Povos), Paulo VI, 1967 Octogesima Adveniens (Necessidades de um Mundo em Transformação), Paulo VI, 1971 Justiça no Mundo, Sínodo dos Bispos, 1971 Evangelii Nuntiandi (A Evangelização no Mundo Contemporâneo), Paulo VI, 1975 Laborem Exercens (O Trabalho Humano), João Paulo II, 1981 A serviço da Comunidade Humana: uma Consideração Ética da Dívida Internacional, Pontifícia Comissão Justiça e Paz, 1986. Sollicitudo Rei Socialis (Solicitude Social da Igreja), João Paulo II, 1987 Centesimus Annus (Centenário da Rerum Novarum), João Paulo II, 1991 Catecismo da Igreja Católica, 1994. A Fome no Mundo. Um Desafio para Todos: o Desenvolvimento Solidário, Pontifício Conselho Cor Unum, 1997. Para uma Melhor Distribuição da Terra. O Desafio da Reforma Agrária, Pontifício Conselho Justiça e Paz, 1998. Orientações para o estudo e o ensino da Doutrina Social da Igreja na formação dos sacerdotes, Congregação para a Educação Católica, 1998 Ecclesia in America, Exortação Pós-Sinodal A Igreja na América, João Paulo II, 1999 Novo Millennio Ineunte (No Início do Novo Milênio), João Paulo II, 2001 Documentos da Igreja na América Latina II Conferência Geral do Episcopado latino-americano, Conclusões da Conferência de Medellín (1968). São Paulo: Paulinas, 1998 III Conferência Geral do Episcopado latino-americano. Conclusões da Conferência de Puebla – A Evangelização no Presente e no Futuro da América Latina (1979). São Paulo: Paulinas, 1986 (8ª Ed.) IV Conferência Geral do Episcopado latino-americano. Conclusões da Conferência de Santo Domingo (1992). São Paulo: Paulinas, 1992. Documentos de Assembléias Gerais da CNBB Exigências Cristãs de uma Ordem Política, 1978 Subsídios para uma Política Social, 1979. Igreja e Problemas da Terra, 1980 Solo Urbano e Ação Pastoral, 1982. Nordeste: Desafio à Missão da Igreja no Brasil, 1984 Exigências Éticas de Ordem Democrática, 1989 Educação, Igreja e Sociedade, 1991 __________________________________________________________________________________________________________________________________ 71 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 72 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ Ética: Pessoa e Sociedade, 1993 Missão e Ministérios dos Cristãos Leigos e Leigas, 1999 Brasil – 500 Anos: Diálogo e Esperança, 2000. Eleições 2002 – Propostas para Reflexão, 2002. Exigências Evangélicas e Éticas de Superação da Miséria e da Fome, 2002. Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, 2003-2006 Ver também Diretrizes anteriores, Pronunciamentos da CNBB e Textos das Campanhas da Fraternidade. Siglas e Abreviaturas ALCA – Associação Latino-americana de Livre Comércio CBJP – Comissão Brasileira Justiça e Paz CIMI – Conselho Indigenista Missionário CPT – Comissão Pastoral da Terra CA – Centesimus Annus (Centenário da Rerum Novarum), João Paulo II, 1991 CHL – Christifideles Laici, Exortação Apostólica de João Paulo II, 1988 DE – Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo, do Pontifício Conselho DM – Documento de Medellín (Conclusões da Conferência de Medellín, 1968) DP- Documento de Puebla (Conclusões da Conferência de Puebla, 1979) EA – Ecclesia in America, Exortação Pós-Sinodal A Igreja na América, João Paulo II, 1999. EN – Evangelii Nuntiandi (A Evangelização no Mundo Contemporâneo), Paulo VI, 1975 FMI – Fundo Monetário Internacional GS – Gaudium et Spes (A Igreja no Mundo de Hoje), Concílio Vaticano II, 1965 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada JN – Justiça no Mundo, Sínodo dos Bispos, 1971 LE – Laborem Exercens (O Trabalho Humano), João Paulo II, 1981 MERCOSUL – Mercado Comum do Cone Sul MM – Mater et Magistra (A Recente Evolução da Questão Social), João XXIII, 1961 MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (Movimento Sem Terra) NMI – Novo Millennio Ineunte (No Início do Novo Milênio), João Paulo II, 2001 OA – Octogesima Adveniens (Necessidades de um Mundo em Transformação), Paulo VI, 1971 OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos OMC – Organização Mundial do Comércio ONU – Organismo das Nações Unidas OIT – Organização Internacional do Trabalho PP – Populorum Progressio (O Desenvolvimento dos Povos), Paulo VI, 1967 PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PT – Pacem in Terris (Paz na Terra), João XXIII, 1963 __________________________________________________________________________________________________________________________________ 72 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 73 Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz _____________________________________________________________________________ QA – Quadragesimo Anno (A Restauração e Aperfeiçoamento da Ordem Social), Pio XI, 1931 RN - Rerum Novarum (A Condição dos Operários), Leão XIII, 1891 SD – Santo Domingo (Conclusões da Conferência de Santo Domingo, 1992) SRS – Sollicitudo Rei Socialis (Solicitude Social da Igreja), João Paulo II, 1987 TICs – Tecnologias de Informação e Comunicação UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura UUS – Ut Unum Sint, Encíclica sobre o Empenho Ecumênico, de João Paulo II, 1995 __________________________________________________________________________________________________________________________________ 73 SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected]