Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
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Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz
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DISPONÍVEL EM: <http://www.cnbb.org.br/documento_geral/Caderno%20DSI%20-%20FINAL3.doc>.
PROJETO NACIONAL DE EVANGELIZAÇÃO
QUEREMOS VER JESUS
Caminho, Verdade e Vida
TEMAS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
CADERNO N° 1
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SE/SUL QD. 801 CONJ. B – 70401-900 – BRASÍLIA/DF. TEL: (0xx61) 313-8323 FAX: (0xx61) 313-8303 CORREIO ELETRÔNICO: [email protected]
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Sumário
Apresentação
Pág.04
Introdução à leitura desse caderno
Pág. 05
Capítulo 1
Introdução à Doutrina Social da Igreja
O que é Doutrina Social da Igreja
Fundamentos ou fontes da Doutrina Social
Quando e em que contexto nasceu a DSI
Pág.06
Pág.08
Pág.10
Capítulo 2
Princípios Gerais e o Dinamismo da DSI
Linhas Mestras da Doutrina Social da Igreja
Conceito de Pessoa Humana na DSI
Pág.13
Pág.17
Capítulo 3
Caráter Histórico da Doutrina Social da Igreja
A abertura ao processo dinâmico da história
A evolução da DSI ao longo da história
Os desafios da DSI para os dias de hoje
Pág.19
Pág.20
Pág.24
Capítulo 4
Ordem Social: comunidade, sociedade e bem comum
Introdução
Desafios à ordem social
O porquê dessa situação
Princípios que a Igreja nos propões no campo social
Como podemos organizar-nos para enfrentar esses desafios
Conclusão: um convite
Pág.26
Pág.27
Pág.28
Pág.33
Pág.34
Capítulo 5
Cultura, Religião e Sociedade Justa
Cultura, promoção humana e justiça social
Religião e prática da justiça social
Pág 36
Pág.41
Capítulo 6
O Estado e suas funções: bem público e privado
Escritura e Padres
O bem comum
Princípios e fundamentos do bem comum
Tarefas do Estado
O cristão e a polis
Pág.44
Pág.45
Pág.45
Pág.46
Pág.48
Capítulo 7
Transformações e Reformas
Nos passos de Cristo
Pág.49
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Um país rico com muitos pobres
Brasil: casa grande e senzala; de onde vem, a onde vai?
À luz do Ensino Social da Igreja
Transformações e reformas
Como fazer? Estratégias de transformação
Pág.50
Pág.51
Pág.52
Pág.53
Pág.54
Capítulo 8
A Comunidade Internacional
A formação de uma comunidade internacional
Etapas e ferramentas históricas da comunidade internacional
À raiz da crise civilizatória
Novos desafios para a comunidade internacional
Valores na base da construção da comunidade internacional
Caminhos na construção da comunidade internacional
Pág.55
Pág.56
Pág.57
Pág.58
Pág 58
Pág.59
Bibliografia ....................................................................................................................... pág. ...
Documentos da Doutrina Social da Igreja........................................................................ pág. ...
Siglas e abreviaturas ......................................................................................................... pág. ...
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Apresentação
A Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz tem a satisfação
de apresentar o primeiro de uma série de três Cadernos de Doutrina Social da Igreja, cujo estudo e prática
se integram no Projeto Nacional de Evangelização “Queremos Ver Jesus, Caminho, Verdade e Vida”.
O objetivo do estudo e da prática do ensino social cristão é criar condições para a formação de
lideranças que atuam na construção da sociedade mais justa e solidária. Existe um vínculo indissociável
entre a evangelização e a promoção da vida e da dignidade humana. Não haveria uma verdadeira
evangelização sem um compromisso de conversão e transformação na ordem social, política e
econômica.
O Ensino Social da Igreja é um critério seguro para a urgente formação de agentes cristãos para
que, com conhecimento e experiência, possam oferecer sua presença qualificada, atuando na
transformação das comunidades e da sociedade.
Assim se expressam os Bispos no Sínodo de 1971 sobre a Justiça no Mundo: “A missão de pregar
o Evangelho requer, nos tempos que correm, que nos comprometamos em ordem à libertação integral do
homem, já desde agora na sua existência terrena. Se, efetivamente, a mensagem cristã sobre o amor e a
justiça não mostra sua eficácia na ação pela justiça no mundo, muito dificilmente ela será aceitável para
os homens do nosso tempo”.
O Santo Padre o Papa João Paulo II, falando dos desafios do novo milênio, encarece aos cristãos,
sobretudo aos fiéis leigos, uma atuação decidida no campo social, “com autonomia e competência”,
inspirando-se no Ensino Social da Igreja. Para o Papa, “essa vertente ético-social é uma dimensão
imprescindível do testemunho cristão: há que rejeitar a tentação de uma espiritualidade intimista e
individualista que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação e,
em última análise, com a própria tensão escatológica do cristianismo” (Novo Millennio Ineunte - No
Início do Novo Milênio, 2001, n. 52).
A Doutrina Social da Igreja é um tesouro referencial de inspiração e uma fonte perene de
aprendizado prático para que as lideranças ocupem os espaços nos canais de participação popular, tais
como Conselhos, Organismos e Movimentos, assumindo empenhos de transformação e inclusão social
nos diversos campos da política, da economia, da cultura, da família.
Nestes espaços de participação popular é que nascem as decisões corajosas em prol da
concidadania, nascem sugestões valiosas que se desabrocham em encaminhamento de políticas públicas,
correspondentes às necessidades básicas de inclusão social.
Nosso Senhor, Bom Pastor, Divino Mestre nos ensine a buscar os valores “novos e velhos” (Cf.
Mt 13,52), no tesouro da práxis cristã, cuja Tradição leva-nos a construir a civilização do Amor, da
Justiça e da Paz. “Para que em toda a parte sejam respeitados os princípios fundamentais dos quais
dependem o destino do ser humano, e o futuro da civilização”, como nos lembra o Documento (id.
Justiça no Mundo - Sínodo de 1971).
Que Maria de Nazaré, Mãe do Senhor, Mãe da Igreja, a convidada atenta nas Bodas de Cana (Cf.
Jo 2,3), nos inspire e nos torne mais sensíveis, a fazer parte das soluções, percebendo as necessidades de
nossos irmãos, tornando-nos, solícitos, no empenho solidário em prol da justiça social.
Brasília/DF, 07 de setembro de 2004
(Grito dos Excluídos)
Dom Aldo di Cillo Pagotto, SSS
Presidente da Comissão Episcopal Pastoral
para o Serviço da Caridade da Justiça e da Paz
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Introdução à leitura desse caderno
Esse caderno tem duas partes: os primeiros três capítulos oferecem uma visão sintética do
conjunto da doutrina social: conceitos básicos, fontes, dinamismo e caráter histórico do Ensino ou
Doutrina Social da Igreja (DSI). Os demais capítulos tratam de temas específicos, tendo como pano de
fundo a exposição dos capítulos iniciais, mas acrescentando novos elementos de reflexão específicos ao
tema.
Em cada capítulo temático, expõe-se a problemática em foco, busca-se iluminar a realidade com
os princípios da DSI e apontam-se desafios e pistas de ação.
Os temas foram selecionados a partir de um levantamento feito por um grupo da Comissão
Episcopal Pastoral do Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, identificando assuntos que estão no
debate atual. O conjunto dos temas levantados foi distribuído em três blocos, a serem tratados em um
caderno anual no triênio 2004-2006 (veja o plano conjunto, a seguir).
O presente caderno insere-se no Projeto Nacional de Evangelização. Por essa razão, tem em vista
a aplicação prática da DSI e não sua fundamentação teórica. Busca-se oferecer uma ajuda às
comunidades para que realizem o discernimento das opções e compromissos a serem assumidos, para as
transformações da realidade em atuam, segundo os princípios da ética social cristã.
Para estimular a reflexão pessoal e encaminhar o debate em grupos, colocamos algumas questões
no final de cada capítulo.
Quem deseja aprofundar algum tema ou realizar um estudo sistemático da DSI, encontra
sugestões na Bibliografia, no fim do caderno.
As siglas usadas nesse caderno aparecem num elenco único, no final, onde se encontra também
uma relação dos principais documentos do ensino social da Igreja, tanto em nível universal, como no
contexto latino-americano e brasileiro.
Reações ao presente caderno e sugestões de temas para os próximos cadernos podem ser
encaminhadas aos seguintes endereços eletrônicos: [email protected]; [email protected]
A Equipe de Redação
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Esquema Geral dos Cadernos de Doutrina Social da Igreja
Caderno 1:
Capítulo 1: Introdução à Doutrina Social da Igreja
Capítulo 2: Princípios Gerais e Dinamismo da DSI
Capítulo 3: Caráter Histórico da DSI
Capítulo 4: Ordem Social: Comunidade, Sociedade e Bem Comum
Capítulo 5: Cultura, Religião e Sociedade Justa
Capítulo 6: O Estado e suas Funções: Bem Público e Privado
Capítulo 7: Transformações e Reformas
Capítulo 8: A Comunidade Internacional
Proposta de temas para os próximos cadernos (a ordem dos temas pode mudar):
Caderno 2 (previsto para 2005):
-
Direitos humanos: econômicos, sociais e políticos
Propriedade: riqueza e pobreza, funções da propriedade
Trabalho, salários e emprego; desemprego e marginalização
Reforma agrária e agrícola, agricultura familiar e segurança alimentar
Participação política e ordem democrática: partidos, eleições, reformas
A questão da segurança do cidadão e do Estado: Justiça, prisões, desarmanento...
Bio-ética como questão social: bio-segurança, transgênicos...
Ecologia e meio-ambiente
Outros
Caderno 3 (previsto para 2006):
-
Desenvolvimento sustentável: objetivos e modelos - capitalismo, socialismo e alternativas
Família: natureza, funções, desafios, proposta cristã
Educação: realidade, reformas, contribuição da Igreja
Movimentos e organizações sociais: economia solidária, cooperativismo, terceiro setor
Mobilidade humana: migrantes, desalojados, despejados, refugiados
O direito das minorias: etnia, gênero, jovens, idosos, portadores de necessidades especiais.
Paz e guerra: desafio e missão - guerras, terrorismo, tráfico, construção da paz
Outros
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Capítulo 1
Introdução à Doutrina Social da Igreja
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
O que é Doutrina Social da Igreja?
De início é preciso definir o que se entende por Doutrina Social da Igreja (DSI). Esta expressão
designa o conjunto de escritos e mensagens – cartas, encíclicas, exortações, pronunciamentos,
declarações – que compõem o pensamento do Magistério católico a respeito da chamada “questão
social”. Os principais documentos da Doutrina Social da Igreja são as chamadas “Encíclicas Sociais”
dos papas, desde Leão XIII, em 1891. Mas temos também um documento doe Concílio Vaticano II e
um texto do Sínodo dos Bispos, realizado em Roma em 1971. A seguir, a lista dos principais
documentos da DSI.
Rerum Novarum1 (A Condição dos Operários), Leão XIII, 1891
Quadragesimo Anno (A Restauração e Aperfeiçoamento da Ordem Social), Pio XI, 1931
Mater et Magistra (A Recente Evolução da Questão Social), João XXIII, 1961
Pacem in Terris (Paz na Terra), João XXIII, 1963
Gaudium et Spes (A Igreja no Mundo de Hoje), Concílio Vaticano II, 1965
Populorum Progressio (O Desenvolvimento dos Povos), Paulo VI, 1967
Octogesima Adveniens (Necessidades de um Mundo em Transformação), Paulo VI, 1971
Justiça no Mundo, Sínodo dos Bispos, 1971
Evangelii Nuntiandi (A Evangelização no Mundo Contemporâneo), Paulo VI, 1975
Laborem Exercens (O Trabalho Humano), João Paulo II, 1981
Sollicitudo Rei Socialis (Solicitude Social da Igreja), João Paulo II, 1987
Centesimus Annus (Centenário da Rerum Novarum), João Paulo II, 1991
Novo Millennio Ineunte (No Início do Novo Milênio), João Paulo II, 2001
No decorrer de nossa reflexão, teremos oportunidade de ver como e porque grande parte dos
estudiosos deste tema prefere o termo ensino ou ensinamento, em lugar de doutrina.
Por agora vamos começar nossa busca resgatando dois textos que se tornarão duas referências
básicas para a tarefa de estabelecer os contornos do que é a DSI. Ambos serão como que o mapa por
onde iniciaremos nosso estudo da doutrina social. Claro que os dois documentos, por sua vez,
fundamentam-se nas fontes originais da Palavra de Deus.
1
As encíclicas (cartas coletivas) dos Papas costumam ser citadas pelas palavras iniciais, em latim. Damos a tradução usada no
Brasil pelas coleções, publicadas por Editoras Católicas (por ex., Vozes, Paulinas, Loyola e Paulus).
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O primeiro texto refere-se a um documento publicado em dezembro de 1998 pela Congregação
para a Educação Católica, com o título Orientações para o estudo e o ensino da Doutrina Social da
Igreja na formação dos sacerdotes. Ao discorrer sobre os elementos constitutivos da DSI, o
documento assim a define:
“O ensinamento origina-se do encontro da mensagem evangélica, e de suas exigências éticas,
com os problemas que surgem na vida da sociedade. As questões que daí emergem passam a ser
matéria para a reflexão moral que amadurece na Igreja por meio da pesquisa científica, e
inclusive mediante a experiência da comunidade cristã. Esta doutrina projeta-se sobre os
aspectos éticos da vida, sem descuidar dos aspectos técnicos do problema, para julgá-los com
critério moral. Baseando-se em ‘princípios sempre válidos’, leva consigo ‘julgamentos
contingentes, já que se desenvolve em função das circunstâncias dinâmicas da história e se
orienta essencialmente para a ‘ação ou práxis cristã’ ”(n. 3).
Um olhar atento a essa definição da DSI permitirá desdobrar seus elementos constitutivos, como
faz Ildefonso Camacho2. Quatro componentes se destacam: a) exigências éticas derivadas da
dimensão social do Evangelho; b) imperativos da realidade sócio-econômica e político-cultural do
mundo em que vivemos; c) reflexão moral que confronta a mensagem evangélica com a situação
histórica; e d) ação ou práxis sócio-transformadora. Evidente que estes quatro elementos agem em
constante interação e procuram adaptar-se aos mais diferentes contextos históricos.
DSI segundo o Sínodo dos Bispos
O segundo documento em que vamos no apoiar para identificar o que vem a ser a DSI nos remete
ao enfoque da doutrina social a partir do Vaticano II. Paradoxalmente, o texto onde vamos encontrar
tal enfoque de forma mais elaborada e contundente não pertence aos documentos do Concílio, nem
costuma figurar sequer entre os principais textos que formam a bibliografia da DSI. Trata-se do
documento sobre A Justiça no Mundo, resultado do Sínodo dos Bispos de 1971.
Vale a pena determo-nos um pouco nesta síntese sinodal, reproduzindo trechos de sua introdução:
“Ao prescrutarmos os ‘sinais dos tempos’ e ao procurarmos descobrir o sentido do curso da
história, e compartilhando ao mesmo tempo as aspirações e as interrogações de todos os homens
desejosos de construírem um mundo mais humano, queremos escutar a Palavra de Deus, para nos
convertermos para a atuação do plano divino acerca da salvação no mundo” (JM, Introd., 2).
“Ao ouvirmos o clamor daqueles que sofrem violência e se vêem oprimidos pelos sistemas e
mecanismos injustos, bem como a interpelação de um mundo que, com a sua perversidade, contradiz
os desígnios do Criador, chegamos à unanimidade de consciência sobre a vocação da Igreja para
estar presente no coração do mundo e pregar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos oprimidos e a
alegria aos aflitos. A esperança e o impulso que animam profundamente o mundo não são alheios ao
dinamismo do Evangelho que, pela virtude do Espírito Santo, liberta os homens do pecado pessoal e
das conseqüências do mesmo na vida social” (JM, Introd., 5).
“A ação pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente
como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer da missão da
Igreja, em prol da redenção e da libertação do gênero humano de todas as situações opressivas (JM,
Introd., 6. Grifo nosso).
2
Ildefonso Camacho. Doutrina Social da Igreja – Abordagem histórica, Edições Loyola, São Paulo/SP, 1995.
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O último parágrafo citado, no dizer de Camacho, “constitui uma espécie de coluna vertebral de
todo o documento”3. De fato, por dimensão constitutiva entende-se que a ação sócio-transformadora
é parte inerente do Evangelho. Não se trata, portanto, de mero desdobramento da fé cristã e menos
ainda de simples apêndice de uma vida segundo o Evangelho. Nada disso! A ação social é elemento
integrante da mensagem evangélica. Numa palavra, não haverá verdadeira evangelização sem um
correspondente compromisso de ordem social e política.
Na história do magistério da Igreja é certamente uma das expressões que melhor estabelecem o
vínculo indissolúvel entre a justiça e a evangelização. Não há como escapar: o seguimento de Jesus
Cristo, para ser genuíno e autêntico, exige participação ativa no trabalho de transformação da
sociedade. Esta ação, vale insistir, não é uma excrescência da doutrina - como lembra Henri Bazire mas parte essencial dos dogmas da tradição católica.
Convém voltar ainda ao mesmo documento para dar-nos conta da força e da novidade desta
perspectiva na história da Igreja. Diz o texto:
“A situação atual do mundo, vista à luz da fé, faz-nos um apelo no sentido de um retorno ao
núcleo mesmo da mensagem cristã, que cria em nós a consciência profunda do seu verdadeiro
sentido e das suas urgentes exigências. A missão de pregar o Evangelho requer, nos tempos que
correm, que nos comprometamos em ordem à libertação integral do homem, já desde agora na
sua existência terrena. Se, efetivamente, a mensagem cristã sobre o amor e a justiça não mostra a
sua eficácia na ação pela justiça no mundo, muito dificilmente ela será aceitável para os homens
do nosso tempo” (JM, II, 35).
Ou seja, retornar ao núcleo da mensagem cristã é, também, resgatar sua dimensão social. Sem
esta o próprio Evangelho perde credibilidade, perde seu fermento mais fecundo, mais vital e mais
eficaz.
De resto, o Vaticano II, como fonte de elementos da DSI, transpira em todos os seus documentos
essa nova sensibilidade diante das reais condições do gênero humano. É fácil perceber isso na frase
de abertura da Gaudium et Spes, a qual reflete e sintetiza o espírito de todo o Concílio: “As alegrias e
as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que
sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo
(GS,1).
Em síntese, a DSI procura atualizar a dimensão social do Evangelho para os distintos contextos da
vida cotidiana, levando sempre em conta que “o gênero humano encontra-se em uma fase nova de
sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo
inteiro” (GS, 4). Em poucas palavras, é o Evangelho tornado vivo e atual nos diferentes desafios da
realidade social, política, econômica e cultural. Inspirado pelo Espírito Santo, o magistério da Igreja
procura interpretar a mensagem evangélica diante das situações mais diversas. Assim nasce uma
palavra, uma reflexão, um ensinamento, uma doutrina de caráter social - isto é, escrita para iluminar
os problemas relacionados à condição social do gênero humano e conduzir as pessoas à busca de
soluções. Resumindo, é a atualização da Palavra de Deus para os dias de hoje, traduzida na
sensibilidade e na solicitude da Igreja para com aquelas situações onde a vida encontra-se mais
ameaçada.
Fundamentos ou fontes da DSI
Nos embates com os desafios sócio-históricos, a Doutrina Social da Igreja acumula uma série de
orientações em que convergem várias fontes distintas, mas complementares. É de tais fontes que ela
3
Ildefonso Camacho, op. cit., p. 256.
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retira sua seiva, sua força e seu vigor. Seus fundamentos mergulham aí as raízes mais profundas.
Vejamos resumidamente as principais delas:
a) O clamor dos oprimidos, como as vítimas de uma história que produz, simultaneamente,
concentração de renda e exclusão social. Dessa solicitude histórica da Igreja para com os “caídos” à
beira da estrada, os excluídos ou “condenados da terra”, vai consolidar-se, especialmente a partir do
Concílio Vaticano II, a opção preferencial pelos pobres.
b) A Palavra de Deus, Antigo e Novo Testamentos, como luz que ilumina a realidade e desnuda as
contradições da organização social e política em confronto com o plano da criação. Neste caso, é
evidente que a prática de Jesus ganha particular relevo.
c) A sabedoria e a experiência multissecular do Magistério da Igreja, em que se desenvolvem uma
série de orientações fundamentais quanto ao seguimento de Jesus Cristo no cumprimento do seu
mandamento novo, do amor ao próximo.
d) A prática cotidiana dos cristãos e das comunidades eclesiais junto aos setores mais marginalizados
e empobrecidos da população. Através de ações desse tipo surgem soluções criativas e novas
organizações.
e) A produção teológica, como uma reflexão a partir da fé que acompanha a práxis dos cristãos, com
especial atenção para a teologia da libertação, da teologia negra, da teologia política e da teologia
feminina – além de outras reflexões na linha sócio-transformadora.
f) A contribuição da ciência em suas mais variadas disciplinas, como aproximação aos dados de uma
realidade sempre cambiante. É inegável hoje o suporte teórico das ciências sociais e humanas para
um conhecimento mais profundo do relacionamento entre as pessoas e as sociedades, como também
da história da humanidade.
g) A abertura à riqueza inesgotável de pessoas, culturas e povos distintos, processo em que prevalece
o ecumenismo e o diálogo inter-religioso e em que aquilo que nos une é bem mais do que aquilo que
nos separa. O pluralismo cultural e religioso faz do planeta um grande mosaico de experiências
humanas, o que exige um intercâmbio contínuo e reciprocamente enriquecedor.
h) Uma mística ou espiritualidade que, diante das tensões e conflitos sociais, possa ser ao mesmo
tempo encarnada, libertadora e inculturada. Está em jogo, neste caso, a busca permanente das
motivações mais fundas para a existência humana. Como diria Dostoieski, “o segredo da existência
hunana não está somente em viver, mas, sobretudo em saber porque se vive”.
Veremos mais adiante como tais princípios, longe de aparecer como dogmas hermeticamente
fechados e imutáveis, são antes orientações que procuram se renovar de acordo com os desafios
constantes do progresso histórico.
Características da Doutrina Social da Igreja
A encíclica Centesimus Annus (CA), de João Paulo II, publicada em 1991, faz um retrospecto da
DSI ao longo de um século de sua existência. Nela, segundo o estudo já citado de Camacho, iremos
identificar as características mais marcantes da visão da DSI, no capítulo VI dessa Encíclica. Como
podemos notar, tais características reúnem elementos de todas as fontes assinaladas. Citamos a
síntese feita por Camacho:
- “A Doutrina Social da Igreja justifica-se a partir da atenção ao homem real e concreto,
entendido como ser social (CA 53).
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- A Doutrina Social da Igreja é um instrumento de evangelização: com os olhos voltados para o
anúncio da salvação, preocupa-se com todos os demais problemas que afetam o homem (CA 54).
- A Doutrina Social da Igreja é uma parte da teologia: para conhecer o homem de hoje, é preciso
conhecer a Deus; anunciar a salvação enriquece a dignidade do homem (CA 55).
- A Doutrina Social da Igreja supõe a colaboração das igrejas locais para aplicá-la às diversas
situações (CA 56).
- A Doutrina Social da Igreja é, antes de mais nada, fundamento e estímulo para a ação; hoje,
mais do que nunca, tornar-se-á digna de crédito pelo testemunho das obras: é aí que encontra seu
sentido a opção preferencial pelos pobres (CA 57).
- A Doutrina Social da Igreja exige a promoção da justiça: não só dando do supérfluo, mas
ajudando os povos a entrar no círculo do desenvolvimento, transformando as estruturas, criando
órgãos internacionais de controle e orientação (CA 58).
- A Doutrina Social da Igreja tem uma dimensão interdisciplinar e uma dimensão prática e
experimental (CA 59).
- A Doutrina Social da Igreja exige a colaboração de todos para ser posta em prática: das Igrejas
cristãs, das religiões, de todos os homens de boa vontade (CA 60).
-
A Doutrina Social da Igreja vem mantendo uma constante ao longo destes cem anos: a defesa do
homem (CA 61)”4.
Alguns textos, citados por extenso, nos permitirão saborear melhor a beleza dessa mensagem.
“A Igreja está consciente hoje mais do que nunca de que sua mensagem social encontrará
credibilidade primeiro no testemunho das obras e só depois na sua coerência e lógica interna.
Desta sua convicção provém também a sua opção preferencial pelos pobres, que nunca será
exclusiva nem discriminatória, relativamente aos outros grupos” (CA, 57).
“O amor ao homem – em primeiro lugar ao pobre, no qual a Igreja vê Cristo – concretiza-se na
promoção da justiça (...) Não se trata apenas de ‘dar do supérfluo’, mas de ajudar povos inteiros
que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo do desenvolvimento
econômico e humano. Isso será possível não só fazendo uso do supérfluo, que o nosso mundo
produz em abundância, mas sobretudo alterando os estilos de vida, os modelos de produção e de
consumo, as estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades” (CA, 58).
“(A doutrina social) situa-se no cruzamento da vida e da consciência cristã com as situações do
mundo e exprime-se nos esforços que indivíduos, famílias, agentes culturais e sociais, políticos e
homens de Estado realizam para lhe dar forma e aplicação na história” (CA, 59).
“O mundo de hoje está sempre mais consciente de que a solução dos graves problemas nacionais
e internacionais não é apenas uma questão de produção econômica ou de uma organização
jurídica ou social, mas requer valores ético-religiosos específicos, bem como mudanças de
mentalidade, de comportamento e de estruturas” (CA, 60).
Quando e em que contexto nasceu a DSI?
O documento inaugural daquilo que se convencionou denominar Doutrina Social da Igreja é a
encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII, publicada a 15 de maio de 1891. De fato, é a primeira
4
Ildefonso Camacho, op. cit., p. 516.
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vez que um documento do magistério católico dedica-se integralmente à chamada “questão social”.
No decorrer do texto, o papa propõe-se abordar a “condição dos operários”.
Isto não quer dizer que os problemas sociais estivessem ausentes das publicações anteriores na
história da Igreja. São inúmeras as referências à situação real e concreta dos pobres desde os
primeiros séculos do cristianismo e da tradição católica. O próprio Leão XIII, na introdução da
Rerum Novarum, refere-se à abordagem do tema em encíclicas precedentes sobre soberania política,
liberdade humana e constituição cristã dos Estados, publicadas respectivamente nos anos de 1831,
1885 e 1888. Mas, enquanto anteriormente essas questões apareciam de forma secundária, à margem
de outros assuntos de maior relevância, agora o papa faz da condição social dos operários o tema
central de sua carta.
De cara, nota-se aqui uma mudança de enfoque ou de perspectiva: a Igreja, na pessoa do papa,
deixa em segundo plano os assuntos internos e volta-se para os problemas que afligem os
trabalhadores da época. O olhar da Igreja dirige-se ao mundo exterior, identificando nele os
principais desafios sociais à fé cristã e buscando alternativas às contradições da sociedade em que
vive.
A revolução industrial e a Rerum Novarum
O contexto da Rerum Novarum é uma sociedade profundamente transformada pela Revolução
Industrial. Uma sociedade formada de pessoas que vivem na alma e no corpo os efeitos de um salto
gigantesco em termos científico-tecnológicos. A revolução industrial trouxe avanços inegáveis,
especialmente através da imensa capacidade de produção por meio da máquina. Na verdade,
representou uma revolução em quatro dimensões: uma de ordem sócio-econômica, com surgimento e
consolidação da indústria; outra de ordem política, através do fortalecimento dos Estados-nação a
partir da Revolução Francesa; outra, ainda, de ordem científica, que se afirma pelo aprofundamento e
sistematização do conhecimento e do método experimental; outra, enfim, de ordem filosófica,
fundada no pensamento da razão ilustrada e na emergência da subjetividade.
Mas esse conjunto de transformações trouxe também efeitos negativos. Se é verdade que o
poder das máquinas multiplicou em muito a capacidade de produzir bens, alimentos e equipamentos,
também é verdade que os benefícios de semelhante progresso não foram eqüitativamente
distribuídos. Os “tempos modernos” ou a “era da máquina” vieram acompanhados, simultaneamente,
de um enorme potencial produtivo e de uma crescente desigualdade social.
É importante dar-se conta que o pano de fundo da encíclica é constituído por graves distorções
sociais. A indústria nasce sob o domínio do sistema capitalista de produção e sob a orientação da
filosofia liberal. O lucro é o motor da economia. No mesmo campo, como forças desiguais, patrões e
operários lutam por seus interesses. Uns detêm o capital e os meios de produção, outros apenas a
força de trabalho. Em tais condições assimétricas, instala-se a lei do mais forte. Na verdade, o
liberalismo econômico é um jogo de cartas marcadas, aonde os mais fortes vão devorando os mais
fracos, numa espécie de “seleção natural”.
Em tais condições, a realidade apresenta-se sob um duplo aspecto: por um lado, as fábricas
crescem, multiplicam-se por toda parte; a revolução, que tem seu epicentro na Inglaterra, chega
rapidamente ao continente europeu e não demorará em cruzar o Atlântico com suas chaminés e
parques gigantescos. Por outro lado, os trabalhadores, primeiramente expropriados de suas terras,
vêem-se depois submetidos a condições de trabalho e de vida extremamente precárias e desumanas.
A riqueza de poucos é a contraface da pobreza de muitos.
Outra conseqüência da Revolução Industrial constitui a intensificação das migrações de um
continente a outro. O êxodo rural foi tão intenso que as fábricas não conseguiam absorver toda a mão
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de obra dispensada pelo campo. Enquanto muitos se empregam na indústria nascente, outros, aos
milhões, vêem-se forçados a emigrarem para as Américas e a outros continentes.
É nesse cenário que nasce a Rerum Novarum. O papa está preocupado com a forma de vida dos
operários. Procura uma melhor distribuição de uma riqueza que dobra com a velocidade do tempo
medido agora em segundos.
A Rerum Novarum e a Fundação de Obras Sociais
Durante o século XIX, principalmente em sua segunda metade (de 1850 a 1900), no auge da
Revolução Industrial, surgiram os chamados “Santos Sociais”. Entre eles, destacam-se por exemplo,
São João Bosco, Madre Cabrini, Scalabrini, Adolfo Kolping, o bispo von Ketteler, Frederico Ozanan
e tantos outros. No Brasil, pertencem a esse ciclo, por exemplo, as Casas de Caridade criadas no
Nordeste pelo Pe. José Antônio Maria Ibiapina (1808-1883) ou os Círculos Operários, criadas a
partir do Rio Grande do Sul por iniciativa do Pe. Leopoldo Brentano (1884-1964). Preocupados com
o clima e as conseqüências da Revolução Industrial e com a condição dos operários, esses “Santos
Sociais” do século XIX imprimem na Igreja um novo ardor pela dimensão sócio-transformadora. Por
isso, nessa época, surgem várias Congregações Religiosas (masculinas e femininas), preocupadas
com as várias dimensões da chamada “questão social”. No fundo, elas ajudam a Igreja a avançar em
direção ao Concílio Vaticano II. Nesse sentido, seus fundadores são precursores da abertura que o
Concílio representa para o mundo moderno.
Nesse período, estabeleceu-se um paralelo entre as preocupações específicas de cada
Congregação (os jovens, os migrantes, os pobres, etc) e a preocupação do Papa Leão XIII. A Rerum
Novarum, como sabemos, surge nesse mesmo clima das conseqüências da Revolução Industrial, em
que os problemas sociais ganham particular relevância. Não é por acaso que o subtítulo da encíclica é
justamente “a condição dos operários”. Resumindo os/as fundadores/as e suas respectivas
Congregações exemplificam em termos concretos aquilo que a Doutrina Social da Igreja considera
como questão social.
Ao mesmo tempo que o papa Leão XIII concentra sua solicitude pastoral sobre a situação
concreta dos operários, procurando a defesa dos trabalhadores da indústria, o bispo Scalabrini
atravessa o oceano e se volta para os emigrados de além-mar e suas famílias. Procura levar-lhes “o
sorriso da pátria e o conforto da fé”, como ele mesmo afirma. Ambos sinais proféticos de uma
determinada época, filhos do seu tempo. Duas respostas diferentes, mas igualmente evangélicas, aos
desafios de um mundo conturbado por rápidas e profundas transformações sócio-econômicas e
políticas, palco para enormes e desenfreados deslocamentos humanos.
Outro pioneiro foi Adolf Kolping (1813-1865), criador das Uniões ou Círculos Operários, para
jovens trabalhadores e suas famílias, na Alemanha. O Padre Kolping, de origem humilde, entendeu
que para elevar a classe operária e transformá-la em protagonista de uma nova sociedade, não bastava
ensinar-lhes os princípios da fé, mas que era preciso dar-lhes oportunidade de aperfeiçoamento
técnico e profissional e oferecer-lhes chances de lazer e cultura. A obra Kolping está hoje presente
em dezenas de países, também no Brasil, mantendo cooperativas, escolas e cursos profissionalizantes.
Kolping foi beatificado por João Paulo II em 1991.
Frederico Ozanam (1813-1853), cristão fervoroso, escritor e democrata convicto, exerceu intensa
atividade de reforma social e política. È o criador das Conferências de São Vicente de Paulo ou
Vicentinos, de larga difusão no mundo católico e com forte presença no Brasil. Citamos uma frase de
seus escritos: ”Há exploração quando o patrão considera o operário não como um associado, um
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colaborador, mas como um instrumento do qual é preciso extrair o maior serviço possível pelo menor
preço. Mas a exploração do homem é a escravidão”5.
Não custa perguntar, por fim, a quem se refere o texto da Rerum Novarum quando aconselha
“fugir dos homens perversos”. Certamente o alvo é a organização socialista, que então ganhava
terreno e se consolidava em termos internacionais. Desde logo a Igreja, tentando proteger suas
“ovelhas” do “lobo mau”, coloca-se numa postura de combate frontal aos princípios do socialismo.
Como se pode ver, o contexto é marcado pelo início dos conflitos entre capital e trabalho.
Temendo perder os fiéis para a “religião do comunismo”, a Rerum Novarum adota do começo ao fim
um tom conciliatório entre patrões e operários e combativo frente à “onda vermelha”. Não podemos
esquecer que o Manifesto Comunista tinha vindo à luz quatro décadas antes, em 1848.
Entretanto, se é certo que o ano de 1891 é considerado o início da Doutrina Social da Igreja, seus
fundamentos mergulham as raízes nos primórdios da tradição judaico-cristã. É o que veremos no
capítulo que segue.
Questões para reflexão e debate:
1. Como definir a Doutrina Social da Igreja a partir dos desafios de hoje?
2. Quais seus principais documentos?
3. Quais as fontes e os elementos constitutivos da DSI?
4. Relacionar o contexto em que nasceu a DSI com os tempos atuais.
5
Apud: Fernando Basto de Ávila, Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja. S. Paulo: Loyola, 1993, p. 337.
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Capítulo 2
Linhas Mestras da Doutrina Social da Igreja
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
A pergunta que está por trás deste item poderia ser formulada da seguinte forma: quais as linhas
mestras da DSI e como fazer de cada uma delas um instrumento no combate à pobreza, à miséria e à
fome nos dias atuais? Como aplicá-las na realidade da América Latina?
Centralidade e a dignidade da pessoa humana:
A mais incisiva preocupação dos Papas, de Leão XIII a João Paulo II, sempre foi a centralidade e
a dignidade da pessoa humana. A promoção integral do homem, a liberdade de expressão e de
religião, a defesa incondicional da vida, o combate a todo tipo de preconceito, discriminação e
racismo são temas correlatos que enriquecem as páginas dos documentos. O ser humano, como
lembra a Gaudium et Spes, é autor, centro e fim do desenvolvimento econômico. Nada o atinge mais
profundamente do que o fato de ter se tornado mero instrumento diante dos imperativos da economia
de mercado ou do coletivismo. A dignidade da pessoa humana deve ser o objetivo último da
produção de bens, da organização política e das expressões culturais.
Nos dias de hoje, a pobreza, a fome e a violência, entre outros males, ameaçam esse princípio
desde os seus fundamentos. Daí a necessidade de manter viva a opção preferencial pelos pobres,
como sujeitos da própria libertação. Não podemos falar de dignidade humana sem falar de condições
reais de vida, o que em termos concretos significa o respeito aos direitos fundamentais, tais como:
alimentação, saúde, educação, trabalho, habitação, entre outros.
O primado do trabalho sobre o capital:
Uma segunda orientação que acompanha a DSI desde a Rerum Novarum é o primado do trabalho
sobre o capital. Questões relativas ao salário justo, à subsistência familiar e à grande chaga que é
desemprego são as principais preocupações do magistério nas relações entre patrões e empregados.
Hoje, com o fenômeno da economia globalizada e a crescente precarização das relações
empregatícias, tende a acirrar-se o conflito capital-trabalho. Palavras como flexibilização das leis
trabalhistas ou terceirização representam verdadeiras ameaças. As conseqüências para a imensa
maioria dos pobres de todo planeta são as mais desastrosas.
João Paulo II, na Laborem Exercens, com muita propriedade, recoloca o trabalho como chave da
questão social. É por ele que o ser humano se realiza plenamente, ao mesmo tempo, que colabora
com a obra da criação. Nesta perspectiva, o desafio é encontrar formas de reafirmar com novo vigor a
primazia do trabalho sobre a acumulação de lucros por parte do capital. Cabe aqui um olhar mais
atento para as iniciativas populares de economia solidária, as quais se multiplicam por toda parte, e
que precisam do estímulo e do incentivo da Igreja.
Transparece, nas páginas do ensino social, a espiritualidade do trabalho. Por suas próprias mãos, o
ser humano é capaz de modificar a matéria bruta em algo novo e útil. O minério de ferro transformase em automóvel ou eletrodoméstico, a madeira em mesa ou banco, a lã ou algodão em roupa e
abrigo, e assim por diante. Da mesma forma, o trabalhador torna-se capaz de modificar a si mesmo.
Poderá fazer de sua vida e de seu espírito uma constante metamorfose. Poderá recriar-se e recriar as
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relações com outros seres humanos. Se, tijolo a tijolo, aprende a levantar um edifício, também
aprenderá a erguer-se, passo a passo, enquanto criatura renovada. Pelo trabalho, transforma as coisas
e transforma-se a si mesmo e à convivência com os demais. Participa da nova criação. Torna-se coautor do novo céu e da nova terra. Artífice da cidade, do progresso e da história, será igualmente
sujeito de seu próprio renascer para uma vida nova.
Em síntese, buscando a perfeição de sua obra, o trabalhador pode, ao mesmo tempo, iniciar o
processo de aperfeiçoamento de si mesmo e da sociedade. Ou, em termos teológicos, da construção
do Reino de Deus. As mãos que aprendem a manipular a matéria estão aptas a transformar o espírito.
O bem comum:
A busca do bem comum é outra das grandes metas da DSI. Expressões como função social da
propriedade, destino universal dos bens, deveres do Estado para com o bem estar da população,
participação de todos na busca do bem comum, entre outros, são chaves para entender o pensamento
social da Igreja. O fio condutor é que o bem comum está acima do individualismo, dos interesses de
classe e do lucro privado. Como interpretar isso diante dos ganhos exorbitantes das instituições
financeiras com suas mega operações, por exemplo? Convivem, lado a lado, a especulação crescente
e indiscriminada e a exclusão de setores cada vez mais amplos da sociedade. Como justificar a
existência de enormes latifúndios ao redor dos quais perambulam multidões famintas, sem terra, sem
trabalho e sem moradia? Em termos concretos, especialmente para o Brasil, como pensar numa
reforma agrária e agrícola que fortaleça o pequeno produtor, particularmente a agricultura familiar?
Por outro lado, em termos mundiais, como controlar o fluxo e refluxo de capitais, em defesa de
políticas públicas que possam beneficiar as populações pobres e excluídas de todos os países?
Desde Leão XIII, insiste a doutrina social: o bem de cada um está subordinado ao bem comum. O
Estado é responsável pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais de cada cidadão. Neste
sentido, vale uma palavra sobre a família, a qual deve ser protegida pela ação das autoridades.
O desenvolvimento integral:
Em quarto lugar, a expressão desenvolvimento integral chama a atenção para um dos escândalos
que mais tem incomodado a DSI, isto é, a profunda discrepância entre crescimento econômico e
desenvolvimento social. Numa palavra: por que os benefícios do progresso não são igualmente
desfrutados por todos? Como entender que uma era de enormes avanços tecnológicos seja, ao mesmo
tempo, uma era de tanta fome e miséria? Como é possível que as máquinas possam, simultaneamente,
multiplicar quase sem limite o volume dos bens e o desemprego?
A ciência e a tecnologia, que deveriam estar a serviço do bem comum, são utilizadas em prol do
lucro, do acúmulo indevido e do enriquecimento de poucos. Daí o desenvolvimento desigual, seja
entre as nações, seja entre as regiões de um mesmo país. Neste perspectiva os Papas não se cansam
de denunciar o colonialismo e neocolonialismo, a dependência crônica e, mais recentemente, as
exigências dos organismos financeiros internacionais, como FMI. Na América Latina, em especial,
esse tema é bem conhecido. O dilema atual se coloca no sentido de reorientar a política econômica
para um desenvolvimento social e ecologicamente sustentável, subordinado a princípios éticos. Por
exemplo, como pensar programas que incentivem uma melhor distribuição de riqueza?
Surgem, mais atuais do que nunca, as palavras de Paulo VI na Populorum Progressio: o
desenvolvimento é o novo nome da paz! Como não lembrar também do imperativo do profeta Isaías,
citado por João XXIII na Pacem in Terris: a paz é fruto da justiça? Não basta uma paz fundamentada
sobre o equilíbrio das armas. Não basta a paz do medo, a paz dos cemitérios. É necessário buscar e
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construir a paz, alicerçada numa justa distribuição dos bens do progresso. Enquanto a fome e o luxo
constituírem dois pólos opostos de uma mesma realidade, duas faces da mesma moeda – a da
injustiça social – não haverá verdadeira paz!
Os avanços tecnológicos dos últimos tempos constituem uma das maiores obras do ser humano. A
razão aplicada à ciência experimental, abrem horizontes nunca imaginados. A ficção científica tornase realidade. Tudo isso traz um imperativo que os documentos da Igreja não se cansam de repetir: a
tecnologia é um instrumento a serviço do homem e do bem comum. Hoje parece predominar o
contrário. O ser humano torna-se uma peça nos imensos complexos industriais. Pior que isso, uma
peça muitas vezes descartável, como qualquer outra.
Com reverter a situação? A revolução científico-tecnológica que marcou os derradeiros séculos
deve ser acompanhada, segundo a doutrina social, de princípios éticos que garantam a dignidade
inviolável do ser humano. Este, como já vimos, é o fim de todo e qualquer progresso. A técnica é
simplesmente meio e, como tal, deve submeter-se a realização integral da pessoa humana. A Laborem
Exercens, sobre o trabalho humano, sublinha bem esse caráter instrumental da técnica.
A crítica a todo tipo de ideologia materialista é outra preocupação que atravessa a DSI desde o
final do século XIX. Se é verdade que a Rerum Novarum se opunha como muito mais veemência ao
socialismo do que ao capitalismo, no decorrer do século irão crescer as críticas à filosofia da livre
concorrência. Coloca-se em evidência, por um lado, os males da economia centralizada, onde o poder
do Estado anula as liberdades pessoais. Por outro lado, aponta-se as conseqüências nocivas de uma
economia individualista e orientada para o lucro, em que o mercado, cego a todo drama pessoal ou
social, impera, domina e explora trabalhadores e consumidores. Tanto a burocracia estatal quanto o
liberalismo desenfreado constituem alvo das palavras dos pontífices.
Na Laborem Exercens, João Paulo II vai deixar claro que tanto o “capitalismo rígido” quanto o
coletivismo marxista são sistemas em que uma minoria se apropria indevidamente dos frutos do
trabalho da maioria. O economicismo e o materialismo, presentes em ambos os sistemas, contradizem
o princípio da prioridade do trabalho sobre o capital. Disso resulta, que o decisivo não é tanto a
coletivização da propriedade, e sim a relação que se constrói entre os trabalhadores e os bens
produzidos. Como diz o texto: “o direito à propriedade privada como subordinado ao direito ao uso
comum”.
O papel do Estado:
O papel do Estado é uma das preocupações recorrentes na doutrina social do magistério
católico. Questões como a previdência social, a saúde pública, a educação, a abertura de novos postos
de trabalho, garantia dos direitos trabalhistas, entre outras, devem estar na ordem do dia das
autoridades responsáveis. A idéia do Estado de bem estar ou Estado providência encontra-se presente
em muitos textos da DSI. Ao mesmo tempo, os textos não se cansam de chamar a atenção para a
demasiada intervenção do Estado, a qual pode ferir a autonomia das instituições da sociedade civil.
Trata-se de salvar aqui um outro princípio que tem sido caro à doutrina social: o da subsidariedade. O
Estado não deve tomar sobre si as tarefas que podem ser realizadas pelas organizações ou instâncias
da sociedade civil, nem, inversamente, jogar sobre estas o peso de certos encargos que são de
competência das autoridades maiores.
Além disso, desde a Rerum Novarum, o Estado aparece como aquele que deve intermediar
tensões entre capital e trabalho, patrões e empregados. Parte-se do pressuposto de que é possível
conciliar as duas classes em jogo. A história irá mostrar como essa tentativa de buscar a concórdia e a
harmonia entre as classes se torna difícil, dado o antagonismo intrínseco de interesses tão
contraditórios. A respeito da necessidade de abrir novas frentes de trabalho, João Paulo II, na
Laborem Exercens, distingue entre empresário direto e empresário indireto, definindo este último
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como “o conjunto de instâncias, em escala nacional e internacional, responsáveis por todo o
ordenamento da política trabalhista” (LE, 18).
Ainda como tarefa imprescindível e intransferível do Estado está a construção de relações
internacionais que possam garantir a paz. Daí a importância de organismos especializados e de uma
política ou, na expressão de João Paulo II, uma cultura da paz e da solidariedade. Levanta-se aqui,
uma vez mais, a crítica vigorosa à corrida armamentista e à postura belicosa dos governos nacionais,
em detrimento de seus povos.
Embora desde a Rerum Novarum já se encontrem várias referências às associações operárias
católicas e às corporações é, sobretudo Pio XI, na Quagragesimo Anno, que irá conferir atenção
especial ao direito de organização dos trabalhadores. Tal organização, em sua maneira de ver, muito
podem contribuir para superar a questão social. Enquanto as palavras de Leão XIII estão marcadas
pelo temor da “onda vermelha” e pelo fascínio da organização internacional socialista, a partir de Pio
XI nota-se nos documentos maior incentivo e apoio ao associativismo.
Depois do Vaticano II, o tema ganhará cada vez mais espaço, até merecer a dedicação de
parágrafos inteiros e exclusivos. Com Paulo VI e João Pulo II, a Igreja não apenas reconhecerá o
direito dos trabalhadores à organização, mas fortalecerá os sindicatos e as diversas formas de luta da
classe trabalhadora. O direito à greve, por exemplo, combatido pela Rerum Novarum, será
progressivamente aceito como um meio legítimo de buscar seus interesses.
Propriedade privada:
Entra aqui o tema da propriedade privada. Também neste caso, verifica-se uma evolução de um
princípio rígido de propriedade para uma visão mais atenuada. No decorrer do pensamento social,
passa-se de um conceito de direito natural à categoria de função social da propriedade. A ênfase não
está no título de propriedade, mas em seu uso correto, segundo esta, toda a propriedade, antes de ser
um bem pessoal e privado, deve estar subordinada aos interesses maiores da sociedade, ou seja, ao
bem comum. No dizer de João Paulo II em sua visita ao México “sobre toda a propriedade pesa uma
hipoteca social”.
No caso do Brasil, tomemos como exemplo os enormes latifúndios cercados por multidões
famintas. O direito ao “uso” da terra para buscar o pão e matar a fome está acima do direito à sua
“propriedade”. A titularidade legal está subordinada às necessidades legítimas da população. Pelo
conceito de função social, as urgências básicas e prementes de garantir a vida estão acima da simples
manutenção do título. Em termos mais populares, a posse supera a propriedade.
A busca de
Caberá especialmente a João Paulo II erguer-se com energia diante dos graves problemas do atual
modelo neoliberal de economia globalizada. Sua voz, tanto mais incisiva quanto mais debilitada com
o passar dos anos, não se cansa de denunciar os efeitos perversos, sobretudo para os países
periféricos, dos enormes endividamentos externos, da destruição do meio ambiente e uso
indiscriminado dos recursos naturais, da guerra de mercado, da precarização das relações de trabalho,
do consumismo exacerbado, do mercado como um novo ídolo, do desemprego crescente e da
exclusão social. A vida está em primeiro lugar! – tem sido seu grito nas viagens por todo o planeta.
Evangelização inculturada:
Por fim, ainda uma última orientação que permeia toda a DSI: a evangelização inculturada.
Predomina hoje o pluralismo, seja em termos étnicos seja em termos religiosos. Valores e
contravalores se cruzam e se entrelaçam. A evangelização passa necessariamente por esse novo
cenário polifônico e multifacetado. Daí a importância do diálogo e da abertura, aliás, uma herança do
Concílio Vaticano II. Os meios de comunicação hoje facilitam o intercâmbio e o enriquecimento
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recíproco. Por outro lado, com o fenômeno da economia mundializada, a idolatria do mercado
espalha-se com a velocidade de um toque na tecla do computador. Luxo e miséria coexistem lado a
lado. A pobreza e a fome tornam-se um fenômeno tanto mais escandaloso quando colocado frente a
frente com toneladas de alimento armazenado, e não raro em vias de apodrecer. Coloca-se em pauta,
uma vez mais, a urgência de João Paulo II, com esforços incansáveis para divulgar a globalização da
solidariedade, em contraposição à globalização neoliberal, concentradora e excludente.
Conceito de Pessoa Humana na DSI: fundamentos
Podemos começar perguntando quem são os destinatários e o sujeito da DSI. Os destinatários
constituem um público muito diversificado, que vai desde as autoridades intra-eclesiais até as
autoridades civis e governamentais, chegando, especialmente com João XXIII, a todos os homens de
boa vontade. Quanto ao sujeito da DSI, podemos afirmar que, no coração da mensagem, a pessoa
humana em sua dignidade plena torna-se o protagonista inquestionável. Evidente que este
protagonista número um manifesta-se sempre por meio da hierarquia ou da comunidade eclesial.
Vale a pena abrir um espaço para refletir um pouco sobre o conceito de pessoa humana. Nele,
como veremos, fundem-se e entrelaçam-se os valores de vários tradições, as quais convergem para
enriquecer tal conceito. Menos rígido que a noção marxista de classe ou a noção trabalhista de
categoria, por exemplo, a noção de pessoa humana revelou-se bem mais permeável à recepção de
novos ingredientes produzidos pelo avanço da história. Foi capaz de receber e remodelar diferentes
valores de diferentes origens, engendrando um processo de acúmulo que se reflete nos documentos
da DSI. Vejamos sumariamente algumas tradições que, em maior ou menor grau, contribuíram para o
enriquecimento progressivo do Ensino Social da Igreja.
A tradição judaico-cristã, com a idéia de filiação divina. Tanto no Antigo como no Novo
Testamento, a dignidade inviolável da pessoa humana está diretamente subordinada à sua origem,
“criada à imagem e semelhança de Deus”. Convém não esquecer a noção paulina de “corpo místico”
e a idéia de que o corpo humano é tempo do Espírito Santo.
A tradição greco-romana em que se destacam termos como cidadania e direitos. Abstraindo-se a
chaga da escravidão antiga, a cultura grega, especialmente com a contribuição de seus filósofos mais
proeminentes, bem como a cultura romana tinham pelo cidadão um respeito inquestionável. A
organização da “pólis” não só era aberta à participação dos cidadãos como também subordinava-se a
suas necessidades fundamentais.
A tradição humanista, que vem desde o renascimento, passando pelo iluminismo até chegar nos
ideais da “igualdade, liberdade e fraternidade” da Revolução Francesa. Aqui um rio de valores novos
vai se formando e engrossando durante os séculos engendram os “tempos modernos”, com a
emergência da individualidade e da subjetividade humana. A razão humana, a ciência, a tecnologia e
o progresso apontam com grande otimismo para horizontes insuspeitados. Claro que o século XX se
encarregaria de revelar os limites dessa euforia.
A pessoa humana nas tradições mais recentes
A tradição democrática é muito cara ao mundo ocidental, apesar de suas contradições entre o
aspecto jurídico-formal e a democratização efetiva dos benefícios do progresso.
O fato é que ela reclama uma maior participação das pessoas nas decisões e na condução dos
assuntos humanos. Infelizmente, Paulo VI será o grande porta-voz dessa enorme contradição entre a
democracia legal e a injusta repartição da riqueza produzida. Enquanto o trabalho é coletivo, os
lucros são privatizados. Crescimento e distribuição correm em sentidos opostos.
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A tradição dos Direitos Humanos, a qual ganha extraordinário relevo a partir dos horrores da
Segunda Guerra Mundial, sobretudo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948.
Sobre as cinzas e escombros do conflito e sobre a ameaça de novas conflagrações, os indivíduos
reclamam maior autonomia e mais respeito frente aos poderes do Estado. Integridade física, direitos
sociais, políticos, econômicos e culturais passam a fazer parte da agenda das nações.
A tradição da consciência ecológica, que emerge, sobretudo com as lutas dos movimentos
ambientatlistas. Cresce e dissemina-se a certeza de que ou defendemos a vida em todas as suas
formas, ou perecemos junto com o planeta terra. Ganha relevo o respeito à biodiversidade, o uso mais
racional dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente. Multiplicam-se os alertas sobre a
destruição e a depredação indiscriminadas das riquezas que Deus nos deixou. Ao mesmo tempo,
cresce a idéia de um desenvolvimento sustentável, seja do pinto de vista ecológico, seja do ponto de
vista humano e social. A esse respeito, não custa lembrar que a aliança de Deus com Noé,
simbolizada pelo arco-iris, foi estabelecida não apenas com os homens, mas “com todos os seres
vivos e com todas as gerações futuras” (Gn 9,12-17)
A tradição dos movimentos sociais. Além dos movimentos ambientalistas, citado no item
anterior, outros movimentos abrem novas perspectivas e novas dimensões à dignidade da pessoa
humana. Alguns exemplos: a organização dos jovens pelo mundo inteiro, a luta das mulheres, as
mobilizações de minorias excluídas ou minorias étnicas, de povos indígenas, de grupos negros, as
mais diversas organizações por melhor qualidade de vida, os movimentos da terceira idade... enfim,
todo uma série de novos problemas que fazem despontar novas sujeitos históricos.
Todas as tradições apontadas acima formam uma herança cultural da humanidade onde distintos
valores vão se mesclando e remodelando, num mútuo enriquecimento. Se passarmos os olhos pelos
documentos do Ensino Social da Igreja, tropeçaremos a cada momento com valores oriundos de uma
ou mais das fontes citadas. A título de exemplo, veja-se como os escritos de Paulo VI estão
permeados com a problemática dos direitos humanos e como os últimos escritos de João Paulo II
passam a incorporar a questão ecológica.
A categoria de pessoa humana tem se revelado dinâmica e aberta o suficiente para absorver e
incorporar muitos desses valores, num processo permanente de crescimento. Infelizmente, mostrouse menos permeável às reivindicações dos movimentos de mulheres e de homossexuais, por exemplo,
como também às lutas de certas minorias étnicas e raciais. Quanto à herança democrática,
especialmente no que diz respeito ao seu exercício diário, não podemos deixar de constatar que ela
tem sido utilizada muito mais ad extra do que ad intra.
Questões para reflexão e debate:
1. Relacionar as linhas mestras da DSI com os principais problemas da atualidade.
2. Conversar sobre a centralidade da pessoa humana no Evangelho e na DSI.
3. Refletir sobre o conceito de pessoa humana ao longo da história.
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Capítulo 3
Caráter Histórico da Doutrina Social da Igreja
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Abertura ao processo dinâmico da história
Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a DSI não é um conjunto de “verdades”
definitivamente acabadas, a serem transmitidas à posteridade. Mais do que um museu a ser visitado
em suas antigüidades raras, trata-se de um tesouro a ser permanentemente enriquecido. Seu conteúdo
e seus métodos evoluem com os tempos. Aliás, como vimos, a DSI nasceu num tempo em que as
transformações sociais têm uma velocidade espantosa. A Igreja procura adaptar-se à evolução da
história.
A discussão entre doutrina ou ensinamento tem aqui sua razão de ser. A palavra doutrina denota
uma série de princípios fechados, definidos, dogmas imutáveis. Já o termo ensino ou ensinamento
mantém seu caráter aberto, dinâmico e flexível, disposto sempre a aprofundar a compreensão os
valores de acordo com o passar do tempo. Ou seja, estamos diante de um processo em permanente
crescimento. Mais do que um corpus cristalizado no tempo e no espaço, a DSI constitui um
organismo vivo que é capaz de adaptar-se às circunstâncias da história e recolocar as questões diante
de acontecimentos imprevistos. Sim, um organismo vivo que respira a atmosfera de um determinado
contexto social. Nele nasce, cresce e se desenvolve. Embora localizado no tempo e no espaço, vai
forjando princípios de validade universal, numa permanente releitura da mensagem evangélica e de
uma constante interpretação dos sinais dos tempos.
Foi Paulo VI, na Octogesima Adveniens (1971) quem melhor apresentou esta mudança de
enfoque, isto é, a passagem do conceito de doutrina para o de ensinamento. Assim se expressa o
Papa:
“Com todo seu dinamismo, o ensinamento social da Igreja acompanha os homens nesta busca.
Embora não intervenha para confirmar, com sua autoridade, uma determinada estrutura
estabelecida ou pré-fabricada, não se limita a recordar princípios gerais. Desenvolve-se por
meio da reflexão, amadurecida no contato com situações dinâmicas deste mundo, sob o
incentivo do Evangelho, como fonte de renovação, desde o momento em que sua mensagem é
aceita na plenitude de suas exigências. Desenvolve-se com a sensibilidade própria da Igreja,
marcada pela vontade desinteressada de serviço e atenção aos mais pobres; finalmente
alimenta-se de uma rica experiência multissecular, que lhe permite assumir, na continuidade de
suas preocupações permanentes, as inovações atrevidas e criativas que a situação presente do
mundo exige” (OA, 42).
A noção de ensinamento busca fundir duas dimensões da solicitude da Igreja no campo social.
Por um lado, está atenta à tradição, aos princípios gerais consolidados pela sabedoria e pela
experiência de séculos; por outro lado, permanece aberta aos valores novos que os desafios históricos
vão engendrando. É nessa dialética entre um corpo de doutrinas sólidas e um constante aprendizado
diante dos fatos que o magistério procura navegar. Trata-se, como se vê, de uma perspectiva ao
mesmo tempo doutrinal e pastoral, preocupada, simultaneamente, com o rigor dos fundamentos
bíblico-teológicos e com as exigências éticas da ação social. Tendo presente essa realidade, daqui
para a frente utilizaremos os termos doutrina e ensinamento social da Igreja com significado idêntico.
De acordo com Camacho, ao comentar a Octogesima Adveniens, o ensinamento social estruturase na convergência de três elementos: o contato com as situações dinâmicas, o incentivo do
evangelho e a experiência multissecular da Igreja. É assim que ele conclui apontando o “modo como
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Paulo VI concebe o ensinamento social da Igreja: não prioritariamente como uma doutrina, mas
como um complexo processo de análise, julgamento e discernimento para a ação; um processo no
qual participa toda a comunidade cristã, e em que a hierarquia atua como animadora e como
encarregada da dimensão doutrinal”.
Protagonismo das Comunidades locais
Convém assinalar, de passagem, uma outra novidade que aparece de forma sutil mas inegável na
Octogesima Adveniens. Estamos falando não apenas da mudança de enfoque em relação à DSI, mas
também de um novo protagonismo da doutrina. Esta não será mais prerrogativa da hierarquia, mas
tarefa das próprias comunidades locais.
“A essas comunidades cristãs compete discernir, com a ajuda do Espírito Santo, com comunhão
com os bispos responsáveis, em diálogo com os demais irmãos cristãos e com todos os homens de
boa vontade, as opções e os compromissos que convém assumir para realizar as transformações
sociais, políticas e econômicas que se consideram de urgente necessidade em cada caso” (OA 4).
No espírito do documento, verifica-se uma dupla mudança de foco: em termos de
responsabilidade pelo aprofundamento e depósito da DSI, o acento desloca-se da hierarquia para a
comunidade eclesial; em termos de enfoque, o centro da atenção passa claramente de uma
preocupação estritamente doutrinal para o discernimento e a ação. Esse duplo deslocamento envolve
tanto a hierarquia quanto a comunidade num alerta permanente aos acontecimentos diários. O rigor
da doutrina está subordinado aos desafios que o mundo contemporâneo não se cansa de apresentar.
Retoma-se aqui em toda a profundidade o espírito que animou as reflexões do concílio Vaticano II.
E é ainda Camacho quem nos apresenta dois conceitos que dão conta de explicar essa natureza
dinâmica e flexível da DSI. O primeiro é a contínua remodelação da doutrina. Ou seja, situações
históricas novas exigem uma releitura dos fundamentos doutrinários; e estes, por sua vez, trazem
nova luz aos desafios que a realidade levanta dia a dia. Entra aqui o segundo conceito, o de círculo
hermenêutico: o contato vivo com a realidade leva-nos a descobrir, a cada curva do caminho, um
sentido mais profundo da Palavra de Deus. Por outro lado, esta redescoberta constante de novos
enfoques da mensagem evangélica joga luz nova sobre as realidades concretas e orienta os passos dos
caminhantes. Numa palavra, o evangelho ilumina a vida e a vida ilumina o evangelho. Na expressão
de Camacho, o processo “vai da fé à práxis histórica, e da práxis histórica à fé”.
Evolução da DSI ao longo da História
De Leão XIII a João Paulo II, da Rerum Novarum à Centessimus Annus, decorreu um século de
reflexão sobre a Doutrina Social da Igreja. Passados hoje mais de cem anos desse pensamento social,
é possível identificar uma certa periodização, a qual aponta para uma inegável evolução no tempo.
Embora cientes de que todo corte histórico é arbitrário, não será difícil perceber determinadas etapas
no percurso da DSI. Seguindo aproximadamente o esquema de Camacho, podemos falar em cinco
períodos em que a doutrina social e a história do ocidente apresentam inquestionável
correspondência.
O primeiro período é o próprio contexto do surgimento da DSI, no final do século XIX e início
do século XX. Como já ficou claro em capítulos anteriores, a Igreja está diante de duas ameaças: o
liberalismo e o comunismo. De um lado, os males provocados por uma economia centralizada na
maximização do lucro e na acumulação capitalista. Destacam-se nesse quadro, entre outras coisas, a
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exploração do trabalho, as precárias condições de habitação e salubridade, o uso indiscriminado da
mão de obra infantil e feminina, os baixos salários, as longas e penosas jornadas de trabalho e os
deslocamentos humanos de massa. Em resumo, é o cenário já descrito referente às conseqüências da
Revolução Industrial. A produção e a produtividade dão um salto nunca visto na história, mas a
grande maioria da população fica à margem desse progresso. É o que leva a solicitude pastoral de um
Leão XIII a preocupar-se com a “condição dos operários”.
Por outro lado, a chamada “onda vermelha” do socialismo ganha terreno a olhos vistos. Desde o
Manifesto Comunista, em 1848, consolida-se a organização internacional que se desdobra em uma
imensa rede de núcleos espalhados por todo continente europeu. Podemos mesmo afirmar que a
Rerum Novarum nasce sob essa dupla motivação: uma mais explícita, voltada para a “questão social”,
e uma mais encoberta, marcada pelo temor do avanço socialista.
Trava-se na Europa de então uma batalha surda entre liberalismo econômico e teoria marxista.
Iremos ver como Leão XIII se vê como que premido entre essas duas forças ideológicas, as quais,
vale dizer, expressam interesses distintos e contraditórios. Se, por uma parte, procura impedir que os
pobres e indefesos, especialmente os operários, sejam devorados pela ganância selvagem do
capitalismo nascente, por outra, procura defendê-los do que ele chama o “principal inimigo da
doutrina da Igreja”.
O contexto ideológico encontra-se carregado. Aliás, esse confronto entre economia de mercado e
planejamento centralizado, como veremos, deverá ser um tema recorrente nos documentos da DSI.
Talvez não seja difícil, na época, vislumbrar no horizonte ainda distante os rumores da Primeira
Guerra Mundial.
Dois fantasmas rondam o período seguinte, já nas primeiras décadas do século XX: o
fascismo/nazismo e o comunismo. Os escombros da Primeira Guerra Mundial, a Revolução Soviética
e a crise de 1929 espalham instabilidade e insegurança por todo mundo. Como solução desesperada,
nascem os movimentos integralistas e os regimes totalitários, com Hitler na Alemanha, Mussolini na
Itália, Stalin na União Soviética, Franco na Espanha e Salazar em Portugal. A Quadragesimo Anno
(1931), encíclica de Pio XI em comemoração ao 40º aniversário da Rerum Novarum, e as mensagens
radiofônicas de Pio XII, alertam para os perigos do poder absoluto do Estado, ao mesmo tempo que
se levantam em defesa dos direitos do cidadão. A Segunda Guerra Mundial, com um saldo de
milhões de mortos e de mutilados, constitui o desfecho trágico dessa experiência de totalitarismos.
Aliás, de acordo com alguns autores, ao invés de falar em duas guerras mundiais, seria mais
acertado falar de um conflito único, com duas grandes conflagrações generalizadas, intermediadas
por vinte anos de relativa trégua, em que a crise e o medo tomam conta de tudo. O resultado final
após explosão das duas bombas atômicas, em meados dos anos 40, é um mundo devastado por
extrema violência e pelos genocídios, repleto de cinzas, escombros e pânico. Feridas profundas,
jamais cicatrizadas, exibem o poder de destruição a que chegou a humanidade.
Apesar dessa experiência traumática, os anos que vão do pós-guerra ao Vaticano II constituem
um período de euforia, se avaliados do ponto de vista dos índices econômicos. Impõe-se um duplo
desafio: para os países centrais, após o vendaval devastador dos conflitos armados, trata-se de
consolidar a democracia e os direitos humanos; já nos países periféricos, o dilema é como estender os
benefícios do progresso às regiões mais pobres do planeta. Em ambos os casos, como equilibrar
crescimento econômico e desenvolvimento social? É neste cenário que vemos surgir a figura paterna
e materna de João XXIII.
Emerge com ele uma nova preocupação de pastor com a renovação da Igreja, voltada para
horizontes igualmente novos, com vistas à manutenção de uma paz duradoura. Terreno fértil para
duas encíclicas: primeiro, a Mater et Magistra (1961), com acento na doutrina social, revela a
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sensibilidade viva para com os novos problemas da sociedade moderna; segundo, a Pacem in Terris
(1963), enfocando a doutrina política, aponta a necessidade de um compromisso conjunto para a
construção da paz mundial.
Paradigma da modernidade
Reafirma-se, em termos gerais, o paradigma da modernidade. O credo moderno – feito de quatro
palavras chaves: razão, ciência, tecnologia e progresso – adquire novo impulso. João XXIII, com seu
otimismo nato, é uma figura emblemática da época. Acredita-se na evolução do gênero humano para
um patamar mais elevado, crença esta que voltará a ser fortemente questionada a partir dos anos 70.
Como pano de fundo desse oxigênio de euforia, percorrem os céus nuvens sombrias da guerra
fria entre os dois blocos mais poderosos do planeta – Estados Unidos e União Soviética. Do ponto de
vista geopolítico, estamos diante de um mundo bipolarizado, em que demais nações figuram como
alinhadas a um dos lados. A corrida armamentista constitui um equilíbrio sempre precário entre as
forças militares. A humanidade convive com perigo constante de uma guerra total de conseqüências
imprevisíveis em termos de destruição e morte. Teme-se pelo fim da vida em todas as suas formas.
Logo em seguida, o mesmo João XXIII, com uma sensibilidade surpreendente, desencadeará
uma reviravolta na Igreja, ao abrir suas portas ao Concílio Vaticano II (1962-1965). Trata-se de
sintonizar a mensagem e a solicitude do magistério eclesial com os dilemas do mundo moderno. Dois
sentimentos aparentemente contraditórios revestem o período em que ocorre o concílio. Ao lado da
permanente ameaça de guerra total, o clima ainda é de otimismo quanto à reconstrução do diálogo e
da paz. Não é à toa que o ecumenismo será, entre outras, uma das marcas do evento conciliar.
Entre os documentos do concílio, do ponto de vista social, ganha relevância a Gaudium et Spes,
Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje, ao constatar que “o gênero humano encontrase em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se
progressivamente ao universo inteiro” (GS, nº 4). Seu espírito, assinalado logo no primeiro parágrafo,
irá traduzir o clima geral de todo o Concílio:
“As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos
pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que
não encontre eco em seu coração” (GS, nº 1).
Abrem-se novos caminhos e novos enfoques para o ensino social da Igreja. Esta, por fim,
resolve acertar os passos com o ritmo desenfreado do mundo contemporâneo. A chamada
modernidade deixa de ser uma espécie de bicho papão para converter-se em campo de diálogo.
Reconhece-se os avanços e benefícios dos “tempos modernos”, ao mesmo tempo que se apontam
seus estrangulamentos e incongruências.
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Período pós-Concílio Vaticano II
Caberá a Paulo VI, imediatamente após o Vaticano II, colocar em cena a contradição mais
flagrante da vida moderna: a extrema discrepância entre, de um lado, o progresso humano, fruto da
revolução científico-tecnológica e, de outro, a profunda desigualdade que divide as nações, os povos
e as pessoas. Esse será o tema recorrente de seus escritos, tais como a encíclica Populorum
Progressio (1967), a carta apostólica Octogesima Adveniens (1971) e a exortação apostólica
Evangelli Nuntiandi (1975).
O período que vai do início dos anos 70 aos dias de hoje, será marcado pela crise estrutural do
neoliberalismo e pelos desafios de uma economia cada vez mais globalizada. Aprofunda-se o
questionamento sobre os “valores da modernidade”. Na verdade, durante todo o decorrer do século
XX, esses valores já vinham sofrendo constantes ataques. Este século de profundos enfrentamentos
bélicos, de genocídios e etnocídios e de matanças indiscriminadas irá corroer pelas raízes o chamado
credo da modernidade.
João Paulo II, com as encíclicas Laborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e
Centesimus Annus (1991), abordará e denunciará com energia os males deste novo tempo. Iniciada no
começo dos anos 70, as crises se agravam cada vez mais. Segue-se como se sabe, duas décadas
perdidas. O clima de descrença e instabilidade contamina não apenas a economia e o mercado
mundial, mas estende-se também ao campo da política e da sociedade em geral. Trata-se, para alguns
estudiosos, de uma verdadeira transformação cultural, uma transição paradigmática. Não somente
uma época de mudanças, e sim uma mudança de época. A polêmica em torno do pós-modernismo
tem suas raízes nesse cenário de crises, dúvidas e interrogações crescentes.
Ressurgem como dilemas antigos e sempre novos os problemas relativos ao endividamento
externo e interno, ao desenvolvimento desigual, ao neocolonialismo, à contaminação e depredação da
natureza, à nova corrida armamentista e à exclusão social, entre outros. Temas que, aliás, ganharão
contornos cada vez mais vigorosos na carta apostólica Tertio Millennio Adveniente (1994), na
exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in America (1999) e na carta apostólica Novo Millennio
Ineunte (2001).
América Latina e Caribe
Na América Latina e Caribe, como se sabe, os documentos conclusivos dos encontros da
Conferência Episcopal Latino-americana (Celam) em Medellín, Colômbia, em Puebla, México e em
Santo Domingo, República Dominicana, tiveram o mérito de traduzir para este continente as
orientações gerais da DSI, em particular do Concílio Vaticano II. Fizeram-no com grande coragem e
inegável profetismo, desafiando inclusive os poderes constituídos. Voltaremos aos textos do Celam
quando abordarmos mais de perto o conteúdo da doutrina social em cada documento. No momento, é
oportuno lembrar que o núcleo central das intervenções dos bispos latino-americanos é, sem dúvida, a
opção pelos pobres, com vistas a fortalecer ações pastorais para a erradicação da pobreza e da
violência institucionalizada no continente.
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Desafios da DSI para os dias de hoje
Qualquer abordagem da DSI nos tempos atuais levanta, de imediato, alguns desafios que se
apresentam como uma espécie de pano de fundo da reflexão. O próprio estudo dos princípios
fundamentais desse ensinamento social vem inevitavelmente acompanhado de algumas interrogações
cruciais para os dias de hoje. Vejamos, entre outras, as seguintes questões.
A primeira delas é dirigida especialmente aos cristãos, e pode ser enunciado da seguinte forma:
como passar da concepção de caridade entendida como esmola ou simples assistência para a caridade
solidária? Como unir a visão personalizada, importante e necessária, com a visão estrutural, em vista
das transformações mais profundas? Ou então, como passar de uma noção apenas pessoal da caridade
que dá o devido destaque à dimensão estrutural, na linha das reflexões de Paulo VI e de João Paulo
II?
Em segundo lugar, do ponto de vista da hierarquia, no embate cotidiano com a sociedade
moderna, como passar de uma atitude moralista e moralizante diante dos problemas sociais, a uma
participação efetiva, crítica e responsável, na busca de soluções conjuntas? Convém recordar, por
exemplo, a nova sensibilidade de João XXIII e do Vaticano II, ao abrir as portas da Igreja ao mundo
contemporâneo e ao apelar para a boa vontade de todos. Isso leva, por outro lado, a deslocar o
protagonismo da hierarquia, na DSI, para uma participação mais efetiva da “comunidade eclesial”, de
acordo com a Octogesima Adveniens, de Paulo VI.
Quanto aos Estados, com seus governos e poderes constitutivos, o grande desafio é a superação
das chamadas políticas compensatórias, de mera assistência social, com vistas a um programa sólido
de políticas públicas, particularmente nas áreas da saúde, da educação, da alimentação, da habitação,
da agricultura, do meio ambiente, e assim por diante – preocupação que acompanha a DSI desde
Leão XIII até os dias atuais.
No que se refere ao conjunto da sociedade, não deixa de angustiar o fato de nossos países latinoamericanos, em sua maioria, serem simultaneamente católicos e democratas, ao mesmo tempo que
abrigam e até legitimam tamanhas desigualdades e injustiças sociais. Ou, para usar a expressão
cunhada na Assembléia do Celam, em Medellín, a “violência institucionalizada”. Aqui a pergunta é
inevitável: como passar de uma democracia jurídico-formal, com seu funcionamento regular, a uma
democratização real e profunda dos benefícios do progresso? Como lembram Paulo VI e João Paulo
II, é necessário estender os frutos do crescimento econômico e do progresso tecnológico a todos os
setores da população, na busca de um desenvolvimento humano e integral.
Em todo mundo, mas especialmente para os países periféricos, o desafio da urbanização,
acompanhado ou não da industrialização, constitui um dos maiores problemas a serem enfrentados. O
trinômio metrópole, pobreza e violência reflete-se hoje nos imensos cinturões de miséria e fome das
chamadas megalópoles, como Cidade do México, São Paulo, Buenos Aires, Lima – para nos
restringirmos apenas ao nosso continente. Podem nos servir de orientação as luzes contidas nos
documentos de Medellín, Puebla e Santo Domingo.
Para a população de todo planeta, vale apontar um último desafio, procurando resgatar, digamos
assim, o lado positivo da pobreza, em sua dimensão evangélica. Numa palavra, como superar o vírus
do consumismo e do desperdício, tão presentes hoje na civilização ocidental, em vista de uma
utilização sóbria, frugal e responsável dos bens que o Criador colocou à disposição da humanidade?
Ou seja, como evitar a contaminação e destruição do meio ambiente e o uso predatório dos recursos
naturais, buscando um desenvolvimento social e ecologicamente sustentável? Não custa sublinhar
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que a aliança de Deus com o Povo de Israel, celebrada entre Javé e Noé e simbolizada no arco-íris,
foi feita não apenas com os seres humanos, mas com “todos os seres vivos” e com “todas as gerações
futuras” (Cfr. Livro do Gênesis 9,12-16). Nesta perspectiva, não podemos deixar de lembrar os
apelos de João Paulo II, em seus mais recentes escritos, quando enfatiza a necessidade de construir a
cultura da solidariedade ou a civilização do amor, usando nossa capacidade inventiva para criar uma
nova fantasia da caridade, que se manifesta pela eficácia da ação e pela capacidade de ser solidário
(Cf. NMI, 50).
Por último, se põe o desafio de como pôr em prática os ensinamentos sociais da Igreja. A quem
cabe discernir e aplicar essa doutrina nas situações concretas? A DSI não é um receituário pronto,
mas um conjunto de princípios cuja aplicação demanda análise e discernimento. Nesse discernimento
cabe um papel ativo às comunidades cristãs, sempre em comunhão com seus pastores e em diálogo
com toda sociedade. Um texto luminoso de Paulo VI pode ajudar-nos a entender melhor a missão das
comunidades na aplicação da DSI, missão que fica como um desafio:
“Às comunidades cristãs cabe analisarem, com objetividade, a situação própria do seu país e
procurarem iluminá-la com a luz das palavras inalteráveis do Evangelho; a elas cumpre
haurirem princípios de reflexão, normas para julgar e diretrizes para a ação, na doutrina social
da Igreja (...) A essas comunidades cristãs incumbe discernirem, com a ajuda do Espírito Santo,
em comunhão com os bispos responsáveis e em diálogo com os outros irmãos cristãos e com
todos os homens de boa vontade, as opções e os compromissos que convém tomar, para se
operarem as transformações sociais, políticas e econômicas que ser apresentam como
necessárias, com urgência, em não poucos casos” (OA, 4)
Questões para reflexão e debate:
1. De Leão XIII a João Paulo II, como evoluiu a DSI?
2. Além dos desafios apontados, que outros desafios os tempos de hoje apresentam à DSI?
3. Quais as principais marcas dos documentos do CELAM e da CNBB?
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Capítulo 4
Ordem Social: comunidade, sociedade e bem comum
Pe. Matias Martinho Lenz, SJ
Introdução
Os primeiros três capítulos desse caderno apresentaram uma visão geral do ensino social da Igreja:
conceito, princípios gerais e evolução histórica.
A partir do presente capítulo estaremos enfocando temas específicos. Cada problemática è discutida à
luz dos princípios do ensino social da Igreja e busca-se discernir desafios e linhas de ação. Nesse quarto
capítulo enfocamos a ordem social e a participação dos cidadãos na promoção do bem comum. Esse tema
procura fazer uma ponte entre a visão geral dos primeiros três capítulos e os temas subseqüentes.
Para encaminhar bem a discussão, é importante colocar algumas premissas.
A primeira premissa: nossa fé não é assunto privado, nem se resume a práticas de devoção ou a “ir à
Igreja”. A verdadeira religião tem a ver com cidadania, com a vida profissional e engajamentos políticos.
A separação entre fé e vida é um das piores erros em que muitos cristãos incidem, como nos lembrou o
Concílio Vaticano II: “O divórcio entre a fé que professam e o comportamento quotidiano de muitos
deve ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo” (GS, 43).
Segunda premissa: somos chamados a conviver em paz, no respeito mútuo, na colaboração entre
sociedade e Estado. Deveríamos poder sair à rua sem medo de sermos assaltados, poder confiar na
honestidade de quem exerce um cargo público e no respeito aos direitos constitucionais das pessoas. Mas
não é isso que acontece. Surge a pergunta: de onde vêm as infrações à ordem social? Desconhecimento
das normas básicas? Falta de cumprimento das mesmas? Como podemos, enquanto cidadãos e cidadãs,
contribuir para a observância das normas éticas básicas do convívio social?
1. Desafios à ordem social
Comecemos com o desafio mais grave à ordem social, que é o desrespeito à vida. No mapa da
violência, divulgado pela UNESCO em junho de 2004, o Brasil é o quinto em mortes de jovens e o
quarto na classificação geral. Só fica atrás da Colômbia, de El Salvador e da Rússia. O número anual de
homicídios de jovens (entre 15 e 24 anos) aumentou nos últimos 24 anos, passando de 30 a 54,5 para
cada grupo de 100 mil habitantes, segundo a mesma fonte. Entre as vítimas, há 65,3% mais negros que
brancos. A maioria morre nos fins de semana, atingida por armas de fogo. A pesquisa revela um outro
dado assustador: depois de 1999, a violência passou a crescer mais no interior que nas capitais e regiões
metropolitanas. Autoridade ligada à Secretaria de Direitos Humanos comentou assim esses dados:
“Vamos ter que decidir se queremos uma sociedade da paz ou se vamos alimentar essa cultura da
violência”. Uma das medidas que está sendo implantada é o desarmamento da população e a restrição ao
porte de armas de fogo. Mas sabemos que isso não basta. A Comissão Brasileira Justiça e Paz - CBJP
está engajada na luta por uma nova cultura de paz, através do Projeto “Por uma Cultura de Paz no Brasil:
Superando as Violências”, comemorativo dos 40 anos da Encíclica Pacem in Terris (Paz na Terra), do
Papa João XXIII, publicada em 1963.
Outro grande desafio no Brasil é a pobreza e a fome de grande parcela da população. Essa
pobreza é, em grande medida, fruto da desigualdade social e de uma política macro-econômica que gera
desemprego. Hoje o Brasil tem potencial de riqueza, renda e tecnologia suficientes para saciar a fome de
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todo o seu povo, a fome de pão, de justiça, saber e de beleza. Mas somos um país tremendamente
desigual, com poucos ricos e muitos pobres. O terceiro Atlas da Exclusão Social no Brasil, organizado
por Márcio Pochmann e outros, publicado em abril de 2004, mostra que o Brasil possui 1.162.164
famílias ricas, 2,4% das famílias existentes no país. Essas famílias tinham renda mensal acima de R$
10.982, em setembro de 2003. Essa renda era 14 vezes maior do que a renda familiar mensal média do
país e cerca de 80 vezes superior à linha de pobreza, abaixo da qual se situam os 20% mais pobres do
país. As famílias mais ricas respondiam por mais de 1/3 de toda a massa de renda familiar do Brasil. No
outro extremo da pirâmide estão as famílias pobres, em torno de 11 milhões, num total de 46 milhões de
pessoas e que sobrevivem com renda igual ou inferior a seis reais por dia; 22 milhões desses tem menos
de três reais por dia para viver (linha da miséria).
A pobreza tem muitas causas. Uma das mais graves é, certamente, o desemprego, que em maio de
2004 atingia um em cada cinco trabalhadores nas metrópoles brasileiras. As altas taxas de juros,
implantação de tecnologias poupadoras de mão-de-obra e uma política restritiva de investimentos não
permitem a expansão da economia e a criação dos empregos tão necessários.
Para sobreviver, nove milhões de trabalhadores brasileiros enfrentam a batalha da sobrevivência
por conta própria, na informalidade. Aproveitando-se da existência de um exército de desocupados,
muitos setores empregam sem assinar a carteira dos trabalhadores. Em meados de 2004, 72,8% dos
empregados na construção civil no Brasil não tinham vínculo empregatício, e assim, vivem sem
previdência nem direitos trabalhistas.
Completando esse quadro, registremos outra chaga social: o trabalho infantil. Não é só o trabalho
doméstico, muitas vezes pesado (559 mil em todo Brasil, segundo relatório da OIT, publicado em 11-0604), mas em situação de exploração por empresas, em trabalhos semelhantes à de escravos, por ex., em
carvoarias e em lixões. Essas últimas em geral estão fora da escola, fazem trabalho de adultos por
pagamento ínfimo. O trágico é que para muitas famílias pobres, o trabalho de crianças ou adolescentes é
uma alternativa à fome. Na verdade, são infâncias roubadas, pela ganância ou pela miséria.
Há tantos outros problemas que nos desafiam: a corrupção em todos os níveis e de todos os tipos,
a ponto de se falar em uma cultura da corrupção, difusa e que nos contamina; seqüestros, narcotráfico,
violência policial, um sistema penitenciário à beira do colapso, a discriminação contra minorias. E ainda
a lentidão ou omissão do Estado em cumprir sua função: o sistema de segurança precário; a justiça
morosa e nem sempre isenta; um Legislativo distante dos sofrimentos do povo e, por fim, as freqüentes
situações de descaso da própria população em cobrar direitos e em cumprir deveres.
3. O porquê dessa situação
Quais as causas dos nossos males sociais? Algumas têm origem histórica, derivando de um passado
de trezentos anos de latifundismo, de escravidão e de governos oligárquicos. Há também causas mais
próximas. Fatores freqüentemente citados são a crise da família, as graves deficiências do nosso sistema
educativo, a exaltação dos valores materiais acima de qualquer outro valor, a influência nociva de muitas
programações da mídia e, de maneira geral, a desagregação de valores.
Mas, podemos ir mais fundo em nosso diagnóstico. Vamos então descobrir que à raiz de muitos
desses males está o vírus do egoísmo, a tendência do egocentrismo erigido em sistema, a “violência
institucionalizada” (Medellín), o desamor que leva ao desprezo dos direitos e da própria vida do
próximo.
Pecado é o mal praticado, ou não evitado, a indiferença diante da injustiça e do sofrimento do
próximo. O pecado, como nos ensina a Igreja, tem sempre uma dupla dimensão: pessoal e social. O
pecado é “social” não só por prejudicar os demais, mas por contribuir na difusão do mal, na criação de
“estruturas de pecado”, como as chamou o Papa João Paulo II. O materialismo se introduz como uma
forma de idolatria: os deuses do dinheiro, da busca do poder e do prazer tomam o lugar que é devido só a
Deus. O mesmo Papa identifica, basicamente, duas atitudes pecaminosas como as mais características de
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nosso tempo: “a avidez exclusiva do lucro e a sede de poder”, cada um delas “a qualquer preço” (SRS,
37). Outra fonte que alimenta a relativização de valores é a tendência pós-moderna do subjetivismo
exacerbado, pelo qual as pessoas tendem a criar sua própria moral, seus próprios códigos de conduta,
sem referência a uma lei natural nem divina, sem referência à consciência do bem e do mal que nos é
dada pela natureza racional, e completada pela revelação cristã.
A superação do pecado, individual e social, exige uma dupla transformação, que se apóia na graça de
Deus: a conversão pessoal e a conversão social. A conversão implica em uma profunda mudança de
mentalidade, uma adesão firme aos valores perenes da verdade e do bem, ao qual Deus nos atrai. Esses
valores se transformam em princípios e atitudes, colocadas em prática na vida pessoal e na construção de
estruturas sociais condizentes. Vejamos alguns princípios básicos, segundo o ensino social da Igreja.
4. Princípios que Igreja nos propõe no campo social.
a) A pessoa humana é um ser social.
O ser humano, na visão da Igreja, é um ser pessoal e social, ao mesmo tempo. As pessoas se realizam
na tensão dialética entre essas duas dimensões. Quem age sob o impulso do egoísmo está em contradição
com sua própria natureza e não vai encontrar sua realização e sua felicidade por esse caminho. Ademais,
as coisas, os bens materiais, as estruturas sociais, as próprias leis existem em função do bem das pessoas.
O fim da sociedade é a realização de todos os seres humanos, colaborando uns com os outros. A pessoa
humana, assim entendida, é “autor, centro e fim” de toda vida econômica, social e política. Nas palavras
do Concílio Vaticano II:
“Uma vez que a pessoa humana, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social, é e deve
ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais. Não sendo, portanto, a vida social
algo acrescentado ao homem, esse cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se capaz de
responder à própria vocação, graças à interação com os demais, o mútuo serviço e o diálogo com
seus irmãos” (GS, 25).
Cada um é chamado a ser autor de seu desenvolvimento, colaborando na realização das demais. No
centro da economia e da sociedade não pode estar o interesse do capital, nem o prestígio político da
nação, mas o bem-estar das pessoas. O fim não pode ser o crescimento material sempre maior, mas a
vida cada vez mais plena e feliz de todos os cidadãos. Na visão cristã, o caráter social das pessoas tem
semelhança com a vida íntima da Trindade e a precedência da pessoa sobre as coisas deriva, em última
análise, do fato de ele ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Dessa condição deriva também
sua liberdade e insuperável dignidade.
b) a sociedade deve fundar-se na verdade
As relações entre as pessoas, organizações e estados devem ter seu fundamento na verdade, não
na mentira nem no engano. A verdade fundamenta a confiança nas pessoas e o bom relacionamento entre
elas. A verdade é fonte de liberdade, pois livra do temor de ser enganado (e de ser induzido a enganar os
outros como forma de sobrevivência ou de busca de vantagens). “A verdade vos libertará”, é palavra de
Cristo (Jn 8, 32). A verdade, em sentido bíblico, tem tudo a ver com firmeza, autenticidade, veracidade,
fidelidade. Essa veracidade é fundamento da vida social bem ordenada e feliz.
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c) justiça e amor se integram e completam
A justiça e o amor são as duas colunas sobre as quais se apóia a convivência humana. Sem a prática
da justiça, a caridade se torna ilusória. Caridade sem justiça é hipocrisia. Sem amor, a justiça é
incompleta e pode transformar-se no seu contrário, por exemplo, em casos em que se aplica a lei ao pé da
letra, sem considerar as circunstâncias. Falamos aqui de uma forma especial de justiça, a chamada
“justiça social”. Essa é uma virtude moral que “dispõe a respeitar os direitos da cada um e a estabelecer,
nas relações humanas, a harmonia que promove a equidade a respeito das pessoas e do bem comum”
(Catecismo da Igreja Católica, n. 1807). A Constituição Pastoral Gaudium et Spes (Alegria e
Esperança), do Concílio Vaticano II, em muitas passagens, recomenda a prática da justiça e da caridade,
ambas necessárias para a realização do bem comum (Cf, GS, n. 30). João Paulo II explica assim a relação
entre ambas:
“A justiça por si só não é suficiente e, por si só, pode conduzir ao aniquilamento de si mesma, se não
se permite a essa forma mais profunda que é o amor plasmar a vida humana nas suas diversas
dimensões. Foi essa a experiência da história, que levou a formular a afirmação: ‘summum ius,
summa iniuria’ (máxima justiça, máxima injúria). Tal afirmação não diminui o valor da justiça nem
atenua o significado da ordem instaurada por ela; indica somente o outro aspecto, a necessidade de
recorrer às forças do espírito, muito mais profundas, que condicionam a própria ordem da justiça”
(DM, n. 12).
A conexão íntima entre justiça e amor não anula a diferença entre elas: a justiça é uma virtude moral,
que se refere aos meios para se alcançar o fim da reta ordem. O amor é uma virtude teologal, ou divina,
que nos orienta totalmente para Deus como fim último, e que deve informar todas as nossas ações, não só
os atos de justiça. A virtude do amor ou da caridade transfigura o homem completo. Ela nos leva a amar
a Deus e a amar o próximo assim como Deus o ama, isto é, desinteressadamente. O amor ao próximo e
vontade de justiça não admitem distâncias nem oposições. A virtude da caridade exige a realização da
justiça como condição necessária de sua verdade. O amor é identificação comunicativa e é inseparável do
respeito à alteridade e à singularidade de cada pessoa. A justiça considera o próximo como um outro, a
caridade cristã o percebe como um outro eu, identifica-se com seus sofrimentos e alegrias. Não se deve
confundir a virtude teológica da caridade com “fazer caridade”, isso é, dar esmola. A verdadeira caridade
cristã ultrapassa infinitamente qualquer gesto de benemerência. Importante é acentuar que amor e justiça
são inseparáveis. “O amor implica, de fato, uma absoluta exigência de justiça, que consiste no
reconhecimento da dignidade e dos direitos do próximo. A justiça, por sua vez, alcança a sua plenitude
interior somente no amor” (JN, n. 34).
d) A solidariedade constitui a base da organização da sociedade
Esse princípio de refere ao conjunto de vínculos que unem as pessoas entre si e os impulsiona à ajuda
recíproca. Sem negar os conflitos, esse princípio afirma que o que marca a sociedade humana é uma
crescente interdependência, tanto em nível pessoal, associativo, organizativo e político. A solidariedade
não só um fato, mas uma conduta desejável. Nesse sentido, a solidariedade é vista por Paulo VI como
“um fim e um critério maior do valor e da organização social” (OA, 26). Aprofundando esse princípio,
João Paulo II acentua que não se trata de vago sentimento de compaixão pelos males sofridos por outros,
mas “determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum” (OA, 38). As atitudes e
estruturas de pecado, diz ainda o Papa, só serão vencidas por atitudes diametralmente opostas: “a
aplicação em favor do bem do próximo, com a disponibilidade, em sentido evangélico, de ‘perder-se’ em
benefício do próximo em vez de o explorar e para servi-lo em vez de o oprimir para proveito próprio”
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(Cf. Mt 10, 40-42; 20, 25; Mc 10, 42-45; Lc 22, 25-27; SRS, 38). A solidariedade se aplica não só em
nível de cada país, mas internacionalmente:
“A interdependência deve transformar-se em solidariedade, fundada sobre o princípio de que os
bens da criação são destinados a todos: aquilo que a atividade humana produz, com a
transformação das matérias primas e com a contribuição do trabalho, deve servir igualmente para o
bem comum de todos” (SRS, 39).
A organização da sociedade em nível mundial leva ao desafio da “globalização da solidariedade”
(Ecclesia in América, 55), que ultrapassa fronteiras nacionais e que se deve consolidar por uma nova
ordem mundial.
e) A busca do bem comum é a meta maior da sociedade
O bem comum é um conceito básico do ensino social. Em sentido geral, significa o bem de todos e
para todos, a ser buscado e construído com a colaboração de todos. Deve ser a meta da sociedade e da
ação dos governos. Nas condições atuais de interdependência entre as nações, esse bem não se restringe
às condiçãoes internas de cada país, mas adquire dimensão mundial, como nos adverte o Concílio
Vaticano II:
“A interdependência cada vez mais estreita e progressivamente estendida a todo mundo, faz com
que o bem comum – ou seja, o conjunto de condições da vida social que permitem, tanto aos grupos
como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição – se torne hoje cada vez
mais universal e que, por esse motivo, implique direitos e deveres que dizem respeito a todo gênero
humano. Cada grupo deve ter em conta as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos e
mesmo o bem comum de toda família humana” (GS 26).
As pessoas, famílias ou comunidades menores, não são capazes, por si sós, de chegarem ao pleno
desenvolvimento. Daí a necessidade da organização política da sociedade, cuja meta é cuidar que as
pessoas consigam os bens necessários – bens materiais, culturais, morais e espirituais – para viver uma
vida autenticamente humana. O bem comum guarda uma referência ao bem comum universal e a toda
nossa história, que começa, se insere e culmina em Cristo. As encíclicas têm muitas indicações sobre o
conteúdo do bem comum. Por exemplo: a moralidade pública, e educação e a cultura, o empenho para
preservar e fomentar a paz interna e no exterior; a organização correta dos poderes do Estado, a
preservação do ambiente e do território nacional, os serviços essenciais de saúde, o transporte, habitação
e comunicações.
O bem comum tem uma dimensão essencialmente ética. Por isso, ele ultrapassa a busca de bens
materiais, pois seu fim é contribuir à maturação e aperfeiçoamento das pessoas em todas as suas
dimensões. A responsabilidade de promover o bem comum é de todos: “é necessário que todos
participem, cada um segundo o lugar que ocupa e o papel que desempenha na promoção do bem comum”
(CIC, 1913). Meta do bem comum é estabelecer uma “civilização do amor”.
f) O princípio da subsidiariedade deve ser respeitado
Consiste na promoção dos diversos âmbitos de liberdade e responsabilidade, no estímulo ao
dinamismo e à criatividade de cada grupo ou instância, evitando a interferências de níveis superiores em
assuntos que os níveis inferiores podem muito bem resolver. Pio XI, já em 1931, nos deu uma definição
precisa desse princípio:
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“Assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e
empenho, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais
elevada o que as sociedades menores e inferiores podem conseguir, é uma injustiça, um grave dano e
perturbação da boa ordem social” (QA 79).
A ajuda solidária que se presta a pessoas, grupos ou países deve ter como finalidade principal apóialos na sua capacidade de se desenvolverem por si mesmos e a contribuírem para o bem comum. A
experiência mostra que, quanto mais as pessoas interessadas se envolvem na tomada de decisões, maior é
a chance de eles também se envolverem e empenharem na execução.
g) A participação é um direito e um dever
Constitui um direito e um dever e consiste não só em “ser parte”, mas em “fazer parte” e “ter parte”.
Significa ser sujeito ativo na tomada de decisões, na gestão, nas ações comuns e na partilha dos
resultados. Na convivência humana, o modo das pessoas se conhecer, de trabalhar e se relacionar,
“exprime-se cada vez mais nítida, nesses novos contextos, uma dupla aspiração, mais viva à medida em
que se desenvolvem a sua informação e educação: a aspiração è igualdade e aspiração à participação;
trata-se de dois aspectos da dignidade do homem e da sua liberdade” (OA, n. 22). Na mesma encíclica,
João Paulo II constata que “a dupla aspiração à igualdade e à participação procura promover um tipo de
sociedade democrática” (OA, n. 24). Há diversos modelos de democracia, nenhum deles plenamente
satisfatório. O cristão tem a obrigação de participar na busca pela melhor organização da sociedade, no
estabelecimento das leis e na gestão dos negócios públicos, bem como na eleição dos governantes e na
participação em eleições. “A Igreja considera digno de louvor e consideração o trabalho daqueles que se
dedicam ao bem da coisa pública e ao serviço dos homens e assumem as responsabilidades desse cargo”
(GS, n. 75).
Entretanto, não basta eleger governantes, é preciso acompanhar suas ações e cobrar que prestem
contas dos seus mandatos. É preciso prevenir e combater toda forma de corrupção eleitoral e de captação
ilícita de votos. O direito à participação perde eficácia “por causa de favoritismos e de fenômenos da
corrupção, que não só impedem a legítima participação na gestão do poder, mas dificultam o acesso
eqüitativo de todos aos bens e serviços comuns” (João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz
em 1999, n. 6). Na busca de uma justa igualdade, é preciso prestar atenção especial às pessoas não têm
atendidas as suas necessidades humanas fundamentais (Cf. CA, n. 34).
Enfim, é fundamental lembrar que participação cidadã implica no reconhecimento e gozo de direitos
e no cumprimento de deveres: “Reconheçam-se, conservem-se e promovam-se os direitos de todas as
pessoas, famílias e grupos, assim como o seu exercício, juntamente com os deveres, aos quais estão
obrigados todos os cristãos” (GS, n. 75). É importante lembrar que a cada direito corresponde um dever.
Quem não cumpre com seus deveres, tem pouca moral para cobrar os próprios direitos. Além disso,
respeitar e promover o direito do próximo constitui dever de cada cidadão. Nisso se cumpre um princípio
básico da convivência humana, isto é, a reciprocidade, ligada ao dever de justiça.
h) O desenvolvimento humano genuíno é integral e inclui a todos
Constitui o objetivo da vida social. O desenvolvimento não pode ser reduzido ao crescimento
econômico. A visão economicista entrou em crise, por que “hoje, compreende-se melhor que a mera
acumulação de bens e serviços, mesmo em benefício da maioria, não basta para realizar a felicidade
humana” (SRS, n. 28). A experiência mostrou que, se o crescimento econômico não for regido por uma
intenção moral, esse pode voltar-se contra o homem para o oprimir. O enriquecimento sem o crescimento
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espiritual pode levar a pessoa a afastar-se dos outros, torna-a prisioneira de si e pode causar divisões,
como afirma Paulo VI:
“Tanto para os povos como para as pessoas, possuir mais não é o fim último. Qualquer crescimento
é ambivalente. Embora necessário para o homem ser mais homem, torna-se contudo prisioneiro no
momento em que se transforma no bem supremo que impede ver mais além. Então os corações se
endurecem, os espíritos fecham-se, os homens já não se reúnem pela amizade mas pelo interesse, que
bem depressa os opõe e os desune. A busca exclusiva do ter forma então um obstáculo ao
crescimento do ser e se opõe à sua verdadeira grandeza: tanto para as nações como para as pessoas,
a avareza é a forma mais evidente do subdesenvolvimento moral” (PP, n. 19).
O desenvolvimento genuíno é integral. Refere-se ao homem todo e de todos os homens,
especialmente aos pobres e excluídos, resgatados em sua dignidade de filhos de Deus. Desta forma,
“entre evangelização e promoção humana, desenvolvimento e libertação, existem, de fato, laços
profundos” (Ecclesia in África, n. 68). O desenvolvimento humano não exige apenas o concurso de
técnicos, mas a contribuição de pessoas que proponham um humanismo novo,
“que permita ao homem moderno o encontro com si mesmo, assumindo os valores superiores do
amor, da amizade, da oração e da contemplação. Assim, poderá realizar-se em plenitude o
verdadeiro desenvolvimento que é, para todos e para cada um, a passagem de condições menos
humanas a condições mais humanas” (PP, n. 20).
i) O exercício da cidadania se expressa na responsabilidade social
Uma referência importante ao tema da cidadania no magistério da Igreja diz respeito à colaboração
entre os cidadãos e as autoridades públicas na promoção do bem comum.
A busca do bem comum deve reger as ações dos cidadãos nas diversas esferas. A ligação dinâmica e
criativa entre os empreendimentos da iniciativa privada e a busca do bem comum ou do interesse público
não é fácil de se estabelecer, sobretudo no sistema capitalista, em que dinâmica no setor privado é regido
pela busca do lucro. A participação cidadã, que ultrapassa o interesse privado, deve ser aprendida,
debatida publicamente e expressa em ações concretas. Ela se realizar tanto na dimensão da vida pessoal
de cada cidadão como no âmbito da ética empresarial e da responsabilidade social das empresas. Tendo
em conta as limitações impostas às empresas dentro do sistema capitalista, e as críticas que a Igreja faz
ao sistema do capitalismo liberal, os cidadãos conscientes se empenham por buscar alternativas de
organização social da produção. As experiências de empresas de economia solidária e o sistema
cooperativista são formas alternativas de organização, que buscam conferir a prioridade do processo ao
trabalho e não ao capital, privilegiando o atendimento das necessidades humanas, “num processo de livre
auto-organização da sociedade, com a criação de instrumentos eficazes de solidariedade, capazes de
sustentar um crescimento econômico mais respeitador dos valores da pessoa” (CA, 16).
5- Como podemos organizar-nos para enfrentar esses desafios?
Os desafios apontados no início desse capítulo poderiam ser enfrentados com sucesso, se
houvesse vontade política e ações estruturadas que encaminhassem soluções eficazes, levando em conta
os princípios acima apontados. O que falta para que isso aconteça? Podemos apontar duas exigências,
que estão em íntima correlação. A primeira é uma profunda conversão, pessoal e social. A segunda
consiste na organização de forças e a geração de processos que possam produzir e sustentar as mudanças
necessárias.
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Há necessidade de transformação profunda em nível das pessoas, que façam a experiência de uma
vida mais sóbria, da partilha de bens e do empenho solidário em projetos a serviço do bem comum.
Pessoas e grupos assim renovados passarão a organizar-se e a acreditar na mudança.
Questão fundamental é a mudança de mentalidade, isto é, mudança do inteiro modo de pensar e
de agir, ponto de partida para uma mudança na ordem social. Escrevem os bispos do Brasil:
“O resgate da dignidade dos pobres não pode limitar-se à assistência emergencial, mas exige a
transformação da sociedade e da economia, numa nova ordem voltada para o bem comum.
Apresenta-se aqui um impasse de difícil superação, uma vez que as transformações estruturais
exigem, para serem empreendidas com eficácia, alteração nas leis que não pode ser concretizada
sem mudança profunda de mentalidade. Estamos dispostos a reconhecer a nossa conivência com o
apego aos bens materiais? Percebemos que toda convocação para uma ação conjunta por parte da
Igreja, em colaboração com as demais entidades da sociedade, requer como pressuposto, o
testemunho evangélico e ético? Como implantar na própria Igreja uma economia de solidariedade?”
(CNBB,Doc. 69, n. 21).
Uma segunda exigência é formação de organizações e movimentos sociais, com a participação cada
vez mais ampla dos cidadãos. Sem essa mobilização, as mudanças não saem. E quando saem, ou chegam
tarde ou são tímidas, parciais e não abrangentes. O problema maior, como lembram os bispos, muitas
vezes, não é a falta de boas leis, mas a falta de cumprimento das leis existentes. Como reverter essa
situação? No mesmo texto, podemos ler o seguinte:
“A principal lição desse processo no qual os direitos são reconhecidos, mas pouco implementados,
é que só prevalecem, na agenda da política social, os direitos respaldados pela consciência de
cidadania e pela participação política de entidades e movimentos sociais organizados. São eles que,
em última instância, resgatam as conquistas jurídicas para a vida prática” (CNBB, Doc. 69, n. 52).
Exigência básica feita aos cidadãos para a construção de uma nova ordem social é a participação
organizada na defesa e promoção do bem comum da sociedade. Vamos citar agora, a título de exemplo,
alguns setores em que a nossa participação como cidadãos ativos pode ser decisiva para provocar
mudança de mentalidade, induzir novas práticas sociais e fazer ressurgir a utopia e a esperança.
a)
b)
Conselhos paritários e de direitos: após a implantação da Constituição de 1988, surgiram
muitos conselhos de cidadãos, somando-se a outros já existentes, voltados ao controle social
das políticas públicas: Conselho tutelar da Criança e do Adolescente, Conselho de Saúde,
Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, Conselho da Merenda Escolar e muitos
outros. O que se observa é que em muitos desses conselhos as mesmas pessoas se revezam e às
vezes repetem mandatos por falta de quem queira assumir. A ação de tais conselhos tem
contribuído para avanços na implementação de políticas que beneficiam largas camadas da
população, sobretudo populações pobres. Integrar tais conselhos exige preparação (quem cuida
de oferecê-la?) e uma quota de sacrifício.
Sindicatos e associações de classe: a participação ativa nos sindicatos e associações de classe,
em muitos casos, de tem diminuído nos últimos anos. Qual a razão? Um mal de muitas dessas
entidades é um acentuado corporativismo em eles se enclausuraram. Há como sair desse
fechamento? Como garantir os direitos dos muitos que estão fora, na informalidade? Há uma
proposta de reforma sindical, em andamento no Brasil. Que posição assumimos no nosso
sindicato? Estamos dispostos a abrir mão de privilégios? Colaboramos para viabilizar a
inclusão dos que estão fora? Como podemos trabalhar as motivações para a participação na
vida sindical e associações profissionais?
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c)
d)
e)
O cooperativismo: é um caminho eficaz de inclusão social, de valorização do trabalho frente
ao capital e de fortalecimento dos pequenos e médios produtores. Há no Brasil mais de três mil
cooperativas, dos mais diversos tipos, segundo dados da OCB – Organização das Cooperativas
do Brasil. Elas adotam princípios que são fruto de longa experiência. As cooperativas
autênticas são escolas de cooperação econômica e exercício democrático. Quem é membro de
cooperativa, pode se examinar a qualidade de sua participação e de como pode melhorar. O
que podemos fazer para colaborar na criação de novas cooperativas, especialmente de pessoas
carentes, como são os trabalhadores de material reciclável?
Partidos Políticos: são estruturas em crise, embora detenham ainda muito poder. A militância
política é uma das formas mais nobres de viver a caridade cristã. Muitos Partidos vivem
praticamente em função das eleições. Também nessa área há a proposta de uma reforma
política ampla, tratando de temas polêmicos como a questão do financiamento público dos
partidos, e a representação mais equilibrada das bancadas estaduais na Câmara, entre outros.
Como vai a discussão desses temas no meu partido? Que critérios inspiram as discussões?
Movimentos sociais, Fóruns, ONGs: Os movimentos sociais são ações coletivas, que ocorrem
fora dos canais institucionais. Cumprem uma função importante de serem “profetas do
presente”, isso é, de anteciparem mudanças necessárias cuja efetivação se encontra barrada por
conta dos que tiram vantagem da atual situação e não querem abrir mão de privilégios.
Exemplos são os movimentos a favor do reconhecimento dos direitos de minorias (indígenas,
portadores de deficiências ou de necessidades especiais) e as entidades que lutam por uma
distribuição mais justa da terra e pela defesa e promoção da agricultura familiar. Além dos
movimentos sociais, temos a ação dos Fóruns, de ONGs e associações, que defendem
interesses de segmentos, com maior ou menor legitimidade, ou que assumem causas de
interesse público (os ambientalistas são um bom exemplo). Achamos tempo e interesse para
participar? Como interessar jovens para lutar por causas de justiça social?
6. Conclusão: um convite à participação
“Participar da construção de uma sociedade ‘justa e solidária’, escrevem os bispos do Brasil,
constitui um dos objetivos da ação evangelizadora da Igreja no Brasil” (DG, 2003-2006, n. 156 - itálico
do original). Entre as práticas e iniciativas solidárias citam-se as Campanhas da Fraternidade anuais e o
Mutirão Nacional para a Superação da Miséria e da Fome. Incentiva-se também o engajamento no
voluntariado, tanto em ações da Igreja Católica, tais como a Pastoral da Criança e as Conferências
Vicentinas, quanto em Organizações Não-Governamentais (cf. DG, n. 157 e n. 160). Propõe ainda a
reivindicação de políticas públicas para as diversas áreas sociais e a participação política, na busca de
uma democracia autêntica, e não apenas formal.
Nas pistas de ação, os bispos pedem às comunidades cristãs que “empenhem-se formar uma
consciência moral e uma prática social de inspiração cristã e incentivem o diálogo e a reflexão de
teólogos, pastoralistas, cientistas e outros profissionais acerca dos novos problemas de ordem ética que o
avanço das ciências suscita em campos do saber e do agir humanos” (DG, n.185). Além das questões de
bioética, cita-se a preservação do meio ambiente e outras questões que tocam um desenvolvimento
humano genuíno.
Sistematizando o debate sobre as questões sociais, a Igreja no Brasil vem realizando, desde 1991,
as chamadas “Semanas Sociais Brasileiras”. Centradas em torno de eixos temáticos, as Semanas Sociais
buscam envolver todas as camadas sociais em diversas iniciativas de análise, debate e busca de soluções.
A 4ª Semana Social realiza-se de 2004 a 2006, nas diversas regiões do Brasil, primeiro em nível
de paróquias e dioceses ou regionais, depois em nível nacional (com um grande momento nacional em
outubro de 2005) e, por fim, com semanas por grandes regiões. O tema geral é: “articulação das forças
sociais, participando na construção do Brasil que queremos”. Os eixos temáticos são: a) o Estado e seu
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papel na transformação da sociedade: os três poderes e a participação popular; b) soberania versus
império: dívida interna e externa, FMI, ALCA e OMC; c) forças sociais, resistência e organização; crise
de sustentabilidade e Direitos Humanos; e) precarização do trabalho, migrações e exclusão social. Esses
eixos são perpassados pela mística e espiritualidade e pelas questões de ética, gênero e etnia. Site:
www.semanasocialbrasileira.com.br
Fica o convite à participação na Semana Social da sua cidade ou região e em outros debates que
envolvam nossa participação na construção de um Brasil mais justo, mais fraterno e menos desigual.
Perguntas para reflexão e debate:
1. Quais os desafios mais graves à ordem social em sua comunidade (cidade, bairro, vizinhança)?
2. Entre os princípios apontados no texto, quais são os que fazem mais falta no contexto em que
você vive ou trabalha?
3. Você tem alguma experiência de militância social ou política? Partilhe-a com seu grupo.
4. Você tem conhecimento da 4ª Semana Social? Gostaria de participar da programação?
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Capítulo 5
Cultura, Religião e Sociedade Justa
Pe. Matias Martinho Lenz. SJ
“A ruptura entre o Evangelho e a cultura é, sem dúvida o drama da nossa época, como o foi
também de outras. Assim, importa envidar todos os esforços no sentido de uma generosa
evangelização da cultura, ou, mais exatamente, das culturas” (EN, 20).
Essa constatação do Papa Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi, uma Exortação Apostólica sobre a
Evangelização no Mundo Contemporâneo, feita em 1975, continua muito atual e constitui um bom
motivo para discutirmos o tema da cultura nesse capítulo. Ainda mais, porque no mesmo documento,
o Papa afirma que existem laços profundos entre evangelização, promoção humana, desenvolvimento
e libertação. O mesmo se pode dizer em relação às religiões e ao modo como nós católicos vivemos
nossa religião. Nossa fé promove a justiça e fraternidade?
Vamos perguntar-nos em que consiste a ruptura entre fé e cultura, suas origens e efeitos, bem
como sobre o que podemos fazer para evangelizar a cultura e a religião, para que elas possam
contribuir para um desenvolvimento humano e social pleno, fundamento da paz que todos almejam.
4.1. Cultura, promoção humana e justiça social
Cultura e Culturas
A cultura é a maneira como em determinado povo se cultivam as relações com a natureza, com as
outras pessoas e com Deus (GS 53b), o que se faz e o modo como se fazem as coisas. Ganha
expressão maior no mundo das ciências e das artes, mas o conceito de cultura é bem mais amplo que
o saber erudito. Não é um setor, mas algo que envolve a vida e a pessoa toda. No ser humano, que se
constrói continuamente, tudo é cultura. “A cultura é o ser humano, transcendência e superação”
(Emmanuel Mounier).
Ao falarmos de cultura, convém deixar de lado o que pode constituir uma caricatura, encarnada
no espírito superficial, para privilegiar o que é essencial: a busca de uma coerência vital entre o
antigo e novo, a tradição e o futuro, permitindo a cada pessoa “aprofundar sua comunhão e cultivar a
sua diferença” (André Malraux).
Tratar de cultura é voltar-se para o drama da existência, a busca de sentido para a vida, o
problema dos fins últimos. A cultura atual, sobretudo na sua versão pós-moderna, não pergunta pelos
fins últimos e abstrai da consideração de valores.
Alguns traços dessa cultura são:
- a racionalidade técnico-científica: nossa cultura não é só baseada na ciência e na tecnologia, mas
em geral abstrai de outras considerações. Tende a considerar a ciência e a técnica como valores
supremos e com isso, muitas vezes, ignora outros valores (caindo no racionalismo e no
cientificismo);
- a fragmentação: a cultura moderna se apresenta como um mosaico de elementos autônomos, de
múltiplas faces e influências, e nela não se busca a referência a um todo, a um sentido maior; é um
traço que induz a valorizar partes em detrimento do conjunto ou de uma hierarquia de valores;
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- o pensamento débil: a cultura atual desconfia da verdade e da busca da objetividade; rejeita as
convicções profundas, os princípios adquiridos ou intocáveis (por exemplo, a sacralidade da vida), é
uma cultura vazia de espiritualidade (como diz Wittgenstein).
A cultura moderna assume hoje dimensões planetárias, oferecendo à humanidade imensas
possibilidades de humanização e de bem-estar, mas também tem o poder de voltar-se contra o
homem. A ciência sem ética e sem Deus produz armas cada vez mais sofisticadas, instrumentos de
dominação e meios de destruição em massa. Há uma dinâmica libertadora e uma dinâmica
escravizante no processo cultural do nosso tempo (Cf. RH, 7).
As diversas culturas locais ou nacionais são formações históricas concretas e distintas da cultura
moderna, cujos traços descrevemos acima. Cada povo tem sua cultura, suas crenças e costumes, sua
forma original e própria de ser e de se expressar. As culturas distinguem os povos entre si, e
permitem a eles de exprimir-se e de reforçar a sua consciência coletiva. As culturas variam entre si
não só em função do grau de impregnação pela cultura moderna, sobretudo através dos meios de
comunicação, mas pela capacidade de dar um sentido maior ou menor às conquistas da ciência e da
técnica, pondo essas conquistas a serviço do bem comum, na promoção da vida plena e da dignidade
humana. A riqueza cultural de um povo não está somente na sua cultura letrada ou erudita, mas
também nas muitas expressões de sua cultura popular.
A Igreja e a Cultura
A Igreja, “perita em humanidade” (Paulo VI), quer estar presente aos desafios que a cultura
moderna coloca para os diversos povos. Quer ser uma ajuda na humanização das culturas. Entende
que a humanização mais completa se fará pela evangelização das culturas, impregnando-as com a
sabedoria e os valores do Evangelho de Jesus Cristo. Tem consciência que isso só se fará,
inculturando essa mensagem nas diversas culturas, respeitando sua diversidade e originalidade e
ajudando a livrar-se de contra-valores. O modo dessa presença só pode ser o de Cristo, o Mestre
Divino: o convite à reflexão, ao diálogo e ao testemunho.
Esse diálogo vem acontecendo em muitos níveis e nas diversas áreas da ciência e da cultura. Em
1982, João Paulo II criou o Pontifício Conselho para a Cultura, com o objetivo de estabelecer e
aprofundar o diálogo entre a Igreja e as culturas. Ao fundamentar sua ação na evangelização da
cultura, o Papa disse que a Igreja tem consciência: a) da emergência de um novo ciclo cultural dotado
de um dinamismo planetário; b) da existência de espaços culturais diferentes da cultura dominante,
mas abertos ao diálogo; c) da exigência para a Igreja de manter sua identidade e de preservar a
essencialidade de sua mensagem e de sua destinação católica, isso é, universal; d) do fato de que a
cultura é o único meio de transmitir a mensagem de Cristo a países e ambientes ainda não atingidos
pela pregação do Evangelho.
João Paulo II diz com muita clareza que “a fé não é de modo algum extrínseca à cultura, mas
antes gera cultura: daqui emerge uma tarefa a realizar e uma tradição a conservar e a transmitir”. Por
isso,
“no atual contexto de secularização e para muitos aspectos de descristianização, devemos olhar
para o futuro com o objetivo que a fé tenha, ou recupere, um papel-guia e uma eficácia atraente,
mediante uma presença também pública na sociedade e com a intenção de fazer com que as
estruturas sociais sejam ou voltem a ser sempre mais respeitosas daqueles valores éticos, nos
quais se manifesta a plena verdade acerca do homem” (Alocução aos membros do Movimento
Eclesial de Empenho Cultural, OR, 18-03-1990, p. 18).
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A cultura nos ensinamentos do Concílio Vaticano II
O Concílio Vaticano II expressou duas razões pelas quais a Igreja se interessa pelas culturas dos
diversos povos.
Primeiro, porque a cultura “deriva imediatamente da natureza racional e social do homem”, o que
lhe permite “penetrar o íntimo das coisas, de contemplar, de formar um juízo pessoal e de aperfeiçoar
o senso religioso, moral e social”(GS, 59). A outra razão consiste no fato de que o Evangelho só pode
ser eficazmente anunciado no contexto cultural próprio de cada sociedade. Esse só aparecerá como
boa notícia quando expresso na linguagem e na cultura próprias de cada país.
Daí se seguem duas conseqüências, segundo o Concílio: a necessidade de possibilitar o acesso de
todos à cultura, sem discriminações de qualquer natureza (de gênero, de nacionalidade, de religião ou
de condição social); e de que o acesso à cultura é ligado à livre pesquisa e comunicação da verdade.
Na Declaração sobre a Liberdade Religiosa (Dignitatis Humanae) o mesmo Concílio reconhece a
liberdade religiosa como o direito à imunidade de qualquer tipo de pressão social pela conversão e a
“legítima autonomia” da cultura (DH, 59). O Concílio ainda reconheceu a fecunda diversidade das
várias culturas, opondo-se a um inconsciente sectarismo de países cristãos da Europa no passado e do
qual algumas missões se libertaram apenas parcialmente.
A cultura recebe sua unidade pela unidade das pessoas humanas que a cultura exprime. A unidade
da Igreja não é redutora, mas do tipo que promove a comunhão. Respeita e promove a diversidade,
manifestando sua catolicidade (universalidade). Muitos conflitos dentro da Igreja tiveram origem na
falta de compreensão correta da unidade, que não é uniformidade. A diversidade cultural reconhecida
e aceita pela Igreja, manifesta a dimensão universal de sua unidade.
A boa nova de Cristo restaura, purifica e eleva os costumes dos povos. “Com as riquezas do alto,
ele fecunda, como que por dentro, as qualidades do espírito e os dotes de cada povo e de cada idade,
fortifica-os, aperfeiçoa-os e restaura-os em Cristo” (GS, 58).
Como evangelizar a cultura
O que significa evangelizar a cultura? Uma das melhores definições nos foi dada por Paulo VI:
“Chegar a atingir e como que modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os
valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os
modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o
desígnio da salvação” (EN, 19). “...Importa evangelizar - não de maneira decorativa, como que
aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade e isto até às raízes - a
cultura e as culturas do homem ...” (EN, 20).
Na evangelização das culturas deve haver um profundo respeito pela identidade de cada uma
delas. Quando a Igreja anuncia do Evangelho e o povo acolhe a fé, a Igreja se encarna nesse povo e
assume sua cultura. Assim, a evangelização não é um processo de destruição, mas de consolidação e
fortalecimento dos valores, o que é “uma contribuição ao crescimento dos ‘germes do Verbo’
presentes nas culturas” (DP, 401). Encarnar-se significa impregnar de fé o sentido do trabalho e da
festa. Essa encarnação da cultura é fundamental na nossa realidade latino-americana, realidade das
culturas indígenas, afro-americanas e mestiças, que hoje sofrem o impacto da civilização urbanoindustrial. Frente a uma cultura universal em ascensão, importa questionar a tendência ao
nivelamento e à uniformidade e “uma injusta e lesiva supremacia e domínio de uns povos ou setores
sociais sobre outros povos ou setores” (DP, 427).
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O povo latino-americano, nesses últimos decênios, urbanizou-se em sua maioria, modificando
seus modos de vida habituais e as condições de vivência religiosa. Esse meio urbano é marcado por
um ateísmo antropocêntrico, prático e militante, e que se expressa no hedonismo e no consumerismo.
Mais grave ainda são as situações de miséria e injustiça atingem culturas cujos valores são marcados
pela fé cristã. Diz o Documento de Puebla:
“Sem dúvida, as situações de injustiça e de pobreza extrema são um sinal acusador de que a fé
não teve a força necessária para penetrar os critérios e as decisões dos setores responsáveis da
liderança ideológica e da organização da convivência social e econômica de nossos povos. Em
povos de arraigada fé cristã impuseram-se estruturas geradoras de injustiça. Estas, que estão em
conexão com o processo de expansão do capitalismo liberal e em algumas partes se transformam
em outras inspiradas pelo coletivismo marxista, nascem das ideologias de culturas dominantes e
são incoerentes com a fé própria de nossa cultura popular” (DP,437).
Evangelizar essas realidades urbanas significa criar uma nova síntese vital nesse novo contexto.
A inculturação da fé é vista como o grande desafio para a Igreja em nosso tempo, e em nosso
continente, segundo o documento de Santo Domingo. Tal inculturação se dá a partir dos três
mistérios centrais da nossa fé cristã: a Encarnação, a Páscoa e o Pentecostes. Jesus Cristo se torna
assim medida de todo humano e da cultura: encarnando-se, ele assume a nossa realidade sofrida;
comunica-lhe uma nova vida pela força que irradia da ressurreição e age em nós, e através de nós, por
seu Espírito na transformação do mundo. Quando Cristo se torna medida de nossa conduta moral, ele
nos impele a manter os valores cristãos que estão presentes em nossa cultura e a incorporar os valores
ausentes. A conduta moral cristã inclui a ética natural, ligada à dignidade da pessoa humana e seus
direitos, base de diálogo com os não-crentes. Coloca-nos desafios pastorais: a luta contra a corrupção,
a demagogia, a burla da justiça, a falta de distribuição eqüitativa da terra (SD, 233). Leva-nos a
enfrentar a “cultura da morte”, a agressão contra a vida, em qualquer uma de suas fases. A vida moral
como seguimento de Jesus Cristo implica em “difundir os valores morais e sociais que nos convertem
em homens novos, criadores de uma nova humanidade” (SD, 239).
A fé inculturada nos leva a perceber a pluralidade de nossa cultura como uma riqueza e respeitar a
diversidade das culturas dos povos indígenas, dos afro-descendentes e dos mestiços, a fomentar com
eles um diálogo respeitoso, franco e fraterno, no espírito do pedido de perdão que o Papa lhes fez
(SD, 248). Induz a participar de seus sofrimentos e acompanhá-los em suas legítimas aspirações.
Fruto dessa inculturação será a criação de uma nova cultura, que supere as debilidades da pósmodernidade, a incoerência ente valores e estruturas, o vazio ético e o individualismo reinante.
Levará a um diálogo fecundo entre fé e cultura.
A cultura de nossos tempos é uma cultura cada vez mais urbana, que não significa somente bemestar e progresso, mas muito sofrimento, desemprego, pobreza e exclusão social em áreas deprimidas
e nas periferias das grandes cidades. A evangelização da cultura da cidade exige uma nova
criatividade, um anúncio da fé em linguagem urbana e uma reprogramação das paróquias. O
documento de Santo Domingo sugere a multiplicação de pequenas comunidades bem como a difusão
de movimentos eclesiais, e pede atenção aos grupos de influência e aos responsáveis pelas cidades.
Evangelizar a cultura no quotidiano
Tudo isso parece muito distante da realidade quotidiana de nossa cultura, impregnada de egoísmo,
da competição por vezes selvagem, da indiferença em relação ao sofrimento alheio. Viver segundo os
valores que nascem do evangelho significa realizar uma revolução cultural, uma cultura em novas
bases, o que representa a verdadeira humanização, pois é uma cultura que promove a vida, fortalece
laços, traz alegria, promove a justiça e a solidariedade, constrói a paz.
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Como construir essa nova cultura, na prática? Que podemos fazer, no nosso quotidiano?
Primeiro, não devemos resignar-nos com a cultura da violência, do individualismo, do lucro a
qualquer preço, da exploração de crianças e da agressão à vida. Não podermos ser consumidores
passivos da cultura de massa e da mentalidade consumista. Nossa ação começa diante do televisor:
saber selecionar os programas é o primeiro passo. Depois, protestar contra abusos praticados por
certos programas e apresentadores de TV. Devemos organizar nosso protesto. Um bom exemplo é a
campanha “Quem financia a baixaria, é contra a cidadania”. Lançado em 2002, é fruto de intensa
discussão da sociedade civil e que acabou assumido por um grupo de deputados, coordenado pelo
Deputado Orlando Fantazzini, de São Paulo, sendo apoiado por políticos de vários partidos e que tem
coordenações em diversos estados. Objetivo é agir contra emissoras cuja grade de programação inclui
a humilhação do ser humano, a exposição vulgar do corpo da mulher, atrações de conteúdo que
deseduca e incita à violência. Além de denúncias criminais por falta de ética, a campanha tocou no
ponto mais sensível das redes: os seus patrocinadores. Vários anunciantes já assumiram publicamente
que não vão mais anunciar nos intervalos de programas que atentam contra a dignidade humana ou
que sejam classificados como de baixaria. A ação surtiu efeito, tanto que duas redes de TV de S.
Paulo, sentindo-se atingidas em seus interesses, entraram com representação contra o coordenador da
Campanha.
Outro fruto dessa campanha foi o envolvimento do Ministério Público, que aumentou o número
de profissionais que fazem o acompanhamento da programação para efeito de classificação etária.
Através de Ministérios Públicos estaduais procura-se abrir inquéritos civis para chamar as emissoras,
no sentido de obter mudanças nos formatos dos programas. Determinante na criação da campanha
foram manifestações de cidadãos e cidadãs para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
deputados. “Eles chegavam a ponto de pedir que, pelo amor de Deus, alguém fizesse alguma coisa,
porque o conteúdo da televisão era insuportável”, disse o Presidente da Comissão.
Muitas pessoas foram despertadas para o uso consciente dos meios de comunicação em massa
através de cursos de “Leitura Crítica da Comunicação”, promovidos pela UCBC – União Cristã
Brasileira de Comunicação. Procure conhecer essa iniciativa (page: www.ucbc.org.br).
Outra forma de ação é participarmos de produção cultural alternativa. O campo é vasto e não
faltam oportunidades. Podemos apoiar bons programas e emissoras que promovem os valores
cristãos. O cinema e o teatro esperam por bons produtores de roteiros e de peças teatrais e por bons
atores. A música e outras artes são outros tantos espaços de criação e anúncio. Um campo novo e de
acesso cada vez mais difuso é a Internet, onde jovens tem a possibilidade de participar em redes
solidárias, que promovem a educação cidadã e que divertem de forma sadia. Os cursos à distância é
uma das alternativas promovidas pela Rede Solidária de inclusão social e digital, com sede no
Regional Sul II da CNBB em Curitiba, PR (www.redesolidaria.org.br )
4.2 Religião e prática da justiça social
A religião verdadeira, segundo o Evangelho de Cristo
Hoje há pessoas que se perguntam sobre qual é a verdadeira religião. Há mesmo católicos que
vacilam na fé, e, sem deixar de se considerar católicos, freqüentam outros cultos. Alguns se
manifestam publicamente contrários a princípios éticos defendidos pela Igreja. Outros, talvez mais
numerosos, sem negar esses princípios, na prática os ignoram.
Segundo uma pesquisa do CERIS, nas seis maiores regiões metropolitanos do Brasil, esse tipo de
católico perfaz 22,5% do total dos que se declaram católicos. Outros, nessas mesmas regiões,
recorrem à cartomancia ou a religiosidades alternativas. Isso para não falar dos católicos que
simplesmente abandonaram sua fé para aderir a outros credos. Segundo as estatísticas, em 30 anos, a
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percentagem dos católicos no Brasil caiu de 91,8% da população em 1970 para 73,8%, em 2000.
Ocorreu um processo de desfiliação. O trânsito maior foi para o protestantismo, sobretudo para
denominações pentecostais.
Não é o lugar aqui de entrar na discussão sobre os motivos para vacilar na adesão à Igreja ou para
mudar de religião, nem se deve pôr em dúvida o princípio da liberdade religiosa, isto é, “a imunidade
de coação em matéria religiosa” (DH, 4). Vamos propor dois critérios pelos quais devemos orientar
nossa prática religiosa, se queremos ser fiéis ao seguimento de Jesus no que se refere ao amor ao
próximo e à questão da justiça social.
Primeiro critério: servir o Evangelho, não servir-se dele. Isto é, buscar a verdade pelo caminho
anunciado por Jesus Cristo e seguir seu exemplo de amor, de serviço ao próximo, de prática da
justiça e construção da comunhão.
A prática de uma religião do amor e do serviço contrasta com a prática de quem troca de religião
por interesses pessoais, subjetivos. Por exemplo, pode haver quem mude de religião porque sofreu
uma desilusão na vida ou porque quer se divorciar e acha que, entrando em uma igreja menos
exigente, vai ser possível divorciar-se sem ferir a lei de Deus. Pode haver católicos que acreditam na
promessa de que, entrando em outra igreja, vão resolver seu problema financeiro ou vão “parar de
sofrer”. Ou que vão superar seus infortúnios amorosos com uma “sessão de descarrego” ou resolver
seus problemas financeiros participando de uma “corrente de prosperidade”. Alguns se deixam
convencer por um pregador midiático de que “a pobreza é obra de Satanás”.
Numa análise dessas “igrejas de necessidades”, que se dizem cristãs, um recente estudo sobre a
“Religião no Brasil”, organizado por Paulo Siepierski e Benedito Gil6, ao falar do neopentecostalismo, mostra que na verdade estamos face a “igrejas de mercado”, localizadas em
posições estratégicas, que realizam ‘cultos’ onde, ao contrário da comunhão, se privilegia a transação
comercial, troca do “dou para que dês” para resolver uma crise financeira ou para passar num
concurso. O templo se transforma numa espécie de “shopping center” da fé, com uma clientela
flutuante e móvel, sem os vínculos de uma comunidade eclesial.
Fazer da religião um instrumento de prosperidade pessoal, e da igreja um “supermercado da fé”,
onde cada um escolhe o que bem lhe agrada e busca resolver seus problemas pessoais, financeiros ou
afetivos, é perverter o sentido básico de religião no Novo Testamento. Ser cristão é seguir Jesus
Cristo e participar em uma comunidade de discípulos seus. Não é servir-se da fé para interesses
pessoais imediatos, mas servir e “dar a vida pelos irmãos” (Jo13,15). O seguimento de Jesus tem
como lei primeira o duplo mandamento do amor e como critério básico sua proposta: “buscai
primeiro o Reino de Deus e de sua justiça” (Mt 33). A busca do Reino, no seguimento de Jesus, inclui
também a cruz e o sofrimento. O Cristão tem como missão ser “sal da terra e luz do mundo” (cf. Mt
5, 13-16; Catecismo da Igreja Católica, n° 782). Isso lhe acarretará incompreensões e sofrimentos,
mas Jesus declara felizes os que sofrem perseguições por causa da justiça (cf. Mt 5, 10-11).
Critério maior e decisivo do verdadeiro cristianismo é a vivência do mandamento novo do amor, o
“amai-vos uns aos outros”, como Jesus nos amou (cf. Jo 13, 34-35), não a busca individualista de
sucesso. A salvação não se obtém através de “sessões de descarrego”, mas da conversão, da mudança
de vida e do amor fraterno: “Convertei-nos e crede na Boa Nova” (Mc 1,15). A exemplo de Jesus,
que veio, não para ser servido, mas para servir (Mt 20, 28), o discípulo de Cristo se põe a serviço dos
irmãos e encontra a felicidade ajudando a tornar felizes os demais, a começar pelos de casa e pelos
mais pobres.
“Religião pura e sem mancha diante de Deus Pai é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas
dificuldades e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1, 27). Obra do maligno não é a pobreza,
como tal, mas a injustiça e o egoísmo que produzem a miséria, a exclusão, o apego desmedido aos
6
Paulo Siepierski e Benedito Gil (org.s). Religião no Brasil. Enfoques, Dinâmicas e Abordagens. São Paulo: Paulinas, 2003.
Ver capítulo de Martim N. Dreher, “Protestantismo na América Meridional”, ítem “Neo-pentecostalismo”, p. 62 a 65.
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bens e a falta de empenho em multiplicá-los para todos. É a omissão no serviço aos necessitados,
presentes em nosso meio, como escreve o apóstolo Tiago:
“Imaginai que um irmão ou irmã não tem com que se vestir e lhes falta a comida de cada dia; se
então algum de vós disser a eles: ‘ide em paz, aquecei-vos’ e ‘comei à vontade’, sem lhes dar o
necessário para o corpo, que adianta isso? Assim também a fé: se não se traduz em ações, está
morta em si mesma” (Tg 2, 15-17).
È importante examinar certas manifestações ou vivências do catolicismo, que podem estar
incidindo em erros ou distorções semelhantes às que estamos criticando nesse texto. Temos a
coragem de fazer essa autocrítica?
Segundo critério: a colaboração entre todos os que servem o Evangelho ou que buscam a verdade,
em benefícios de todos, especialmente dos mais pobres..
Todos os que buscam servir o Evangelho, precisam unir-se no serviço do próximo.
Primeiramente, nossos irmãos na fé, organizados nas diversas pastorais sociais da Igreja. Precisamos
superar o isolamento, vaidades pessoais e vontade de aparecer. As pastorais sociais, além de se
conhecerem melhor, podem crescer muito no apoio mútuo e colaboração em projetos comuns.
Podemos unir cadastros, intercambiar experiências, harmonizar metodologias de ação. O sofrimento
dos pobres deve ser um incentivo para que trabalhemos mais unidos.
Outra barreira a superar é a divisão entre os cristãos. Essa divisão não pode ser motivo ou
pretexto para não juntarmos forças numa ação mais eficaz em favor da justiça e do serviço aos
pobres.
O fundamento para a colaboração ecumênica no serviço da justiça é a consciência de que “muitos
elementos de santificação e de verdade” se encontram e atuam para além das fronteiras visíveis da
Igreja Católica. Sem negar a própria identidade, o fiel católico buscará colaborar em tudo que for
possível para construir um mundo mais humano. A Igreja, ademais, nos recomenda a colaboração
ecumênica em campos tais como o desenvolvimento, o atendimento das necessidades humanas e a
defesa da criação. A esse respeito, o Diretório para a Aplicação dos princípios e normas sobre o
ecumenismo escreve o seguinte:
“Essa cooperação deve abranger, entre outras, as atividades em favor de uma sociedade mais
justa, para promover a paz, os direitos e a dignidade da mulher e uma distribuição mais
eqüitativa dos recursos. Neste sentido, seria possível organizar um serviço comum em favor dos
pobres, doentes, deficientes, idosos e de todos aqueles que sofrem por causa das injustas
´estruturas de pecado`. A cooperação nesta área é especialmente recomendada nos lugares onde
houver uma grande concentração da população com graves conseqüências para a habitação, a
alimentação, a água, o vestuário, a higiene e os cuidados médicos” ( n. 215).
Exemplos de colaboração ecumênica no campo social, em nível nacional, são as Campanhas de
Fraternidade Ecumênicas de 2000 e 2005, e o Projeto do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs
(CONIC) “Uma Década para Superar a Violência (2001-2010): Dignidade Humana e Paz”.
Certamente podemos avançar mais nessa colaboração, na luta comum pela superação das injustiças,
da miséria e da exclusão social.
O escândalo da miséria e da pobreza injusta
“Escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para todos e que a fome se deve à
má repartição dos bens e da renda. O problema se agrava com a prática generalizada do desperdício”
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(CNBB, Exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome, Doc. 69, 2). Com essas
palavras, os bispos do Brasil, em documento lançando o “Mutirão nacional de superação da miséria e
da fome”, expressaram sua indignação frente ao drama da fome de milhões de brasileiros famintos e
convidam todos a colaborar na eliminação dessa chaga social. Os bispos se escandalizam porque essa
situação é lesiva à dignidade e aos direitos básicos das pessoas e porque, havendo solução, essa não é
posta em prática. Essa situação é vista como intolerável, especialmente por existir em um país que se
diz cristão.
“É inadmissível o contraste entre a situação de miséria e degradação do povo sofrido, refugiado
em favelas, cortiços e periferias das cidades, que chega a recorrer à prostituição e até ao tráfico
de drogas para sobreviver, e o luxo e sofisticação de condomínios fechados, construções
suntuosas e desperdício de riquezas, sem considerar a miséria envolvente. O mais triste para a
consciência cristã é o fato de que a escandalosa desigualdade acontece, infelizmente, pela falta
de testemunho evangélico de vida, criando ofuscamento da consciência, frieza e alienação diante
do sofrimento humano e descrédito para o anúncio da Boa Nova. A injustiça social assume
proporções de ofensa a Deus, que nos criou à sua imagem e semelhança e se opõe ao
mandamento do amor fraterno que Jesus Cristo instituiu como lei da nova e eterna aliança”
(CNBB, Doc. 69, 19- 20).
Esse escândalo é tanto maior, dizem ainda os bispos, quando mais consta que “temos recursos e
tecnologia para vencer a fome. Falta-nos o espírito solidário e evangélico para renunciar a privilégios
e libertar-nos do vírus do egoísmo. Falta-nos ainda decisão política” (Doc. 69, 9).
Em nome da fé, os bispos pedem uma mudança profunda de mentalidade, superando o desapego
doentio aos bens materiais e ao consumismo, além de um empenho solidário para a eliminação não só
da fome crônica, mas das causas que a produzem. Consideram fundamental a organização e
mobilização dos próprios interessados, buscando o resgate da sua dignidade e a conquista de sua
cidadania plena. Para maior eficácia, a CNBB sugere que o Mutirão seja o elemento unificador de
programas e projetos sociais da Igreja e estende essa proposta a outras Igrejas e tradições religiosas
(cf. Doc. 69, n. 57)
A motivação mais forte que o cristão pode ter para servir seus irmãos os pobres e famintos é
reconhecer o rosto de Cristo nos rostos desfigurados pela pobreza e pela fome:
“Esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas,
nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor (que nos questiona e
interpela): feições de crianças golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer..., feições de jovens,
desorientados por não encontrar seu lugar na sociedade..., feições de indígenas e com freqüência
também afro-americanos, que, vivendo segregados e em situações desumanas, podem ser
considerados como os mais pobres entre os pobres, feições de camponeses que, como grupo
social, vivem relegados..., feições de operários com freqüência mal remunerados..., feições de
sub-empregados e desempregados..., feições de marginalizados e amontoados em nossas
cidades..., feições de anciãos, cada dia mais numerosos, frequentemente postos à margem da
sociedade do progresso, que prescinde das pessoas que não produzem” (DP, nº 31-39).
“Queremos ver Jesus” (Jo 12, 21), foi o pedido¨feito por alguns pagãos, que haviam subido à Festa
da Páscoa e é título do Projeto de Evangelização da CNBB “Queremos ver Jesus – Caminho,
Verdade e Vida”. Também nós desejamos ver Jesus. Não esqueçamos de procurar reconhecer suas
feições nos rosto do menor dos seus irmãos, pois com eles o próprio Jesus se identificou: “o que
fizestes a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt, 25, 40).
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Rever a própria prática religiosa
Porque há cristãos que não assumem sua responsabilidade social, quando ela é parte integrante do
seu ser cristão? O que impede um católico a cumprir com sua obrigação de partilhar e vocação de
servir? Entre outros motivos, podemos indicar os seguintes:
1. porque há os católicos só de ocasião, católicos apenas por tradição, sem prática efetiva e
sem vínculo a uma comunidade eclesial;
2. outros tem uma visão espiritualista de sua fé, sendo até fervorosos nos atos de piedade,
mas mostrando pouco interesse pelas outras dimensões do ser cristão;
3. outros, ainda, consideram que é função do governo cuidar dos pobres.
Para superar tal mentalidade é preciso retornara ao Evangelho, nas passagens que nos falam do
mandamento do amor. Além disso, é preciso analisar as reais causas da pobreza e perguntar-se se o
luxo de alguns não contribui para a pobreza de muitos. O caminho da conversão de mente e de
coração – graça a ser sempre pedida – nos pode chegar pelo contato direto com o povo pobre, a
descoberta das pessoas que se ocultam atrás da prisão da pobreza ou da miséria. Podemos aprender
com eles a maneira melhor de o servir. Se queremos encontrar-nos com Jesus, não podemos deixar de
procurá-lo também nos famintos e sedentos: “Eu tive fome e me este de comer; eu tive sede e me
destes de beber” (Mt, 25, 35).
No contato ao vivo com o pobre, em atitude inspirada na fé, com ações que resgatem sua
humanidade, estaremos humanizando a nós mesmos. Estaremos também recuperando a capacidade
de nos indignar com as injustiças e aprender que, no serviço cristão ao próximo, mais que dar coisas,
é preciso doar-se.
Compreenderemos também que o governo, por mais que faça (e é obrigação sua de fazê-lo,
através de políticas públicas adequadas), jamais dará conta de resgatar a dívida social que a sociedade
brasileira acumulou para com os pobres e excluídos do nosso país, que não só pedem pão, casa, saúde
e educação, mas respeito, dignidade e cidadania plena.
Perguntas para reflexão e debate:
1. Que aspectos positivos você destaca na cultura moderna e globalizada, e quais sãos seus aspectos
mais questionáveis?
2. Qual deveria ser nossa reação diante da “baixaria” na TV? Como podemos ser consumidores
críticos e que se faz na sua comunidade para fortalecer a mídia alternativa?
3. Uma religião intimista atende as exigências do Evangelho?
4. Na sua comunidade há colaboração no campo social, em base ecumênica? Se não há, como ela
poderia ser iniciada?
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Capítulo 6
O Estado e suas funções: bem público e privado
Pe. Antônio Abreu, SJ 7
Escritura e Padres
A visão da fé judaico-cristã sobre o Estado e a organização política da sociedade, tem sido
historicamente o campo de ação de duas vertentes, que às vezes confluem, mas em geral convivem
em tensão dialética. As ênfases e matizes variam ao longo do tempo, dos ambientes e contextos, dos
autores e pensadores, mas o equilíbrio e o realismo das posições ficam comprometidos se um dos
pólos se afirma de modo a anular o outro.
Já o Antigo Testamento é sulcado pelas águas dos dois regatos: do pessimismo de Samuel (1 Sam
8,5-22) e do otimismo do autor do Salmo 72, que no Novo Testamento confluem na fusão sem
confusão nos lábios de Jesus em Mt 22, 15-22 : “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus”.
Ainda no primeiro século, entre os discípulos dos Apóstolos que com eles conviveram, o Pastor
de Hermas tematiza e teoriza o sentir dos cristãos pobres – escravos, forasteiros, marginais em Roma
- para quem o poder público (no caso concreto, o Império Romano) é um mal inevitável, que o fiel
faz bem em ignorar ou ficar mais ou menos de costas para ele. De outra parte, S. Clemente (o
“presidente do conselho dos episkopoi” em Roma) vê algo de bom na ordem, na paz, na racionalidade
jurídica e administrativa que - entre outros bens - permitiu a difusão do Evangelho.
Mais tarde, a posição de Santo Agostinho de Hipona pode ser (drasticamente) resumido assim:
como há pecado no mundo, é necessária a autoridade pública para possibilitar a convivência humana
com um mínimo de ordem, alicerçada no monopólio do uso da força. Em suas “Duas Cidades”, ele
tende a passar sem maior discussão, da cidade do pecado, da rebeldia e do orgulho contra Deus, para
o "reino deste mundo”, com seus imperadores, senado e pretores.
A seu tempo, a outra vertente, apresentada entre os Padres da Igreja, sobretudo pelos gregos,
começa por enfatizar as conseqüências do pecado menos que S. Agostinho. Tem uma visão mais
otimista da raça humana e da História, mas vê com mais simpatia a ação do poder público, ainda que
muitos destes Padres denunciem profeticamente imperadores, imperatrizes e magistrados batizados.
Por isso, muitos desses Padres foram relegados ou banidos.
A Teologia da Política e da Economia para estes mestres nasce da Teologia da Criação. A criação
não é dada por Deus de uma vez por todas. É processo continuado em que a graça atua na História
em colaboração com os esforços humanos, mesmo se o mais das vezes a maioria de nós nem
tenhamos consciência disto.
S. João Crisóstomo ensina que deve haver autoridade, que esta deve servir ao bem comum, que
Deus quer assim, mas que o governante concreto não é constituído por Deus, pode errar por ser
pecador ou por sua limitação humana de informação e de juízo; daí caber o direito cristão de
oposição e de crítica, sempre olhando o bem maior.
7
O autor contou com a colaboração do Pe. Matias Martinho Lenz, SJ.
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Embora seja um pouco simplificador, nota-se com freqüência os que pendem para o pessimismo
unilateral em relação ao poder público, tendem a apoiar o autoritarismo de governantes concretos, na
convicção de que não cabe à Igreja (nem aos cristãos) a crítica da política.
O bem comum
Para a grande tradição cristã, além de manter a ordem (o que não se negava), é papel do
“príncipe” (sobretudo do “príncipe cristão”) cuidar do bem comum, coordenar e animar as iniciativas
das pessoas, famílias, grupos, no sentido da criação continuada. Em nossa linguagem moderna, isso
significa que a função da autoridade política é cuidar e facilitar que a sociedade desenvolva as forças
produtivas e sua própria organização.
O bem comum não se resume em ampliar os recursos disponíveis para uma vida humana
conveniente. Exige ampliar o acesso do maior número de pessoas às condições materiais que lhe
permitam vida digna. Para tal, o dirigente tem que cuidar de forma prioritária do pobre. Para o
“dirigente cristão”, a diferença é que nele se supõe consciência mais clara deste seu dever, que mais
pessoalmente se comprometa com ele.
Por outro lado, a pessoa humana é fim e o poder público é meio. Não se pode dizer “quanto mais
Estado melhor”, exatamente como não se pode querer “quanto menos Estado melhor”. Em cada
contexto local e temporal, há que modular e adequar a dimensão e a configuração do Estado ao
serviço das pessoas organizadas, para servir:
a) à manutenção da ordem e da paz;
b) à construção de melhores condições de vida;
c) à inclusão a mais universal possível no acesso às condições e bens para uma vida mais humana.
Este conjunto de metas é chamado “bem comum” na linguagem do ensino social da Igreja.
Concretiza-se nas condições materiais e sociais que permitem aos cidadãos - ao maior número
possível, o mais plenamente possível - realizar-se como pessoa na situação ordinária de vida e
participação social. (Veja no capítulo 4 o que se diz sobre os princípios do bem comum, da
solidariedade e da subsidiariedade).
Princípios e fundamentos do bem comum
Como todos somos chamados a viver em sociedade, devemos nos ocupar com o bem comum.
Definir estes deveres nas circunstâncias concretas é a primeira tarefa social a ser conduzida pelo
Estado, embora não comandada só por ele.
Concretamente, para Leão XIII, o Estado pode (às vezes deve) regulamentar as horas de trabalho
(RN, 59). O tempo livre não serve apenas para repouso, mas como condição de con-vivência, de vida
familiar e política. Também cabe ao Estado regulamentar um salário mínimo que permita vida
decente ao trabalhador (RN 61; QA, 66; LE, 19). É papel do Estado garantir a todos os cidadãos os
seus direitos, prevenindo ou punindo sua violação, de modo especial “deve defender o direito dos
fracos e indigentes” (RN 54).
Dois princípios, complementares e em tensão dialética, norteiam o serviço do Estado ao bem
comum: o da solidariedade e o da subsidiariedade.
O princípio de solidariedade exige a superação de todo individualismo pessoal e grupal
(corporativismo). Baseia-se na antropologia cristã de que não posso ser feliz plenamente, se o outro
não é feliz; não sou inteiramente livre se interajo com quem não tem condições de liberdade e, no
limite, como disse Pe. Pedro Arrupe no Congresso Eucarístico Internacional de Filadélfia, em 1976,
não posso celebrar direito a Eucaristia do Senhor, se uma criança no mundo passa fome.
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A solidariedade requer, além disso, que nos sintamos responsáveis uns pelos outros e que
estejamos determinados a empreender ações concretas a serviço dos demais. Há um texto na
Encíclica Solicitude Social da Igreja, que expressa bem esse significado da solidariedade:
“[a solidariedade], portanto, não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento
superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a
determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos
e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos” (SRS, 38).
A aplicação deste princípio postula muitas vezes a intervenção de uma autoridade central para
correção de desigualdades e desequilíbrios. Por exemplo, o Governo Federal num país como o Brasil,
deveria estimular o desenvolvimento das regiões que “ficaram para trás”, por razões políticas e
econômicas.
A Igreja conserva uma concepção solidária de sociedade, concepção que de fato nasce do
Evangelho e se contrapõe ao pensamento moderno individualista do capitalismo. Mas às vezes
“cheira” à ordem feudal, harmonia feita de cima para baixo. Cabe aos cristãos discernir, como
“decantar” da solidariedade este elemento superado.
Leão XIII enfatizou que o Estado deve cuidar especialmente da classe operária exatamente em
nome do bem geral (RN 49). O pensamento social cristão daí em diante explicitou e expandiu este
conceito, ao refletir que a opção prioritária pelo pobre é o suporte concreto histórico da
universalidade.
O princípio de subsidiariedade pede que as decisões se tomem o mais próximo possível das
pessoas, das famílias, dos grupos face a face. Assim que aquilo que se decide e executa bem em nível
estadual, não deve ser avocado ao federal, ou o Estado (mesmo o local) não deve assumir diretamente
problemas que uma entidade cidadã voluntária pode resolver, se preciso, com apoio e em parceria
com o poder público (QA, 80; PT, 140).
O Estado deve proteger e estimular a iniciativa dos cidadãos, visando à sua autonomia, como
propõe João XXIII:
“É preciso reafirmar sempre o princípio que a presença do Estado no campo econômico, por
ampla e penetrante que seja, não pode ter como meta reduzir cada vez mais a esfera da liberdade
na iniciativa pessoal dos cidadãos; mas, deve, pelo contrário, garantir a essa esfera a maior
amplidão possível, protegendo efetivamente, em favor de todos e de cada um, os direitos
essenciais da pessoa humana. Entre estes há de enumerar-se o direito que todos têm de serem e
permanecerem normalmente os primeiros responsáveis pela manutenção própria e da família;
ora, isso implica que, nos sistemas econômicos, se consinta e facilite o livre exercício das
atividades produtivas” (MM, 55).
Tarefas do Estado
O governo é para os governados, não vice-versa. Não se pode entender o Estado como se ele fosse
uma entidade acima e fora dos cidadãos e só pode (mas às vezes deve) limitar um cidadão, em prol
do bem comum do todo. Isso supõe uma concepção de Estado de direito, baseado em uma
constituição e numa ordem jurídica legítima, no qual os cidadãos escolhem e exercem o controle
sobre as ações dos governantes. João Paulo II escreveu um texto incisivo sobre essa dimensão do
Estado democrático.
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“Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma reta
concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à
promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, que na
´subjetividade´da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e coresponsabilidade” (CA, 46).
O atendimento aos direitos e necessidades básicas do indivíduo não pode depender do arbítrio dos
governantes. O Estado tem o direito (e o dever) de orientar e regulamentar a distribuição dos
recursos. Pode fazer cumprir a função social da propriedade, taxando mais os bens supérfluos e
desapropriando terras que não cumprem sua função social, para o bem da maioria. O dever do rico
neste caso não é livre benemerência sua, é dever, como nos ensinam os Padres da Igreja. Portanto, o
Estado pode (e deve) legislar a respeito de uma distribuição justa dos bens; entre outras, através de
uma política tributária que onere mais os ricos que os pobres.
A estrutura do poder público deve ordenar-se ao bem comum. Nem sempre vai coincidir com as
formas abstratamente ideais, “em si” mais perfeitas. O aperfeiçoamento das estruturas políticas deve
dar-se por uma adequação ao serviço do bem comum. Em todo o caso, é fundamental que garanta o
melhor possível a repartição eqüitativa dos encargos e benefícios entre cidadãos e grupos sociais.
Hoje constatamos a possibilidade e a exigência de ações mais variadas, mais extensas e
coordenadas do Estado. Essa possibilidade surgiu graças aos recursos acrescidos de técnica,
sobretudo de comunicação. A exigência de uma ação mais variada decorre do fato de o bem comum
depender de mais variáveis, e de variáveis mais complexas, que indivíduos e grupos face-a-face não
têm como controlar.
É papel do Estado, manter a ordem e a paz, que a justiça se guarde entre pessoas, entre grupos
sociais, entre regiões. Em termos positivos, o Estado deve promover o desenvolvimento das forças
produtivas.
Papel fundamental do Estado é atuar para garantir emprego ao maior número. Razão e
fundamento é que ter acesso ao trabalho é um direito natural de todo ser humano capaz ao trabalho.
Não apenas ao emprego como meio de subsistência, mas à ocupação útil aos outros e que exercite as
capacidades e talentos humanos de cada um. Esta tarefa não consiste (ou não sobretudo) em o Estado
criar diretamente postos de trabalho: é de apoiar, criar condições, via política macroeconômica,
regulamentar o mercado de trabalho, colaborar com iniciativas criativas de associações e empresas.
“O Estado tem também o direito de intervir quando situações particulares de monopólio criem
atrasos ou obstáculos ao desenvolvimento. Mas, além dessas tarefas de harmonização e
condução do progresso, pode desempenhar funções de suplência em situações excepcionais,
quando setores sociais ou sistemas de empresas, demasiado débeis ou em vias de formação, se
mostram inadequados à sua missão” (CA, 48).
Na economia surgem monopólios “necessários” e “inevitáveis”. Se a multiplicação de empresas
no mesmo setor representar esbanjamento de recursos por duplicação de equipamento para a mesma
produção, temos um monopólio “necessário”. O exemplo seria de várias empresas distribuidoras de
eletricidade, cada qual com toda a rede de postes e fios. O monopólio “inevitável” resulta de
concorrência que, dada a natureza do setor, elimina rapidamente concorrentes. Há setores em que o
próprio tamanho, ao permitir economias de escala, favorece que cresça ainda mais rapidamente quem
já cresceu – e liquida quem não cresceu a tempo.
Em ambos os casos, para defender os interesses de consumidores, trabalhadores e fornecedores, o
Estado tem que assumir a gerência (isolada, ou associada) e o controle através de “agências
controladoras”, desde que estas sejam realmente independentes dos produtores.
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É direito e dever do Estado legislar novos direitos, acompanhando a evolução histórica da
consciência coletiva sobre os direitos humanos. Mas esta função do Estado é limitada (e animada!)
pelo direito dos cidadãos a terem respeitados seus direitos e, conseqüentemente, pelo que se chamou
“o direito que nasce da rua”, criado pela sociedade organizada e a ser reconhecido pelo Estado.
João XXIII (Pacem in Terris 135 e 141) reflete como há cada vez mais inter-relações em nível
global, que escapam à possibilidade de intervenção do Estado nacional e afetam as condições de vida
de grande número de seres humanos, muitos dos quais nem sabem dos porquês globais das mudanças
e dos problemas que os concernem.
Assim que se constitui algo como um bem comum planetário, a ser cuidado. A razão de ser da
autoridade pública é o cuidado do bem comum e o zelo para que as estruturas jurídicas e técnicas se
ajustem a este serviço. Ora, nas novas condições esse bem comum adquiriu dimensões planetárias.
Donde parece sempre mais necessário urgir o surgimento de uma verdadeira autoridade mundial,
participada, plural, solidária e subsidiária, mas precisamente com tudo isto, efetiva.
O problema da inadequação das estruturas globais, identificado por João XXIII em 1963, parece
ter se agravado desde então. Os textos da Mater et Magistra revelam uma surpreendente atualidade,
não só no diagnóstico como no remédio proposto.
“Pode-se, portanto, afirmar que na presente conjuntura histórica não se verifica uma
correspondência satisfatória entre a estrutura política dos Estados com o respectivo
funcionamento da autoridade pública no plano mundial, e as exigências objetivas do bem comum
universal” (PT, 135).
“Os poderes públicos da comunidade mundial não têm como fim limitar a esfera de ação dos
poderes públicos de cada comunidade política e nem sequer de substituir-se a eles. Ao invés,
devem procurar contribuir para a criação, em plano mundial, de um ambiente em que tanto os
poderes públicos de cada comunidade política, como os respectivos cidadãos e grupos
intermediários, com maior segurança, possam desempenhar as próprias funções, cumprir os seus
deveres e fazer valer os seus direitos” (PT, 141).
O cristão e a política
O objeto da caridade é que “o outro” tenha vida e vida mais plena. “Fazer-me próximo” do outro
como o samaritano é assumir o empenho disto. Ora, quanto mais universal, mais efetiva a minha
ação. Santo Inácio de Loyola diz “todo bem, quanto mais universal, mais divino” (e já está citando
autores anteriores a ele, como sabedoria adquirida do povo cristão). Destarte, como reflete Paulo VI,
a ação política dos cristãos é forma exímia e eminente de caridade. Ela deve pautar-se pela coerência
de opções com os valores do Evangelho e pela eficácia das ações. Assim se expressa o Papa:
A política é uma maneira exigente – se bem que não seja a única - de viver o compromisso
cristão, ao serviço dos outros... Reconhecendo muito embora a autonomia da realidade política,
esforçar-se-ão os cristãos solicitados a entrar na ação política por encontrar uma coerência
entre as suas opções e o Evangelho e, dentro de um legítimo pluralismo, por dar um testemunho,
pessoal e coletivo, da seriedade de sua fé mediante um serviço eficaz e desinteressado para com
os homens” (OA, 46).
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Para o cristão, não há moral da razão de Estado (ações que servem os interesses do Estado, mas
que atentam, por exemplo, contra direitos dos cidadãos). Não há ética pública independente e distinta
da ética fundada na dignidade humana e ultimamente no evangelho de Jesus Cristo. Isso não exime o
governante e o cidadão, de tomar difíceis decisões morais, na linha do “mal menor”, sobretudo em
situações limite de pecado, de miséria, de violência. Pode ser um dever doloroso equilibrar a “moral
da convicção”, regida por princípios e a “moral da responsabilidade”, que deve tomar em conta as
circunstâncias reais, que às vezes não permite fazer o que seria o mais justo. As razões podem ser
diversas, mas freqüentemente não de faz o que seria justo por falta absoluta de recursos. O dever que
estão se impõe é examinar se a ordem de prioridades na aplicação dos recursos é a mais correta.
A multiplicação e complexificação das relações sociais no nosso mundo torna o papel do Estado
também mais complexo. Exige do Estado que penetre mais profundamente em toda a vida social, o
que requer tanto mais discernimento dos cristãos e lhes coloca a obrigação de se informarem melhor.
Exigência que a fé coloca para o cristão engajado na política é a necessidade de agir. Análises,
denúncias e estudo das soluções não bastam. É preciso orientar esses elementos para tomada de
decisões e para o empenho na ação. O medo de errar não pode levar o cristão à paralisia, que seria um
erro ainda maior.
Essa ação será tanto mais eficaz quanto mais ela for acompanhada pela conversão pessoal e do
humilde reconhecimento que somos co-responsáveis pelos males sociais que nos cercam.
“Não basta recordar os princípios, afirmar as intenções, fazer notar as injustiças gritantes e
proferir denúncias proféticas; estas palavras ficarão sem efeito real, se elas não forem
acompanhadas, para cada um em particular, de uma tomada de consciência mais viva da sua
própria responsabilidade e de uma ação efetiva. É demasiadamente fácil jogar sobre os outros a
responsabilidade das injustiças se não se dá ao mesmo tempo conta de como se tem parte nela e
de como a conversão pessoal é necessária, mais do que qualquer outra coisa” (OA, 48)
O cristão atuante na política é animado de uma profunda esperança. Quais as razões dessa
esperança? São, pelo menos, duas. Primeira, a certeza teológica que o Senhor continua no meio de
nós e acompanha nossas ações, operando por meio de nós. A outra vem da experiência do bem e de
uma visão positiva das coisas. O cristão sabe que não está sozinho. Deus opera em outras pessoas e
grupos, inspirando-lhes ações a favor da justiça da paz. Nossa ação se junta à de muitas outras
pessoas, até formar uma grande corrente, capaz de mudar mentes e estruturas. Escreve Paulo VI:
“A esperança do cristão provém-lhe, antes de mais nada, do fato de ele saber que o Senhor está a
operar conosco no mundo, em que ele continua no seu corpo que é a Igreja – e, por ela, na
humanidade inteira – a redenção realizada na cruz e que resplandeceu em vitória na manhã da
ressurreição. Tal esperança provém-lhe igualmente do fato de ele saber que outros homens estão
também a operar no sentido de se empreenderem ações convergentes de justiça e paz” (OA, 48).
O cristão crê na renovação do mundo, por força da presença do Verbo de Deus encarnado. De
fato, pela encarnação, de algum modo, todo mundo foi assumido por Deus, que assim o prepara para
uma nova criação, para fazer novas todas as pessoas e todas as coisas. Nisso reside, talvez, a maior
fonte de energia espiritual do cristão engajado na política.
Terminamos com palavras de João Paulo II, falando da nova criação realizada em Jesus Cristo,
segundo a profecia do Apocalipse “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5):
“O cristão sabe que esta novidade, cuja plenitude aguardamos com o regresso do Senhor, esta
presente desde a criação do mundo e, mais precisamente, desde que Deus se fez homem em Jesus
Cristo, e com Ele e por Ele realizou uma nova criação (2Cor 5,17; Gl 6,15)” (CA, 62).
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Perguntas para Reflexão
1. Concordamos com a afirmação de que “quanto menos governo nos negócios e menos negócios
nos governos, melhor”? Ou só com uma parte, ou só em parte?
2. À luz do Evangelho é mais cristão interessar-se por política e participar nela, ou não? Por quê?
3. Quando o poder público faz uma lei (de trânsito, por exemplo), isto tem algo a ver com o amor
efetivo do próximo pregado por Jesus?
4. O detentor de cargo público nomear parentes e amigos por serem amigos e parentes, é correto
amor do próximo mais próximo?
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Capítulo 7
Transformações e Reformas
Pe. Bernard Lestienne, SJ
Nos passos de Cristo
O nosso Deus, o Pai de Jesus Cristo, é um Deus de amor. A manifestação suprema deste amor se
manifestou na encarnação de Cristo. Jesus veio habitar entre nós para revelar o Reino de Deus, próximo
de nós. Jesus passou fazendo o bem, curando, anunciando o Reino, mostrando atenção e carinho para os
pequenos e pobres, denunciando a hipocrisia dos chefes religiosos do seu povo. Jesus anuncia o Reino do
Pai, reino de paz, de justiça, de amor. Vem satisfazer a esperança dos pobres. Esta ainda está muito viva
hoje no meio dos empobrecidos e injustiçados. Jesus quis renovar a Lei judaica, transformar os preceitos
e as normas em gestos de amor concreto. Pagou caro por esse sonho. Morreu crucificado pelos poderosos
que defendiam a ‘ordem’ deles, os seus interesses.
A ressurreição é a vitória do Reino de Deus sobre o reino das trevas. É a vitória da paz, da justiça
e do amor entre os homens. A missão dos discípulos é de continuar a obra de Cristo, de participar na
construção do Reino de paz e amor. Trata-se hoje de libertar os pobres das cadeias da pobreza e miséria,
e todos os homens da escravidão da idolatria do dinheiro, do consumismo e do materialismo que
destroem a solidariedade e generalizam o egoísmo. Cristo quis, e ainda quer, que os homens possam
viver como filhos de Deus, irmãos e felizes, com dignidade, em harmonia entre eles, com a natureza, e
com o Pai de amor. O Cristão é cidadão, com compromisso na transformação da sociedade para uma
convivência mais justa, fraterna e solidária.
Um país rico com muitos pobres
Brasil, país abençoado por Deus, do qual os homens não cuidam. Em todas partes, encontram-se
recursos naturais em abundância: florestas, terras férteis, pantanais, rios e lagos, minerais e aqüíferos, etc.
A beleza das paisagens enche da paz os corações. Múltiplos povos, raças e religiões expressam sua
alegria de viver com grande criatividade cultural. Simpatia e solidariedade tecem as redes da vida.
Ora, passando pelos campos e periferias urbanas, espanta-se a gente diante de tamanha pobreza,
miséria, fome, destruição da natureza, poluição dos rios e do ar, violência, consumo de drogas e
prostituição, etc. O povo sofre, passa mal, perde a confiança e a esperança. Em contraste, em outros
recintos, nos bancos e atrás dos sistemas de segurança, uns poucos acumulam fortunas infinitas,
desproporcionadas. A beleza e as riquezas do país e do seu povo parecem ameaçadas.
Algumas estatísticas ilustram o quadro desolador. A Síntese de Indicadores Sociais 2002, lançada
pelo IBGE, confirma que o traço mais marcante da sociedade brasileira é a desigualdade.
Neste ano, 1% mais rico recebeu a mesma renda que os 50% mais pobres; e os 10% mais ricos
receberam 18 vezes mais que os 40% mais pobres!
Cerca de 1% dos proprietários são donos de 46% de todas as terras, e 2% de 48% das terras
férteis! Para a terra, o índice que calcula a concentração da propriedade (o coeficiente 0 significaria que
todos os proprietários tivessem a mesma superfície, e o coeficiente 1 que um só dono tivesse todas as
terras) oscilou, entre 1967 e 1999, de 0,831 a 0,854, sendo entre os mais altos do mundo. 5% da
população possuem 75% de todas as riquezas do país, e 5.000 famílias 45% delas!
Metade dos trabalhadores ganha até dois salários mínimos, mas 71,3% das mulheres recebem este
montante.
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De acordo com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a distância entre os 20%
mais ricos e os 20% mais pobres é de 5 vezes na Índia; 8 vezes, nos EUA; 13 vezes, no México; 18
vezes, no Chile, e 33 vezes, no Brasil.
O país tem um terço de muito pobres (57 milhões), com renda inferior a ½ salário por mês (+/- 1
dólar por dia).
Dos recursos destinados aos aposentados, quase a metade vai para os 10% mais ricos da
população. E mais da metade da população ocupada não contribui para a Previdência.
Em 2001, o rendimento médio da população ocupada preta e parda ficou em torno de 50% do
rendimento dos brancos.
Sete grupos, em situação de monopólio, controlam a mídia e a informação no país.
Quarenta mil pessoas são assassinadas cada ano. Há uma guerra social, de classe.
No “ranking” da qualidade de vida (renda, saúde, educação), o Brasil está na 69a posição.
Em 2001, o Brasil tem a 4a pior distribuição de renda do mundo (de fato, entre os cem paises que
têm estatísticas suficientes para medir o índice). O país fica em segundo lugar na América Latina.
Esses dados, e outros disponíveis entristecem e provocam a indignação. A Igreja e os cristãos não
podem passar sem ‘parar’ ao lado desta realidade brutal, como o sacerdote e o levita passaram ao lado do
homem assaltado e jogado na beira do caminho de Jericó (Lc 10, 25-37). A indignação, humana e
espiritual, provoca à ação. Querer transformar uma situação inaceitável exige a analise, entender as
causas e conseqüências.
Brasil: casa grande e senzala; de onde vem, a onde vai?
Os resultados do estudo de Gilberto Freire continuam válidos, mesmo que com traços diferentes:
uma minoria se apropria dos frutos do trabalho de muitos que vivem na dependência desta ‘elite’. Muitas
razões explicam a permanência desta situação; vejamos apenas algumas.
O grêmio ruralista, com forte representação no Congresso, continua sendo um dos mais
organizados e poderosos na defesa dos seus latifúndios. A propriedade da terra continua sendo sinal de
riqueza e de poder. Nenhuma Reforma Agrária veio contestar a estrutura fundiária concentradora do país.
Aos poucos, trabalhadores agrícolas e pequenos produtores familiares foram expulsos da terra para as
periferias urbanas. São mais de 4 milhões de famílias sem terra. A produção é orientada para a
exportação, destruindo a soberania alimentar do povo brasileiro.
A democracia, em suma, é recente, ainda fraca, em construção apenas desde 1985, com o fim da
ditadura militar. Só desde então o povo se organiza de maneira mais autônoma na defesa dos interesses
da maioria. A participação do povo na vida política, com os seus partidos e organizações, é nova, ainda
pouco estruturada. Pobreza e falta de preparação crítica mantiveram laços de dependência com respeito
aos líderes políticos. Ao longo dos séculos, a maquina do Estado – em particular o poder judiciário
fortemente corrompido – foi ‘privatizada’, ao serviço duma minoria, dona da riqueza e do poder, mal
disposta a ‘partilhar’ seus privilégios. Por muito tempo, a questão social foi uma questão de polícia.
Apesar de tamanhas desigualdade e pobreza, reformas de fundo dos principais sectores da
sociedade (agrária, urbana, tributária, trabalhista, política, previdenciária, educacional, fiscal, etc.), para
dar mais chances aos desfavorecidos, nunca foram implantadas. Até o atual governo Lula, de extração
popular, não consegue fazê-las de verdade. Os investimentos na saúde e educação públicas estão a anosluz das necessidades do povo. A burguesia não quer abrir mão dos seus privilégios. Os meios de
comunicação social, nas mãos de poucos, justificam a situação e atacam as lutas em favor duma maior
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justiça. A mobilização dos ruralistas, inclusive violenta, contra o MST (movimento social de maior
atuação social nos últimos 20 anos) ilustra esse bloqueio da ‘elite’ à evolução social e política. Além do
mais, esta ‘elite’ implementa um modelo de desenvolvimento competitivo e excludente. No plano moral,
tamanha insensibilidade aos sofrimentos do povo traduz a ausência de valores e princípios de
solidariedade humana, conseqüência dum profundo egoísmo coletivo, de classe.
Já alguns números desenharam a brutalidade da pobreza e miséria no nosso país tão rico. As
razões consideradas acima têm outras conseqüências mais profundas além do quadro desolador da
injustiça. A segmentação da sociedade em classes (por exemplo: alta burguesia: 1 - 2%; burguesia: 10%;
classe media: 20%, trabalhadores: 40%; excluídos: 30%) se consolida e perpetua. A esperança dum
avanço na hierarquia social diminui enquanto o risco da marginalização e exclusão aumenta. Crescem
então a resignação e o fatalismo – “este país não tem jeito” – que reforçam ainda mais a situação atual e
servem os interesses dos dominantes.
A mercantilização geral – tudo se compra, tudo se vende – leva ao materialismo, e à perda dos
valores e atitudes tradicionais humanos e religiosos do povo, tais como a solidariedade, a comunicação e
o calor humano. A natureza mesma sofre as agressões da sua comercialização e da falta de cuidado. As
periferias urbanas são reservatórios de muita violência, que atinge também todos os setores da sociedade.
É o conjunto da qualidade da vida e a nossa ‘humanidade’ mesma, enquanto seres humanos, que são
atacados e ameaçados de destruição progressiva.
À luz do Ensino Social da Igreja
O Ensino Social da Igreja (ESI) joga um olhar crítico e construtivo sobre a realidade social, à luz
do Evangelho e da Tradição espiritual e teológica da Igreja. O seu horizonte é o Reino de paz, justiça e
fraternidade, inaugurado e proclamado por Jesus, que é também o horizonte da atuação dos cristãos
comprometidos na transformação social. Vejamos alguns princípios e valores deste ESI numa
perspectiva crítica e construtiva, como tentamos fazê-lo até agora.
Sabemos como é difícil viver o Evangelho na sua radicalidade e aplicar os princípios do ESI na
vida política, econômica e social. Estranha, de fato, ver o Brasil, país com uma das maiores porcentagens
de cristãos e católicos, com uma das piores distribuições da riqueza. E como explicar que 30 ou 50
milhões de brasileiros passem fome quando o país é um dos primeiros exportadores agrícolas do mundo?
Essa situação não corresponde aos valores do Reino.
O Evangelho de Jesus Cristo é mensagem de liberdade e força de libertação... A
libertação é antes de tudo e principalmente libertação da escravidão radical do pecado.
Seu objetivo e seu termo é a liberdade dos filhos de Deus, que é dom da graça. Ela
exige, por uma conseqüência lógica, a libertação de muitas outras escravidões de ordem
cultural, econômica, social e política que, em última análise, derivam todas do pecado e
constituem outros tantos obstáculos que impedem os homens de viverem segundo a
própria dignidade.
(Libertatis Nuntius, introdução).
Por isso, desejo chamar a atenção para alguns índices genéricos, sem excluir outros
específicos. Não querendo entrar na análise numérica ou estatística, bastará olhar para a
realidade de uma multidão inumerável de homens e mulheres, crianças, adultos e
anciãos, isto é, de pessoas humanas concretas e irrepetíveis, que sofrem sob o peso
intolerável da miséria. O número daqueles que não têm esperança, pelo fato de que, em
muitas regiões da terra, a sua situação se agravou sensivelmente, são milhões e milhões.
Perante estes dramas de total indigência e necessidade, em que vivem tantos dos
nossos irmãos e irmãs, é o próprio Senhor Jesus que vem interpelar-nos (cf. Mt 25,3146).
(Sollicitudo Rei Socialis, n.13)
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Deixar milhões de pessoas viverem nas condições de pobreza ou miséria onde estão é falta de
respeito à dignidade dos seres humanos, de filhos/as de Deus. Ora o respeito da dignidade de qualquer
ser humano é um principio básico da moral social cristã, correspondendo ao mandamento evangélico do
amor. Tampouco tamanha desigualdade combina com o princípio da justiça. A tradição cristã proclama
que os bens da terra são para todos, e que ninguém pode ficar excluído da sua distribuição. Ora bem, a
riqueza dos ricos se constrói a partir da pobreza dos empobrecidos. A exclusão e marginalização de
milhões de pobres significa uma ruptura da unidade da família humana. A situação dramática de muitos
trabalhadores desempregados traduz a inversão, ainda mais acentuada na lógica de deregulação do
neoliberalismo, da primazia do trabalho sobre o capital, principio fundamental do ESI.
Para a Igreja, a mensagem social do Evangelho não deve ser considerada uma teoria,
mas sobretudo um fundamento e uma motivação para a ação. Impelidos por esta
mensagem, alguns dos primeiros cristãos distribuíram os seus bens pelos pobres e
davam testemunho de que era possível uma convivência pacífica e solidária, apesar
das diversas proveniências sociais...
A Igreja está consciente hoje mais do que nunca de que a sua mensagem social
encontrará credibilidade primeiro no testemunho das obras e só depois na sua
coerência e lógica interna. Desta convicção provém também a sua opção preferencial
pelos pobres, que nunca será exclusiva nem discriminatória relativamente aos outros
grupos.
(CA, n. 57)
É a todos os cristãos que nós dirigimos de novo e ainda de uma maneira insistente, um
apelo à ação. Na nossa Encíclica Populorum Progressio (sobre o desenvolvimento dos
povos) insistíamos já, para que todos pusessem mãos à obra: “Os leigos devem
assumir como sua tarefa própria a renovação da ordem temporal...”(cf. PP, n. 81).
Seria bom que cada um procurasse examinar-se, para ver o que já fez até agora e
aquilo que deveria fazer. Não basta recordar os princípios, afirmar as intenções, fazer
notar as injustiças gritantes e proferir denúncias proféticas; estas palavras ficarão sem
efeito real, se elas não forem acompanhadas, para cada um em particular, de uma
tomada de consciência mais viva de sua própria responsabilidade e de uma ação
efetiva.
(OA, n. 48)
...deve voltar-se a atenção antes de mais nada para um problema fundamental. Tratase do problema de ter trabalho ou, por outras palavras, do problema de encontrar um
emprego adaptado para todos aqueles sujeitos que são capazes de o ter. O contrário
de uma situação justa e correta neste campo é o desemprego, isto é, a falta de lugares
de trabalho para as pessoas que são capazes de trabalhar.... E o desemprego torna-se
um problema particularmente doloroso quando são atingidos sobretudo os jovens.... A
obrigação de conceder fundos em favor dos desempregados, quer dizer, o dever de
assegurar as subvenções indispensáveis para a subsistência dos desempregados e
das suas famílias, é um dever que deriva do princípio fundamental da ordem moral
neste campo.
(LE, n. 18)
A Igreja sublinha o papel do Estado para promover o Bem Comum. Ora, o Estado privatizado não
prioriza os direitos de todos, mas apenas os privilégios duma minoria, nem promove o princípio de
solidariedade, básico na concepção cristã da vida social e política. Da mesma maneira, a falta de
participação do povo nas decisões políticas é a negação do principio de subsidiariedade (que as decisões
sejam tomadas ao nível mais próximo daquele onde elas terão o maior efeito), chave duma verdadeira
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democracia participativa. A idolatria do dinheiro pelo consumismo, e a regulação da sociedade pelas leis
do mercado instalam a competição como atitude relacional básica, e destroem os valores de comunhão e
gratuidade, e a dimensão espiritual da vida social que estão na base duma sociedade fraterna.
Também neste âmbito, se deve respeitar o princípio de subsidiariedade: uma
sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de
ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apóia-la em caso
de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua ação com a das outras componentes
sociais, tendo em vista o bem comum (CA, n. 48).
O que se pede aos governantes é um concurso de ordem geral, que consiste em
toda a economia das leis e das instituições; queremos dizer que devem fazer de
modo que da mesma organização e do governo da sociedade brote
espontaneamente e sem esforço a prosperidade, tanto pública como particular. Tal é,
com efeito, o ofício da prudência civil e o dever próprio de todos aqueles que
governam.... Assim como, pois, por todos estes meios, o Estado pode tornar-se útil à
outras classes, assim também pode melhorar muitíssimo a sorte da classe operária e
isto em todo o rigor do seu direito, e sem ter a temer a censura de ingerência;
porque, em virtude mesmo do seu ofício, o Estado deve servir o interesse comum. E
é evidente que, quanto mais se multiplicarem as vantagens resultantes desta ação de
ordem geral, tanto menos necessidade de recorrer a outros expedientes para
remediar a condição dos trabalhadores (RN, n. 48).
O materialismo e o apetite do lucro desenvolvem uma visão apenas utilitarista da natureza, cuja
beleza e gratuidade são ignoradas, que leva a uma exploração incontrolada dos recursos naturais, sem
respeito da integridade da criação, nem responsabilidade em relação à possibilidade e às condições de
vida das gerações futuras.
O sétimo mandamento manda respeitar a integridade da Criação. Os animais, tal
como as plantas e os seres inanimados, estão naturalmente destinados ao bem
comum da humanidade passada, presente e futura. O uso dos recursos minerais,
vegetais e animais do universo não pode ser separado do respeito pelas exigências
morais. O domínio dado pelo Criador ao homem sobre os seres inanimados e os
seres vivos não é absoluto, é medido através da preocupação pela qualidade de vida
do próximo, inclusive das gerações futuras; exige um respeito religioso pela
integridade da criação.
(CIC, n. 2415)
A segunda consideração funda-se, por sua vez, na convicção, dir-se-ia mais
premente, da limitação dos recursos naturais, alguns dos quais não são renováveis,
como se diz. Usa-los como se fossem inexauríveis, com absoluto domínio, põe em
perigo seriamente a sua disponibilidade, não só para a geração presente, mas
sobretudo para as gerações futuras.
.... Torna-se evidente, uma vez mais, que o desenvolvimento e a vontade de
planificação que o orienta, assim como o uso dos recursos e a maneira de os utilizar,
não podem ser separados do respeito das exigências morais. Uma destas impõe
limites, sem dúvida, ao uso da natureza visível.
(SRS, n. 34)
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Transformações e reformas
Na perspectiva da construção do Reino de paz e justiça, tanto o Evangelho como o Ensino Social
da Igreja chamam os cristãos a participar da transformação da sociedade. Aliás, qualquer que seja o nível
de integração e desenvolvimento social da sociedade (com melhor redistribuição da riqueza e do poder)
as transformações são sempre necessárias. Nenhuma sociedade é tão perfeita que não necessite
melhorias, às vezes muito mais além do que parece. E hoje, a dimensão nacional não é o horizonte
definitivo. Num mundo globalizado, qualquer sociedade no seu projeto de progresso deve se abrir aos
seus próximos, mais imediatos ou distantes.
Transformação, reforma ou revolução sociais? A pergunta parece menos relevante que nos anos
60 ou 70. A situação da sociedade brasileira – e a da sociedade mundial – é tão distante do horizonte do
Reino, que precisaria duma ‘revolução’, no sentido duma volta total para se encontrar num novo ponto de
partida. Mas sabemos que as mudanças, por radicais ou aceleradas que sejam, se dão por etapas,
progressivamente. Definindo a revolução como total, a reforma como ampla e a transformação como
parcial, percebe-se que tem reformas e transformações, que, se contínuas e profundas, são
revolucionárias. Amplamente implementado, o programa Fome Zero do atual governo teria um teor
revolucionário.
O problema é que “no Brasil não se fazem nem reformas nem revoluções” escrevia há pouco um
cientista reconhecido. “Nem transformações profundas” poderíamos acrescentar. A ‘elite’ tem medo e
odeia qualquer transformação que restrinja, mesmo que pouco, os seus privilégios. No começo dos anos
60, a pressão popular em favor de reformas (agrária, tributária, política e sindical) deslanchou o golpe
militar em 1964, sob pretexto de ameaça comunista.
Quem hoje negaria a necessidade de profundas mudanças para combater a pobreza e a
desigualdade? Vários partidos políticos reformistas, em favor duma modernização do Brasil, colocaram
nos seus programas eleitorais a necessidade de promover várias reformas: agrária, urbana, trabalhista,
sindical, política, previdenciária, tributária, fiscal, da saúde e da educação, etc. No entanto, 40 anos
depois, num contexto político e ideológico totalmente diferente do de 1964, parece impossível mudar as
estruturas desiguais do país. Esse bloqueio não vem apenas das pressões do ‘mercado’ financeiro
internacional, mas também, e sobretudo, das pressões internas de parte duma minoria possuidora, cujos
interesses são estreitamente ligados aos do mercado mundial.
As duas principais ‘reformas’ feitas às pressas, em 2003, pelo governo Lula, não resultaram de
um amplo debate em toda a sociedade. Em 2002, o governo Fernando Henrique Cardoso negociou com o
FMI que essas duas reformas seriam feitas no ano seguinte. Pautadas pelas exigências do Fundo, não
foram aproveitadas como oportunidades para reduzir as desigualdades. Nesta ocasião, como em muitas
outras (especialmente no que diz respeito ao pagamento dos juros das dívidas), foi ainda mais clara a
dependência – e submissão – do país ao FMI. Parece que o país não quer afirmar certa autonomia.
Uma reforma fiscal que reconsiderasse o pagamento das dívidas externa e interna (auditoria,
renegociação, moratória, anulação) é mais urgente do que nunca para liberar recursos para o
desenvolvimento social, que o governo pretende promover. A dívida externa de muitos países no mundo
já foi paga várias vezes e constitui um dos principais obstáculos ao desenvolvimento.
A crescente interdependência global torna mais difícil empreender reformas profundas a nível
nacional. (Cf. o capítulo 8. sobre a Comunidade Internacional). No entanto, cada país tem uma margem
de autonomia política (tanto maior quanto é o seu poder), para definir políticas próprias. O governo Lula
beneficia de um apoio popular que lhe permitiria, se o quisesse, implementar as reformas prometidas.
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Como fazer? Os métodos e estratégias de transformação
Um governo só dificilmente pode empreender e levar a cabo transformações sociais de fundo,
para redistribuir as riquezas ou o poder na sociedade. As reformas sólidas e estáveis – sustentáveis – se
realizam com a participação consciente dos mais diretamente interessados. Reencontramos aqui uma
dimensão da subsidiariedade, que promove a tomada de decisões ao nível mais próximo do qual elas
terão o maior efeito. O papa João XXIII nas suas duas encíclicas Mater et Magistra (Mãe e Mestra) de
1961 e Pacem in Terris (A Paz dos Povos) de 1963, e a Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II
Gaudium et Spes (Alegrias e Esperanças) promoveram os méritos da democracia, como forma elevada de
organização política. O Ensino social tradicional da Igreja promove a participação das organizações
intermediárias e de todos cidadãos. Esse modelo está mais perto da democracia participativa, que busca
seu caminho, que da democracia representativa, em crise em muitos países.
Além da família, também outras sociedades intermediárias desenvolvem funções
primárias e constroem específicas redes de solidariedade. Estas, de fato,
amadurecem como comunidades reais de pessoas e dinamizam o tecido social,
impedindo-o de cair no anonimato e na massificação, infelizmente freqüente na
sociedade moderna. É na múltipla atuação de relações que vive a pessoa e cresce
a “subjetividade” da sociedade. O indivíduo é hoje muitas vezes sufocado entre os
dois pólos: o Estado e o mercado. Às vezes dá a impressão de que ele existe
apenas como produtor e consumidor de mercadorias ou então como objeto da
administração da Estado, esquecendo-se que a convivência entre os homens não
se reduz ao mercado nem ao Estado.
(CA, n. 49)
A organização do povo para defender ou promover os seus direitos faz parte da democracia. A
igualdade e justiça social, sempre frágeis e ameaçadas de retrocesso, são o resultado de longas
conquistas, corajosas e dolorosas. A “luta” é parte intrínseca da construção da liberdade e igualdade.
Entre muitas outras histórias de luta, a do movimento operário ilustra os numerosos sacrifícios na
defesa da dignidade e dos direitos dos trabalhadores. Falar de reformas é falar da necessidade das
lutas sociais e populares. Sem pressão das ‘ruas’ é difícil imaginar mudanças de peso.
Muitas vezes a palavra ‘luta’ assusta. É que para muitos ela significa violência. Esquece-se muitas
vezes a situação de violência pela dominação ou exploração que gera os conflitos. Estes não estouram
sem razão. Nunca é para brincar, ou de ‘coração alegre’, que os trabalhadores ou o povo começam
um conflito ou uma greve. Sabem os riscos de repressão e de violência que correm, e quais situações
ainda mais dolorosas podem sofrer. Mesmo que ilegais, muitas lutas para defender a vida e a
dignidade diante da iniqüidade extrema são legítimas. A maioria das vezes, a violência surge do lado
dos que defendem os seus privilégios (riquezas e poderes), recorrendo a quaisquer meios. A violência
nasce onde falta a disposição para o diálogo e a negociação.
A Igreja estende a sua corajosa defesa da classe trabalhadora no Ensino Social da Igreja desde a
Rerum Novarum (Coisas Novas) até a Laborem Exercens (O Trabalho Humano) a muitos outros
novos grupos empobrecidos, marginalizados e excluídos. A Igreja reconhece que existem conflitos e
confrontos quando os caminhos do diálogo e da negociação não permitem chegar a acordos para
superar interesses contraditórios. Num contexto de escandalosa injustiça e desigualdade, diante da
falta de perspectivas de mudanças pela via legal, muitos pastores expressam a sua solidariedade
evangélica com as lutas dos movimentos sociais (invasões de terra improdutiva pelo MST, de
edifícios urbanos desocupados pelos sem teto, ou as greves nos setores público e privado, etc.), pois
não querem defender uma concepção da propriedade privada ilimitada, oposta ao Ensino Social da
Igreja.
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É necessário recordar mais uma vez o princípio típico da doutrina social cristã: os
bens deste mundo são originariamente destinados a todos. O direito à
propriedade privada é válido e necessário, mas não anula o valor de tal princípio.
Sobre a propriedade, de fato, pesa “uma hipoteca social”, quer dizer , nela é
reconhecida, como qualidade intrínseca, uma função social, fundada e justificada
precisamente pelo princípio da destinação universal dos bens.
(SRS, n. 42)
“Em casos de conflitos econômico-sociais, é preciso esforçar-se para encontrar
soluções pacíficas. Mas, ainda que antes de mais nada se deva recorrer ao
sincero diálogo entre as partes, todavia, a greve pode ainda constituir, mesmo
nas atuais circunstâncias, um meio necessário, embora extremo, para defender
os próprios direitos e alcançar as justas reivindicações dos trabalhadores.
(GS, n. 68)
Ao agiram em prol dos justos direitos dos seus membros, os sindicatos lançam
mão também do método da greve, ou seja, da suspensão do trabalho, como de
uma espécie de “ultimatum” dirigido aos órgãos competentes e, sobretudo, aos
dadores de trabalho. É um modo de procede que a doutrina social católica
reconhece como legítimo, observadas as devidas condições e nos justos limites.
(LE, n. 20)
Muitos cristãos são induzidos a dar autênticos testemunhos da justiça mediante
diversas maneiras de atuar em favor da mesma justiça, inspiradas pela
caridade em conformidade com a graça que receberam de Deus. Para alguns
deles essa atuação verifica-se no âmbito das lutas sociais e políticas, em que
os cristãos dão testemunho do Evangelho, demonstrando que na história há
fontes de progresso distintas da luta, como sejam, o amor e o direito. Esta
prioridade do amor, na história, leva outros cristãos a preferirem o caminho da
ação não-violenta e a atuação na opinião pública.
(JN, n. 39)
A Igreja não condena o conflito social, mas descarta o recurso à violência. No momento de ser
preso, Jesus não resistiu pela força, mandou a Pedro guardar a espada na bainha, e, no momento da
morte, perdoou a os seus carrascos. Sinal dum amor sem limite, Jesus chama os seus seguidores a amar
os seus inimigos. A violência gera mais violência. A não-violência, como resposta à violência, é um sinal
de respeito da dignidade e da vida do outro, um gesto de confiança na capacidade dele de deixar a sua
própria violência. A não-violência não é renúncia ou abandono da luta. Ela quer ser ativa, como melhor
estratégia para a melhor solução dos conflitos.
Questões para reflexão e debate:
1)- Quais são as marcas na sociedade que manifestam a necessidade de reformas?
2)- De onde vêm as injustiças profundas e duráveis no Brasil? Por que a situação não muda?
3)- Quais são na sua opinião os melhores métodos de transformação? Quais princípios do Ensino Social
da Igreja são implícitos nesses métodos?
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Capítulo 8
A Comunidade Internacional
Pe. Bernard Lestienne, SJ
A formação duma comunidade internacional
Em continuidade do que já foi considerado, este capítulo quer explorar uma outra vertente do
nosso ser social: a dimensão além das fronteiras, o lado mundial, a nossa pertença à humanidade comum,
considerada como família humana.
Vivemos algo novo. Certamente, sempre os homens buscaram ir além das fronteiras. Hoje,
porém, o fenômeno é muito mais generalizado e mexe com todos os aspectos da vida. As distâncias se
reduzem e as fronteiras são sempre mais virtuais. Estas representam mais um convite para ir além do que
um obstáculo para viajar e comunicar. A globalização, que se acelera e se intensifica, representa um
enorme potencial de integração do gênero humano. A gente conhece mais e melhor a variedade das
culturas e valores. Muitas vezes, esta é percebida como riqueza, como um apelo a mais abertura e
unidade. A globalização aumenta a possibilidade duma maior unidade e paz entre todos os povos,
alcançando assim o velho sonho da humanidade.
As novas tecnologias, que evoluem com toda velocidade, oferecem novas possibilidades
insuspeitadas de vida digna para cada um e para todos. Fala-se, não sem razão, da “aldeia global” para
significar a redução das distâncias e das fronteiras, a maior comunicação entre todos, e a
responsabilidade comum de preservar o nosso planeta único e de construir essa terra nova, esse mundo
novo de felicidade e paz, onde todos poderíamos viver como família humana. Com otimismo, a partir de
sua reflexão sobre a evolução da criação, o padre Pierre Teilhard de Chardin descreveu o processo de
humanização e unificação espirituais crescente da nossa humanidade.
O nosso destino, de pessoas ou de países, é comum. Faremos sucesso ou fracassaremos juntos. A
interdependência cresce. Muitos problemas não podem ser resolvidos sozinho por um ou outro país por
poderoso que seja. Os desafios de erradicar a miséria, de preservar o planeta, de domar a violência, de
construir a paz e a justiça para todos só podem ser adequadamente encarados a nível mundial.
Não faltam, muitas vezes, motivos para virar céticos, desanimar ou achar que nossa humanidade
não tem jeito; tamanhas são as injustiças, desigualdades e violências! Pessoas ou países ricos parecem
cegos à miséria dos outros e oprimem os pobres além dos limites humanos. A indignação invade o
coração dos justos. Eles são muitos, gente de fé e/ou de boa vontade; sabem que o dom da paz e da
justiça é o fruto de muita generosidade, gratuidade e fidelidade. Vejamos alguns passos recentes na
formação da comunidade internacional.
Etapas e ferramentas históricas na formação da comunidade internacional
Puxado pelos avanços tecnológicos, o comércio é o motor principal do encontro entre os povos,
hoje chamado globalização. A descoberta da máquina a vapor no final do século 18 deu novo impulso ao
comércio internacional e a integração internacional. É interessante notar que a primeira organização
pública mundial – a OIT (Organização Internacional do Trabalho), criada em 1919 – diz respeito ao
trabalho, chave de leitura da questão social.
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A segunda guerra mundial (1939-1945) foi à dramática e absurda experiência, através da qual, à
custa de 50 milhões de mortos, os povos sentiram melhor o destino comum que os ligava. Um passo
decisivo foi a criação da ONU em 1945 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Para
atingir os seus objetivos de paz e bem-estar para todos, as Organizações da ONU devem ser
profundamente transformadas, mas a Assembléia Geral da ONU ainda é um dos poucos espaços no
mundo, onde cada país é (teoricamente) igual aos outros para se pronunciar sobre questões do mundo.
Primeira tentativa de ‘governo’ mundial, a ONU defende o multilateralismo contra o unilateralismo dos
mais poderosos.
A década dos anos 50 foi a da descolonização e da emergência da voz do “Terceiro Mundo”,
expressão forjada no primeiro encontro dos países não alinhados em Bandung (1955; Indonésia). A dos
anos 60, com alto crescimento econômico, foi a da esperança duma nova ordem econômica internacional
favorável para o Sul. Em 1963, o papa João XXIII, na sua encíclica Pacem in terris (Paz na Terra), louva
e apóia os esforços da ONU em favor da paz e da justiça, enquanto, em 1967, Paulo VI, na encíclica
Populorum progressio (o Desenvolvimento dos Povos) se faz o advogado do “desenvolvimento integral
do homem e do desenvolvimento solidário da humanidade” (PP, 5). Esses dois textos, junto com o
documento-constituição Gaudium et Spes (A Igreja no Mundo de Hoje) do Vaticano II, marcam uma
etapa decisiva no compromisso novo da Igreja em favor da causa dos países pobres. Em cada país do
Norte cria-se uma agência católica de solidariedade internacional, para promover uma nova parceria com
entidades do Sul.
Fazemos, pois, ardentes votos por que a Organização das Nações Unidas, nas suas
estruturas e meios, se conforme cada vez mais com à vastidão e nobreza de suas
finalidades, e chegue o dia em que cada ser humano encontre nela uma proteção eficaz
dos direitos que promanam imediatamente da sua dignidade de pessoa e que são, por isso
mesmo, direitos universais, invioláveis e inalienáveis.
(PT, n. 144)
Infelizmente, o clima de esperança não durou muito. Os anos 70 foram marcados pela guerra do
Vietnam e pelos dois choques do petróleo que abalaram a economia mundial, em particular a dos países
pobres, que se endividaram. Durante todos esses anos, o Terceiro Mundo é refém e vítima da guerra fria
entre os Estados Unidos de América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS):
independentes, os países em desenvolvimento (PD) não acedem a uma verdadeira autonomia nacional.
Os anos 80 marcam uma mudança: a dominação exercida sobre o Sul não é só política, mas sempre mais
econômica. O aumento unilateral dos juros das dívidas (até 22%) faz estourar o endividamento dos PD.
As novas tecnologias da informação e comunicação (TICs) aceleram a liberalização global do comércio.
Com Gorbatchev vêm os anos da distensão entre os dois blocos. Em 1989, o desmoronamento geral do
bloco soviético abre uma nova era de expansão do neoliberalismo.
Nos anos 90, num mundo em plena transformação, a ONU organiza vários encontros mundiais
sobre diferentes dimensões do desenvolvimento. Surgem vigorosas alertas sobre os impasses sociais,
políticos e ambientais aos quais levam a deregulação e liberalização gerais da economia. Em vão. FMI
(Fundo Monetário Internacional), Banco Mundial e OMC (Organização Mundial do Comércio), criada
em 1994, em substituição ao GATT, (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) aceleram a implementação
da cultura do mercantilização total (“tudo-mercado”). O mundo assiste, assombrado, a uma verdadeira
“fuga para frente”: aumenta-se a dose do mesmo remédio, para resolver a crise, sem questionar se o
remédio é acertado. No final do século 20, após 20 anos de neoliberalismo, enquanto o mundo nunca teve
tantos recursos para resolver os seus desafios globais, amplia-se rapidamente a brecha entre os ricos e os
pobres. Dois terços da humanidade vivem na pobreza ou miséria! Já aparece claramente que o
compromisso, assinado na ONU, em setembro de 2.000, por 180 chefes de Estado, de reduzir pela
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metade a pobreza e miséria até o ano 2015, não será alcançado. À ‘guerra fria’ sucedeu a ‘guerra ao
terrorismo’ que justifica todas as formas de dominação e de violação dos direitos humanos. Não faltam
os meios; falta a vontade política, quer dizer a generosidade e a solidariedade. Dificilmente os ricos
abrem mão dos seus privilégios.
À raiz da crise civilizatória
Para transformar esse panorama pouco animador é importante analisá-lo e entendê-lo. Seria
necessário observar a articulação entre as dimensões políticas, econômicas, sociais, culturais e
ambientais. Neste breve capítulo, vejamos apenas alguns aspectos da dimensão moral, guiados, na nossa
análise, pelas luzes e valores do Evangelho.
A crise, parece-nos, enraíza-se na idolatria do dinheiro. A cultura que invade nossas mentes e
nossos corações coloca o valor do dinheiro acima de todos os outros valores. Muitos se tornam cegas a
outros valores como a gratuidade, a beleza, a amizade ou as relações com outros. Tudo é apreciado em
função do seu preço. Na cultura do “tudo-mercado”, tudo se torna mercadoria, tudo se compra e tudo se
vende. Muitas formas da vida social (educação, saúde e outras necessidades básicas, segurança, família,
religião, etc.) são privatizadas e mercantilizadas.
A acumulação e idolatria do dinheiro levam ao consumismo. O modelo de vida que vende a
publicidade é de poder ter acesso a tudo, de poder satisfazer todos os meus desejos, tanto quanto quero;
de viver no conforto e no luxo, no supérfluo e no desperdício. Esquece-se da alegria e liberdade que a
simplicidade e modéstia de vida dão. O consumismo desenfreado destrói velhas tradições de convivência
com a natureza e com os outros.
Consumo e luxo induzem o materialismo. O que importa é a propriedade, o dinheiro e a riqueza e
não a dimensão espiritual, de gratuidade e de beleza da vida e das relações humanas. Reduzida ao que
produz e consume, a pessoa humana é ‘coisificada’, fragmentada, objeto da propaganda consumista ou
ideológica e não sujeito do seu futuro construído com outros.
Estas atitudes são marcadas pelo individualismo e egoísmo. Os bens e a riqueza valem mais que
os seres humanos. Presos no desejo de ter mais e mais, muitos já não percebem a pobreza e os
sofrimentos dos outros. Perdeu-se o sentido do bem comum e da solidariedade tradicional entre seres
humanos, com os mais necessitados em particular. Uma pessoa humana, um país ou um povo valem o
dinheiro que têm, e estabelece-se implicitamente uma divisão entre ‘superiores’ e ‘inferiores’.
A crise da civilização leva muitos ao desencanto, desânimo e ceticismo; às vezes até mesmo ao
cinismo. E, num mundo já globalizado, mas ainda sem contrato social e político entre os países e os
povos, parece ainda mais difícil confrontar os desafios internacionais que os nacionais.
Novos desafios para a comunidade internacional
A interdependência entre países (ou a dependência para os mais pobres) vai aumentando
rapidamente. Muitos desafios novos devem ser encarados a nível nacional e mundial ao mesmo tempo. E
não se trata apenas de desafios distintos, mas da sustentabilidade do modelo global vigente. Entre os
desafios mais urgentes – todos discutidos de uma maneira ou outra nos Fóruns Sociais Mundiais, e em
muitas outras ocasiões – podemos destacar:
a) a sobrevivência de um bilhão e meio de pessoas miseráveis que não têm as condições básicas
para viver como pessoas humanas. O sistema global as considera como ‘sobrando’, mas elas têm rostos
concretos, nomes e corpos. A sua dignidade humana é ignorada. Em contraste, um bilhão de pessoas
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consumem em excesso, usufruindo de 70% dos recursos da terra. A África é considerada e tratada como
um continente perdido;
b) a preservação do planeta ameaçado de destruição. O perigo não é tanto o excesso de habitantes
do que o mau-desenvolvimento e mau-uso pelos mais ricos dos recursos limitados. O planeta é único;
queremos deixá-lo habitável para os nossos filhos/as. A nossa responsabilidade de ‘próximos’ não é
apenas com os contemporâneos, mas também com as gerações futuras;
c) a proteção da identidade, das tradições e valores dos povos. Estes foram elaborados ao longo de
séculos e milênios; hoje são ameaçados pelo materialismo e consumismo invasores. A diversidade das
tradições é a riqueza do patrimônio da humanidade. A globalização pode ajudar a preservá-lo em vez de
destruí-lo;
d) o controle das tecnologias e do seu uso. A humanidade está ameaçada pelas suas próprias
descobertas: ela é como um ‘aprendiz de feiticeiro’ que não consegue mais controlar as conseqüências do
que ele inventou. A vida vegetal, animal e humana pode sofrer transtornos perigosos e irreversíveis, se
não houver critérios éticos no controle do uso do desenvolvimento científico e tecnológico;
e) a defesa da autonomia, liberdade e soberania das pessoas e dos povos frente à concentração
crescente do saber, do poder e do ter. Hoje o maior ‘capital’ é o conhecimento. Quem sabe e controla a
informação, domina. A mídia tem um poder assustador. É a democracia mesma que está em jogo.
Valores e princípios da DSI na base da construção da Comunidade Internacional
O Ensino Social da Igreja, elaborado a partir da análise dos grandes desafios da humanidade à luz
do Evangelho, da tradição, e da ação e reflexão das comunidades cristãs, oferece um rico conjunto de
valores, princípios e orientações para guiar a atuação dos cristãos e de todos os homens de boa vontade,
em todos os níveis, na construção duma sociedade mais justa e fraterna, sinal do Reino de Deus já
presente. Os princípios válidos na perspectiva da Comunidade Internacional são os mesmos que norteiam
a construção de todo tipo de comunidade, em todos os níveis, mesmo se, de fato, a aplicação destes
princípios muitas vezes é mais complexa a nível internacional que nacional. Podemos agrupá-los em três
conjuntos, estreitamente articulados.
1) O princípio fundamental é a dignidade essencial de cada pessoa humana, além das culturas e
raças. Pobres ou ricos, brancos ou negros, letrados ou analfabetos, etc., todos os seres humanos têm a
mesma dignidade e o mesmo valor. O respeito dos direitos humanos para cada um/a, entre os quais se
destacam a liberdade e igualdade, significa a expressão concreta desta dignidade fundamental. A pessoa
humana vive em comunidade; a sua participação direta na construção de esta configura um caminho
certo para a construção da unidade e da paz. A maior garantia destes valores últimos é a construção duma
civilização baseada na gratuidade e no amor.
O primeiro princípio é a inalienável dignidade da cada pessoa humana, sem distinções
relativas à sua origem racial, étnica, cultural e nacional, ou à sua crença religiosa. Não há
pessoa alguma que exista só para si mesma; mas encontrará a sua mais completa
identidade na relação com os outros; o mesmo se pode afirmar dos grupos humanos.
(Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1989, n. 3)
2) Sendo todos os seres humanos iguais e dignos, a humanidade toda, na sua extrema diversidade,
deve ser considerada e dirigida como uma família humana. Igualdade e justiça são as pedras
fundamentais da família humana unida e em paz. Os bens da terra são destinados a todos e devem ser
distribuídos conforme as necessidades de cada povo e de cada pessoa. A política internacional deve ser
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norteada pela busca do Bem Comum Universal, para superar todas as formas de nacionalismos egoístas.
Assim como cada pessoa humana, cada povo tem direito ao desenvolvimento para ter acesso a uma vida
mais humana, de corpo e alma. Nesta perspectiva, a Igreja coloca na frente a opção preferencial pelos
pobres. Os ‘países menos avançados’ e seus povos devem gozar de mais atenção e recursos para o seu
desenvolvimento para ter acesso às condições básicas de vida digna. O princípio central da solidariedade
é ainda mais significativo, e difícil de ser aplicado, a nível internacional e mundial que a nível
internacional.
As dependências humanas intensificam-se. Estendem-se aos poucos à terra inteira.
A unidade da família humana, reunindo seres que gozam de uma dignidade natural
igual, implica um bem comum universal.(CIC, n. 1911)
Os indivíduos, as famílias e os diferentes grupos que constituem a sociedade civil, têm
consciência da própria insuficiência para realizar uma vida plenamente humana e
percebem a necessidade duma comunidade mais ampla, no seio da qual todos
conjuguem diariamente as próprias forças para cada vez melhor promoverem o bem
comum (GS, n.74).
Com efeito, a Revelação insiste no mesmo modo, na unidade da família humana; todos
os homens criados em Deus têm a mesma origem; qualquer que seja, no decurso da
história, a sua disposição ou a acentuação das suas diferenças, eles estão destinados a
formar uma só família, segundo o desígnio de Deus estabelecido no “princípio”.
(Documento sobre a Igreja ante o racismo, n.19)
A diversidade das tradições, dos valores e culturas representa uma imensa riqueza para toda a
família humana. Defender a soberania política e cultural de cada povo é preservar esse patrimônio da
humanidade contra os apetites ferozes do mercado (deregulação, ‘livre’ comércio, dívidas) dominado
pelos países mais ricos e poderosos.
A multiplicidade das tradições religiosas são um valor que, em vez de levar a divisões, poderia
levar a unir os povos em torno das grandes causas da humanidade, na busca da justiça e da paz, à qual a
maioria senão todas essas tradições aspiram. É preciso ter a coragem da colaboração em base ecumênica
(entre igrejas cristãs) e ao diálogo inter-religioso, envolvendo todas as formas de crença e prática
religiosa presentes no nosso meio.
3) À dignidade da pessoa e à unidade da família humana, a Igreja acrescenta a integridade da
criação. No campo da dignidade humana, a nota mais explicitamente evangélica, é a gratuidade e o amor;
no campo da unidade da família humana, é a opção preferencial pelos pobres; no campo da integridade
da criação, é a contemplação e o louvor. Longe de ser menos ‘ativas’ que as anteriores, essas duas
últimas atitudes têm grande impacto na vida de cada um e de todos. Contemplar é olhar com alegria (e
assombro) toda a beleza (e o mal) de tudo o que nos é dado a todos (e que destruímos), e que constitui o
berço da nossa vida. A contemplação integra o conhecimento e a compreensão da realidade, e leva ao
louvor que é participação na obra criadora de Deus. O louvor inclui o re-encanto do mundo e a obra
transformadora que restabelece a criação na sua beleza original: a vida harmoniosa dos seres humanos
entre eles, com a natureza e com Deus.
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Entre os sinais positivos do tempo presente é preciso registrar, ainda, uma
maior consciência dos limites dos recursos disponíveis e da necessidade de
respeitar a integridade e os ritmos da natureza e de tê-los em conta na
programação do desenvolvimento, em vez de sacrificá-los a certas concepções
demagógicas. É, afinal, aquilo a que se chama hoje de preocupação ecológica
(SRS, n. 26).
Igualmente preocupante, ao lado do problema do consumismo e com ele estritamente
ligada, é a questão ecológica. O homem, tomado mais pelo desejo de ter e do prazer,
do que pelo de ser e de crescer, consome de maneira excessiva e desordenada os
recursos da terra e da sua própria vida. Na raiz da destruição insensata da ambiente
natural, há um erro antropológico, infelizmente muito espalhado no nosso tempo... (O
Homem) pensa que pode dispor arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas
à sua vontade, como se ela não possuísse uma forma própria e um destino anterior
que Deus lhe deu, e que o homem pode, sim, desenvolver, mas não deve trair.
(Centesimus Annus, n.37)
Vivemos num mundo dilacerado. O futuro do planeta é ameaçado, conseqüência do apetite
destruidor do mercado. É o futuro da família humana mesma que está em jogo. É urgente implantar um
modelo de desenvolvimento sustentável, que preserve a vida do planeta, único, hoje e para as gerações
futuras. A nossa responsabilidade coletiva de sermos, melhor, de nos fazermos próximos, não diz
respeito apenas aos que vivem em outros continentes, mas também às gerações futuras. O desafio não é
só econômico ou político, mas antes de tudo ético e moral. Sabemos como é difícil para os mais
privilegiados abrir mão de suas riquezas conseguidas às custas do empobrecimento duma maioria.
Caminhos na construção da Comunidade Internacional
A construção da comunidade internacional só pode ser um processo contínuo e uma obra coletiva.
Hoje, sente-se melhor a interdependência entre todos os países e povos. Aos poucos vai se formando nos
corações e mentes uma maior consciência da dimensão mundial da nossa cidadania. Percebe-se melhor
também os impasses onde pode nos levar um modelo de desenvolvimento construído em grande parte na
mentira, na injustiça e na força. Diante do novo dogma do ‘pensamento único’ neoliberal, muitas vozes
se fazem ouvir; movimentos sociais e ONGs se articulam. Em todos os níveis, a sociedade civil se
estrutura e organiza frente a poderosas forças econômicas e políticas. Os Fóruns são momentos
importantes para partilhar as numerosas experiências alternativas. Parece mais claro que a ruptura passa
entre os que, por ignorância ou por opção, aceitam e promovem a civilização do Mercado-Rei, injusta,
brutal e excludente da metade da população, e os que buscam e constroem alternativas fundamentadas na
justiça e democracia, para a vida de todos. Essa divisão atravessa todas as rodagens da sociedade.
As Igrejas têm uma longa experiência teórica e prática na construção da sociedade em todos os
seus níveis. É porque estão bem inseridas nas bases e porque têm uma mensagem de esperança que as
Igrejas podem influir na construção da comunidade internacional. A Caritas Internacional e a rede
mundial Justiça e Paz são dois bons exemplos do importante trabalho desenvolvido. No Brasil, o Mutirão
para a Superação da Miséria e da Fome, as Semanas Sociais, as Campanhas da Fraternidade, as pastorais
sociais e a sua participação na Campanha Jubileu ilustram o empenho da Igreja em favor da justiça e da
vida dos pobres.
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Profundas reformas e transformações são urgentes. Só a pressão e a participação da sociedade
civil podem forçar as instituições estabelecidas (em particular os governos dos países mais poderosos) a
empreendê-las.
É, porventura, este modelo (o capitalismo) que se deve propor aos Países do
Terceiro Mundo, que procuram a estrada do verdadeiro progresso econômica e
civil?
A resposta apresenta-se obviamente complexa. Se por “capitalismo” se indica um
sistema econômico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa,
do mercado, da propriedade privada e da conseqüente responsabilidade pelos
meios de produção, da livre criatividade humana no setor da economia, a
resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de
“economia de empresa” ou de “economia de mercado”, ou simplesmente de
“economia livre”. Mas, se por “capitalismo” se entende um sistema onde a
liberdade no setor da economia não está enquadrada num sólido contexto
jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere
como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso,
então a resposta é sem duvida negativa.
(CA, n. 42)
Os desafios são globais, mas faltam as estruturas mundiais para enfrentá-los: é a carência de
governança mundial. As estruturas da ONU, das suas agências especializadas (saúde, direitos humanos,
população, cultura, etc.), do FMI e do Banco Mundial, e até da mais recente OMC são obsoletas e
utilizadas pelos países ricos para defender e promover os seus interesses. A voz da maioria, dos mais
pobres, é abafada. Uma reforma profunda das instituições existentes e a criação de novas instâncias de
‘governo’ mundial, mais adaptadas e democráticas, são urgentes. As soluções só podem ser multilaterais,
com a participação de todos os países e da sociedade civil organizada a nível mundial.
A nível econômico, várias frentes são prioritárias. Tratar-se-ia de dar ao Conselho Econômico e
Social (ECOSOC) da ONU a mesma autoridade que tem o Conselho Permanente a nível político. O
ECOSOC poderia se tornar a instância para estabelecer um controle, que falta tanto, da atuação das
empresas multinacionais e dos fluxos de capitais. Só a articulação forte dos paises em desenvolvimento,
com o apoio das suas respectivas sociedades civis pode conseguir novas regras nas negociações dos
acordos de ‘livre’ comércio, para que estes beneficiem a todos igualmente e não principalmente aos
países mais ricos. As dívidas do ‘Sul’ são outro meio de dominação e exploração pelo ‘Norte’;
constituem um impedimento decisivo à soberania e ao desenvolvimento dos endividados. A Campanha
Jubileu 2.000 para a redução ou anulação das dívidas não deu resultados correspondentes à mobilização.
Esta não pode parar. Enfim, vale a pena mencionar as inumeráveis e criativas experiências da sócioeconômia solidária (cooperativas, grupos e oficinas de produção, etc.) que promovem uma economia da
partilha, ou das necessidades ou da sustentabilidade.
Frente à concentração crescente da riqueza e do poder, a tarefa é árdua, mas urgente, de encontrar
novos mecanismos de redistribuição. Os serviços básicos (moradia, saúde, educação, água, energia,
transportes, etc.) devem ser acessíveis a todos, pois são condições necessárias para uma vida digna.
Multiplicar e apoiar os espaços de partilha, comunicação e solidariedade favorece a expressão e
organização do povo, e liberta as suas lutas. A construção duma comunidade internacional para todos não
pode ser a obra de alguns poucos, mas de todos. A mídia é um instrumento poderoso para promover a
participação ou a desmobilização. Importa que o Estado, servidor do bem comum, garanta que ela seja
democrática. A sobrevivência da família humana e o seu maior bem-estar dependem também da
integridade do planeta; mais sustentabilidade significa mais vida para todos, hoje e amanhã.
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...De todo o coração, encorajamos as organizações que tomaram a peito esta
colaboração no desenvolvimento e desejamos que a sua autoridade progrida.
(PP, n.78)
É tarefa do Estado prover à defesa e tutela de certos bens coletivos como o ambiente
natural e o ambiente humano, cuja salvaguarda não pode ser garantida por simples
mecanismos de mercado...
Acha-se aqui um novo limite do mercado: há necessidades coletivas e qualitativas,
que não podem ser satisfeitas através dos sues mecanismos; existem exigências
humanas importantes, que escapam à sua lógica; há bens que, devido à sua
natureza, não se podem nem se devem vender e comprar. Certamente os
mecanismos de mercado oferecem seguras vantagens: ajudam, entre outras coisas,
a utilizar melhor os recursos, favorecem o intercâmbio dos produtos e, sobretudo,
põem no centro a vontade e as preferências da pessoa que, no contrato, se
encontram com as de outrem. Todavia eles comportam o risco de uma “idolatria” do
mercado, que ignora a existência de bens que, pela sua natureza, não são nem
podem ser simples mercadoria (CA, n. 40).
A comunidade internacional não é só a dos governos e das instituições multilaterais; é também a
dos povos, dos pobres e dos excluídos. Todos podem participar na sua construção. Manter viva a
esperança, re-encantar os olhares desde a justiça, a solidariedade e o amor gratuito, é estabelecer os
fundamentos duma comunidade de vida e paz para todos.
Questões para reflexão e debate:
1.
Quais são as principais características da Comunidade Internacional atual? Qualidades e defeitos?
2.
Quais são os principais sintomas da crise de civilização atual? Como aparecem em sua vida, em
sua família e sua comunidade?
3.
Quais deveriam ser os principais princípios e valores na construção da Sociedade Internacional?
Por que é difícil utilizá-los?
Como vocês acham que a Igreja, povo de Deus, pode contribuir na construção da Comunidade
Internacional?
4.
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IV Conferência Geral do Episcopado latino-americano. Conclusões da Conferência de Santo Domingo
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Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, 2003-2006
Ver também Diretrizes anteriores, Pronunciamentos da CNBB e Textos das Campanhas da Fraternidade.
Siglas e Abreviaturas
ALCA – Associação Latino-americana de Livre Comércio
CBJP – Comissão Brasileira Justiça e Paz
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CA – Centesimus Annus (Centenário da Rerum Novarum), João Paulo II, 1991
CHL – Christifideles Laici, Exortação Apostólica de João Paulo II, 1988
DE – Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo, do Pontifício Conselho
DM – Documento de Medellín (Conclusões da Conferência de Medellín, 1968)
DP- Documento de Puebla (Conclusões da Conferência de Puebla, 1979)
EA – Ecclesia in America, Exortação Pós-Sinodal A Igreja na América, João Paulo II, 1999.
EN – Evangelii Nuntiandi (A Evangelização no Mundo Contemporâneo), Paulo VI, 1975
FMI – Fundo Monetário Internacional
GS – Gaudium et Spes (A Igreja no Mundo de Hoje), Concílio Vaticano II, 1965
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
JN – Justiça no Mundo, Sínodo dos Bispos, 1971
LE – Laborem Exercens (O Trabalho Humano), João Paulo II, 1981
MERCOSUL – Mercado Comum do Cone Sul
MM – Mater et Magistra (A Recente Evolução da Questão Social), João XXIII, 1961
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (Movimento Sem Terra)
NMI – Novo Millennio Ineunte (No Início do Novo Milênio), João Paulo II, 2001
OA – Octogesima Adveniens (Necessidades de um Mundo em Transformação), Paulo VI, 1971
OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos
OMC – Organização Mundial do Comércio
ONU – Organismo das Nações Unidas
OIT – Organização Internacional do Trabalho
PP – Populorum Progressio (O Desenvolvimento dos Povos), Paulo VI, 1967
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PT – Pacem in Terris (Paz na Terra), João XXIII, 1963
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QA – Quadragesimo Anno (A Restauração e Aperfeiçoamento da Ordem Social), Pio XI, 1931
RN - Rerum Novarum (A Condição dos Operários), Leão XIII, 1891
SD – Santo Domingo (Conclusões da Conferência de Santo Domingo, 1992)
SRS – Sollicitudo Rei Socialis (Solicitude Social da Igreja), João Paulo II, 1987
TICs – Tecnologias de Informação e Comunicação
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
UUS – Ut Unum Sint, Encíclica sobre o Empenho Ecumênico, de João Paulo II, 1995
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