UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE HISTÓRIA LICENCIATURA
NIVALDO GERMANO DOS SANTOS
ECLIPSE DOS PODERES:
OS AGENTES DO ESTADO E DA IGREJA NO MARANHÃO SETECENTISTA
São Luís
2011
NIVALDO GERMANO DOS SANTOS
ECLIPSE DOS PODERES:
Os Agentes do Estado e da Igreja no Maranhão Setecentista
Monografia apresentada ao Curso de História
da Universidade Federal do Maranhão, para
obtenção do grau em Licenciatura em História.
Orientadora: Profª Drª Antonia da Silva Mota
São Luís
2011
Santos, Nivaldo Germano dos.
Eclipse dos Poderes: Os Agentes do Estado e da Igreja no Maranhão Setecentista /
Nivaldo Germano dos Santos. – 2011.
112 f.
Impresso por computador (fotocópia).
Orientadora: Antonia da Silva Mota
Monografia (Graduação) – Universidade Federal do
Maranhão, Curso
de História, 2011.
1. Igreja Católica – História – Maranhão 2. Maranhão Colônia I.
Título.
CDU 272/273 (812.1).03
NIVALDO GERMANO DOS SANTOS
ECLIPSE DOS PODERES:
Os Agentes do Estado e da Igreja no Maranhão Setecentista
Monografia apresentada ao Curso de
História da Universidade Federal do
Maranhão, para obtenção do grau em
Licenciatura em História.
Aprovada em __/__/2011
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Profª Drª Antonia da Silva Mota (Orientadora) (UFMA)
__________________________________________
Profª Drª Pollyanna Gouveia Mendonça (UFMA)
__________________________________________
Profª Drª Maria Izabel Barboza Morais de Oliveira (UFMA)
Ao Deus Eterno
Aos meus pais, Ivaldo Germano dos Santos e Maria Goreth dos Santos
Agradecimentos
Saibam quantos este público instrumento de Agradecimento virem, que no ano de
nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de Dois Mil e Onze Anos, aos 30 dias do mês de
junho do dito ano, nesta Cidade do Maranhão, eu, Nivaldo Germano dos Santos, autor,
declaro reconhecer e dou fé à contribuição e importância das pessoas adiante nomeadas para a
produção do presente trabalho monográfico. Isto porque considerando que os agradecimentos
são parte fundamental de qualquer trabalho, é importante compartilhar todo sucesso nele
obtido, por menor que seja. Agradeço, portanto, pela fundamental contribuição para a
produção deste trabalho:
Ao Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, por todas as coisas! Pois assim
recomendam as Escrituras Sagradas judaico-cristãs (Carta aos Colossenses 3: 17/ Carta aos
Tessalonicenses 5: 18). Deus seja louvado pela saúde, disposição intelectual e oportunidades
alcançadas.
Ao digníssimo senhor meu pai Ivaldo Germano dos Santos e à digníssima senhora
minha mãe Maria Goreth dos Santos, pelo esforço com que se dedicaram diariamente ao
longo destes 22 anos, a fim de me proporcionar uma boa vida e educação de qualidade. Ainda
que muito me esforçasse, não saberia expressar de forma satisfatória a minha gratidão e o meu
amor que a eles dedico. Não é da melhor maneira, mas o máximo que consigo fazer é ser
motivo de orgulho para eles, através da minha vida, sempre procurando trilhar os caminhos
mais dignos possíveis.
À digníssima senhora minha avó paterna, Maria do Livramento dos Santos, pelas
suas orações.
A Danielly Millen Carvalho Ferreira, minha sobrinha-prima, pela fiel amizade,
convivência e alegria que só me fizeram bem desde os primeiros anos de vida.
In Memorian: ao digníssimo senhor meu avô materno Félix Ferreira dos Santos, por
sempre me defender dos castigos impostos pelos meus pais devido às travessuras por mim
cometidas na infância; ao digníssimo senhor meu avô paterno Sebastião Germano dos Santos,
porque pelo seu grande espírito, ficaria orgulhoso desse momento, sem dúvida; ao meu
querido irmão caçula Givaldo Germano dos Santos. Certamente eu teria crescido menos
solitário, se sua ausência não tivesse se manifestado tão cedo, ainda nos primeiros anos de
nossas vidas. A estes agradeço porque sua presença e ausência, cada uma no devido tempo,
contribuíram para me formar enquanto pessoa e enquanto alguém que procura fazer o melhor.
Porque quando daqui partirmos, não deixaremos nada além do nosso serviço para os nossos
queridos.
Aos demais familiares pelas sempre boas palavras de ânimo e bênção,
principalmente aos meus tios José de Ribamar dos Santos e Maria dos Santos, Maria da
Conceição Santos Ferreira e Iraneide do Livramento dos Santos pela torcida vibrante; a Maria
dos Anjos Lopes Carvalho Ferreira; as minhas primas Davilene dos Santos Saldanha,
Deusilene dos Santos Saldanha, Eleonora Livramento Carneiro e aos meus primos Dodival
Ferreira dos Santos, Kleber Ferreira dos Santos, Alfredo Ferreira dos Santos e ainda a Wilton
Bispo de Araújo. Todos pela eterna torcida que me oferecem.
À ilustríssima senhora professora doutora e historiadora Antonia da Silva Mota pelo
convite inicial que me fez para trabalhar no seu projeto de pesquisa, o que rendeu dois anos de
orientação em iniciação científica, resultando neste trabalho. Ainda sou grato à mesma
professora pela sempre disponibilidade e interesse irrestrito no meu desenvolvimento
intelectual e pela sua valiosa amizade, que espero levar para a vida toda.
Aos fiéis amigos do curso pela fundamental companhia. Levarei comigo a amizade
de Késsia Sousa, Elias Ribeiro, Kate Soares e Ludmylla Fontenelle pelas piadas premeditadas
e instantâneas, infames e engraçadas, tudo junto, mas não necessariamente nessa ordem; pela
partilha da fé, pela parceria nas atividades; pelas boas sugestões que sempre fizeram nos meus
textos, pelo incentivo nos estudos, enfim, pela parceria acadêmica e pessoal. Amizade que
espero siga até o fim.
Aos demais colegas de curso. Comigo levarei boas lembranças de Viviane Licá,
Manoel Carvalho, David Dias, Daniele Martins, Philipe Azevedo, Fernanda Oliveira, Anna
Rios e Rennata Santos, pela companhia acadêmica na discussão de variadas questões acerca
de nossas pesquisas. Agradeço a Marcio Veloso pela paciência com meus problemas de
ordem técnica superior com meu computador. De igual modo, foi bom conhecer e conviver
em sala de aula durante quase quatro anos com Marliane Dutra, Eduardo Oliveira, Jéssica
Simões, Josiléia Almeida, Dayanne dos Santos, Geordana Ramos, Luann Ferreira, Flávio
Macedo, Auriely Maciel, Paulo Sérgio, colegas de turma, e ainda Rodrigo Sales, colega de
curso de outro período pelas boas conversas e risadas nas horas vagas.
A Camila Portela e Thiago Santos pela receptividade que me ofereceram quando
participei do Grupo de Pesquisa de História da Religião e pela posterior amizade.
Ao ilustríssimo senhor professor doutor Lyndon de Araújo Santos pela oportunidade
concedida de participar com um capítulo na recente publicação da coletânea “Religião e
Religiosidades no Maranhão”.
À ilustríssima senhorita professora doutora Pollyanna Gouveia Mendonça pela
contribuição na indicação de leituras importantes para refinar minha compreensão acerca de
algumas questões expostas neste trabalho.
Aos demais ilustríssimos professores do Departamento de História, Maria da Glória
Guimarães Correia, Josenildo Pereira, Dorval Nascimento, Manoel Barros, Flávio Soares,
Regina Faria, Washington Tourinho, dos quais fui aluno e tive a oportunidade de beber um
pouco do seu conhecimento: pela boa vontade com que sempre me atenderam quando precisei
tirar alguma dúvida ou pedir algum livro emprestado, e pelo exemplo de profissionais que se
tornaram para mim, sempre empenhados na melhoria do curso de História desta universidade
e pela eterna busca de conhecimento, tão necessário aos habitantes do mundo acadêmico.
Aos meus amigos: Aurélio Rodrigues, com o qual cresci, e nesse processo em muito
foi como um irmão para mim; Denise Miranda, com quem também cresci; Aneilde Araújo,
uma cristã livre pensadora, dona de um espírito inquieto com muitas questões, mas sempre
fiel em todas as coisas, e principalmente aos amigos; Marcelo Cunha, cuja amizade iniciada
nos bancos de estudo do CNA se consolidou com o tempo... Aos três eu agradeço pela torcida
sincera que me oferecem sempre.
Aos professores da minha vida, que me viram crescer nas duas escolas onde estudei e
ainda assim depois acompanharam meu desenvolvimento por um tempo até a perda de
contato. No Ensino Fundamental foram eles: Georgina, professora na antiga 1ª série, Fátima
na 2ª série, Ana na 3ª série, Goreth na 4ª série, Wilson (Língua Portuguesa e Literatura) da 5ª
à 7ª série, Nazareth (Geografia) da 5ª à 8ª série, Carmenilde (HISTÓRIA), da 5ª à 8ª série e
Márcia (Língua Portuguesa e Literatura) na 8ª série. No Ensino Médio, foram elas: Geysa
(HISTÓRIA) no 2° ano e Kyania (Língua Portuguesa e Literatura) também no 2° ano, Portela
(Sociologia) no 1° ano. Enquanto resgatava das distantes e sombrias regiões da memória o
nome de cada um, ia escrevendo logo esse parágrafo, e fui acometido por um sentimento
indescritível de saudade. Nunca os esqueci, apenas os guardei em algum lugar para hoje trazê-
los ao reconhecimento, porque sempre deixaram claro o interesse que tinham no meu
desenvolvimento intelectual, e mais do que isso, se esforçavam para eu só melhorar.
Aos amigos do ensino médio, Márcia Mello, Cristiane Marques, Patrícia Marques e
David Teixeira.
Aos estagiários do CCH, Ana Carolina Carvalho, David Michel e Maria Sousa, pela
amizade salutar.
À ilustríssima senhora professora Drª Gisele Martins Venancio (UFF) pela dica
temática de pesquisa sobre o Iluminismo e alguns livros emprestados sobre a temática pouco
antes de me tornar orientando da professora Antonia, que terminou por encontrar plena
importância no estudo do objeto de pesquisa sobre o qual me debrucei, o qual constitui este
trabalho.
Ao professor Dr° Gilson Ciaralho (UNB) pela imediata disponibilização de sua tese
após contato feito via e-mail, importante também para ampliar os horizontes sobre alguns
pontos da pesquisa.
À Universidade Federal do Maranhão pela concessão de bolsa de iniciação científica
vigente no período 2009/2010.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Maranhão – FAPEMA, pela
concessão de bolsa de iniciação científica vigente no período 2010/2011.
Aos ilustríssimos e excelentíssimos senhores governadores, ouvidores e demais
funcionários régios; bispos, vigários gerais e demais religiosos, personagens da história ora
apresentada. Cerca de duzentos e cinquenta anos depois do período em que se encontraram,
conviveram e brigaram surge este trabalho, para o qual são as peças da trama aqui montada.
Demais disto, reverencio as suas memórias solenemente.
À banca examinadora.
“Porque na muita sabedoria há muito
enfado; e o que aumenta em ciência,
aumenta em trabalho. [...] E demais disto,
filho meu, atenta: não há limites para
fazer livros, e o muito estudar enfado é da
carne.” (Eclesiastes 1: 18 / 12: 12)
RESUMO
Este trabalho analisa o comportamento público e a administração dos agentes do Estado e da
Igreja Católica no Maranhão, durante o consulado pombalino (1750-1777). Para tanto, a
pesquisa se sustentou em correspondências dos governadores e dos religiosos; e também
baseada nos historiadores locais, de modo que é possível visualizar e compreender os
interesses políticos e particulares, as ações e os embates entre os agentes de ambas as partes
de modo dialético. Durante as administrações de Francisco Xavier de Mendonça Furtado
(1751-1759) e Joaquim de Mello e Póvoas (1761-1778), ambos parentes do Marquês de
Pombal (Secretário Plenipotenciário português), a jurisdição espiritual foi separada do poder
temporal. Com a expulsão dos jesuítas, o cenário se perturbou e os ânimos se acenderam em
brigas e disputas político-ideológicas sobre a jurisdição eclesiástica. Por um lado, os
religiosos não aceitaram perder o controle das sociedades indígenas para o novo sistema de
Vilas e Diretorias recém criado pelo Estado e, por outro, os governantes ampliaram seus
poderes e passaram a interferir na jurisdição eclesiástica, tomando decisões que não lhes
cabiam. O Bispo D. Frei Antonio de São José e o Vigário Geral Doutor Pedro Barbosa Canais
reagiram, mas sofreram pesadas retaliações por parte do Ministro Pombal, que apoiava as
ações dos seus prepostos na colônia.
Palavras – chave: Administração Portuguesa, Igreja, Maranhão Colônia, Agentes.
ABSTRACT
This monograph analyses the public behavior and governance of the agents of Portuguese
State and of the Catholic Church in Maranhão, during Pombal’s consulate (1750-1777). For
this, research was based in correspondence of the governors and religious; and also based on
local historians, to make possible we see and understand the political and private interests,
actions and clashes between agents of both parties in a dialectical way. During the
administrations of Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759) and Joaquim de
Mello e Póvoas (1761-1778), they both relatives of the Marquis of Pombal (Portuguese
Plenipotentiary Secretary), the spiritual jurisdiction was separated from the temporal power.
With the expulsion of the Jesuits, the scene was disturbed and tempers flared up in fights and
political and ideological disputes over ecclesiastical jurisdiction. On the one hand, the priests
didn’t accept losing control of indigenous societies to the new system of Places and Diretories
newly created by State; on the other hand, the rulers expanded their powers and started to
interfere in ecclesiastical jurisdiction, making decisions that didn’t fit themselves. Bishop D.
Friar Antonio de São José and the Vicar General Dr. Pedro Barbosa Canais reacted against
that, but they suffered heavy retaliation by the Minister Pombal, because he supported the
actions of their agents in the colony.
Keywords: Portuguese Administration, Church, Maranhão the colony, Agents.
SUMÁRIO
1.
INTRODUÇÃO ______________________________________________ 13
2.
OS SERVIÇOS DE DEUS E DO REI ____________________________ 24
2.1. Agravos de Jurisdição ___________________________________________ 24
2.2. Vicissitudes Político-Administrativas no Governo do Maranhão __________30
2.3. A Riqueza das “Religiões”_______________________________________ 37
2.4. O Fim do “Protetorado Jesuíta” Sobre as Sociedades Nativas ____________ 43
3.
CONFLITOS DE JURISDIÇÃO ESPIRITUAL E TEMPORAL______47
3.1. O Patrimônio dos Jesuítas e a Expulsão______________________________47
3.2.
Os Agentes e os Bens Sequestrados _______________________________ 51
3.3. A Força de Trabalho Indígena Entre os Diretores e os Religiosos _________ 62
4.
“OS PADRES INIMIGOS COMUNS DO ESTADO” _______________69
4.1. Escândalos e Disputas Político-Religiosas em São Luís _________________71
4.2. A “Excomunhão” do Governador e o Castigo do Bispo_________________76
4.3.
“Imprudente, Arrebatado e Brigão”________________________________ 77
5.
AS PESSOAS EM SEU TEMPO: CONCEITOS E CONCEPÇÕES___96
6.
CONSIDERAÇÕES FINAIS ___________________________________ 106
REFERÊNCIAS
13
1. INTRODUÇÃO
Assim como o Sol e a Lua dividem o mesmo céu, entre as suas jurisdições, o dia e a
noite, e se movimentam nele com toda potência e glória aos olhos dos humanos, assim
também a Igreja e o Estado se movimentaram ao longo da História Ocidental, aos olhos dos
povos de cada nação específica, nas jurisdições espirituais e temporais.1 No contexto natural,
o eclipse ocorre quando a Lua deixa o Sol para trás, ou seja, quando ofusca toda ou parte da
luz solar. De início cabe destacar que Estado e Igreja estiveram juntos no processo de
colonização da América e conflitos de jurisdições sempre existiram. Mas para entender um
eclipse entre Estado e Igreja, como se pretende aqui, faz-se necessário traçar um breve
comentário do relacionamento entre essas duas instituições de poder.
Os ideólogos lusitanos dos setecentos eram adeptos da filosofia iluminista, pela
crítica ao poder temporal da Igreja e em geral eram padres, ou da Congregação do Oratório ou
adeptos do movimento disciplinar jansenista, que desejavam revitalizar a espiritualidade
católica, muito confusa pelas questões temporais de que se ocupava. José Eduardo Franco
aponta os principais pensadores que influenciaram a política Josefina, dentre os quais,
distinguem-se D. Luís da Cunha, ex-agente do Estado, autor da ideia de que a pobreza de
Portugal tinha origem na grande influência da Igreja Católica na política real, contida no seu
Testamento Político2; o padre oratoriano Antonio Pereira de Figueiredo, o arquiteto das bases
teóricas do regalismo pombalino, combatente da reforma católica tridentina, que argumentava
que o poder divino dos reis prescindia da autoridade papal; ou seja, “o fim da concepção
sacral da sociedade, típica do modelo da cristandade e estatui os princípios da sua
secularização”3. Ainda Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, que idealizou a reforma do
ensino superior nas Universidades de Évora e Coimbra, cuja inserção de cátedras laicas
redirecionou os cursos de uma visão sacral para uma concepção natural e civil dos homens e
da sociedade. Além desses nomes, também se destacam o abade Platel, cardeal Saldanha, frei
1
2
3
Na historiografia sobre a Época Moderna, que também encerra o Período Colonial, são conhecidas duas
grandes obras que tem em seu título uma metáfora que usa elementos e fenômenos da natureza, “O Crepúsculo
dos Grandes” de Nuno Monteiro e “O Sol e a Sombra” de Laura de Mello e Souza. Confessadamente
inspirado nos dois, o título do presente trabalho monográfico pretende obter sucesso no uso da metáfora do
eclipse, ainda que não alcance, como de fato não alcança o peso e a profundidade daquelas obras referenciais
da História Moderna de Portugal e do Brasil Colônia.
LARA. José Elias. “O Testamento Político de D. Luís da Cunha: uma proposta de ‘regeneração’ do reino
lusitano.” – Dissertação de Mestrado, Maringá, 2007. O “Testamento Político de D. Luís da Cunha” está
disponível na internet: <http://www.arqnet.pt/portal/portugal/documentos/dlc_testamento1.html>
FRANCO, José Eduardo. Quem influenciou o marquês de Pombal? Ideólogos, idéias, mitos e a utopia da
Europa
do
Progresso.
Lisboa,
2006.
Disponível
em:
<
http://www.realgabinete.com.br/coloquio/3_coloquio_outubro/paginas/12.htm>. Acesso em 23/09/2009.
14
João de Mansilha e o bispo D. Miguel de Bulhões. Este último atuou no Grão-Pará e
Maranhão. O iluminismo português apresentava-se, assim, católico, de cunho reformista do
Estado e da Igreja.
Mas a mudança do sentido das ideias sobre o poder e as formas de governar os povos
teriam sido nulas se não fossem conjugadas com o espírito político-administrativo atuante de
Sebastião José de Carvalho e Melo,4 nomeado secretário dos Negócios do Reino em 1750
(futuro Marquês de Pombal). Isto porque a política desenvolvida por aquele ministro (que
havia sido indicado por D. Luís da Cunha e nele muito se inspirou) começou a ofuscar a
política eclesiástica da Sé Romana em Portugal, promovendo uma Reforma da Igreja
portuguesa. Isso não significa que se concebe a história aqui sob um viés personalista. Ou
seja, considerar que todos os desenvolvimentos da história de Portugal naquele tempo
resultaram daquele ministro, antes pelo contrário. Como argumentou Jorge Borges de
Macedo, em seu verbete do Dicionário da História de Portugal:
A historiografia personalista a respeito de Pombal acumula as referências à
sua administração econômica, “quase sempre infeliz”, na expressão de João
Lúcio de Azevedo. Questão, em nosso entender, mal posta, pois que se trata
de uma situação geral cuja gênese e desenvolvimento estão fora da
governação pombalina; e as soluções propostas por Pombal visavam salvar a
coroa e o grande comércio das consequências econômicas dessa mesma
crise.5
A governança pombalina se deu em meio às adversidades que emergiam nas várias
esferas da sociedade portuguesa, nos assuntos políticos e econômicos nacionais e
internacionais, nos variados níveis da hierarquia administrativa, etc. A política de Carvalho e
Melo ainda segundo Macedo, se apresentou como “falta de sistematização, como que uma
aplicação apressada (quase, diríamos, desorientada), sem outro critério que não fosse o da
rapidez da montagem e a necessidade de produção rápida.”6 Assim, se o objetivo principal de
Carvalho e Melo era recuperar o poder da Coroa Portuguesa, ele o fez eliminando os
elementos que considerava prejudiciais, nesse caso, principalmente a centralidade papal.
Sustentado no Regalismo, doutrina política que consistia na defesa da “supremacia do poder
civil sobre o poder eclesiástico”, amplamente defendido por D. Luís da Cunha, o Secretário
dos Negócios do Reino soube desenvolver uma atuação política que marcou a sua época e
ficou na memória do seu povo. Segundo Zília Osório de Castro, deve-se considerar que:
4
Carvalho e Melo também era adepto do Iluminismo ou Racionalismo Ilustrado.
O verbete de Jorge Borges de Macedo foi reproduzido como apêndice por Antonio Paim, no livro por este
organizado, intitulado Pombal e a Cultura Brasileira, de 1982. Citado à p. 132.
6
Op. Cit. p. 132.
5
15
O regalismo pombalino caracteriza-se pelo seu caráter doutrinário,
decorrente de uma teoria específica de poder, sacralizadora da soberania e
identificadora do seu âmbito de jurisdição. Define-se assim a plenitude do
poder régio face ao poder papal pela denúncia da ilegitimidade da jurisdição
temporal de ambos e, ao mesmo tempo, apóia-se a reforma da Igreja como
coadjuvante no processo de tornar efetiva essa mesma jurisdição.7
Assim, a Reforma da Igreja promovida pelo Ministério Pombalino ganhou
legitimidade e prática. Conforme Borges Macedo argumentou também, uma das saídas
políticas inventadas pelo secretário dos Negócios do Reino, era atribuir responsabilidade a
certos atores sociais. Por exemplo, se valeu em grande medida do argumento de D. Luís da
Cunha – do qual uma das justificativas para a pobreza de Portugal em meados dos setecentos
era a livre atuação da Companhia de Jesus – forjando uma campanha antijesuítica, antes e
depois da expulsão dessa ordem em 1759 dos domínios portugueses.8 Embora tenha sido a
Companhia um “bode expiatório” nos termos de Macedo, toda a Igreja Católica sofreu, mais
ou menos, a imposição do poder régio lusitano. Em 1760, Portugal rompeu com a Sé Romana,
e os prelados diocesanos passaram a ser nomeados pelo Consulado Pombalino. José Pedro
Paiva organiza um sentido para a ampliação do Regalismo, porque um Estado não poderia ser
Absolutista e coexistir à luz do poder do Papa, pretensamente absoluto. Assim, as Reformas
da Igreja portuguesa:
[...] visavam contribuir para a criação de um Estado secular, apesar de
católico, totalmente liberto da pressão ultramontana em questões de
jurisdição e inequivocamente soberano face ao poder pontifício. Desejava-se
ainda a subordinação da Igreja e do clero ao poder da Coroa, não
autorizando qualquer interferência desta no poder temporal do rei. Pretendiase a subordinação do eclesiástico ao civil no domínio temporal, admitindo-se
até a possibilidade de o próprio Estado inspecionar a ação espiritual da
Igreja. No espírito de Pombal, a intervenção do Estado era um imperativo
para por cobro às situações de exceções dos eclesiásticos, cujas imunidades e
privilégios colocavam as suas pessoas e bens fora da jurisdição do Estado, o
que não fazia qualquer sentido para um poder que se pretendia absoluto e
independente.9
Desta forma, prevalecia o modelo episcopal, bispado local, que era muito mais fácil
de controlar do que rivalizar com o poder universal do Papa. Assistiu-se ao poder do Estado
português eclipsar o poder da Igreja Católica, no que se refere à Roma e por extensão, à
nomeação e disposição da hierarquia eclesiástica submetida ao poder régio. Isto foi visível aos
7
8
9
CASTRO, Zília Osório. Os antecedentes do regalismo pombalino. O padre José Clemente. IN: POLÔNIA,
Amélia; RIBEIRO, Jorge Martins; RAMOS, Luís A. Oliveira (Orgs.). Estudos em homenagem a João
Francisco Marques. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. I, 2001, p. 323-331.
MACEDO, Op. cit.
PAIVA, José Pedro. Os novos prelados Diocesanos Nomeados no Consulado Pombalino. In: PENÉLOPE, n°
25, 2001, pp. 41-63.
16
olhos de todos os que habitavam a Corte e as colônias, dentre as quais destaco o norte da
América portuguesa, especificamente o Maranhão. Esta antiga região geográfica do Império
Português é um local do qual se pode observar o eclipse do poder do Estado sobre o da Igreja.
Entretanto, deve-se ressaltar que o que estava em jogo eram o poder e a legitimidade
do Estado de atuar frente ao poder e legitimidade de que a Igreja dispunha em matérias
temporais. Assim, o eclipse ocorre entre as esferas de poder estatais e eclesiásticas sobre o
mundo português. Mas isso não se deu sem a atuação das pessoas que trabalhavam ou que
estavam de um ou outro lado. Essa acepção ganha tendências relativamente distintas quando
se observa que os ideólogos pombalinos eram padres regulares, que deveriam estar do lado do
Papa e não do Rei. No sentido inverso, os agentes do Estado envolvidos nos assuntos políticos
e administrativos em geral e no processo de Reforma da Igreja em particular, confessavam
profunda devoção religiosa católica. Logo, de início descarta-se uma dicotomia rígida,
embora nas linhas gerais ela seja importante.
Conforme argumenta Macedo contra a “historiografia personalista” acerca do
Marquês de Pombal:
Mas, se o fato é verdadeiro, é preciso reconhecer que o não exerceu sozinho,
nem agiu desprovido de apoio. Por isso, os atos do seu governo não podem
ser considerados da sua exclusiva responsabilidade pessoal. Nem podemos
esquecer, para os explicar e julgar, a época em que viveu, o ambiente
histórico em que agiu, o Estado e o país em que exerceu a sua ação, entre
grupos de interesses implacavelmente antagônicos, uns favoráveis, outros
opostos à sua política econômica.10
Para além da sua “política econômica”, a qual Macedo reduz o Ministério de Pombal,
é fundamental no seu argumento a máxima de que Pombal “o não exerceu sozinho”. Assim,
os seus agentes e os seus opositores entram em cena e não são meros figurantes ou
coadjuvantes. As “paixões particulares”, como o governador Joaquim de Mello e Póvoas
classificou as atitudes dos funcionários régios no Maranhão, dentre os quais ele era um,
marcaram profundamente o desenvolvimento das relações entre os agentes do Estado e da
Igreja nesta região do Império Português.
Por mais que os padres estivessem a serviço do Estado, alguns driblavam ou mesmo
contestavam as ordens régias que ferissem, no seu entender, a Igreja a eles tão cara; ou ainda
que os funcionários régios professassem profunda devoção religiosa, não hesitavam em
arrumar problemas com aqueles que tinham o poder de excomungá-los. Ambos estavam
10
MACEDO, Op. cit. p. 135.
17
irremediavelmente distantes, pela diferença de cargos, de missão e, sobretudo, de jurisdição.
Mas a distância teórica anulava-se completamente no contato imediato e cotidiano da
administração colonial e complicava ainda mais porque o limite das jurisdições e,
principalmente, da atuação destes agentes nas referidas jurisdições era algo muito impreciso.
Além do mais, segundo Laura de Mello e Souza,11 a produção historiográfica recente tem
demonstrado empiricamente que a ênfase nos casos particulares, que privilegiam ou os
agentes ou as instituições, se mostra muito mais eficaz na compreensão substancial das
relações diversas tecidas nos domínios portugueses.
Dentre os agentes pombalinos, neste trabalho dois estão em destaque, seu meioirmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador do Grão-Pará e Maranhão entre
1751 e 1759, depois Secretário do Ultramar (1759-1770) e Joaquim de Mello e Póvoas,
inicialmente governador da Capitania do Rio Negro 1759-1761 (atual Amazonas), e depois
governador da Capitania do Maranhão durante 18 anos (1761-1779). Em um breve artigo12
explorei as relações familiares e as (muitas) linhas de contato existentes entre o poder
governativo e o parentesco destes três personagens... Em linhas gerais, concluí que as relações
familiares, por um lado permitiram a ascensão de Mendonça Furtado e de Mello e Póvoas aos
cargos administrativos do Império Português, mediante o poder do primogênito da família,
Carvalho e Melo, em benefício privado, e por outro, que a atuação destes parentes no
Maranhão, favoreceu a implantação e aplicação da política pombalina, obtendo sucesso
significativo, principalmente por ter produzido, em um período de média duração, uma
transformação econômica e social da região, conforme as diretrizes da Metrópole.
A política pombalina sempre foi vista como bem sucedida pela historiografia local, já
considerada clássica. Em geral, uma visão econômica, assim como a de Jorge Macedo, mas
nesse caso salvacionista do Maranhão, assim como pretendida naquela época para o próprio
Portugal. Ainda em 1756, o governador Mendonça Furtado dizia que: “é sem dúvida que a
nova Companhia [de Comércio do Grão-Pará e Maranhão] há de ser redenção deste Estado,
11
SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra: Política e Administração na América Portuguesa do Século
XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
12
SANTOS, Nivaldo Germano dos. . A Família de V. Excia. Seja a Coisa Mais Importante e Escolhida... . In: 3º
Encontro Internacional de História Colonial : cultura, poderes e sociabilidades no mundo atlântico (séc. XVXVIII), 2011, Recife. Encontro Internacional de História Colonial (3 : 2010 : Recife, PE), 2010. v. 1. p. 10751081.
18
principalmente quando os seus fins são tão interessantes, como o de vir trazer grande cópia de
escravos, de regular o comércio [...]”13
Raimundo José de Sousa Gaioso, que viveu no Maranhão no século XIX, escreveu o
célebre Compêndio Histórico-Político dos Princípios da Lavoura do Maranhão,14 e disse
acerca da Companhia de Comercio que:
Publicou-se em 1756 a criação de uma companhia geral com a denominação
de Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, que promete mil vantagens
aos seus habitantes, que membros de uma colônia nascente, não tinham
ainda as possibilidades necessárias para se abalançarem-se aos riscos do mar,
nem sofrerem empates nas diferentes transações a que quisessem aplicar a
sua indústria.
Uma produção de riquezas tão brilhante, uma exportação tão avultada no
curto espaço de pouco mais de 40 anos, depois de uns princípios tão
pequenos, pareciam ter do mundo a mesma duração. Uma capitania que se
fez tão opulenta com o produto de dois gêneros somente, merecia vê-los
gozar de uma franqueza, se não absoluta, ao menos que lhe não estancasse os
seus progressos.
César Marques diz que “a Companhia, porém promoveu a cultura destes dois últimos
objetos [arroz e algodão], recebendo progressivamente maiores quantidades, particularmente
do Maranhão, o que depois fez florescer ao ponto que hoje todos sabem.”15
Jerônimo de Viveiros disse que...
“[...] a Companhia de Comércio transformou a nossa penúria em fartura, a
nossa pobreza em riqueza. Deve-lhe o Maranhão o surto de progresso que
desfrutou nos últimos anos do período colonial e que todos os historiadores
consideram verdadeiramente notável.”16
Manuel Nunes Dias diz que “o Estado do Grão-Pará e Maranhão encontrou na
Companhia novos alentos. A empresa imprimiu-lhe as energias necessárias ao seu
rejuvenescimento, assegurando-lhe convivência com a Europa sequiosa de produtos
tropicais.”17
13
MENDONÇA, Marcos Carneiro. A Amazônia na Era Pombalina. Brasília, Editora do Senado Federal. Tomo
III, p. 68.
14
GAIOSO, Raimundo José de Sousa. Compêndio Histórico-Político dos Princípios da Lavoura do Maranhão. –
Superintendência do Desenvolvimento do Maranhão. Rio de Janeiro, Editora, Livros do Mundo Inteiro, 1970.
pp. 171,172 e 226.
15
MARQUES, César Augusto. Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão. Cia. Editora FonFon e Seleta. Rio de Janeiro, 1970. , p. 213.
16
VIVEIROS apud LIMA. História do Maranhão, a Colônia. São Luís, GEIA, 2006.. p. 454.
17
DIAS, Manuel Nunes. Fomento e Mercantilismo: a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778).
Belém – PA: Universidade Federal do Pará, 1970.
19
Mário Meireles, em seu estudo de cunho biográfico acerca do governador Mello e
Póvoas – apesar de só ver progressos, vantagens e facilidades, ter escrito uma história
personalista e romântica quanto aos destinos das coisas – apresentou um comentário bastante
interesse, fio original do pensamento que fomentou essa investigação presente.
A par do estímulo e ajuda trazidos pela Companhia, há de se ter em conta,
sobretudo, a assistência e a garantia de apoio e proteção por parte do
governo local, pois que Mello e Póvoas em nem um instante se deixaria
ausente, omisso ou indiferente ao assunto.
A ele, com a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão cujo
período de vigência coincidiu, no tempo, com seu prolongado mandato, se
deve que o povo, até então o mais pobre de toda a América..., o mais
turbulento e o mais difícil de se governar, se fizesse, em um futuro que se fez
muito breve, industrioso e subordinado.18
A ideia apresentada é que a Companhia de Comércio, como uma coisa que se
movimenta sozinha, não teria sido capaz de promover o famigerado enriquecimento da região,
se não fosse pela atuação dos agentes, responsáveis diretos pelo recebimento e execução das
diretrizes pombalinas no Maranhão. Em outras palavras, os agentes foram essenciais no
processo monopolizador do comércio local pela empresa, além de trabalharem em outros
aspectos da Capitania para consolidar aquela política reformista como um todo.
Demais disto, todos apontam para a Companhia de Comércio como um marco, de
modo relativamente exagerado, sugerindo mesmo que não havia comércio, civilização ou
qualquer outro “benefício” na região antes daquele período.19
Os recentes trabalhos da historiadora Antonia da Silva Mota, o livro “Família e
Fortuna no Maranhão Colônia” (2006) e a tese de doutorado “A Dinâmica Colonial
Portuguesa e as Redes de Poder Local na Capitania do Maranhão” (2007), procuraram
discutir o impacto ou o sucesso desta política, com um tom mais racional, menos emocionado.
Mota baseou-se em dados empíricos a partir de um amplo levantamento sistemático de
informações quantitativas da realidade econômica das famílias daquela época, a partir de
inventários post-mortem e testamentos. Mota procurou observar de dentro para fora o
processo de enriquecimento pela qual a região passou, em contraposição à visão tradicional,
constatando que não foi tão rápido como a historiografia considerada clássica disse, e que
acreditava que antes da Companhia de Comércio a região era empobrecida, o que Mota
18
MEIRELES, Mario Martins. Melo e Póvoas: Governador e Capitão-General do Maranhão. São Luís: SIOGE,
1974. p. 83 e 93.
19
Uma voz destoante é Celso Furtado, muito embora não seja um historiador, mas economista.
20
constatou não ser verdade: havia sim produção de riqueza no Maranhão antes da Companhia
de Comércio pombalina. De qualquer modo, temos um enquadramento, que em primeiro lugar
toma-se o Consulado Pombalino como marco histórico importante para o Maranhão e em
segundo, explora principalmente a dinâmica econômica produzida naquele período, com a
implantação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Ressalte-se ainda
que a ideia de Consulado ou Ministério Pombalino dissolve o personalismo histórico, porque
evidencia um grupo de agentes envolvidos no processo.
Como o argumento de Meireles é sugestivo quanto à atuação de um daqueles
prepostos, o sobrinho de Pombal, torna-se plausível ampliar esse argumento para todos os
outros prepostos e agentes, à medida que isso permite descortinar não apenas o cenário, mas
revelar os personagens ativos da história em questão, sem os quais, ela não teria se
desenvolvido como conhecemos.
O presente trabalho, perscrutando os difíceis caminhos da história colonial do
Maranhão, se detém no período pombalino, considerando-o sim um período importante na
história local, mas sob outro viés que não o econômico. Em outras palavras, embora a política
pombalina, aplicada pelos seus agentes, não tenha retirado o Maranhão de uma suposta
pobreza, que era muito mais discursiva do que material, estes mesmos agentes foram
responsáveis pela orquestração de um novo modelo social e, sobretudo, políticoadministrativo, se observada a reforma do governo em 1750. Sob orientação de Antonia da
Silva Mota, Josimar Vieira da Cruz em sua monografia de graduação, apresentada ao
Departamento de História da UFMA em 2009, “Sob os estigmas pombalinos...”, argumentou
que havia muito mais uma “fertilidade de retóricas” do que uma “retórica de fertilidades”. Ou
seja, a pobreza trilhava muito mais o âmbito do discurso político da Câmara de São Luís para
adquirir mais privilégios da Coroa para a elite local, do que realmente manifesta no cotidiano.
E isto se tornou uma espécie de ideologia, confirmada pelos contemporâneos da Companhia
de Comércio, na segunda metade do século XVIII, a qual “salvou” o Maranhão da miséria.
Esta ideia foi comprada pela historiografia “clássica” do Maranhão (César Marques, Jerônimo
de Viveiros e Mário Meireles) que exaltou a todo custo o trabalho do ministério pombalino na
região, principalmente por retirar da Companhia de Jesus a sua riqueza, transferindo-a para os
cofres do Estado, ou Real Erário.
Segundo o que chamou de “perspectiva de renovação”, tendo em vista os recentes
trabalhos exaustivos de Nuno Monteiro sobre o sistema de recompensas dos governos
21
ultramarinos e de sua vinculação às famílias de tradição nobiliárquica20 e as pesquisas dos
autores que trabalham com a vertente do Antigo Regime nos Trópicos, Laura de Mello e
Souza argumenta o seguinte:
Se a complexidade de questões levantadas pela análise do Império e da administração
impõe não perder de vista o enquadramento teórico [...] os estudos mais recentes
insistiram na importância de se estudar casos particulares, e creio que isto vale tanto
para indivíduos (os agentes) quanto instituições (conselhos, tribunais, câmaras,
secretarias). O consórcio entre empiria e teoria deve possibilitar o desenvolvimento de
uma história renovada da política e da administração no Império Português em geral e
da América Portuguesa em particular [...]21
Assim, a análise realizada ao longo do trabalho sobre a atuação destes agentes no
processo de Reforma da Igreja no Maranhão, está sustentada em uma ampla documentação,
levantada no Arquivo Histórico Ultramarino (Projeto Resgate), no Arquivo Público do
Maranhão e em duas obras que contêm documentos relativos ao objeto deste trabalho, a saber,
“A Amazônia na Era Pombalina” de Marcos Carneiro Mendonça e “Retratos do Maranhão
Colonial”, compilada pela equipe técnica do Arquivo do Maranhão e publicada durante o
governo de Jackson Lago. Toda esta documentação constitui-se das correspondências
administrativas dos governadores e demais funcionários, cartas e ofícios régios, e também
representações escritas pelos religiosos, cuja grafia optou-se por atualizar completamente na
transcrição.
As impressões obtidas foram confrontadas com as interpretações historiográficas
hegemônicas, e muito particularmente, com a historiografia local, considerada clássica,
sobretudo os trabalhos de Mario Meireles, porque também escreveu sobre a história da Igreja
no Maranhão. Também, não foram esquecidos ou renegados os compêndios de história
eclesiástica do Maranhão, escritos por padres, submetendo-os ao crivo ideológico, limpando a
história das paixões eclesiásticas desses autores. Até porque, a relação com a religião não é
um assunto negligenciado por nenhum daqueles historiadores e historiógrafos citados, mas
colocada em segundo ou terceiro plano em relação à economia, quando na verdade, aqui é
tomado como plano principal para entendimento daquele mesmo período histórico.
Jorge Borges Macedo considerou a política pombalina como assistemática ou
desorientada. Concebe-se aqui que não foi tão desastrada assim, mas montada e configurada
20
O sistema de recompensas se trata da articulação existente entre a Coroa portuguesa e as famílias de tradição
nobiliárquicas, cuja maior parte estava arruinada. A partir do trabalho de seus membros nos governos
ultramarinos, essas famílias recebiam mercês do rei, que incluam dons, títulos e, sobretudo, dinheiro. Assim,
podia recuperar-se da decadência, ao mesmo tempo em que faziam exaltar o nome e o domínio d’EL-REY em
todo o seu Império.
21
SOUZA, 2006. p. 74.
22
ao longo do tempo, conforme as necessidades imediatas e ao sabor das influências ideológicas
que emergiam na Europa e das relações governativas desenvolvidas pelos agentes no
Maranhão Colônia. Porém, não se pretende, aqui, construir biografias nem trajetórias
administrativas, mas tão somente compreender parte da dinâmica político-administrativa do
Maranhão na segunda metade do século XVIII. Nesse sentido, se trata muito mais de um
trabalho sobre política e administração do que um trabalho sobre religião. Isso porque a
análise não se deterá sobre os elementos e as dinâmicas da religião, mas sobre a oposição
política oferecida por alguns padres ao governo dos agentes de Pombal. Isto porque notando o
movimento geral da historiografia portuguesa visitada, Pombal fez e aconteceu, mas fica uma
lacuna quanto àqueles que não se submeteram facilmente e para esta tarefa também se obriga
este trabalho sobre o caso do Maranhão, cuja diferença de posição geográfica que apresenta
dentro do Império Português permite observar o mesmo eclipse, mas visualizar outras formas
e situações diferentes do Reino, com enfoque nos agentes do Estado e da Igreja.
Tendo isso em vista, o texto foi dividido em quatro capítulos, mais a introdução e sãs
considerações finais. O primeiro capítulo, intitulado “OS SERVIÇOS DE DEUS E DO REI”,
trata inicialmente de uma situação confusa, envolvendo o Vigário Capitular e os ministros do
rei no Maranhão, o governador e o Ouvidor Geral, porque um eclipse é antes de tudo, uma
confusão entre o Sol e a Lua. Para compreender a confusão em questão, será necessário recuar
no tempo para saber quando e como os primeiros agentes pombalinos, sobretudo seu meioirmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, nomeado governador do Grão-Pará e
Maranhão, atuaram em conjunto com os religiosos regulares. Tudo para o bom serviço de
Deus e do Rei. Mas não demorou muito para os problemas surgirem e, em consonância com
as questões do Reino, o governador e seus agentes começarem a desabilitar o poder temporal
das ordens religiosas sobre as sociedades nativas, culminando com a expulsão dos jesuítas do
Maranhão. Recuar no tempo torna o tempo da narrativa não linear, a partir do uso de um
recurso literário chamado “analepse”.
O segundo capítulo, intitulado “CONFLITOS DE JURISDIÇÃO ESPIRITUAL E
TEMPORAL”, trata de alguns casos emblemáticos, que servem como exemplo para
compreensão das tensões, entre os agentes pombalinos e os padres regulares, que emergiram
após a expulsão da Companhia de Jesus, em grande medida pela posse dos bens confiscados,
e principalmente pelo controle das aldeias indígenas. À frente da criação e resolução dos
problemas que surgiram nesse período estavam o governador da Capitania do Maranhão
Joaquim de Mello e Póvoas e o Bispo do Maranhão, D. Frei Antonio de São José.
23
O terceiro capítulo, intitulado “OS PADRES INIMIGOS COMUNS DO ESTADO”,
trata da oposição e eminência dos funcionários régios sobre os padres regulares, chamados de
inimigos do Estado pelo Rei. Aqui, o eclipse do poder do Estado sobre o poder da Igreja é
evidente, porque observa as disputas ocorridas entre os agentes pombalinos e os padres
regulares, principalmente o Bispo e o Vigário Capitular. Nesse capítulo ocorre na sequência
da narrativa um recurso literário chamado “encaixe”, quando a história se encaixa no que
estava sendo contado no início do primeiro capítulo. Somente tendo conhecido como se deu o
início e o desenvolvimento do “eclipse dos poderes” no Maranhão, é que agora se poderá
compreender a confusão mencionada no início do primeiro capítulo, porque permite visualizar
o problema (eclipse) pelos antecedentes, e não por ele mesmo, o que seria muito difícil e
impreciso. Assim, entendem-se as disputas e o desenlace da história. Se por um lado,
considero a História como ciência e não mera literatura, por outro os recursos literários lhe
revestem de um encanto peculiar.
E por fim, o quarto capítulo, intitulado “AS PESSOAS EM SEU TEMPO:
CONCEITOS E CONCEPÇÕES” remonta toda a narrativa que vinha sendo desenvolvida e
analisada, a fim de amarrar e costurar esses pedaços de história, na tentativa de fazer esse
trabalho ganhar um sentido mais claro.
Portanto, saber que o Estado se sobrepôs à Igreja em Portugal no período pombalino
é um ponto, e já bastante estudado pelos historiadores lusitanos, conforme algumas citações
feitas anteriormente, a cuja interpretação agora é adicionada a metáfora do eclipse para
expressar outro ponto, a forma como se deu esse processo ou qual sentido adquiriu na colônia.
Construiu-se aqui uma trama de média duração, na qual estão envolvidos diversos agentes.
Vejamos.
24
2. OS SERVIÇOS DE DEUS E DO REI
“Deus não pôs os cetros nas mãos dos príncipes para que
descansem, senão para trabalharem no bom governo dos seus
reinos.” (D. Luís da Cunha)
“[...] esta recomendação é das leis divinas e humanas; e sendo
Vossa Excelência, o fiel executor de ambas, como bom católico
e bom vassalo, fará nisso serviço a Deus e a El-Rey.” (Marquês
de Pombal)
A relação entre religião e política sempre foi muito estreita. Para o caso em questão,
quando D. Luís da Cunha escreveu o seu Testamento Político, onde fez a observação contida
na primeira epígrafe deste capítulo, sintetizou bem o preceito do poder divino dos reis,
corrente na Época Moderna. Tratava-se de uma concessão direta, sem intermediários ou Papas
– muito embora quando se operava a concessão de poderes do soberano para os governadores
houvesse uma série de intermediários, principalmente os secretários de Estado; da mesma
forma quando o Secretário dos Negócios do Reino, Sebastião José de Carvalho e Melo
escreveu ao sobrinho Joaquim de Mello e Póvoas, quando passou ao governo da Capitania do
Maranhão em 1761, recomendou que observasse bem o modo como conduziria sua
administração, cujos objetivos eram honrar a Deus e a sua religião e ao Rei e seus serviços.
Logo, é preciso ver como se deu a relação entre política e religião no Maranhão setecentista,
especificamente na segunda metade daquela centúria, a partir da atuação dos agentes do
Estado e da Igreja, sob a égide do Consulado Pombalino.
2.1. Agravos de Jurisdição
Em 1769, o governador da Capitania do Maranhão, Joaquim de Mello e Póvoas,
escreveu ao Secretário da Marinha e Ultramar, seu tio Francisco Xavier de Mendonça Furtado
acerca de uma questão que envolvia o vigário geral e um cônego. O cenário era o seguinte.
São Luís. Na tarde do domingo, dia 27 de novembro de 1768, já perto do por do sol,
várias pessoas, abastadas ou remediadas, e também algumas ilustres autoridades civis e
eclesiásticas se dirigiam para a Catedral da cidade, cujo templo era preenchido
gradativamente, e ao início missa, havia “muita gente na Igreja”. Todos com o fiel propósito
de participar do culto divino. Mas não foi exatamente isso que aconteceu.
25
Na presença de todo o povo, o reverendo Bernardo Beckman publicou do alto do
púlpito da Sé um Expresso, por ordem do vigário capitular Doutor Pedro Barbosa Canais. A
leitura do texto publicou contra o cônego João Pedro Gomes, dizendo que o mesmo Doutor
Barbosa Canais “desacreditava totalmente todo o bom procedimento do padre”, acusado de
“crime atrocíssimo”. Publicamente “infamado e desacreditado sem defesa alguma”, o padre
João Pedro Gomes viu-se em uma difícil situação, para a qual, atônito, não conseguiu reagir
de imediato. Aliás, qualquer reação violenta poderia agravar a sua honra diante dos fiéis. Mas
por aquela publicação oral do referido texto ainda “pedia nela ultimamente aos fiéis que
deprecassem e orassem a Deus, por ele Vigário Capitular, para que o ajudasse na batalha que
presentemente tinha a Igreja no Maranhão”. Curiosamente, isto “foi motivo de riso e
escárnio” no meio dos fiéis presentes, que usando de ironia, pronunciavam “uns aos outros,
‘vamos rezar, encomendando a Deus a batalha do Vigário Capitular.’” Por fim, o texto foi
“rasgado, feito tudo em partes” e lançado na rua pelo mesmo vigário.
Como havia “muita gente” naquela ocasião, os comentários diversos nos dias
seguintes, tornaram notório o escândalo que se fez em dia dedicado a Deus, nas ruas da cidade
e nas salas dos Ministros d’El-Rey. Inconformado com o descrédito público no qual caiu, o
cônego João Pedro Gomes procurou achar providência para a sua situação, acusado de “crime
atrocíssimo” por aquele vigário. Para tanto, encaminhou a causa ao então Ouvidor Geral da
Capitania, Bruno Antonio de Cardoso e Meneses, que prontamente assinou um Auto de
Agravo22 contra o mesmo Vigário, requerendo que ele desse traslado daquela Carta Pastoral
que fez publicar na Catedral, para que de porte da mesma pudesse proceder ao processo
contra o Vigário. Em resposta, este disse que não era costume dar traslado dos textos do Livro
de Registro da Câmara Eclesiástica – nem seria possível, pois o original havia sido lançado
em migalhas na porta da Igreja, e a cópia registrada, foi arrancada do referido livro de
registros por ele mesmo, tornando impossível ao Ouvidor conhecer o conteúdo daquele
documento, senão pelos relatos orais de que dispunha, nos quais não confiava; e isso nem era
útil para o prosseguimento do processo, porque a causa deveria ser enviada ao rei. Este, por
sua vez, deveria dar providência ao caso.
Em vista disso, o governador Joaquim de Mello e Póvoas argumentou ao Secretário
do Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que:
22
Um Auto de Agravo era realizado com base na interposição de um Recurso de Agravo ao Tribunal Régio, e
era um tipo de denúncia contra alguém, acusado de usar de força e violência contra o denunciante.
26
Sua Majestade já foi servido repreender ao Bispo dessa Diocese D. Frei
Thimotheo do Sacramento por carta de seis de março de mil seiscentos e
noventa e nove por negar uns autos que da Junta da Coroa se pediam como
se acusa no documento junto o que deu ocasião a se lhe ocuparem as
temporalidades: o Ouvidor vendo que esse Vigário Capitular não só não quis
dar o que lhe pedia a Junta da Coroa, mas para que em nenhum tempo o
pudessem obrigar a isso, rasgou e arrancou as folhas do registro, e querendo
[o Ouvidor] proceder com o mais maduro conselho e prudência que costuma,
por ser caso novo, consultou os Ministros do Pará, para obrar com o seu
parecer, ainda não recebeu respostas; e a mim me parece que só El-Rey
Nosso Senhor poderá resolver o referido caso, e do mesmo Senhor espero as
providências para atalhar a que para o futuro haja outro semelhante
escândalo.23
É particularmente curiosa a intervenção discursiva do governador sobre o caso,
principalmente por citar uma situação parecida ocorrida quase um século recuado do seu
tempo, história que muito provavelmente lhe foi contada por algum morador antigo, ou de
alguma forma registrada nos livros do governo. O vigário deveria ser punido não apenas por
supostamente ter injuriado publicamente um conservo de religião e ofício, mas por destruir a
prova do seu ato de injúria. Muito mais interessante é que aquele antigo caso mostra que não
eram novas as brigas entre agentes e conflitos de atuação, devido limites de jurisdições.
Porém, nesse novo caso há um diferencial, que é uma espécie de ideologia anticlerical
iluminista, que influenciava diretamente o consulado pombalino e parecia influenciar
indiretamente os agentes do Estado na colônia. É bem verdade que a política pombalina não
era anticlerical, mas contrária ao poder temporal dos religiosos. Na falta de um termo melhor,
foi usado este, no sentido de uma “espécie de” e não um “anticlericalismo” propriamente dito.
Não se trata de atribuir esse “sentimento anticlerical” como algo onipresente ou
compartilhado por todos os agentes régios, pois estou procurando apontar para um
comportamento político de oposição oportunista, devido interesses pessoais, amparados nos
interesses do Estado, entre os agentes que representam os poderes do Estado e da Igreja na
colônia. Nesse sentido, bastava tão somente um religioso por qualquer obstáculo a um
funcionário régio ou vice e versa para se iniciar uma confusão levada às últimas
consequências. O termo “anticlerical” permanece impreciso para expressar essa ideia, mas o
mantenho em uso, na falta de um termo melhor.
No argumento do governador, um Bispo havia sido repreendido pelo rei por negar
documentos importantes, mas não era raro que bispos e clérigos em geral fossem repreendidos
ou mesmo punidos concretamente pelo poder régio. Esta prática tinha um nome, “regalismo”,
23
AHU – 1769, Cx. 43, D. 4246.
27
que pressupunha a eminência do poder régio sobre o poder papal; se manifestava e vinha se
desenvolvendo desde há muito na península ibérica a partir do direito de Padroado
estabelecido desde a Alta Idade Média pela Sé Romana nos domínios de Portugal e Castela,
cujos soberanos passaram a ser chamados de “Sua Majestade Fidelíssima”. Neste caso, não
parece que o governador tivesse uma conceituação formulada do que fosse o Padroado ou
regalismo, mas conhecia a prática que assim se nomeia, e sobre a qual se posicionava
favorável, pois tanto a antiguidade do regalismo desenvolvido na superfície do Padroado
lusitano, quanto os casos citados (aquele do século XVII e este contemporâneo) pelo
governador sugerem que os conflitos entre o poder do Rei e o poder do Papa, fossem grandes
ou pequenos, eram uma realidade, sobre a qual surgiam e gravitavam relações de poder
político e administrativo do Reino e em especial da colônia, cuja distância do centro tornava a
resolução dos problemas desse tipo mais complicada ainda.
Os protagonistas desse novo caso, como se vê, eram os funcionários régios e os
padres, em situações em que o nível de autoridade decresce do rei e do papa para seus agentes
régios e eclesiásticos. Todavia, essa ideia não sustenta necessariamente uma dicotomia, já que
a causa presente começa no conflito entre dois padres.
O governador notou ainda que a publicação do “Expresso” chamado de “Carta
Pastoral” pelo vigário era “coisa estranha”, principalmente por ser contra um cônego da
Catedral, que trabalhava junto com o próprio vigário Barbosa Canais no ofício do culto
divino. A questão rolou durante um tempo na justiça de Sua Majestade, e o cônego João
Pedro Gomes interpôs vários Agravos, todos registrados em Autos pelo Ouvidor e seguidos
de argumentação do governador.
Conhecer o conteúdo daquela Pastoral parece, até agora, impossível, senão as
migalhas relatadas – assim como o próprio documento ficou. O autor destruiu o seu escrito:
usou dois dos maiores poderes de que dispõem os letrados, um é escrever e o outro é apagar a
história [escrita]; neste caso, uma pequena parte dela. Embora a ausência daquele texto tenha
sido um problema para o Ouvidor pelo serviço que lhe competia, não é mais um problema
hoje para o ofício da História, o problema é o que a sua breve existência significou naquela
sociedade e isto é possível mediante o conhecimento dos diversos Autos de Agravo
registrados pelo cônego contra o vigário. Principalmente porque o Vigário Dr. Barbosa Canais
destruiu apenas uma cópia do documento, restando outra suposta cópia, que revelou
diretamente ao Secretário Mendonça Furtado. Além do mais, implica algo muito maior do que
28
meramente conhecer o conteúdo de um documento, implica em compreender o motivo da sua
escrita. Quem e quando são questões menores, mas nem por isso são negligenciadas. Em
outras palavras, a busca não se restringe àquele documento, mas ao contexto no qual foi
escrito e os atores nele envolvidos.
Desta forma, é possível fazer algumas observações pertinentes. É interessante notar a
ausência do bispo, cujo substituto é o Doutor Pedro Barbosa Canais, Vigário Capitular,
aparente incitador desta confusão. Destaca-se ainda que o caso, mesmo sendo de cunho
religioso, porque o objeto da disputa era religioso, a jurisdição à qual recorreu o cônego João
Pedro Gomes foi régia ou estatal, e em momento algum recorreu à justiça eclesiástica, como
de costume. O governador entrou pessoalmente na causa do cônego, cuja razão e nome da
acusação de crime são importantes para se compreender a causa, sobretudo no que se refere à
“batalha” a qual se referia o vigário, que travava na Igreja do Maranhão. Assim, importa
conhecer que “batalha” era essa e porque o público fiel desdenhou da causa. Estas notas
parecem convergir para um problema inicial: por que o conflito entre aqueles religiosos se
desdobrou sob a justiça régia e não sob a justiça eclesiástica, visto ser um assunto interno?
Aliás, a justiça eclesiástica estava completamente ausente nesse caso. Assim, o agravo de um
padre sobre outro pode ser entendido como metáfora para uma jurisdição sobre a outra, a
interferência da jurisdição estatal na jurisdição religiosa. Na busca por um indício do caso na
historiografia regional, que inclui os compêndios de história eclesiástica do Maranhão feita
por padres, se vê que se reserva um espaço muito reduzido, uma imagem muito pequena e
pouca atividade para o Vigário Geral de nossa história, situando-o no lugar de um mero
substituto do cargo de governador do Bispado, sem muitos, ou quase nenhum feito:
O escolhido do Rei era o Dr. Pedro Barbosa Canais, que a carta régia de 25
de abril de 1767 apresentava ao Deão e ao Cabido como “pessoa muito do
seu real agrado e que fosse nomeado Vigário Geral”. Mas, mostrou-se logo
que não estava à altura de seu elevado cargo. Era imprudente, arrebatado e
brigão; por qualquer coisa questionava. Foi assim que desaveio-se com o
governador.24
O texto acima de D. Francisco de Paula e Silva é seguido de perto pela História
Eclesiástica do Maranhão de D. Felipe Condurú Pacheco:
[O Rei] mandou de Portugal para S. Luís o Dr. Pedro Barbosa Canais
apresentar ao Cabido a Carta Régia de 5 de abril de 1767, como “pessoa
muito do seu real agrado, para que fosse nomeado Vigário Geral”. Dentro
24
SILVA, D. Francisco de Paula e. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia
de S. Francisco, 1922. p. 136
29
em pouco o clérigo Canais provou “não estar à altura de seu elevado cargo”.
Imprudente e brigão, “quis impor-se e malquistou-se com todo o mundo.”25
Acrescentando outras informações, o historiador maranhense Mário Martins
Meireles, em seu livro sobre o governador Joaquim de Mello e Póvoas, aponta que:
De Lisboa [...] foi mandado o Cônego Dr. Pedro Barbosa Canais que,
conforme Carta Régia de 25 de abril de 1767 ao Cabido da Sé, “era muito do
seu real agrado que na ausência do bispo fosse nomeado o referido Dr.
Vigário Geral, visto ter confiança nas suas letras e virtudes”. Cedo, porém,
se revelaria ele incapaz para o alto cargo e indigno da investidura porque dílo D. Francisco de Paula e Silva, era “imprudente, arrebatado e brigão”, e
acrescenta César Marques, “sem respeitar a si mesmo”.26
Meireles reproduz Ipsis literis o mesmo trecho em outra obra, intitulada História da
Arquidiocese de São Luís (1977).
Com uma pequena divergência de datas entre as duas primeiras citações, o Doutor
Pedro Barbosa Canais aparece como substituto no governo do bispado, classificado e
reclassificado como inapto para o cargo a que foi nomeado pelo próprio Rei, e não pelo Bispo
do Maranhão, como o costume do direito. A Pastoral que foi feita em migalhas é citada de
relance por um dos autores, para justificar a descrença que os oficiais régios e até mesmos
próprios familiares manifestavam quanto ao vigário.27
Mas o comportamento “imprudente” e “arrebato” de espírito do Vigário Geral parece
estranho, não pelo cargo que ocupava, mas porque se observado à luz da configuração política
em que atuou, torna-se, assim, motivo de suspeita de não ser mera ingenuidade do padre e
muito menos “incapaz” a sua atuação. Vindo da Corte, nomeado pelo Rei, no ano décimo
sétimo do consulado pombalino, Barbosa Canais não pode ter ignorado todos os
acontecimentos recentes que haviam marcado a sua Igreja e religião, tendo sua jurisdição
violada e o seu poder ofuscado pela política e administração desenvolvida pelo Marquês de
Pombal no Império Português. Como substituto no governo do Bispado e classificado de
imprudente e incapaz para o mesmo cargo, a historiografia reservou para ele pouco espaço e
pouca visibilidade histórica.
O conhecimento que se tem das relações políticas do Ministério Pombalino com a
Igreja Católica parece indicar outra ideia, como suspeita: que não era um mero substituto nem
25
PACHECO, D. Felipe Condurú. História Eclesiástica do Maranhão. S.E.N.E.C. Departamento de Cultura.
Maranhão, 1969. pp. 58 e 59.
26
MEIRELES. 1974, pp. 45 e 46
27
PACHECO. Op. cit. p. 59.
30
incapaz para o referido cargo. Por enquanto, essa história parece imprecisa e confusa. Por
isso, a fim de compreendê-la substancialmente, é preciso recuar no tempo durante os referidos
dezessete anos do ministério pombalino até então passados, sobretudo levando em conta a
política e a administração desenvolvida na colônia americana portuguesa setentrional,
especificamente a Capitania do Maranhão, com o apoio de uma documentação significativa.
Isto é necessário para se responder àquelas últimas questões suscitadas sobre o
escândalo provocado pela publicação da Pastoral – a cujo caso se retornará para conhecer o
desenlace da história – e compreender o sentido do governo local em relação a Lisboa,
realizado e desenvolvido pelos prepostos pombalinos,28 ou agentes do Estado e a situação dos
religiosos naquela configuração político-administrativa. Em outras palavras, muitos pontos da
história do governo do bispado pelo Dr. Barbosa Canais, ou mais especificamente da
“batalha” por ele enfrentada nesse cargo tem a ver direta ou indiretamente com os
acontecimentos recentes antes da sua nomeação para o Maranhão.
Considero que por trás dessa breve confusão jurisdicional existe uma história muito
maior, o verdadeiro objeto deste trabalho.
2.2. Vicissitudes Político-Administrativas no Governo do Maranhão
O trono de D. José I foi inaugurado com uma primeira grande tarefa, a missão de
demarcação do Tratado de Limites29 entre as Coroas de Portugal e de Castela, pendência do
reinado de seu pai, D. João V. Seguindo uma das orientações de D. Luís da Cunha, em seu
Testamento Político, o novo rei escolheu e nomeou Sebastião José de Carvalho em 1750,
como Secretário dos Negócios do Reino.
28
Segundo o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, “preposto” significa: 1. Aquele que dirige um serviço ou
negócio por delegação da pessoa competente. 2. Bras. Representante delegado. Ou seja, um “preposto
pombalino” pode ser considerado um agente de Estado especial, porque está a serviço direto do Marquês de
Pombal, ou de sua política administrativa, com um objetivo específico a cumprir. Também se deve notar que é
verdade que o termo “preposto” não possuía esse significado no século XVIII, porque segundo o dicionário
Rafael Bluteau, “preposto” era uma espécie de guarda eclesiástico do coro, da Igreja, do ofício e do culto
divino, ou seja, um cargo meramente religioso. Será utilizado aqui para designar aqueles agentes nomeados
diretamente pelo consulado pombalino em vista de cumprir uma ação específica, segundo o atual significado
do termo. Não se refere, portanto, aos demais agentes, ainda que nomeados no mesmo consulado, para cumprir
as funções gerais e comuns de Estado.
29
Este tratado foi “[...] concluído em Madri no dia 16 de janeiro de 1750, entre o ministro da Espanha, D. José
Carvalhal de Lancaster e o plenipotenciário de Portugal, D. Luís de Melo e Silva, [...] ratificado em Lisboa a
26 de janeiro do mesmo ano” (MARQUES, 1970, p. 339). Para entender os antecedentes desse Tratado, ver a
dissertação de mestrado de Rafael Ale Rocha, capítulo 1, onde trata da política indigenista desenvolvida no
período pós Tratado dos Limites, intitulada Oficiais índios na Amazônia Pombalina: sociedade, hierarquia e
resistência (1751-1798). UFF, Niterói, 2009.
31
A fim de cumprir o Tratado dos Limites, celebrado entre as Coroas da Península
Ibérica, Sebastião José de Carvalho e Melo conseguiu enviar seu irmão,30 Francisco Xavier de
Mendonça Furtado para demarcar os limites da América Portuguesa setentrional em 1751,
mas antes, El-Rey extinguiu o antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará, com capital em São
Luís e criou o Estado do Grão-Pará e Maranhão, transferindo a sede administrativa para a
cidade de Belém. Uma mudança muito mais teórica do que prática, porque Mendonça Furtado
era mencionado como governador do Maranhão em muitas cartas, e a Companhia de
Comércio futuramente se instalaria em São Luís, muito mais estruturada do que Belém. Esta
Resolução foi passada o mais rápido possível pelo Conselho Ultramarino.31 Isto era
estratégico na delimitação dos territórios americanos entre a Coroa lusitana e a castelhana,
para defesa de invasões das nações do norte da Europa nas terras amazônicas, tornando a
região um ponto com especial atenção por parte da Coroa portuguesa.32
Em 22 de abril de 1751, o Secretário da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça
Corte-Real enviava ao então Presidente do Conselho, D. Estevão de Meneses (Marquês de
Penalva)
33
um aviso para que remetesse a consulta baixada em 19 daquele mês “sobre a
nomeação do governo da Capitania do Maranhão nas pessoas de Francisco Xavier de
Mendonça e Luis de Vasconcelos”.34 A “reforma” do governo, como chamou Corte-Real,
logo se executou.
No dia 26 de junho de 1751 pelas 8 horas da manhã deram fundo na baía do
Araçagi doze navios vindos de Lisboa em comboio, a que então chamava
frota, comandados pela nau de guerra São José, de que era Capitão do Mar e
Guerra Gonçalo Xavier de Barros Alvim, trazendo a seu bordo Francisco
Xavier para o lugar já dito, e Luís de Vasconcelos Lobo para seu CapitãoMor, ou Governador das Capitanias do Maranhão e Piauí com patente de
Coronel, pela Carta Régia de 2 de junho de 1751.35
Quando chegaram, Mendonça Furtado logo passou ao Grão-Pará, mas antes
encontraram no governo do Bispado D. Frei Francisco de São Tiago, bispo desde 1747, com
30
É claro que as relações familiares falaram mais alto na escolha de alguém de confiança, porque Mendonça
Furtado não era importante no Reino, mas seu irmão sim, e seu pai também, Francisco Luís da Cunha de
Ataíde, Chanceler-Mor do Reino.
31
AHU – 1751 Cx. 32 D. 3251.
32
DIAS. Op. cit.
33
Este Diogo de Mendonça Corte-Real é filho do ex-secretário das Mercês, homônimo. O Marquês de Penalva
era o 5° Conde de Tarouca. Portugal – Dicionário Histórico. Disponível em
<http://www.arqnet.pt/dicionario/mendoncacrdiogo1.html> e em
<http://www.arqnet.pt/dicionario/penalva1m.html>
34
AHU – 1751 Cx. 32 D. 3261.
35
MARQUES, 1970, p. 338
32
quem se deram muito bem. O bispo logo tomou providência para realizar as celebrações
fúnebres da morte do rei D. João V e da ascensão de D. José I ao trono.
[...] tomei por minha conta fazer a dita [...] com a maior pompa que me
permitisse a pobreza da terra.
E, com efeito, fazendo-se a essa em forma que algumas pessoas deste Reino
a proferiram e outras que lá tinham, em 3 de setembro de tarde cantamos
solenemente as vésperas, e no dia seguinte o ofício e missa de pontifical,
com sermão e mais cerimônias que dispõem o Pontifical Romano; assistindo
a tudo o Governador e o Senado e as quatro Religiões que há nesta cidade,
os Ministros, e mais outros distintos que se achavam na terra, sendo todos
convidados por mim em escritos particulares que lhes mandei.
E no dia oitavo do mesmo mês próximo passado em ação de graças pela
alegre aclamação e exaltação do Augustíssimo e Fidelíssimo Senhor D. José
I ao Real Trono, cantei solenemente o Hino Te Deum Laudamus, com o mais
que em semelhantes atos se costuma: e com a mesma solenidade cantei no
mesmo dia Missa de Pontifical pelo feliz reinado de Sua Majestade.36
Porém, o governador Vasconcelos Lobo mal teve tempo de dar cumprimento a
algumas ordens régias, como a de retirar alguns funcionários que não estavam honrando seus
postos administrativos,37 substituindo-os por outros; fez uma longa análise da situação do
governo do Maranhão, requerendo algumas companhias de infantaria para a Capitania e logo
adoeceu de “desgosto”. Acabou morrendo na noite de 11 de dezembro 1752, em São Luís,
nomeando como seu testamenteiro o governador Mendonça Furtado. César Marques (1970)
conta em seu Dicionário Histórico do Maranhão que a culpa da morte do governador estava
em seu amigo Lourenço Belfort,38 “que tinha a mania de querer passar por calculista”.39 O
então Desembargador e Ouvidor Geral Manuel Sarmento chamou de “breve doença” a causa
da morte repentina do Governador.40
Por aquele tempo, o bispo D. Frei Francisco de São Tiago adoeceu de “queixa grave”
e oito dias depois da morte do governador, o bispo também faleceu. Novamente o
36
AHU – 1751, Cx. 32, D. 3282.
César Marques nos conta em seu “Dicionário Histórico do Maranhão” quem eram aqueles agentes: “[...] em
obediências às ordens régias que havia trazido fez prender o Almoxarife da Fazenda Real José Cardoso
Delgado, o Provedor da Fazenda Faustino Fonseca de Freire e Melo, o Procurador da Coroa e Fazenda
Silvestre da Silva Baldez, o Escrivão da mesma Manuel Lopo Silva e o Escrivão da Contadoria dos Contos
José Serrão de Carvalho [...] Foram remetidos para Lisboa e presos na Cadeia do Limoeiro, e aí faleceram
todos.” (1970: p. 338)
38
A atuação de Lourenço Belfort, irlandês naturalizado português, no Maranhão foi muito vasta e influente em
várias esferas da sociedade colonial no Maranhão. Seu nome é recorrente na documentação setecentista do
Maranhão. Isto gerou um patrimônio enorme, que foi dividido entre seus descendentes, que construíram uma
verdadeira rede de famílias de elite na colônia, que atuaram do mesmo modo que seu patriarca, conforme a tese
de doutorado da professora Antonia da Silva Mota, intitulada “A dinâmica colonial portuguesa e as redes de
poder local na capitania do Maranhão” (2007)
39
Op. cit. p. 339.
40
AHU – 1753 Cx. 33 D. 3366.
37
33
Desembargador Manuel Sarmento foi o responsável por noticiar a morte de uma grande
autoridade da Capitania ao Secretário da Marinha e Ultramar, Joaquim Miguel Lopes do
Lavre:41
Adoecendo de queixa grave o Excelentíssimo Reverendíssimo Bispo deste
Bispado D. Frei Francisco de São Tiago depois de experimentar vários
remédios se resolveu por conselho dos que lhe assistiam a mudar de ares,
porém conhecendo que não só lhe não faziam a um benefício, mas que a
moléstia se lhe agravava determinou recolher-se a esta cidade; em meia
viagem faleceu no dia 18 do mês de dezembro a bordo de uma canoa, que o
conduzia, e nela ou em uma praia a que aportou foi aberto e embalsamado e
chegou seu cadáver a esta cidade no dia 20 do dito mês com que foi
sepultado, e é certo que com a sua falta ficou este Bispado com grande
desamparo; o que participo a Vossa Excelência para ponha na presença de
Sua Majestade.42
Mario Meireles nos diz ainda que:
A seu crédito, no breve e atribulado mandato que exerceu, apontam-se,
apenas, o ter sabido, ele pessoalmente, viver em boa paz com as autoridades
régias e com suas ovelhas e o ter ordenado 25 novos sacerdotes – 9 seculares
e 16 regulares.43
É claro que não se está atribuindo as mortes repentinas do governador e do bispo ao
Desembargador, ou seus interesses, nem haveria espaço para essa discussão aqui, embora
essas duas mortes em sequência das maiores autoridades da Capitania permaneçam como um
caso curioso. Ele apenas cumpriu o seu papel. Por fim, esta notícia chegou ao Secretário
Diogo de Mendonça Corte-Real, através do Governador do Grão-Pará, Mendonça Furtado,
em carta de 26 de fevereiro de 1753, na qual dizia que:
Aquela capitania se acha no último desamparo; necessita com a maior
brevidade de um Governador, e Governador que não só seja soldado, mas
que saiba da arrecadação da Fazenda Real; que cuide nas plantações, no
comércio e em instruir aquela rude gente, e que finalmente se não lembre de
sorte alguma do seu interesse particular.44
41
Entre 1751 e 1753, as cartas são dirigidas ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, que segundo o
sistema do Projeto Resgate, ora é Joaquim Miguel Lopes do Lavre, ora Diogo de Mendonça Corte Real, sendo
que este depois aparece sozinho como responsável por aquela Secretaria. Então, Joaquim Miguel Lopes do
Lavre passa a ser identificado como secretário do Conselho Ultramarino. Creio que essa confusão de nomes e
cargos se deve ao fato de Lopes do Lavre ter sido Secretário da Marinha e Ultramar antes de Corte-Real, que o
sucedeu. As datas correspondem a um período de “transição”, pelo menos para quem estava distante, porque
não tinha notícia ainda das novas ocupações daqueles funcionários.
42
AHU – 1753 Cx. 33 D. 3363.
43
MEIRELES, Mario. História da Arquidiocese de São Luís do Maranhão, SIOGE, 1977, p. 135.
44
Carta da coleção A Amazônia na Era Pombalina, de Marcos Carneiro Mendonça. Tomo I, p. 435. Porém, o
novo governador Lobato e Sousa contrariou levemente a ideia de não se lembrar do seu interesse particular,
porque logo tratou de inserir seus filhos João Pereira Caldas e Gonçalo José Pereira Caldas nos postos de
tenente-coronel e sargento-mor no Regimento de São Luís, conforme se vê em: Projeto Resgate – AHU – 1754
Cx. 35 D. 3471 / para a sala do governo: 1755 Cx. 35 D. 3510
34
Enquanto não se providenciava outro governador, passou ao governo da Capitania o
Capitão-Comandante Severino Faria, segundo uma ação do Desembargador Manuel
Sarmento.45 A falta de “autoridades superiores” gerou uma série de problemas
administrativos, porque as pequenas autoridades e algumas pessoas importantes entraram em
conflitos. Um exemplo destes envolvia o Desembargador Manuel Sarmento e a família Jansen
Müller sobre a concessão do funcionamento de uma fábrica de serrar madeiras. Alguns padres
também se envolveram em pequenos delitos, sendo punidos.46
Ainda em 1753, pela Carta Régia de 6 de agosto daquele ano era nomeado para o
governo vacante o Brigadeiro Gonçalo Pereira de Lobato e Sousa,47 que tomou posse ainda no
Pará em 4 de outubro; e logo passou ao governo do Maranhão, onde tratou de resolver e sanar
a “decadência” em que se achava o governo da capitania. A partir daí, as ações políticoadministrativas passaram a ser mais coordenadas e menos acidentadas entre São Luís e
Belém, e entre estas e Lisboa, principalmente porque em 1755 implantou-se a Companhia de
Comércio do Grão-Pará e Maranhão,48 o que gerou uma integração melhor entre as regiões
administrativas.
A Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão foi resultado de alguns
anos de trabalho e orquestração de sua estrutura e funcionamento, através da inicial petição da
câmara municipal de São Luís, enviada em 1752, ao Governador e Capitão-General Francisco
Xavier de Mendonça Furtado. Fundada em 1755, a Companhia deu início ao tráfico intenso
de escravos para o Maranhão, uma das principais comercializações e fontes de lucros da
empresa. Os senhores locais tiveram a chance de ter a produção alargada com a compra de um
grande contingente de mão de obra escrava, para trabalhar nas lavouras, especialmente de
algodão, transformando o Maranhão, em alguns anos, no principal fornecedor deste artigo
para a Revolução Industrial Inglesa que estava em ampla expansão, já que seu antigo
fornecedor de algodão, as colônias inglesas do Sul na América do Norte, estavam em guerra
de independência e suas plantações algodoeiras assoladas.49
45
AHU – 1753 Cx. 33 D. 3366. Ver também o Dicionário Histórico do Maranhão de César Marques, à página
339.
46
No Arquivo Histórico Ultramarino, a documentação que contém esses problemas referidos está localizada entre
o número 3359 e 3924.
47
Ele agradeceu fervorosamente ao Secretário da Marinha, Diogo de Mendonça Corte-Real, pela mercê que
recebera, em carta de 12 de outubro de 1753. AHU – 1753 Cx. 34 D. 3432
48
Segundo Carlos de Lima (2006: 454), a Companhia foi instalada na Rua da Estrela (Cândido Mendes), na
esquina da travessa da Alfândega (Marcelino Almeida) em frente ao arsenal da Marinha, em São Luís.
49
A este respeito os trabalhos de mestrado e doutorado da historiadora Antonia da Silva Mota, o livro Família e
Fortuna no Maranhão Colônia (2006), e a tese A Dinâmica Colonial Portuguesa e as Redes de Poder Local na
35
Mas estabelecido o governador, o bispo ainda não. D. Felipe Condurú Pacheco conta
que o agostiniano D. Frei Antonio de São José, doutor em teologia foi confirmado pelo Papa
Bento XV em 18 de julho de 1756 para ser o novo bispo do Maranhão, onde tomou posse por
procuração passada ao cônego João Rodrigues Covette em 11 de abril de 1757. O novo bispo
chegou a São Luís em 8 de setembro do mesmo ano, “recebido pelos diocesanos com festivos
sinais de júbilo, obséquios de todas as autoridades e solenes pompas, como se fazia naqueles
tempos, tomou as rédeas do governo [...]”.50 Contemporaneamente, disse o governador
Mendonça Furtado que a sua ocupação com os problemas da demarcação o embaraçavam de
“ir esperar” ao Bispo em São Luís, “e depois lhe tomar a bênção, dar-lhe os parabéns da
felicidade da viagem e oferecer-lhe [...] fiel obediência.”51 Como não pôde fazê-lo
pessoalmente, escreveu a breve carta para se justificar. D. Francisco de Paula e Silva, em seus
Apontamentos para a História Eclesiástica do Maranhão diz que “o ano de 1758 parece ter
corrido com certa calma; sabemos que durante ele, [o bispo] ordenou vinte e sete padres”.52
D. Frei Antonio de São José vinha nomeado pelo Papa, mas antes indicado pelo
Secretário dos Negócios do Reino, que recomendava o novo bispo ao irmão e governador
Mendonça Furtado, como um “grande letrado”, de “exemplares costumes” e que “leva por
máxima conservar uma perfeita harmonia com os governadores, com os militares e com os
ministros [...] antes de aparecer qualquer conflito de jurisdição.”53
Todavia, aquela “calma” mencionada por D. Francisco de Paula em sua obra logo
seria perturbada pela junção dos devaneios de um suposto padre, a ambição de um lavrador e
o desvio administrativo de dois funcionários régios. O bispo contou essa história
“protagonizada” pelo padre José de Sousa Machado, em resumo ao então Secretário de Estado
da Marinha e Ultramar, Tomé Joaquim da Costa Corte-Real, da seguinte forma:
Veio este clérigo de Pernambuco a cidade de São Luís e teve astúcia para
persuadir enganosamente ao Ouvidor da Capitania Gaspar Gonçalves dos
Reis práticas ocultas e promessas de segredo inviolável, que neste bispado
nas partes do Iguará havia minas fecundíssimas de ouro. O juiz de Fora e
Provedor da Fazenda Real Inácio Barbosa Canais de Abreu a quem o
Ouvidor revelara o segredo quis também da sua parte enviar neste
descobrimento da verdade das minas, ainda por meios menos conformes à
Capitania do Maranhão (2007) tem sido dedicadas à temática do enriquecimento da região, observando esse
processo a partir dos núcleos familiares, sobretudo de elite.
50
PACHECO. Op. cit. p. 31,32.
51
MENDONÇA, Marcos Carneiro. A Amazônia na Era Pombalina... Tomo III, p. 256.
52
SILVA. Op. cit. p. 126.
53
Parte daquela carta foi reproduzida por Mario Meireles em sua História da Arquidiocese de São Luís..., no
capítulo onde narra os fatos da carreira de D. Antonio de São José, p. 148.
36
verdade, despindo-se da qualidade de Ministro, e fingindo-se um particular
interessado, unido com Lourenço Belfort irlandês, quiseram persuadir ao
clérigo, de quem já desconfiavam, que entrasse com ambos em um contrato
clandestino para contraírem o ouro das sonhadas minas.54
Na casa de Lourenço Belfort, firmaram acordo, tanto o lavrador quanto os
funcionários no intento de enganar ao clérigo, para ficar com todo o ouro, não sabendo eles
que já estavam sendo enganados com uma notícia falsa. Belfort providenciou canoas,
escravos e mantimentos para a jornada de descoberta; o clérigo ficou responsável por
“descobrir com certeza o lugar do ouro”; e o juiz de fora pronto a manter em segredo esse
projeto em relação ao governador e averiguar se este tinha notícia daquelas minas. Porém,
logo essa história chegou aos ouvidos do governador e outros funcionários.
“Aberta sindicância para apuração da verdade, e inclusive despachada uma
expedição militar para a necessária localização do veio, apurou-se ser tudo mentira; e o pior –
que José de Sousa Machado e José Vivardo não eram clérigos e sim dois embusteiros.”55
Traumatizado com o escândalo causado pela falsidade daquela notícia, o então
Provedor do Real Erário, Inácio Baltasar Corrêa de Abreu morreu, porque segundo sua ordem
o governo local gastou significativa soma naquela empreitada fracassada. Carlos de Lima tem
um comentário anedótico sobre casos como esse, assim como aconteceu com o governador
Vasconcelos Lobo. “É de estranhar que governadores e capitães-mores [...] pudessem ser tão
sensíveis a erros tão simples, a ponto de acabrunhados, adoecerem e morrerem de puro
arrependimento...!”56
O mesmo bispo que contou essa história em resumo ao Secretário da Marinha, foi o
mesmo que pôs entraves na justiça régia para tentar encobrir o mal feito do suposto padre José
de Sousa Machado, com grave consequência como a morte do Provedor. Um destes entraves
foi tentar impedir a transferência do padre para Lisboa... e nesse episódio conseguiu tornar vãs
as palavras do Secretário Carvalho e Melo sobre o seu zelo e harmonia com os governadores,
criando um problema de jurisdição, muito embora ele alegasse que a jurisdição eclesiástica é
que havia sido rompida pelos funcionários régios, quando explicou naquela mesma carta “[...]
que sugeriram contra o clérigos os horrorosos vocábulos de sedicioso, revelioso [sic] e
perturbador da paz, calando os conventículos para que foi convidado, tão indecentes a um
Ministro [...]”. Aí, bispo e governador entraram em choque.
54
AHU – 1759 Cx. 39 D. 3813.
MEIRELES, Mario. História da Arquidiocese de São Luís... p. 149.
56
LIMA. Op. cit. p. 456 e 457.
55
37
O padre ou embusteiro José de Sousa Machado foi condenado e preso pelo Juiz de
Fora Inácio Barbosa Canais de Abreu, em uma longa sentença, enviada para o Secretário da
Marinha.57 Apesar do choque entre as duas maiores autoridades da Capitania por causa de um
mentiroso, porque ambas se arrogavam no direito de julgá-lo, cada qual segundo critérios
próprios, tanto o governador quanto o bispo foram enfaticamente admoestados pela Coroa
que, por fim, proibiu a descoberta de minas.58
2.3. A Riqueza das “Religiões”
Francisco Xavier de Mendonça Furtado foi nomeado governador plenipotenciário e
primeiro comissário para a conferência de demarcação de limites em 1753.59 Mas durante seu
governo na colônia (1751-1759), enfrentou uma série de problemas estruturais, sobretudo o
poder que as ordens religiosas mantinham sobre as sociedades nativas, pois na região era a
mão de obra indígena motivo de riqueza na sua muita quantidade e principalmente motivo de
pobreza na sua falta, devido à insuficiente quantidade de escravos africanos até então.60
Legitimados pela evangelização dos povos indígenas, os padres regulares, sobretudo
os da Companhia de Jesus,61 mantinham os nativos sob um sistema de servidão,
monopolizando a economia das drogas do sertão, atividade na qual a mão de obra indígena
era largamente utilizada. Com isso, impediam não apenas os colonos de possuírem escravos
em quantidade suficiente como também, e exatamente por isso, impediam o desenvolvimento
econômico da região, ao mesmo tempo em que tinham seus cofres cada vez mais
enriquecidos. Os padres inacianos, por exemplo, haviam construído um verdadeiro império
temporal62 – muito maior do que o de outras ordens religiosas – e sua não colaboração no
projeto de demarcação do território e no governo das conquistas do norte fomentou a oposição
57
AHU – 1759 Cx. 39 D. 3804.
Essa proibição é um tanto descabida e paradoxal, porque na hipótese de alguém descobrir uma mina de
verdade, seria preso como embusteiro, segundo carta régia de 19/01/1760.
59
MARQUES, 1970, p. 339.
60
Esse quadro mudou com a implantação da Companhia de Comércio em 1755, pois permitiu a entrada em
grande quantidade de escravos africanos no Maranhão e em todo o norte da América Portuguesa. Luiz Felipe
de Alencastro chama esse processo de “desencravamento” da Amazônia em O Trato dos Viventes (2000), p.
138.
61
Ordem Religiosa fundada pelo padre Inácio de Loyola em 1534. Os padres dessa ordem também são chamados
de inacianos, em referência ao nome de seu líder-fundador.
62
RAYMUNDO. Letícia de Oliveira. O Estado do Grão-Pará e Maranhão na nova ordem política pombalina: A
Companhia Geral do Maranhão e o Diretório dos Índios (1755-1757). – Relatório de Iniciação Científica.
USP, 2005.
58
38
do governador Mendonça Furtado.63 Em suas cartas64 dirigidas ao irmão, o tom antijesuíta
passou a aumentar expressivamente nos anos seguintes.
Nas linhas gerais de todas as Letras enviadas por Mendonça Furtado ao irmão e
Secretário do Reino, Carvalho e Melo, há três grandes interesses que se destacam: a liberdade
dos índios e as novas modalidades de exploração do trabalho; a secularização das aldeias
enquanto um mecanismo político e econômico; e o fomento à produção e ao comércio.65 Estes
interesses se materializaram durante seu governo, o primeiro deles com a publicação da Lei de
Liberdade dos Índios e o segundo com a Lei de Abolição do Poder Temporal dos Religiosos,
ambas em 1755; o terceiro foi o mais avultado, a criação da Companhia de Comércio, ainda
naquele ano.
Dentre as várias correspondências uma merece destaque por conter uma ampla
(embora considerada breve pelo autor) argumentação acerca da situação das sociedades
nativas e do poder das “religiões”, denominação dada genericamente às ordens religiosas. O
mais curioso é que ela é a primeira carta enviada pelo governador, oriunda da brevíssima
experiência que teve na região, antes e pouco depois de tomar posse, mas já apresentava
traços de muito [alegado] conhecimento da situação. Datada de 21 de novembro de 175166, a
carta em questão traz em seu corpo de texto a localização e a dimensão da região governada,
observando ainda a grande população nativa que nela habitava. De início, esta população
estava ameaçada:
Tem o sistema presente produzido tão contrários efeitos, que com grande
mágoa assento e provo que não só se não tem convertido o gentio da terra,
mas que, contrariamente, muitos cristãos tem não só tomado os costumes dos
gentios, mas ainda têm seguido os seus, sendo maior lástima que até tenham
entrado nesse número muitos eclesiásticos.67
O pretexto da piedade cristã foi central na sustentação dos argumentos que
Mendonça Furtado emendou nas páginas seguintes. Esse estado de “efeitos contrários”
verificado na região resultava da atuação dos religiosos regulares que passaram àquelas partes
com a missão de salvar os gentios e civilizá-los. Não porque os padres fossem pouco
eficientes, mas porque sua eficiência estava voltada para os interesses temporais e não
63
Inicialmente apontada por Boxer (2002), esta ideia constitui a tese defendida na monografia de Josimar Vieira
da Cruz (2009) apresentada ao Depto. De História da Universidade Federal do Maranhão, intitulada “Sob os
estigmas pombalinos: Uma imagem distorcida dos jesuítas do Maranhão seiscentista (1607-1661)”.
64
MENDONÇA, Marcos Carneiro. A Amazônia na Era Pombalina...
65
RAYMUNDO. Letícia de Oliveira. Op. cit.
66
MENDONÇA, Marcos Carneiro. A Amazônia na Era Pombalina..., Tomo I, pp. 109-126.
67
A Amazônia na Era Pombalina... Tomo I, p. 110.
39
espirituais como Mendonça Furtado dizia que deveria ser. A tarefa principal de que se
ocupavam os religiosos era praticar o comércio, mas antes de chegar a este ponto, deixado por
último porque considerado mais importante, o governador principiou por “historicizar” a
questão.
Como Vossa Excelência sabe, na forma do Regimento das Missões se
entregou às Religiões, com o nome de que lhe davam, o governo espiritual e
temporal, a total soberania de todos os gentios não se limitando ela só aos
aldeanos, mas a todos os infelizes homens que nascem nestes sertões.
Como este absoluto poder que eles arrogaram a si, debaixo do pretexto
aparente de missionários, e em fraude da mesma lei lho deu, é tirano, não
podia produzir outra coisa que violências, violências tão continuadas, e tão
executadas, como referirei algumas.68
A primeira das violências era o poder detido pelos missionários sobre os nativos,
para livrá-los da escravidão. Argumentando que esta espécie de “protetorado” que as ordens
religiosas mantinham sobre as sociedades nativas teve início com a chegada do padre Antonio
Vieira, como superior dos jesuítas no Maranhão em 1652. A partir daí, os religiosos passaram
a deter o “monopólio” do “serviço dos índios, em total ruína das fazendas dos moradores e da
conservação do Estado.” Questão amplamente tratada na historiografia, que opunha os
colonos aos jesuítas pelo interesse nos nativos como mão de obra escrava. Desta questão, por
exemplo, a revolta de Beckman no final do século XVII foi um marco importante, do qual
Mendonça Furtado fez lembrança do governador Gomes Freire de Andrade, por restabelecer a
ordem. Porém, esta ordem restabelecida significou confirmar nas mãos das ordens religiosas o
poder sobre os nativos e sobre todo “o povo contido”.
O Regimento das Missões de 21 de dezembro de 1686 autorizou a “soberania” e o
“despotismo” das Religiões que, “esquecendo-se totalmente da sua obrigação”, que era cuidar
e educar os povos nativos “no verdadeiro conhecimento da lei evangélica, na deformidade dos
vícios e no santo temor de Deus”, passaram a se interessar e trabalhar em matérias temporais.
Com o uso da língua geral, os regulares criaram alguns problemas como, por
exemplo, passar a ideia de que existiam vários deuses (santos) porque não havia termos ou
palavras suficientes na língua geral que comportasse todos os elementos da doutrinação
católica. Isso terminava por impedir os moradores de se comunicarem com os nativos,
obrigando-os a aprender e a falar a língua geral, de modo que quase ninguém se encontrava
que falasse o português. Com o pretexto da doutrinação, os índios ficavam completamente
68
A Amazônia na Era Pombalina... Tomo I, p. 110 e 111.
40
submetidos ao poder dos padres, de modo que “esta aparente liberdade que sempre clamam as
Religiões é o mais rigoroso cativeiro que se pode imaginar, como demonstrarei com a
brevidade possível.”69
Os religiosos proibiam e usavam de todos os meios para impedir os nativos de
trabalharem livremente, a soldo, com os senhores locais. Quando qualquer delito era
constatado, o índio ou era “degredado” para outra fazenda onde era obrigado a (re)casar com
quem o padre administrador escolhesse, ou então era açoitado no tronco. Desta forma, os
regulares se convenceram de que todas as aldeias eram suas.
Persuadiram-se as Religiões de que aquelas aldeias eram suas, porque são
governadas por um missionário que nelas reside, o qual batiza, faz
casamentos, dispensa nos impedimentos, administra absoluta e
despoticamente todo o espiritual, sem que ao ordinário seja lícito conhecer
das inumeráveis e repetidas desordens que nelas se fazem e de que podem
atestar os prelados deste Estado com fatos certos e notórios.
Administram mais com um governo absoluto e despótico todo o temporal,
sem que das suas injustiças e violências haja para quem recorrer, porque no
dito governo não há ordem ou forma de proceder, e em consequência não se
admite apelação ou recurso para tribunal algum.[...]
Finalmente, deram estes padres em um novo modo de governar uma tão
grande república como esta, o qual não lembrou nunca aos maiores
legisladores, qual é o de manterem estes largos povos em paz, quietação e
justiça, sem mais leis ou polícia que o arbítrio de uns poucos padres, que o
mais douto não sabe uma questão de teologia.70 (p. 117-118)
Dos resultados dessa dominação, segundo Mendonça Furtado, há três principais:
primeiro, que não se ouvia falar em Rei entre os regulares ou destes para os nativos, de modo
que se as leis expedidas não favorecessem aos religiosos, entravam em confusão e nunca
executavam nenhuma determinação; segundo, que “estes padres exercitam uma jurisdição
real”, o que muito contrariava o Regimento das Missões, porque o governo temporal
concedido significava fazer executar e não julgar ou legislar, como vinham fazendo; terceiro,
que “os Regulares se viram senhores absolutos desta gente e das suas povoações.”
No Regimento das Missões é dado a cada missionário 25 índios para seu
serviço, à exceção dos pescadores e oficiais mecânicos; em 19 aldeias que
nesta capitania71 têm os padres da Companhia, importam ainda, usando só do
seu direito, em 475 homens que andam tralhando para eles, sem falar nos
infinitos que têm nas suas fazendas [...]
69
A Amazônia na Era Pombalina... Tomo I, p. 115.
A Amazônia na Era Pombalina... Tomo I, p. 117 e 118.
71
Pará.
70
41
Além de todos estes índios, acrescem mais para os serviços dos padres todos
os que constituem as povoações, são as mais populosas, a que os padres da
Companhia – do Carmo e das Mercês – chamam “Fazendas”, e os padres
Capuchos “Doutrinas”, e somados todos passam de 12 000 homens, além das
suas famílias, que andam continuamente adquirindo para as Religiões, tanto
na droga dos sertões, como em todas as plantações que podem servir ao
comércio de fora, e para o particular [...].72
Assim, controlando uma grande quantidade de mão de obra, sob o pretexto da missão
evangelizadora, os religiosos regulares passaram ao controle do comércio regional. Com a
ruína dos particulares (colonos e comerciantes) no trato das drogas do sertão promovido pelas
“religiões”, o monopólio deste tipo de comércio, que era um dos principais na época, passou a
ser uma realidade palpável. Ao estabelecer uma comparação com os valores cobrados em
dízimos na terra e na entrada da Casa da Índia em Lisboa. Somando os 10% cobrados de saída
na Alfândega local e os 50% de entrada na Casa da Índia, soma-se 60% do valor total da
mercadoria transportada. Inversamente, somando os 4% de saída de Lisboa mais os 5% pagos
à Mercearia em caso de produto do país (América) tem-se 9% do valor da mercadoria. Na
entrada da Alfândega local, paga-se mais 10%, somando-se 19%. Somando-se as taxações,
temos 79% do valor total da mercadoria transportada.
Como os regulares, assim como não pagam direitos dos efeitos da terra
também não pagam, com o pretexto das missões, nem o Consulado nem a
Mercearia, em Lisboa, nem neste Estado a Alfândega, e como não pagam
direitos em parte alguma, se demonstra por um verdadeiro cálculo que na
balança do comércio vêm a ganhar padres 80 por 100 contra os seculares, e
dele compreenderá Vossa Excelência o progresso que podem fazer os pobres
negociantes quando têm contra si o Corpo Poderoso73 com 80 por 100 de
ganhar certo no comércio contra eles.74
Para concluir o raciocínio do lucro obtido pela Companhia de Jesus contra os
comerciantes comuns, o governador fez menção ao valor de 80 mil cruzados, angariados pelos
jesuítas apenas naquele ano de 1751, recomendando que na Casa da Índia se fizesse as contas
e se verificaria que tal movimento financeiro estava todo em nome das “religiões”. Assim, a
argumentação de Mendonça Furtado elencava dois principais prejuízos promovidos pelos
religiosos, a decadência do comércio local e as “sangrias” tributárias contra o Real Erário. “É
preciso assentar que cada Religião [é] desta forma, em si mesma, uma República”. Cada
Ordem Religiosa possuía um vasto “corpo de oficiais”, de modo que chegavam a rivalizar
entre si.
72
A Amazônia na Era Pombalina... Tomo I, p. 119
Marcos Carneiro Mendonça explica em nota de roda-pé que Mendonça Furtado se referiu muitas vezes à
Companhia de Jesus desta forma.
74
A Amazônia na Era Pombalina... Tomo I, p. 121
73
42
Como cada Religião destas aspira a ter o comércio universal deste Estado,
não tratam de outra coisa mais do que ver o modo por que hão de arruinar
umas às outras, valendo-se todas dos meios que as podem conduzir àquele
fim. [...]
Não se contentando Religião alguma com a quantidade de gente de que são
senhoras, e parecendo-lhe que todos os que as outras têm lhe pertencem,
entra neles todo o espírito da ambição, da inveja, e por consequência o da
discórdia; não podendo absolutamente caber neles a dissimulação neste
particular, rompem muitas vezes em imprudências escandalosas, não
havendo parte alguma que seja privilegiada para eles deixarem de fazer estas
demonstrações. Onde se juntam se atacam ordinariamente, não valendo a
atenção e gravidade com que se deve estar em um Tribunal autorizado por
Sua Majestade, para deixarem de insultar-se uns aos outros com palavras
totalmente opostas à autoridade do lugar, e ao caráter não só de religiosos,
mas de Ministros, que estão exercitando.75
Com estes pontos, o governador encerrou os argumentos de sua missiva ao irmão,
Sebastião José de Carvalho e Melo, acrescentando tons românticos ao lugar, vasto, populoso e
cuja gente foi dotada por Deus para aprender rápido tudo o que se quisesse ensinar, de modo
que os interesses dos soberanos pudessem ser mais bem dirigidos fora do controle das
religiões, mudando o quadro de pobreza local.
O discurso de Mendonça Furtado muito se alinha ao que foi proposto por D. Luís da
Cunha em seu Testamento Político de 1749, muito conhecido no seio da alta administração
cortesã lisboeta. Embora não faça nenhuma menção àquele documento, Mendonça Furtado
escreve como se estivesse testemunhando ou comprovando (por ver e relatar fatos de) algo de
que já ouvira falar. Em linhas gerais, as ideias são as mesmas de D. Luís da Cunha. Havia
pobreza nos domínios portugueses e há “religiões”, especialmente a Companhia de Jesus,
atuando nestes domínios. Como a atuação da Companhia de Jesus extrapolava a jurisdição
espiritual e atingia fortemente a esfera temporal do poder, principalmente no que diz respeito
ao comércio e à geração de riquezas, isso contrastava claramente com a pobreza vivida ou
idealizada no Maranhão. Por exemplo, em outra carta, Mendonça Furtado cita que uma das
áreas que estavam sob controle dos jesuítas no Maranhão, mais de 40 fazendas na Comarca do
Piauí, encontrava-se com as propriedades da Casa da Torre da Bahia.76. Em outras palavras,
segundo o pensamento que foi se consolidando, eram os religiosos os culpados pela pobreza,
porque as suas “religiões” detinham boa parte senão a maior parte da riqueza que deveria estar
circulando livremente ou então sob tutela do Estado, pelo Real Erário. A riqueza das
“religiões” havia sido construída a partir da mão de obra indígena. Parece óbvio que essa
75
76
A Amazônia na Era Pombalina... Tomo I, p. 125
MENDONÇA, Marcos Carneiro. “A Amazônia na Era Pombalina...” Tomo II, p. 190.
43
mesma mão de obra poderia produzir igual ou maior riqueza para o Estado. Esta ideia parece
ter sido seguida e aplicada segundo alguns meios relativamente eficazes.
Do lugar de onde estava e com a autoridade com que falava, terminou por influenciar
o ministro Carvalho e Melo contra o poder dos jesuítas no norte da América portuguesa,77
principalmente porque os três interesses mais destacados do seu governo se materializaram na
Lei de Liberdade dos Índios, Lei de Abolição do Poder Temporal e a implantação da
Companhia de Comércio, tudo em 1755. Destes, a Companhia de Comércio se destinou a
alterar o quadro da economia local, mas as duas leis tiveram um significativo papel políticoadministrativo, na reorientação dos poderes na colônia.
2.4. O Fim do “Protetorado Jesuíta” Sobre as Sociedades Nativas
Jacob Gorender78 enquadra isso de que Mendonça Furtado tanto reclamava como
“formas incompletas de escravidão”; os nativos eram “postos numa condição de tutela”. Em
outras palavras, eram aparentemente livres, mas viviam sob o poder de terceiros, fossem os
agentes do Estado ou da Igreja, nesse caso principalmente os jesuítas, durante séculos. No
tocante à ideia de “protetorado”, aplicada em casos de um Estado ou País estar sob o domínio
de outro, temos que a Companhia de Jesus era considerada um Estado dentro do Estado
Português,79 ou uma “República” autônoma como chamou Mendonça Furtado,80 e
monopolizava o controle da maioria das nações indígenas diversas que habitavam a América
Portuguesa, especialmente setentrional, principalmente aquelas já “civilizadas”.
Assim, a “liberdade” dos nativos consistia em não ter o direito pessoal de escolher a
profissão, o cônjuge ou o lugar onde morar,81 porque a maioria das sociedades nativas ou
nações indígenas estavam debaixo do poder e autoridade da Companhia de Jesus, mesmo
preservando-se os seus “principais” (caciques e pajés). Se a observação se faz a partir do
pensamento e comportamento dos sujeitos históricos estudados, a ideia de “protetorado” para
esse caso é perfeitamente plausível.
Sob o pretexto de proteger as sociedades nativas da escravidão, os padres da
Companhia de Jesus exerciam uma espécie de tutela, ou como chamo aqui, “protetorado”. De
77
BOXER, Charles Ralph. O Império Marítimo Português 1415-1825. Tradução Anna Olga de Barros Barreto.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 199.
78
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo. Ática, 1980. p. 476.
79
LIMA. Op. cit. p. 447.
80
A Amazônia na Era Pombalina. Tomo I, p. 122.
81
Idem. pp. 114-116.
44
fato, sabe-se que essa aparente proteção na verdade submetia os nativos a um regime de
trabalho na forma de servidão, principalmente na extração das drogas do sertão, um dos
produtos mais importantes da economia colonial na região. Era contra esse sistema de
proteção aparente que o governador Mendonça Furtado se posicionava, porque dizia que “esta
aparente liberdade de que sempre clamam as Religiões é o mais rigoroso cativeiro que se pode
imaginar [...]”.82 Sem contar que isso gerou brigas intermináveis e incontáveis entre os
moradores e os religiosos. “À Coroa também interessava resolver o conflito entre colonos e
jesuítas quanto à administração e a escravidão dos índios que se constituía como problema
secular.”83
[...] o índio vinha sendo utilizado como escravo desde o início da
colonização, nas mais diversas atividades exigidas ora pelos jesuítas ora
pelos colonos. As missões jesuíticas se constituíam em verdadeiras unidades
produtivas e os índios eram a principal força de trabalho, funcionando como
escravos, ou de forma disfarçada, e sob forte exploração humana. Embora os
jesuítas fossem insistentes na exigência da administração indígena, por trás
disso havia o usufruto sem remuneração das atividades exigidas.84
A origem da riqueza das “religiões” estava no domínio que exerciam sobre a força de
trabalho indígena. Ao passo que a pobreza dos moradores locais estava no impedimento de
usarem da mão de obra nativa, quase inteiramente monopolizada. Esta era a ideia central em
toda a questão. Porém, uma leitura superficial do conjunto de testamentos compilados no livro
Cripto Maranhenses85 permite visualizar que a posse de escravos indígenas pelos civis era
algo bem comum. A diferença é que as religiões possuíam números incomparáveis de
indígenas em seu poder. Colocar toda essa mão de obra a serviço do Estado ou dos civis na
forma do trabalho assalariado era fundamental para restabelecer aquele Estado, porque estava
“arruinado”, segundo dizia Mendonça Furtado.
Já Vossa Excelência está informado do grande poder dos regulares neste
Estado, que o tal poder o tem arruinado, que os religiosos não imaginam
senão o como o hão de acabar de precipitar, que não fazem caso de Rei,
Tribunal, Governador ou casta alguma de Governo, ou Justiça, que se
consideram soberanos e independentes, e que tudo isso é certo, constante,
notório e evidente a todos os que vivem destas partes.86
Logo, temos que a publicação da liberdade dos indígenas instava sobre a sua
capacidade produtiva, completamente drenada pelos regulares que, a partir disso, ergueram
82
MENDONÇA, Marcos Carneiro. Op. cit. Tomo I, p. 115.
SOUSA, Francisco José Rodrigues de. Escravidão, Índios e Diretorias no Maranhão Colonial. Monografia de
Graduação. São Luís – MA, UFMA, 2002.
84
SOUSA, Francisco José Rodrigues de. Op. cit. p. 18.
85
MOTA, Antonia da Silva; et al. Cripto Maranhenses e seu legado. São Paulo: Siciliano, 2001.
86
MENDONÇA, Marcos Carneiro. Op. cit. Tomo I, p. 203.
83
45
seu “império temporal” no antigo Estado do Maranhão. Para reverter esse quadro,
transferindo a riqueza dos cofres da Igreja para os cofres do Estado – ou impedindo que a
geração de riquezas fosse parar nos cofres eclesiásticos – “libertar” os índios daquela
dominação era um passo importante naquele processo. Porém, esse passo não foi dado sem
ser imediatamente seguido por outro, que era desautorizar os religiosos regulares do seu poder
temporal.
As Leis de Liberdade dos Índios e de Abolição do Poder Temporal dos Religiosos
Regulares, publicadas em 1755 foram medidas tomadas em virtude da constante
correspondência do governador, que insistia e argumentava em retirar dos padres a
administração do trabalho dos nativos, mantendo-se, entretanto, a sua obrigação espiritual
para com os mesmos.87 Porém, só foram publicadas na colônia no ano de 1757.
O “atraso” na publicação das novas leis se deu, sobretudo, devido à resistência que
os religiosos regulares criaram à notícia de sua existência. E mesmo depois de publicadas, o
clima se tornou mais tenso ainda entre os governantes e os regulares. Estes passaram a fazer
pregações88 nas aldeias, nas vilas e nas cidades contra o intento de liberdade dos indígenas e
contra a Companhia de Comércio, por um lado responsável pela entrada de mão de obra
africana na substituição da força de trabalho nativa89 e por outro, tirava o monopólio do
comércio dos jesuítas, excluindo-os do processo econômico, porque seus poderes temporais já
haviam sido abolidos e suas práticas comerciais proibidas. Com relação à escravidão
indígena, mesmo os senhores tinham esperança que logo fosse revogada.90
A partir daí começou a ficar mais nítida a política pombalina e sua “autonomização
do poder”91 real ou estatal frente ao poder papal ou eclesiástico na colônia. Porém, com a
liberdade legalizada, os indígenas não puderam exercê-la plenamente, mas passaram ao
87
RAYMUNDO. Letícia de Oliveira. Op. cit. p. 3.
No que se refere à oposição dos jesuítas à liberdade, ver MENDONÇA, Marcos Carneiro. A Amazônia na Era
Pombalina... Tomo II, a carta da p. 405, e da p. 464 contra a Companhia de Comércio. No Tomo III, à página
292, Mendonça Furtado expõe a reação dos regulares à publicação das leis, e ainda à página 398 sobre a
fundação de algumas vilas no lugar das antigas aldeias.
89
Os números de africanos trazidos para a escravidão no Maranhão, que antes de 1755 não passavam de 3000, no
período da Companhia de Comércio (1755 em diante) passou para 25000 e depois para 35 mil e 48 mil no
início do século XIX.
90
No que se refere à esperança dos moradores da revogação da lei que libertava seus escravos indígenas, ver
MOTA, Antonia da Silva; et al. Cripto Maranhenses e seu legado. São Paulo: Siciliano, 2001, à p. 101, onde é
mencionada a “Novíssima Lei de Liberdade dos índios” em 1758, três anos após sua redação e um ano após
sua publicação.
91
FRANCO, 2006.
88
46
controle do Estado, através da criação do “Diretório dos Índios” e da fundação de Vilas no
lugar das antigas aldeias organizadas pelos religiosos regulares, assunto tratado mais a frente.
Sob a égide da “liberdade”, os indígenas “civilizados” foram submetidos a “novas
modalidades de exploração do trabalho,”92 que eram sobretudo formas assalariadas,
estabelecidas segundo tabelas bem definidas.93
Além do mais, a notícia de que os jesuítas punham obstáculos à execução do Tratado
de Limites se tornou uma tecla sobre a qual Mendonça Furtado muito bateu, cujas notícias
sempre participava ao governador do Maranhão, Gonçalo Pereira Lobato e Sousa, que atuou
amplamente contra os jesuítas na capitania. Em carta de 18 de fevereiro de 1759, o
governador do Maranhão participava ao capitão general ter conhecimento das “sediciosas
maquinações” promovidas pelos padres inacianos de Portugal e da Espanha, dando conta
ainda do atentado contra o rei, do qual os mesmos padres foram acusados. Estes assuntos,
disse, “os que todos fiz espalhar [pela Capitania] na forma que Sua Majestade ordena”.94
O clima das rivalidades entre os religiosos e os governantes apenas aumentava, de
modo que estes se sobreporiam àqueles, estes eclipsando a atuação dos poderes daqueles. Isto
porque cada ação dos regulares contra a nova ordem política que se implantava ou qualquer
desaprovação feita contra os ministros do rei ou os elementos daquele novo estado de ordem
das coisas, contava um ponto a menos para os religiosos. Os principais eram os jesuítas,
primeiro por serem os mais influentes na antiga ordem, e segundo, por serem os que mais
puseram obstáculos às novidades administrativas do Grão-Pará e Maranhão que os
prejudicavam diretamente.
Dentre em pouco, os jesuítas seriam o “bode expiatório” de todos os males do Reino
e da América Portuguesa, “consagrados ao sacrifício” ou declarados expulsos de Portugal e
seus domínios pela Lei de 03 de setembro de 1759.
92
RAYMUNDO, Letícia Oliveira. Op. cit. p. 126.
SOUSA, Francisco José Rodrigues de. Op. cit. p. 39. Neste trabalho, o autor expõe os detalhes da conclusão
do Senado da Câmara de São Luís, que foi apresentada ao rei D. José I.
94
AHU – 1759 Cx. 39 D. 3796.
93
47
3. CONFLITOS DE JURISDIÇÃO ESPIRITUAL E TEMPORAL
“A Real providência de Sua Majestade acudiu com a liberdade
ao miserável cativeiro dos índios, com a separação das
jurisdições espiritual e temporal; e a confusão do governo
espiritual e temporal que tinham os regulares com o novo
estabelecimento de muitas freguesias ao prejuízo que atentei
tinha a jurisdição episcopal, com a criação de novas vilas e
lugares às desordenadas aldeias. Com estas Reais disposições
se arrancam não pequenas da decadência do Maranhão
causada pelos injustos cativeiros, confusão de jurisdições,
diminuição da Episcopal e proventos Reais.” (Bispo D. Frei
Antonio de São José)
Tendo em vista a exposição feita na primeira parte do trabalho, é possível
argumentar que os serviços de Deus e do Rei, realizados pelos agentes da Igreja e do Estado
se complementavam ou pelo menos se complementaram no início da administração
pombalina, mas também conflitavam em interesses, fossem das instituições ou dos seus
representantes. Quando estes conflitos se acirraram, vimos que os poderes estatais e
eclesiásticos não poderiam mais se complementar, e um deles foi eclipsado ou reduzido à
força.
Como observou o bispo do Maranhão, D. Frei Antonio de São José, autor da epígrafe
do começo deste capítulo, era do seu interesse ver reduzido o poder dos regulares sobre as
sociedades nativas, porque não exercia qualquer autoridade sobre as aldeias controladas pelos
jesuítas, quadro que mudou com a fundação das novas vilas de que faz menção no excerto
acima transcrito. Tinha uma visão otimista da política de Sebastião José de Carvalho e Melo,
porém, como se verá, ter concordado com a redução do poder temporal dos regulares não
significou que ele concordou com a sua expulsão ou com todos os desenvolvimentos da
administração local, depois daquele fato.
3.1. O Patrimônio dos Jesuítas e a Expulsão
A riqueza das religiões, constatada por Mendonça Furtado era resultado de doações
centenárias feitas à Igreja. Não apenas pessoas comuns faziam doações às ordens religiosas,
como propriedades móveis e imóveis, ouro e escravos [nativos e/ou africanos], mas também o
próprio rei. Isso indica que o poder de influência política e administrativa das ordens
48
religiosas (jesuítas, carmelitas, mercedários, franciscanos, etc.), era muito maior do que se
pode imaginar. No caso dos fiéis, há um exemplo a citar. Trata-se do testamento do casal
Pedro Dias e Apolônia Bustamante, que em meados do século XVIII deixaram à Companhia
de Jesus uma légua de terras, situadas na Ilha do Maranhão, no sítio denominado Anindiba.
Esta terra é oriunda de doação sesmarial95 Isto abre espaço para uma observação importante
quanto à posse de terras. Segundo Antonia da Silva Mota:
O que com certeza foi conseguido através de mercê régia transformava-se
em propriedade de família, sendo avaliadas entre os bens do morto, podendo
passar aos herdeiros ou ser vendida, arrendada etc. Nos testamentos é
comum o registro das transações envolvendo terras, cujas origens foram
doações sesmariais. O que foi conseguido através do privilégio, onde estava
estabelecido que o titular apenas usufruiria do bem, repassando-o a seus
descendentes, entrava no mercado favorecendo uns poucos.96
Por exemplo, as “religiões”. A referida doação ocorreu ainda dentro dos privilégios
permitidos pelo próprio soberano. Neste caso, sabe-se que D. João IV (1604-1656), primeiro
rei da dinastia de Bragança, relaxou uma das Ordenações do reino, que proibia a Igreja de
possuir propriedades, em troca do reconhecimento de Roma à independência de Portugal no
período da Restauração em 1640.97 Em 1720, por exemplo, o então governador Alexandre de
Sousa Freire escreveu um inventário dos bens dos jesuítas, no qual relata que a Companhia de
Jesus era dona de uma missão e cinco fazendas no Rio Pindaré, que rendiam anualmente 300
arrobas de casca de árvores, e 500 burros no mesmo período que produziam 2500 cabeças de
lucro, e mais 60 bestas. Ainda nesta lista inclui-se o “famoso engenho”, chamado de São
Bonifácio. No total dessas propriedades, Sousa Freire atribuiu, somando tudo, 3:090$000 réis
(três contos e noventa mil réis). Acrescenta:
Passando da terra firme para esta Ilha é sem dúvida possuem os ditos
religiosos sendo a metade da Ilha intotum, não faltará muitas terras para a
completar, nela tem aldeias populosíssimas fazendas a que
[incompreensível] uma de São Brás e outra de Anindiba povoadas estas de
muita escravaria misturada com gente forra por tal estilo que de nenhuma
sorte é possível fenecerem estes [...] Tem mais os ditos religiosos umas
salinas na mesma ilha contíguas a um sítio e defronte desta cidade a que
chamam São Francisco 98
Esta propriedade tinha início nas salinas de São Francisco (atual bairro de mesmo
nome), passando pelo Sítio dos Vinhais (atual bairro de mesmo nome) e Sítio de Anindiba
(atual município de Paço do Lumiar) terminavam na praia do Araçagy (atual município de
95
CRUZ, Josimar Vieira da. “Sob os estigmas pombalinos”... p.103.
MOTA, Antonia da Silva. A Dinâmica Colonial Portuguesa e As Redes de Poder Local... p. 43
97
SANTOS. Te Deum Laudamus... p. 64.
98
AHU – 1728 Cx. 16 D. 1712.
96
49
São José de Ribamar). Ou seja, a Companhia de Jesus era dona de toda a parte norte da Ilha
do Maranhão. Na mesma Relação, dizia ainda que a Companhia de Jesus também possuía
metade das terras da Vila de Alcântara, onde já haviam fundado um colégio, tal como em São
Luís.
Durante o generalato de Francisco Xavier de Mendonça Furtado no Grão-Pará (17511759), muito já se conhecia sobre a riqueza das “religiões”, sobretudo dos jesuítas. Em suas
cartas dirigidas ao irmão, Marquês de Pombal, era constante a denúncia da grandeza dos bens
das ordens religiosas, sobretudo da Companhia de Jesus, por exemplo: uma das áreas que
estavam sob controle dos jesuítas no Maranhão, mais de 40 fazendas na Comarca do Piauí,
encontrava-se com as propriedades da Casa da Torre da Bahia.99 Ainda segundo a historiadora
Antonia Mota, durante o período pombalino as propriedades com léguas de terras não eram
tão valorizadas. Essa valorização se acentuou no final do século XVIII, aumentando com o
avanço do século XIX.100 Disto o Estado se valeu com a apropriação destas terras.
Assim, a questão da pobreza no Maranhão colonial antes da intervenção pombalina
não é mais algo que deva ser discutido, porque é óbvio que havia riqueza. O problema agora é
saber nas mãos de quem estava concentrada, pelo menos na sua maior parte. Isto porque,
como observou muito bem Josimar Vieira da Cruz em sua recente monografia de graduação,
“Sob os estigmas pombalinos...”, em que trata da questão jesuítica, diz que havia muito mais
uma “fertilidade de retóricas” do que uma “retórica de fertilidades”. Ou seja, a pobreza
trilhava muito mais o âmbito do discurso político da Câmara de São Luís para adquirir mais
privilégios da Coroa para a elite local, do que realmente manifesta no cotidiano.101 E isto se
tornou uma espécie de ideologia, confirmada pelos contemporâneos da Companhia de
Comércio, na segunda metade do século XVIII, a qual “salvou” o Maranhão da miséria. Esta
ideia foi comprada pela historiografia “clássica” do Maranhão (César Marques, Jerônimo de
Viveiros e Mário Meireles) que exaltou a todo custo o trabalho do ministério pombalino na
região,102 principalmente por retirar da Companhia de Jesus a sua riqueza, transferindo-a para
os cofres do Estado, ou Real Erário.
No último ano do generalato de Mendonça Furtado na América, foi publicada a Lei
de 03 de setembro de 1759, maquinada por Pombal e assinada pela Real Mão, que declarou os
99
MENDONÇA, Marcos Carneiro. “A Amazônia na Era Pombalina...” Tomo II, p. 190.
MOTA, idem.
101
2009, p. 66.
102
MEIRELES, Mario Martins. “Melo e Póvoas...”, p. 77. Ver também MOTA, Antonia da Silva. “Família e
Fortuna no Maranhão Colônia”. p. 32.
100
50
jesuítas proscritos, desnaturalizados e expulsos de Portugal e dos domínios ultramarinos. E a
campanha política contra a Companhia de Jesus ganhou força, com a publicação de várias
obras de cunho exaustivo, mas de conteúdo hoje considerado duvidoso e tendencioso,103 que
pretendiam provar que a causa da pobreza de Portugal estava na ação independente da
Companhia, braço direito e esquerdo da Sé Romana no mundo, tendo como consequência
justificar a sua expulsão.
Em outubro de 1758, o bispo do Pará, D. Miguel de Bulhões e Sousa,104 foi nomeado
“Visitador e Reformador dos Jesuítas” na Capitania do Maranhão e do Grão-Pará. A sua
atuação na região foi fundamental para o sucesso da expulsão dos jesuítas e o sequestro dos
seus bens. Este Visitador foi nomeado pelo Cardeal Francisco Saldanha, este era aparentado
do Marquês de Pombal. Saldanha foi nomeado pelo Papa como Reformador da Igreja
portuguesa e da Companhia de Jesus. Mario Meireles conta em seu artigo biográfico sobre o
governador Mello e Póvoas que o Bispo D. Antonio de São José, sabendo da expulsão dos
jesuítas, e de que o Bispo Bulhões viria para São Luís para fazer executar pessoalmente as
tarefas propostas quanto àqueles padres, fugiu para o interior da capitania porque se sentiu
desmoralizado, muito embora não deixe transparecer frustração e indignação – e ela existia – ,
como se pode ver na epígrafe deste capítulo. Principalmente porque em sua Carta Pastoral de
20 de setembro de 1761, dizia acerca dos dízimos e a sua forma correta, contrária às
“escandalosas e perniciosas doutrinas” dos jesuítas.105 Ou seja, era contra a dominação
administração jesuíta, não contra a sua missão evangelizadora.
Sobre a expulsão, dispomos de uma interessante versão da expulsão dos inacianos
feita pelo bispo D. Francisco de Paula, autor dos Apontamentos para a História Eclesiástica
do Maranhão:
Chegada a ordem do Reino para a expulsão dos Padres, foram os Jesuítas do
Pará empilhados com toda a brutalidade, como negros escravos, no porão de
um navio e transportados para S. Luiz, onde cento e cinquenta desses
desgraçados foram metidos a bordo de um barco. Outros dizem que os do
Maranhão foram para o Pará com o Bispo D. Miguel de Bulhões. O certo é
que esse bispo seguiu para Portugal no mesmo navio, e foi receber a paga de
seus feitos, ocupando a Sé de Leiria; e embora durante o trajeto perecessem
103
Eram elas “Relação Abreviada” (1757), sobre os embates em torno do Tratado dos Limites, “Erros ímpios e
sediciosos que os religiosos da Companhia de Jesus ensinaram aos réus, que foram justiçados, e pretenderam
espalhar nos povos destes reinos” ((1759), “Dedução cronológica e analítica“ (1768), retrospecto histórico da
ação da Companhia no Reino Português, “Compêndio Histórico do estado da universidade de Coimbra no
tempo da invasão dos denominados jesuítas” (1771) e “Regimento Pombalino do Santo Ofício” (1774),
acusando os jesuítas como responsáveis pelos males causados pela Inquisição.
104
Era bispo do Pará desde 14 de fevereiro de 1748, conforme diz PACHECO (1969: p.38).
105
AHU – 1761 Cx. 40 D. 3941.
51
quatro jesuítas, em consequência da má alimentação, encerramento e sede,
assevera-se não ter ele mostrado o menor sinal de compaixão para homens
cuja inocência e virtudes não lhes podiam ser desconhecidas!
Remetidos para Lisboa como presos de Estado, foram encarcerados de modo
que nunca mais se ouviu falar neles até a morte do Rei e queda de Pombal,
sendo os que sobreviveram postos em liberdade depois de uma prisão de
dezoito anos! 106
Em 8 de junho de 1760 se procedeu a uma rigorosa revista, e pouco mais de um mês
depois nova vistoria nas casas dos padres, e no dia 13 de julho daquele ano foram todos
embarcados para o Pará em dois navios, “Arrabida” e “Madre de Deus”.107 Em 11 de
setembro foram novamente revistados e no dia seguinte embarcados para Lisboa. Durante a
viagem, foram amontoados no porão do navio, dormindo no chão, com pouca comida e de má
qualidade, bebendo da água que sobrava das galinhas, sofreram ainda uma tempestade em alto
mar; por medo de morrer por um castigo divino, D. Miguel de Bulhões, o Visitador do GrãoPará e Maranhão, responsável pela expulsão dos jesuítas da região, lhes pediu perdão. Ao
porto de Lisboa, quatro padres chegaram mortos. “Alguns, julgados mais criminosos, vão
sofrer seus últimos anos de vida ‘nos horrendos cárceres do Azeitão e de São Julião’. Os
demais 92 são transportados para Roma, onde pouco ainda lhes seria dado viver.”108
Este foi o fim dos jesuítas da América Portuguesa setentrional naquele tempo. Mas
sua ausência gerou mais problemas, em vez de soluções como imaginava o ministro
português. Os seus prepostos administrativos, ambiciosos e zelosos, conflitaram entre si e
com os padres da Igreja do Maranhão sobre a administração e posse dos valores da riqueza da
ex-ordem religiosa mais poderosa do Império Português.
3.2. Os Agentes e os Bens Sequestrados
No caso da América Portuguesa o sequestro dos bens se deu ao mesmo tempo em
que os padres eram desabilitados das suas missões, presos por crimes contra o Estado e
enviados à Corte.
Em 18 de junho de 1760 ordenava El-Rey ao novo governador e capitão general do
Grão-Pará, Manuel Bernardo de Melo e Castro, para se proceder ao sequestro das
propriedades que pertenciam aos padres da Companhia de Jesus, agora expulsos, a fim de que
se evitassem roubos às mesmas, sendo o seu confisco útil para todos os moradores locais em
106
P. 134.
MEIRELES, 1977, p. 156.
108
PACHECO, D. Felipe Condurú. “História Eclesiástica do Maranhão”. pp. 43,44.
107
52
geral e para o governo do Estado em particular. Esta ordem foi repassada ao governador da
Capitania do Maranhão, Gonçalo Pereira Lobato e Sousa:
[...] hei por bem que sem embargo das ordens interinamente expedidas pelo
Vosso Antecessor respectivas a administração das sobreditas fazendas, que
estas se rateem, e se repartam com junta, a que assistireis com o Bispo,
Intendente Geral, Ouvidor, Juiz de Fora e Procurador da Câmara [...]109
A tarefa do sequestro110 recaiu principalmente sobre o Ouvidor Geral, Francisco
Martins da Silva, que acompanhado de diversos oficiais e civis interessados nos bens,
passaram às missões, onde os jesuítas construíram fazendas, engenhos, olarias e salinas.
Dentre eles estavam o Desembargador Gaspar Gonçalves dos Reis, os oficiais Gregório de
Meireles e Teodósio da Silva Rocha, e ainda Pedro da Cunha e José Gomes. Dos gastos
parciais, 1:659$460 réis (um conto, seiscentos e cinquenta e nove mil, quatrocentos e sessenta
réis) foram despendidos com a prisão e transporte dos jesuítas para o Pará, 240$000 reis
pagos ao Ouvidor pelo trabalho, 62$500 aos dois oficiais e 21$450 aos outros dois homens
que também ajudaram, sendo que Pedro da Cunha recebeu mais 3$700 pelas fechaduras do
cofre criado especialmente para guardar o dinheiro líquido sequestrado, e depois dos
rendimentos.111
Naquele momento as principais propriedades produtoras dos jesuítas passaram ao
cuidado de administradores, geralmente oficiais régios, que eram responsáveis pela proteção e
aumento dos rendimentos produzidos e responsabilizados pelos roubos, ou diminuições das
rendas das propriedades. Neste caso eram abertos processos de devassa contra os mesmos.
Sob o soldo que variava entre 130$000 e 150$000 réis ao ano, aqueles homens passaram
desde 1760 ao controle do Engenho de São Bonifácio de Maracum (atualmente o município
de Viana), Engenho de Munim Mirim, do qual foram administradores João de Azevedo
(1762) e José Nunes (176-1764), a Fazenda de Amanajuê, da qual foi administrador Antonio
de Sousa (1763), a Fazenda de Anindiba (atual Paço do Lumiar), Fazenda de São Brás, a
Olaria de São Marcos (na atual praia de São Marcos, a Fazenda de Pericumã (Alcântara),
Fazenda de Gerijó, Fazendas de Gado do Rio Mearim e Pindaré, e ainda as Fazendas de
Iaveroca, do Turiaçu e das Aldeias Altas e da Vila de Alcântara.
109
AHU – 1760 Cx. 40 D. 3901.
Entendo o “sequestro” como a primeira parte do processo de apropriação do Estado sobre os bens
eclesiásticos jesuítas, que se encerrado com o confisco, quando não há mais possibilidade nenhuma dos bens
retornarem aos antigos donos.
111
AHU – 1761 Cx. 40 D. 3926 / 1764 Cx. 41 D. 4072.
110
53
Logo se procedeu à rematação dos bens situados nas Aldeias Altas, que incluía as
propriedades do Paranaíba e do Alegre, feita em 1760, sob a audiência do Ouvidor Francisco
Martins, rendeu 1:436$915 réis. Dos bens rematados em Tapuitapera (Vila de Alcântara),
entrou no cofre 292$950 réis, e das rematações feitas sobre alguns itens do seminário de São
Luís, arrecadou-se 50$360. Porém, a rematação dos bens do colégio de São Luís somou a
maior quantia, 1:979$740, sendo que ainda se vendeu várias casas a Domingos Antunes
Pereira pelo valor de 1:350$000. Uns chãos da Praia Grande comprados por Francisco Gomes
Lima, ao preço de 600$000 e outros a Francisco Antonio Domingues ao preço de 320$000. A
Olaria de São Marcos foi comprada pelo capitão Teodoro Jansen, por 208$980 réis, valor
inferior ao de um único escravo na época. Porém muitos descaminhos estavam se verificando
na arrecadação do dinheiro liquidado pelos bens administrados ou vendidos.112
Enquanto se corria com as rematações, em 1761, era transferido da Capitania do Rio
Negro, subalterna ao Grão-Pará para governar a igualmente subalterna Capitania do
Maranhão, o sobrinho do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo. Joaquim de Mello e
Póvoas imediatamente mandou ao Escrivão João Mendes da Silva, passar uma relação da
Receita e da Despesa que se fazia com o sequestro.
Certifico aos Senhores, que a presente certidão virem, que na presença do
Ilustríssimo Senhor Gonçalo Pereira Lobato e Sousa governador que foi
desta Capitania, e do Desembargador Ouvidor Geral atual, Francisco Martins
da Silva em nove do mês de julho deste presente ano de mil setecentos e
sessenta e um, se fez auto de recenseamento geral de contas dos bens que
foram dos Padres denominados jesuítas expulsos desta Capitania, ao Tesouro
deles, Capitão Antonio da Rocha Araújo, de tudo o que se lhe havia
carregado, tanto por lembrança, como do liquido em receita viva e despesa
dos bens, e seus rendimentos, que importam em sete contos, e quarenta e
sete
mil
e
seiscentos,
e
quarenta
e
cinco
réis................................................................................ Receita//7: 047$645.
E sem outro haver despendido o dito Tesoureiro por mandados correntes,
sete contos, e quarenta e sete mil oitocentos e cinco réis, o que tudo se
despendeu no tempo do dito Ilustríssimo Senhor Gonçalo Pereira Lobato e
Sousa.........................................................................Despesa // 7:047$805.113
Nota-se que a relação custo benefício apresentava um déficit incrível, os gastos
superaram a arrecadação, e atingiam cifras milionárias. Logo o governador mandou ao
Ouvidor Francisco Martins – a quem muito elogiava pelo empenho de executar a tarefa tão
desgastante do sequestro – abrir processos de devassa contra todos os administradores, dos
quais nenhum saiu culpado, o que o governador estranhou, principalmente porque pelas
112
113
AHU – 1764 Cx. 41 D. 4072
AHU – 1761 Cx. 40 D. 3975.
54
devassas encaminhadas mais tarde pelo novo Ouvidor, Bruno Antonio de Cardoso e
Meneses,114 se verificou grandes “ladroeiras”. Pouco tempo depois, em nova conta, registrada
ainda na mesma Relação acima citada, os números foram outros, cuja receita foi de 1:
458$135 réis e a despesa apenas 140$700, ficando líquido no “cofre dos rendimentos”
1:317$435 réis.
Em carta de 20 de agosto de 1764, o governador argumentava que:
Não me tenho descuidado de vigiar sobre os administradores, castigando aos
que me persuado não fazem a sua obrigação, e tirando aos que por inertes
não adiantam o rendimento das suas administrações, de sorte que todos
tenho mudado, e unicamente se conserva ainda nas fazendas da Atotoya [sic]
o capitão mor José do Couto Pereira, e nas Aldeias Altas Manoel Martins da
Cruz, não porque esteja satisfeito com as suas administrações, mas porque
não tenho quem para lá mande, e também porque destes me não constam
ladroeiras.115
Devido à constante destituição dos administradores acusados de roubar os bens
seqüestrados ou os rendimentos, poucos nomes sobraram nas listas das contas de Receita e
Despesa de cada propriedade, ou seja, apenas os nomes dos honestos foram anotados. Porém,
dois são notórios, José Meireles Maciel, administrador do Engenho de São Bonifácio e
Gregório Meireles, administrador da fazenda do Pindaré. Contra os dois o governador Mello e
Póvoas mandou abrir processo de devassa, sendo o caso concluído com a prisão de ambos.116
Porém, não eram os funcionários régios os únicos interessados nos bens dos jesuítas,
os padres regulares também, dentre os quais se destaca o Bispo do Maranhão. Afinal de
contas, ele era uma das autoridades da audiência do sequestro dos bens, conforme El-Rey
havia determinado.
Seja por zelo para não ver destruído o patrimônio de seus conservos de religião e
ofício, seja por interesses pessoais, uma vez avisado da expulsão dos jesuítas, logo procurou
arranjar argumentos e enviá-los a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, agora já Secretário
da Marinha e Ultramar. Primeiramente manifestando o cuidado que devia para o serviço do
soberano:
Por carta firmada pela Mão Real de Vossa Majestade vejo que será muito do
serviço de Deus e do Real Agrado de Vossa Majestade que eu nomeie as
pessoas mais idôneas para se encarregarem das igrejas, dos edifícios a elas
114
Apadrinhado de Paulo de Carvalho, Patriarca de Lisboa, irmão de Pombal e de Mendonça Furtado, e tio de
Melo e Póvoas.
115
AHU – 1764 Cx. 41 D. 4072.
116
AHU – 1764 Cx. 41 D. 4068.
55
contíguos, ornamentos, alfaias dos altares, e sacristias das mesmas igrejas,
que foram dos regulares da Companhia, para tudo se guardar com exato
cuidado, conquanto Vossa Majestade recorre ao Santo Padre, para que
determine as pias aplicações, que hão de fazer das coisas mencionadas.117
Na Carta assinada pela Real Mão de Vossa Majestade, e na cópia de outra
também Real para o governador e capitão general deste Estado, vejo as
providências, que Vossa Majestade foi servido dar sobre a execução da Lei
escrita em Salvaterra de Magos de 25 de Fevereiro a respeito das aplicações
dos bens por sua natureza seculares, que vagaram pela expulsão dos
regulares da Companhia chamada de IESU, e meios de se fazerem as ditas
aplicações com maior utilidade do serviço de Deus, de Vossa Majestade e do
bem comum.118
Principalmente porque obteve a graça de receber a posse integral da biblioteca que
pertenceu aos jesuítas.119 Depois passou às questões mais imediatas, sobre os bens
eclesiásticos, o colégio, a igreja e a biblioteca:
Em observância da Real determinação de Vossa Majestade pela Carta de
onze de junho deste ano, expedi as ordens que foram necessárias para se unir
o colégio de Nossa Senhora da Luz desta cidade, que foi dos regulares da
Companhia chamada de Jesus com a sua Igreja, e sacristia, ornamentos e
alfaias delas à Mesa Episcopal, aplicando o colégio para servir de Palácio
aos Bispos na parte principal, e na menos principal para seminário
eclesiástico dos mesmos Bispos, a Igreja para Catedral, os ornamentos e
alfaias da mesma Igreja, e sacristia para servirem ao Culto Divino. [...] Pela
verdadeiramente Real e Piedosa Providência que Vossa Majestade mostrou a
favor dos Bispos desta Diocese, e sua Catedral rendo a Vossa Majestade as
graças com o mais profundo reconhecimento, multiplicando-se os motivos,
que sempre tive, como fiel vassalo, para pedir ardentemente a Deus pela
Vida preciosíssima, e feliz estado de Vossa Majestade.120
Para a duração de tão distinto benefício, sendo preciso um exato cuidado, e
diligência, principalmente neste clima, muito contrário à conservação dos
livros me animo a representar, e pedir a Vossa Majestade seja servido
ordenar, que se pague a um Bibliotecário, que nomeem os Bispos, fiel,
cuidadoso, e, se puder ser, com alguma notícia, como se costuma nas
livrarias públicas, para procurar o bom trato dos livros, ajudar os estudiosos,
e impedir os danos, e descaminhos, que terão os ditos livros ficando
expostos não só à curiosidade, mas também à cobiça vulgar, se não houver
pessoa vigilante, que os defenda.121
Com isso, a velha Catedral foi derrubada e a Igreja dos Jesuítas passou a servir como
o novo templo episcopal da Cidade. Porém, esse caso não passou sem perturbação. O Bispo
exigiu que o governador mandasse resgatar todo o material que pudesse ser aproveitado,
telhas e madeiras, porque estas lhe pertenciam. O Governador Mello e Póvoas, vendo que se
117
AHU – 1760, Cx. 40, D. 3889.
AHU – 1761, Cx. 40, D. 3963.
119
AHU – 1761, Cx. 40, D. 3940.
120
AHU – 1761, Cx. 40, D. 3973.
121
AHU – 1761, Cx. 40, D. 3974.
118
56
tratava de uma questão pessoal, considerou que não era lícito mandar fazê-lo às custas do
governo, recomendando que o religioso o fizesse, desagradando ao Bispo.122
Com igual argumento de zelo pelo culto divino, o prelado da Matriz de Alcântara
requereu ao governador Melo e Póvoas a doação dos ornamentos e alfaias da igreja jesuíta
daquela vila para a sua igreja, que segundo argumentava, estava pobre e necessitada. Porém, o
governador não lhe fez a mercê esperada, antes replicou dizendo que aquela igreja não podia
se reclamar de pobreza, porque ser a matriz da vila mais rica de toda a Capitania, e com pouco
esforço, algumas doações dos senhores que lá moravam se resolveria as necessidades
imediatas de que o prelado reclamava. Mas um ponto que muito provavelmente foi fulcral na
decisão negativa do governador quanto ao pedido daquele padre, é devido o argumento mal
feito de devoção a São Pedro de Alcântara, Nossa Senhora do Pilar e São Francisco Xavier, o
que Melo e Póvoas notou como “estranho” não haver uma imagem sequer de nenhum desses
santos naquela igreja, sendo sua devoção tão tradicional. Isto deixa transparecer que o
governador insinuou, com a elegância devida, ser falsa a devoção, mas verdadeiro o interesse
pessoal sobre aqueles ornamentos de grande valor, sendo doados ao Convento do Carmo,
ordem religiosa da qual o governador era devoto à santa padroeira.123 As telhas e o madeirame
da casa dos jesuítas em Alcântara foram usados para reconstrução do Palácio dos
Governadores.124
Na continuação da administração dos bens confiscados, o governador Joaquim de
Melo e Póvoas mandou fazer em cada ano listas de Receita e Despesas, em que eram
registradas as produções das fazendas e demais propriedades, e feitas sob rigor matemático,
mas não sem erros, cujos administradores deveriam apresentar a exata quantidade de
produtos, o preço pelo qual foram vendidos, o dinheiro bruto e líquido arrecadado. Assim os
itens listados de tudo o que se produzia e consumia naquelas propriedades, eram: açúcar,
aguardente, mel, cacau, galinhas, ovos, pacovas (bananas), algodão bruto e rolos de pano,
farinha, botijões, aço, enxofre, sabão, sal, pimenta, potes, ferro, pólvora, chumbo, hóstias e
vinho para as missas, facas, breu, azeite, carnes, milho, escravos e medicamentos para estes,
arroz, cera, feijão, favas, tapioca, tabaco, jerimuns, vinagre, cobre, telhas, tijolos e louças,
couros, gergelim, queijos, carrapato para fazer azeite, sebo, adubos, bois e vacas, potros e
cavalos, manteiga e sola, e ainda os salários do administrador e do padre capelão.
122
MEIRELES, 1977, p. 150.
AHU – 1764 Cx. 41 D. 4075.
124
MEIRELES, 1974, p. 63.
123
57
O sequestro dos bens logo teve um fim útil para o governo local. Em vez de ser
remetido para Lisboa, uma parte significativa, senão a maior, por ordem de Sua Majestade
passou a suprir as necessidades imediatas do governo, que tinha em atraso de quatro anos o
pagamento dos salários dos “filhos das folhas eclesiástica, civil e militar”, muito embora
argumentasse o governador que sem “operários”, ou índios suficientes para trabalharem nas
propriedades, elas conheceriam a falência da produção. Também argumentava que a pobreza
dos moradores era tal que não havia quem arrematasse o Engenho de São Bonifácio até aquele
momento.125
Em outra carta de 4 deste mês ponderou Sua Majestade o muito que há de
custar a executar-se a venda do Engenho de São Bonifácio, e das Casas da
Vila de Alcântara, e também a aumentar-se as rendas de sorte que cubram as
despesas pelo que se me ofereceu dizer agora a Vossa Excelência que ainda
que os rendimentos venham em algum [tempo?] a crescer de modo, que com
eles se façam as despesas, nunca o almoxarifado poderá desempenhar-se,
quando o vejo gravado com mais de quatro anos de dívida, e que só se
conseguirá, como me parece, se Sua Majestade se servisse de aplicar-lhe
todos os bens do sequestro porque os que se não pudessem vender ficam
sempre servindo de Patrimônio a Sua Real Fazenda, que está obrigada a
pagar tantas, e tão indispensáveis despesas.126
A tabela a seguir, sintetizada dos originais, com valores corrigidos devido um erro de
contabilidade nos originais, apresenta as dimensões da riqueza obtida pelos administradores
após o sequestro, e eram números com os quais os jesuítas estavam acostumados.
ANO
1760
1761
1762
1763
1764
1765
TOTAL
ANO
1760
1761
1762
1763
1764
1765
TOTAL
ANO
1760
1761
1762
1763
1764
1765
125
126
PROPRIEDADE
Engenho de São Bonifácio de Maracum
Engenho de São Bonifácio de Maracum
Engenho de São Bonifácio de Maracum
Engenho de São Bonifácio de Maracum
Engenho de São Bonifácio de Maracum
Engenho de São Bonifácio de Maracum
PROPRIEDADE
Engenho de Munim Mirim
Engenho de Munim Mirim
Engenho de Munim Mirim
Engenho de Munim Mirim
Engenho de Munim Mirim
Engenho de Munim Mirim
PROPRIEDADE
Fazenda de Amanajuê
Fazenda de Amanajuê
Fazenda de Amanajuê
Fazenda de Amanajuê
Fazenda de Amanajuê
Fazenda de Amanajuê
AHU – 1761 Cx. 40 D. 3936.
AHU – 1761 Cx. 40 D. 3938.
PRODUTO
762$010
768$720
1: 033$560
651$230
238$630
3:675$590
7:129$740
PRODUTO
82$700
284$480
151$535
353$290
618$785
982$900
2:473$690
PRODUTO
343$610
497$950
314$900
500$970
----------------959$310
DESPESA
155$560
24$770
--------------------------21$630
388$000
589$960
DESPESA
-------------6$620
15$420
-------------5$560
198$600
226$200
DESPESA
8$600
8$300
22$030
204$600
-------------180$000
LÍQUIDO
606$450
743$950
1: 033$560
651$230
217$000
3:287$590
6:539$780
LÍQUIDO
82$700
277$860
136$115
353$290
613$225
784$300
2:247$490
LÍQUIDO
335$010
489$650
292$870
296$370
-------------779$310
58
TOTAL
ANO
1760
1761
1762
1763
1764
1765
TOTAL
ANO
1760
1761
1765
TOTAL
ANO
1760
1761
1762
1763
1764
1765
TOTAL
ANO
1760
1761
1762
1763
1764
1765
TOTAL
PROPRIEDADE
Fazenda de Anindiba
Fazenda de Anindiba
Fazenda de Anindiba
Fazenda de Anindiba
Fazenda de Anindiba
Fazenda de Anindiba
PROPRIEDADE
Fazenda de São Brás
Fazenda de São Brás
Fazenda de São Brás
PROPRIEDADE
Fazenda de Pericumã
Fazenda de Pericumã
Fazenda de Pericumã
Fazenda de Pericumã
Fazenda de Pericumã
Fazenda de Pericumã
PROPRIEDADE
Fazenda de Gerijó
Fazenda de Gerijó
Fazenda de Gerijó
Fazenda de Gerijó
Fazenda de Gerijó
Fazenda de Gerijó
2:616$740
PRODUTO
236$250
166$190
287$600
105$200
----------------213$500
1:008$740
PRODUTO
176$250
59$500
-----------------235$750
PRODUTO
89$340
123$690
63$180
121$670
337$920
667$845
1:403$645
PRODUTO
72$500
30$460
103$500
64$350
----------------302$960
573$770
423$530
DESPESA
9$600
8$600
-------------53$100
-------------2$100
73$400
DESPESA
7$200
55$900
--------------63$100
DESPESA
-------------12$300
--------------------------45$520
105$190
163$010
DESPESA
-----------------------------------------------------------------92$000
92$000
2:193$210
LÍQUIDO
226$650
157$590
287$600
52$100
-------------211$400
935$340
LÍQUIDO
169$050
3$600
--------------172$650
LÍQUIDO
89$340
111$390
63$180
121$670
292$400
562$655
1:240$635
LÍQUIDO
72$500
30$460
103$500
64$350
-------------210$960
481$770
FONTE: AHU - Cx. 41 D. 4072 (de 1760 a 1764) / Cx. 42 D. 4108 apenas para o ano de 1765.
Como já dizia Alexandre de Sousa Freire em seu inventário dos bens dos jesuítas em
1728, não era à toa que se chamava o Engenho de São Bonifácio de “famoso”. Como se vê
era a propriedade mais próspera e lucrativa de todas. Sua produção principal era aguardente,
que em média anual vendia de 1500 a 2000 quartilhos (750 a 1000 litros) do produto, gerando
uma receita média de 200$000, que, adicionada pela produção de outros itens, tais como
açúcar, cacau e banana, ampliava os valores. Sua venda foi realizada sob o pagamento de
200:000$000 réis, segundo D. Felipe Condurú Pacheco, que não diz quem comprou.127
Porém, no AHU – Projeto Resgate há duas cartas do governador ao Secretário da Marinha e
Ultramar, seu tio Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre a venda do mesmo Engenho a
João de Sousa de Azevedo, capitão-mor das demarcações de terra do Pará, pelo preço exigido
pela Coroa de 200 mil cruzados no ano de 1765, ou seja, o mesmo valor indicado por
Condurú Pacheco, sendo este o único lance feito no leilão, porque já havia sido ofertado
anteriormente pelo capitão apenas 20 mil cruzados, quando escreveu ao governador querendo
comprar o Engenho.128
127
128
PACHECO, D. Felipe Condurú. “História Eclesiástica do Maranhão”. p. 44.
AHU – 1764 Cx. 41 D. 4066. / 1765 Cx. 42 D. 4107.
59
Ainda deve-se notar que os bens avulsos, ou móveis, sequestrados, que são escravos
e gados, renderam ao Real Erário uma soma significativa. Rematados em praça pública, foram
vendidos 221 escravos ao preço total de 20: 608$000 réis, e mais 4428 bois das fazendas do
Rio Mearim e Pindaré que somaram 9:298$800 réis.129
CAIXA
Deve
Ao Engenho S. Bonifácio de Maracum
Ao Engenho de Munim Mirim
A Fazenda de Amanujuê
A Fazenda de Anindiba
A Fazenda de São Brás
A Olaria de São Marcos
A Fazenda de Pericumã
A Fazenda de Gerijó
As fazendas de gado do rio Mearim e Pindaré
A fazenda de Iavaroca
A fazenda de Periaçu [Turiaçu]
As fazendas da Parnaíba, do Alegre* e bens rematados nas Aldeias Altas
Aos bens pertencentes a Tapuitapera (Alcântara)
Aos bens pertencentes ao seminário desta cidade
Aos bens pertencentes ao colégio desta cidade
3:454$150
1:490$790
1:657$430
795$240
235$750
208$980
1:035$800
270$820
9:917$400
189$000
110$000
1: 436$915
292$950
50$370
4:349$740
25:495$335
Em dinheiro que se tem cobrado dos escravos que se remataram
10:837$637
E se recolhe no Cofre da Real Fazenda
25:495$335
Do cofre da Fazenda Real ao qual se recolheu
10:837$637
TOTAL 36:332$972
* O valor com o asterisco corresponde apenas à propriedade do lugar chamado Alegre
FONTE: AHU - Cx. 41 D. 4072 (de 1760 a 1764)
Há de haver
201$960
27$600
236$625
71$300
63$100
194$260
27$820
---------------18$510
18$650
3$520
*19$650
----------------------------2:122$600
7:535$595
A tabela foi montada em 1764, com todos os valores que haviam rendido a venda
total ou parcial das propriedades, ou ainda dos seus efeitos, produtos nela fabricados.
Também incluía os valores a receber, como se vê adiante.
D. Felipe Condurú Pacheco diz que as demais propriedades estavam reduzidas a nada
em 25 anos, rendendo no total 164 contos e 600 mil réis anuais.130 Como não usou notas em
seu texto, fica difícil saber de onde tirou essa informação. Sabe-se, porém, da utilidade que os
rendimentos do sequestro ofereceram para as dívidas do governo da Capitania à época. Outro
ponto importante é que as terras não vendidas passaram ao poder estatal.
Em um jogo complicado de situações, interesses e estratégias, o envolvimento do
poder econômico das Ordens Religiosas nas questões políticas do Secretário dos Negócios do
Reino era constante, pois aquela riqueza incomodava bastante o consulado pombalino. Como
exposto na breve introdução deste texto, os jesuítas (e todas as outras ordens religiosas)
129
130
AHU - Cx. 41 D. 4072.
PACHECO. Op. cit. p. 44.
60
construíram um império temporal, riquezas guardadas que se acumulavam nos cofres da
Igreja, o que na visão do irmão de Pombal era prejudicial ao Estado.
Essa relação entre os cofres da Igreja e do Estado absolutista pombalino e os
conflitos dela decorrentes já foram esboçados por mim em uma etapa anterior desta pesquisa e
que agora pretendo completar, mas não encerrar a discussão.131 Procurei analisar a
distribuição das heranças, grandes ou pequenas, pelos testadores em seus testamentos a partir
da publicação das Leis Testamentárias de 1766 e 1769, durante o consulado do Marquês de
Pombal no Reino e o governo de Mello e Póvoas no Maranhão, a fim de desviar as fortunas
que eram legadas às irmandades e ordens religiosas para os parentes e, em consequência ou na
ausência destes, ao Real Erário. Com a publicação destas novas leis, no Maranhão, o
movimento da riqueza dos moribundos para os cofres da Igreja manteve-se em relativa
constância se considerados os números das doações pias em séries iguais. Mas se
considerados todos os valores do período pós-leis, proporcionalmente houve redução das
heranças às “religiões”. Ou seja, no período pós-leis, o quadro das doações feitas em
testamentos aumentou significativamente, em valores em torno de 300%, devido à
efervescência econômica promovida pela Companhia de Comércio na região, criada durante o
consulado pombalino; mas esse aumento de doações decorrentes do enriquecimento dos
testadores não significou o aumento proporcional das doações feitas às irmandades e ordens
religiosas, ou aos religiosos em particular. Pelo contrário, a maior parte das doações ficou
para pessoas leigas, em geral aparentadas dos testadores, conforme determinavam as novas
leis. E a média de doações às ordens religiosas manteve-se em um conto e meio de réis.
No caso do sequestro inicial dos bens e do absoluto confisco posterior pelo Estado
daquelas propriedades, embora houvesse o interesse do Estado de se apoderar da riqueza
construída pelos jesuítas em mais de um século no Maranhão, os representantes ou os agentes
daquele Estado Absolutista também queriam obter uma parcela, ainda que pequena do lucro
dos rendimentos. Sua punição foi rápida e segura, eliminando os interesses pessoais daqueles
que deveriam trabalhar pelo interesse do Estado de D. José I. Ao contrário do que aconteceu
na Bahia, onde boa parte do dinheiro obtido com o sequestro e com os rendimentos
posteriores dos bens dos jesuítas foi enviada para a Corte, no Maranhão, a maior parte da
riqueza seqüestrada foi usada para suprir as necessidades imediatas do governo local,
131
Artigo de minha autoria, publicado na coletânea “Religião e Religiosidades no Maranhão” (2011: pp. 209235), organizada pelo historiador Lyndon de Araújo Santos. O texto foi originalmente apresentado na
primeira edição do Seminário de Pesquisa Religião e Religiosidade em 2010, sob o título “A Salvação, os
Bens e os Herdeiros: as ‘últimas vontades’ no contexto das Leis Testamentárias de 1766 e 1769.”
61
conforme as sugestões feitas e acatadas pelo Rei. Mas isso só aconteceu durante a segunda
administração do sequestro/confisco dos bens.
Durante o governo de Lobato e Souza e sob a audição do Ouvidor Francisco Martins,
os déficits foram enormes e nenhuma irregularidade foi constatada. Estranhamente, logo no
início do governo de Mello e Póvoas e da audição de Cardoso e Meneses, grandes ladroeiras
foram encontradas. Porém, já era tarde porque todos os agentes envolvidos no início do
sequestro já haviam sido promovidos de cargo e movidos para a administração de outras
regiões coloniais. Gregório de Meireles, por exemplo, que participou desde o começo não
conheceu a mesma sorte. Muito provavelmente não conseguiu se enredar nos laços de poder
costurados entre os altos agentes, ou então o laço rompeu ou desatou do seu lado, sendo
penalizado por roubos contínuos no dinheiro dos rendimentos de parte dos bens, de que tinha
ficado na responsabilidade. O dinheiro deveria ou ser remetido à Lisboa ou ser empregado nas
necessidades imediatas do governo local, principalmente no pagamento dos salários dos
“filhos das folhas”.
Pode-se dizer ainda que a política de transferência de poder da Igreja para o Estado,
drenada pelo consulado pombalino, obteve relativo sucesso, mas não sem problemas que
tiveram de ser solucionados. De igual modo, a transferência da riqueza das religiões para os
cofres do Estado na época foi algo concreto, como se observa pelo exposto.
Na colônia (Maranhão) a política de autonomização do poder do Estado frente ao
poder da Igreja aconteceu à semelhança do que ocorreu no Reino, pelo menos nas suas linhas
gerais. Nas entrelinhas estavam os administradores das propriedades que retiraram dos
rendimentos algum lucro para si, perturbando o processo de transferência referido, mas não o
interrompendo. Em outras palavras, se era interesse do Estado português se apoderar da força
política e administrativa da Igreja, ele o fez de várias maneiras: retirar a riqueza das religiões
nas colônias foi uma das estratégias. Também, o papel do Bispo do Maranhão foi fundamental
politicamente, porque usando da estratégia antiga de vassalagem, a submissão – que não tem
nenhuma verdade de sentimento para com o superior, senão em prol dos interesses próprios –
agiu publicamente, mas obteve benefícios privados.
62
No mais, os bens dos jesuítas ainda estariam à venda em praça pública pelo menos
até 1777, no fim do governo de Joaquim de Mello e Póvoas.132
3.3. A Força de Trabalho Indígena Entre os Diretores e os Religiosos
Com a abolição do poder temporal dos padres, os indígenas antigamente por eles
“protegidos” passaram ao controle dos representantes do Estado português na colônia. A
fundação de novas vilas e criação dos Diretórios no lugar das antigas Missões jesuítas
marcaram esse período de mudanças político-sociais. Agora, como mencionado no final do
capítulo primeiro, a força de trabalho indígena foi transferida das mãos dos religiosos para os
agentes do Estado.
O trabalho monográfico intitulado Escravidão, Índios e Diretorias no Maranhão
Colonial (1755-1800), de Francisco José Rodrigues de Sousa, se deteve sobre os vários
aspectos contidos nos mecanismos utilizados pela administração pombalina no Maranhão
colonial e conseguiu sintetizar com êxito o sentido da transferência de poder da Igreja para o
Estado, sobretudo, porque o poder se exercia sobre os povos indígenas submetidos ao controle
eclesiástico antes e depois ao controle estatal. Observa que:
Reiterada a disposição para garantir a liberdade dos índios, coube ainda ao
governo português a criação de Vilas e de Diretórios que foram medidas
adotadas pelo Marquês de Pombal para contrabalançar os locais antes
administrados pelos missionários da Companhia de Jesus, ou seja, a
institucionalização do governo temporal dos indígenas, mas ainda
continuando com as práticas de evangelização e tendo os religiosos um papel
secundário na direção dos índios.133
Nota-se assim, que a liberdade dos índios tinha um caráter muito mais simbólico do
que prático. Em outras palavras, as leis pombalinas tão somente retiraram os nativos do poder
dos religiosos regulares e os colocaram sob a tutela do Estado e de seus agentes. Porque “sob
a condição de tutelador dos índios, ao Estado cabia também o compromisso de regular os
trabalhos indígenas.”134 e aos indígenas cabia obedecer.
As primeiras vilas começaram a ser fundadas com a tomada forçada das aldeias e
fazendas pertencentes aos regulares, principalmente jesuítas, ainda em 1757, quando os
132
______. Secretaria de Estado da Cultura. Arquivo Público. Retratos do Maranhão Colonial: correspondência
de Joaquim de Mello e Póvoas, governador e capitão-general do Maranhão, 1771-1778. – São Luís: Edições
SECMA, 2009. pp. 53-55, 60-62, 78-80, 93-95, 126-127, 134, 151-152, 209, 316-317.
133
Este trabalhou resultou de iniciação científica do autor, com fomento do CNPq, apresentado em 2002 ao
Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão. Citado à página 32.
134
Idem. p. 38.
63
regulares foram desabilitados do seu poder temporal pela lei de 7 de junho de 1755. O
governador e Capitão-General noticiava ao irmão, Sebastião José de Carvalho e Melo, em
1757, que:
Principiavam os religiosos da Companhia a fazer a entrega das aldeias,
deixando nelas os insignificantes móveis que em outro aviso a Vossa
Excelência, naquelas povoações que estão junto a esta cidade, dando-se me
parte que nas aldeias mais distantes iam os seus missionários vendendo as
canoas e gados e finalmente evacuando-as de todos aqueles bens que diziam
respeito a elas, com uma total contravenção à ordem que no real nome de
Sua Majestade havia participado aos prelados.135
E no lugar daquelas aldeias foram erigidas vilas novas, alem dos Diretórios. Agora,
sem a ingerência dos regulares, todos esses lugares passaram ao controle episcopal. No
Maranhão temos as Vilas dos Vinhais, de Viana, São José de Ribamar, Tutóia e Paço do
Lumiar. Ainda na Capitania foram criados os Diretórios de Vinhais, São José de Penalva,
Guimarães, Tutóia, Brejo de Anapurus, Pastos Bons, Viana. Francisco de Sousa nos diz ainda
que “a tutela era uma naturalidade aceita como direito estritamente do Estado das formas de
administrar a vida dos índios. Para cada Diretório havia um diretor responsável. Estavam na
condição de tutores dos índios e administradores dos Diretórios.”136
Note-se, de passagem que embora fossem utilizados em conjunto, Vilas e
Diretórios137 eram mecanismos diferentes de administração, onde as primeiras eram
povoamentos civis formados majoritariamente por indígenas já civilizados e vivendo
relativamente livres, e os segundos eram...
[...] áreas de jurisdição e administração do Estado português sobre as
habitações dos índios, onde se determinavam suas localidades assim como as
suas atividades com relação aos trabalhos que podiam desenvolver em obras
como de governo e de particulares, além dos serviços de evangelização [...]
Se as Vilas se destinavam à criação de um ambiente social, os Diretórios se
destinavam a regular o trabalho dos indígenas, pois estes substituíam o antigo Regimento das
Missões de 1686.138 A criação das aldeias em Vilas trouxe a possibilidade de criação de novos
cargos, como capitães, alferes, párocos, etc. Até mesmo, muitos indígenas ingressaram em
carreiras militares, como Rafael Ale Rocha (2009) expôs em sua dissertação de mestrado,
135
MENDONÇA, Marcos Carneiro. Op. cit. Tomo III, p. 234.
Idem, p. 44.
137
Apesar dos esforços, não achei nada que dissesse claramente que Vilas e Diretórios coexistiam sobre um
mesmo local, mas ao que tudo indica, tanto pela bibliografia consultada quanto pela documentação analisada,
Vilas e Diretórios ocupavam sim as mesmas localidades, com vistas aos objetivos explicitados.
138
Ver a dissertação de Rafael Ale Rocha, à página 93.
136
64
Oficiais índios na Amazônia Pombalina: sociedade, hierarquia e resistência (1751-1798).
Porque isso era um mecanismo de ligação entre os interesses da Coroa e os indígenas que
pretendiam continuar dominando.
O poder dos Diretores estava reiterado pela autoridade concedida pela Coroa e,
apesar de não poucos abusos cometidos devido a esse poder, esses funcionários eram punidos
ou substituídos, mas o cargo de Diretor era mantido com todos os poderes que permitiram os
abusos. Também...
As autoridades eclesiásticas viriam a ganhar um papel administrativo e
também atuavam como fiscais das ações dos diretores – apesar da lógica
vigente, própria do Diretório, que promovia a separação entre as esferas de
poder temporal (papel dos diretores, oficiais militares e das câmaras) e
espiritual (função dos padres e missionários).139
Também, os “Principais” dos indígenas participavam da organização do poder no
Diretório, mas em menor relevância.
O desequilíbrio do poder entre as autoridades que compunham uma localidade,
Diretor, Vigário e o Principal dos indígenas era algo constante e rendeu muitos problemas ao
governador Joaquim de Mello e Póvoas, sucessor de Gonçalo Pereira de Lobato e Sousa, a
partir de 1761. “As atividades dos Diretores nem sempre eram acompanhadas de boas
maneiras, pois há diversos casos de violências praticadas contra os índios, o que o governo
tentava coibir”140 Dentre os vários casos, cabe aqui citar dois para efeito de exemplificação.
Na Vila de São Francisco Xavier de Turiaçu, em 1764, o vigário Frei Francisco de
São José Nepomuceno foi acusado pelo Diretor Manoel Francisco Leiria, de abusar de todos,
cobrando-lhes dízimos e mais ofertas, de modo que não podiam suportar tantos pagamentos,
esvaziando-se de suas poucas posses. Usando do argumento de “atalhar” a situação, Mello e
Póvoas escreveu ao Bispo para que esse tomasse providências quanto ao comportamento
daquele vigário, das quais uma boa solução seria substituí-lo, ao que o Bispo prontamente se
negou, acusando o governador de estar em atraso com as côngruas dos vigários de todos os
lugares então recentemente formados pela administração do Secretário Carvalho e Melo.
Em resposta, o governador enviou o Ouvidor Bruno Antonio de Cardoso e Meneses
para a Vila, a fim de devassar o Diretor e todos quantos estivessem envolvidos em questões
ilícitas. Das 30 testemunhas interrogadas, nenhuma proferiu nada sobre quem quer que fosse.
139
140
ROCHA, Rafael Ale. Op. cit. p. 94.
SOUSA, Francisco de. Op. cit. p. 44.
65
Com este resultado, o governador considerou que a acusação do Diretor contra o pároco era
“paixão particular”, destituindo-o do cargo, mas logo mudou de ideia quando recebeu a visita
do Principal dos indígenas daquela Vila, acompanhado de algumas testemunhas.
O
governador escreveu ao tio Mendonça Furtado, agora Secretário da Marinha e Ultramar sobre
o caso.
Perguntando eu ao Principal, e aos mais índios a razão que a viram para não
deporem na devassa que tirou o Ouvidor, aquilo mesmo que me diziam me
responderam, que o vigário sabendo que ia lá o Ouvidor os praticava para
que não dissessem nada dele: porém que depois continuava a vexá-los da
mesma sorte, querendo que até das mesmas tartarugas que pescavam lhe
pagassem premissas, e que por não poderem já suportar a sua ambição, e
imprudência, se resolveram a queixar-se.141
A Vila de Turiaçu já possuía um novo Diretor, em substituição do antigo, e este
continuava a delatar ao governador os abusos cometidos pelo vigário, que dentro em pouco
foi substituído pelo governador, a contragosto do Bispo, porque sentiu sua jurisdição violada.
Enquanto isso, na Vila de São José de Guimarães do Cumã, questões envolvendo o
Diretor e o Vigário foram algo concreto. Nesse caso, não havia denúncia de um contra o
outro, muito embora cada um estivesse atuando segundo seus interesses particulares e não
segundo as obrigações de que foram incumbidos.
O Ouvidor Bruno Cardoso abriu um processo sumário142 contra ambos os
administradores, e segundo constou nos autos assinados pelas testemunhas, tanto o Diretor
Francisco Pereira Portugal quanto o Vigário Frei Pedro de Santa Rosa abusam dos indígenas e
deles procuravam retirar o maior proveito possível, fosse negociando materiais no caso do
Diretor, fosse cobrando premissas em todo tipo de administração espiritual que fizesse sobre
as almas das pessoas, no caso do Vigário. Este era mais violento do que aquele, porque além
de cobrar mais do que a pobreza dos moradores permitia oferecer, os humilhava com
“palmatoadas” publicamente e ainda os injuriava com palavras do tipo “bêbados, filhos do
demônio”, etc., o que certamente não era recebido com alegria por ninguém.
O Ministro ouviu sete testemunhas, todos homens, pessoas do mais alto nível social e
econômico daquela Vila. Todos confirmavam unissonamente os desvios dos administradores,
mas reconheciam que o Diretor cumpria bem o seu papel e o Vigário estava com a razão sobre
os castigos, porque os índios “mereciam”, só porque não sabiam algumas orações da chamada
141
142
AHU – 1764 Cx. 41 D. 4060.
AHU – 1764 Cx. 41 D. 4061.
66
Doutrina. A testemunha João Paulo Morais contou que o pároco obrigava os rapazes e as
moças à Doutrina, e de tal modo usou o seu poder que terminou por constranger ao Mestre de
Escola que trabalhava no ensino dos jovens sobre os conhecimentos da cristandade.
Completamente submetidos, as crianças e os jovens eram privados de seus próprios pais,
quando estes precisavam daqueles para ajudar em algum serviço necessário para o sustento na
roça. Um dos casos que mais ecoou na Vila e foi notório a todos foi a prisão que Frei Pedro
de Santa Rosa aplicou a um menino chamado Agostinho, durante quinze dias, porque o garoto
não havia se desobrigado da Quaresma. Para a testemunha Caetano de Morais, a prisão do
garoto teria durado um pouco mais, cerca de quatro meses.
Demais disto, o vigário cobrava até pelo serviço de confissão dos moribundos, os
quais se não tivessem meios de pagar, ficavam sem o sacramento e morriam sem perdão.
Além disso, cobrava-se o dízimo de tudo o que se coletava e produzia na Vila, com castigos
ou retaliações aos que não pagassem: uma opressão e tanto para pessoas pobres. Porém, o
vigário apenas cumpria as determinações do bispo, que mandava pagar e cobrar a décima
parte de tudo em sua Carta Pastoral de 20 de setembro de 1761:
[...] cacau, café, salsa se a houver, cravo, gengibre, tabaco, algodão,
mandioca, milho, arroz, feijões e mais legumes, pacovas e ananases, limões,
melancias, e todas as demais frutas, couves, alfaces e mais hortaliças.
Também de gado, galinhas, patos, perus e outros animais criados a mão, das
tartarugas, que ainda que se comam seus cascos se aproveitam, e de todo o
gênero de peixe.143
Na consciência dos parentes, amigos e vizinhos, segundo o governador, isso era um
prejuízo espiritual irreparável. E desgostosos da situação, muitos se organizavam em grupos
para voltar a viver na antiguidade das suas crenças, porque naquele sistema a vida não estava
dando muito certo.
No caso do Diretor Francisco Pereira Portugal, o seu comércio com os indígenas
envolvia “peças de bertanhas, chapéus, facas, cintas para calções a troca de farinhas e
algodões”, segundo Caetano de Morais. Isto foi confirmado por Amador de Campos, que
acrescentou alguns itens à lista, tais como “sabões”. No mais, ambos argumentavam que a
Vila seria muito frutífera se lá fosse instalada uma “feitoria de pesca”, porque o peixe era
abundante e mal aproveitado.
143
A lista de itens a serem dizimados apresenta ainda muitos produtos, dos quais o excerto foi apenas para
exemplificação. AHU – 1761 Cx. 40 D. 3941.
67
O Diretor foi preso em São Luís. Curiosamente, ele reapareceu no cenário
administrativo em 1769, solicitando à Coroa “preferência” na aquisição de alguns bens
sequestrados/confiscados aos jesuítas, que ainda não haviam sido vendidos. No requerimento,
oferecia seis razões que o tornavam digno, mais do que qualquer outro requerente, de ser
premiado com alguma coisa, das quais “a quarta, achar-me com 34 anos de serviço do rei sem
nada que ofenda ao serviço”.144 Argumento um tanto interessante...
O vigário conseguiu enganar o governador uma vez, usando do argumento de zelo,
tendo inclusive prometido não mais repetir os ditos castigos, mas os repetiu e logo foi
destituído pelo governador.
Esses dois, dentre os vários casos em que os Diretores e Vigários se envolveram em
desvios administrativos, servem como exemplo para mostrar a fragilidade real dos
mecanismos de dominação estabelecidos pela política de Carvalho e Melo. Se a nova ordem
das coisas havia transferido os indígenas da tutela da Igreja para a tutela do Estado, a fim de
aproveitar a riqueza gerada por aquela mão de obra, a atuação dos agentes representava o que
poderíamos chamar de “sanguessugas”: aproveitando a ordem para tirar algum proveito dela.
O Secretário do rei contava com a ajuda mais próxima do sobrinho, Joaquim de Mello e
Póvoas no governo da Capitania do Maranhão, contudo, isso não impedia os desvios, a
manifestações das “paixões particulares” ou o uso do poder atribuído a certos prepostos para
benefícios próprios. De modo que a atuação cotidiana dos agentes contradizia as ordens
estabelecidas.
Todavia, muito mais interessante ainda é notar que a atuação do governador na
tentativa de coibir os abusos dos clérigos não contentou ao bispo, que considerou sua
jurisdição invadida. Às substituições dos vigários feitas pelo governador...
Opôs-se tenazmente, no entanto, D. Antonio de São José, dizendo-se melhor
informado do caráter e comportamento de seus auxiliares e achando que,
com isso, pretendia Mello e Póvoas não só lhe diminuir ainda mais a
autoridade e usurpar-lhe as atribuições. Em verdade, porém, é ainda
comentário do sempre autorizado César Marques [...] inimigo do
governador, isto é, do Brigadeiro Lobato e Sousa, colocava-se ao lado dos
padres, não ouvindo as vozes da razão e da justiça. (grifo nosso).145
A despeito dos juízos incrustados na citação, é clara a ideia de que o bispo se
posicionava ao lado dos religiosos, independentemente de estarem certos ou errados. Ou seja,
144
145
AHU – 1769 Cx. 43 D. 4286.
MEIRELES, Mario. Melo e Póvoas, Governador e Capitão-General do Maranhão. São Luís, SIOGE, 1974.
p. 40.
68
não estava em jogo, a honestidade dos párocos, mas sim o poder do bispo, que sentia,
sobretudo, ameaçado com a situação. E como estratégia para impedir os agentes de
trabalharem contra a demissão de seus conservos de religião, usava do argumento da
excomunhão, o que parece ter sido relativamente eficaz para os agentes, mas não para as
determinações da Coroa. Assim como os jesuítas reagiram contra a progressiva
desautorização que sofreram no final da década anterior, agora o Bispo, um homem de letras,
formado em teologia, não parecia nada ingênuo aos interesses do governo metropolitano e da
capitania, e muito menos aos acontecimentos que estava presenciando.
Entretanto, sua reação cada vez mais evidente, logo o tornaria, junto a outros,
inimigo de Estado, assim como os jesuítas, anteriormente.
69
4. “OS PADRES INIMIGOS COMUNS DO ESTADO”
“Veio depois outro governador, que agora é General Joaquim
de Mello e Póvoas, parente, posto que ilegítimo dos dois
Secretários, e por isso favorecido sem mais merecimento. Ao
gênio ambicioso de governar tudo juntou-se a lisonja de
Ministros moços de primeira instância, e alguns oficiais mal
procedidos: entrou no projeto de acumular em si um como
monopólio de jurisdições, militar, civil, e também eclesiástica.”
(Bispo D. Frei Antonio de São José)
Nos dois capítulos anteriores ficou evidente que o poder da Igreja no Reino e no
Maranhão, materializado em seus agentes, foi progressivamente desabilitado, porque o Estado
português, ou mais especificamente o Consulado Pombalino avançou sobre o campo de
atuação político-administrativo até então controlado pelos religiosos, como resultado de uma
mentalidade iluminista, conjugada com uma teoria-prática chamada de Regalismo. No
processo de “autonomização do poder real e de controlo por este de todos os movimentos do
poder eclesiástico nos seus domínios”146, o “exagero” foi um mecanismo utilizado por
Pombal e seus prepostos a fim de criminalizar a Companhia de Jesus por uma série de
problemas com os quais não tinha ligação direta, aumentando assim o poder régio. O
resultado foi a sua expulsão em 1759. E mais, em 1760, o Estado Português, controlado pelo
ministro Carvalho e Melo, rompeu com a Cúria Romana, notícia que logo o Bispo fez
espalhar pela capitania, dando a entender ao Rei que não questionava, mas que tão somente
seguia as ordens inteiramente.147
O maior “prêmio” do sequestro dos bens dos jesuítas para o Estado foi transferir a
força de trabalho indígena das mãos dos religiosos para o controle estatal, em um sistema de
Vilas e Diretorias por vezes pouco eficaz, mas que de qualquer forma, não contava mais com
a ingerência autônoma dos religiosos.
Todo o espaço ocupado e controlado pela Igreja passou a ser ocupado e controlado
pelo Estado.
Agora, dependentes de côngruas, que atrasavam em vários anos, os padres se
tornaram auxiliares na missão de civilizar os nativos. Porém, apesar das determinações que
146
FRANCO, 2006
147
AHU – 1761 Cx. 40 D. 3962.
70
encaixavam cada qual no seu lugar de administração específico, a realidade cotidiana nas
Vilas destoava seriamente das normas, porque tanto os padres que atuavam como vigários das
Vilas quanto os seus Diretores, administradores régios, procuravam tirar o maior lucro
possível da situação.
Das inúmeras brigas surgidas, os religiosos saíram perdendo, castigados pelo
governador [e muito condenados] nas suas cartas, dirigidas ao tio e Secretário de Estado da
Marinha, Mendonça Furtado. Porque em geral, o governador se posicionava favorável aos
Diretores, muito embora também os castigasse pelos desvios administrativos. Essa direção
tomada pelo governador Joaquim de Mello e Póvoas, atraiu, com efeito, a inimizade do Bispo
D. Antonio de São José, que por sua vez, favorecia os seus pares, e ainda reclamava que sua
jurisdição era continuamente violada por aquele governador. Uma forma relativamente eficaz
de atrasar ou atrapalhar os processos contra os religiosos era a ameaça de excomunhão
daqueles funcionários régios que estivessem diretamente envolvidos na questão.
César Marques nos conta que, devido a esta oposição do Bispo – “não ouvindo as
vozes da razão e da justiça” – e à confusão supostamente criada pelo desserviço de alguns
padres, El-Rey enviou uma carta a Mello e Póvoas, alertando para que “vigiasse
cuidadosamente o governador e continuasse a dar conta dos padres revoltosos, inimigos
comuns do Estado”.148 Parte dessa frase consta no título deste terceiro capítulo, com uma
intenção: mostrar o comportamento de alguns agentes da Igreja frente à política de Sebastião
José de Carvalho e Melo. Eles reagiram, mas sua força não era páreo para o poder dos agentes
do Estado, sobretudo àquela altura do campeonato, do qual já havia sido expulso o “corpo
poderoso” (Companhia de Jesus), nos termos de Mendonça Furtado. Em outras palavras, se o
maior representante do poder eclesiástico havia sido removido, qualquer outro não poderia
resistir, se fosse o caso de precisar eliminá-lo também.
O poder dos agentes do Estado estava cada vez mais forte frente aos religiosos.
Ainda que se conte a história dos padres no período, em geral são os que aderiram às
diretrizes do Marquês de Pombal, ou quando se conta a história dos que não aderiram, se
conta que foram eliminados. Porém, ambas as observações são óbvias, porque de certo modo,
a historiografia reproduziu a forma dos acontecimentos. Em outras palavras, se deteve em
analisar como se desenvolveu a política e administração pombalina, tornando evidente a ação
dos que estiveram ao lado dela, e não dos que se opuseram. Porque, ao que parece, os que se
148
MARQUES, 1970, p. 343.
71
opuseram tão somente foram eliminados, sem poder reagir ou usar de meios possíveis de
reação direta ou indireta.
Nesse sentido, inclusa a metáfora do eclipse, evidenciou-se o tempo todo o objeto
eclipsante (Consulado Pombalino/Estado Português) e o eclipsado (Igreja) foi perdendo
imagem, espaço e poder, ou seja, autonomia. É como se o fenômeno estivesse sendo
observado sempre de longe, onde apenas se vê um lado de cada objeto, sendo que apenas um
lado do objeto eclipsante está em evidência: o outro lado, obscuro, está voltado para o objeto
eclipsado, que por sua vez, pode visualizar diretamente o que se esconde para que ele seja
deixado para trás.
Nesse sentido, se faz necessário não mudar o ponto de observação do fenômeno
(Maranhão), mas sim usar de um mecanismo de observação “telescópico”, que nos permita
ver o caso por outro ângulo. A olho nu, a observação é direta e o cenário visual está disposto
como já demonstrado. Observando a partir de instrumentos documentais que contam outra
versão da história, podemos contornar a formação e posição dos poderes em questão, e ver o
lado escondido do objeto eclipsante (Estado e seus agentes) e o testemunho ou reclamações
do objeto eclipsado (Igreja e seus agentes). Não porque um ou outro esteja certo ou errado,
seja o vilão ou o mocinho da história, mas porque se traz para o centro da observação a
contradição entre as partes, permitindo uma compreensão mais substancial do problema.
4.1. Escândalos e Disputas Político-Religiosas em São Luís
As rivalidades entre as autoridades, sobretudo, entre autoridades com jurisdições
diferentes, na segunda metade do século XVIII no Maranhão não foram poucas, e motivos
aparentemente toscos, ridículos ou mesquinhos eram elevados ao nível de questões sérias.
Mario Meireles elenca uma série desses eventos ocorridos entre o governador e o
bispo. Porém, não menciona senão fatos isolados, dando um parecer favorável ao
comportamento do governador, condenando indiretamente as atitudes do bispo. Comprou uma
versão dos acontecimentos, aquela contida nas correspondências administrativas de Joaquim
de Mello e Póvoas e demais autoridades aliadas. Porém, há outros inúmeros documentos
produzidos pelos padres, argumentando em prol das suas causas e acusando a tirania do
governador. Dentre estes, há um em especial, que nos apresenta outra versão daquela história,
de modo geral, mas não esquecendo os detalhes. Texto que será explorado ao máximo aqui. A
epígrafe do início deste capítulo é um dos seus parágrafos.
72
A ocorrência daquele texto é de suma importância para uma compreensão mais
arrazoada da história ora (re)contada, porque põe em evidência a contradição entre o discurso
do governador e demais funcionários régios... E até mesmo da historiografia regional! É pela
contradição dos argumentos e dos fatos que se pode chegar a uma interpretação mais
substancial.
Joaquim de Mello e Póvoas que, em 1764, escreveu149 a Mendonça Furtado, na qual
declarava que a carta que:
[...] recebi, toda cheia de sólidas doutrinas e puras verdades, fico
inteiramente instruído do que devo obrar sobre os particulares que elas
contém, podendo segurar a Vossa Excelência, que dos seus documentos me
não hei de afastar nunca, pois conheço que todos se encaminham ao serviço
de Deus e de Sua Majestade, e que seguindo-os não posso errar. (grifo
nosso)
Estas “sólidas doutrinas e puras verdades” a que o governador se referia ao instruir
“os eclesiásticos mais sábios e tementes a Deus, e mais caritativos” para empregá-los no
benefício espiritual dos povos sob seu comando. Por outro lado, deveria o governador
“prevenir que estes eclesiásticos não tenham a infelicidade de ter amor aos bens temporais”.
Seguindo o comentário, dizia que isto o fazia “desmaiar inteiramente”, porque não havia
encontrado um religioso que não tivesse dado provas do seu amor pelos bens temporais,
referindo-se principalmente aos párocos das Vilas, que usavam do seu ofício para oprimir aos
nativos, por cujos serviços espirituais cobravam valores altos e no limite, de modo que os
indígenas não poderiam pagar e ficavam em prejuízo espiritual.
Destes vários casos, o governador apenas excetuava o padre Frei Antonio da
Conceição, que à custa das suas próprias esmolas da missa comprava panos e ferramentas
para os nativos Gamelas. No mais, o governador completava:
Não é também menos escandaloso nos mesmos eclesiásticos a falta de
humildade, pois sempre neles comumente tenho concluído uma demasiada
altivez, e por isso parece-me que estou desobrigado de escrever a Vossa
Excelência em ofício, nem ainda particular a favor de nenhum deles.
Quanto porém aos que cometerem escândalos públicos contra o serviço de
Deus e de Sua Majestade, protesto por na presença de Vossa Excelência
todos aqueles que delinqüirem assim como já nesta ocasião o faço de alguns
que me parecem dignos de castigo para exemplo dos mais. (grifo nosso)
E encerrou dizendo que havia três anos estava à frente daquele governo sem, até
àquele tempo, ter recebido as “insinuações” [recomendações] do seu tio Mendonça Furtado, e
149
AHU – 1764 Cx. 41 D. 4069.
73
que por isso se considerava “cheio de defeitos”. “Porém se eu merecer a Vossa Excelência
que me continue o favor delas, sem dúvida hei de acertar, porque as hei de seguir
inteiramente, e assim servirei bem ao meu Rei, e darei gosto a Vossa Excelência [...]” (grifo
nosso).
Os “escândalos públicos” a que o governador se referia não eram poucos. E todos
com um sentido político relacionado direta ou indiretamente à rivalidade dos agentes régios e
eclesiásticos, porque ora um agente cometia um excesso, ora a jurisdição do outro era
invadida. Um deles foi o caso do testamento do padre Francisco Pereira de Lacerda, no qual o
principal envolvido foi o então Vigário Geral João Rodrigues Covette, porque criou
problemas com o Juiz de Fora Inácio Barbosa Canais de Abreu na execução das
determinações testamentárias; e contra o qual o Ouvidor em exercício150 Bruno Antonio de
Cardoso e Meneses procurou tomar providências na Justiça Real.151 Obteve como resposta a
admoestação enérgica do Bispo ao padre.152
Outros casos giravam em torno da questão indígena, com a qual alguns religiosos
ainda estavam às voltas. Uns se aproveitavam da situação para tirar proveito particular.
Carmelitas e Mercedários se metiam continuamente em escândalos por causa de escravos
indígenas denunciados de estarem ainda em seu poder. Outros ainda resistiam à Lei de
Abolição do Poder Temporal, como é o caso dos prelados da Província da Conceição. Sobre
os tais, o governador dizia a Mendonça Furtado:
Meu tio e meu senhor, mil vezes beijo a mão de Vossa Excelência, pelo
amor e distinta honra com que me favorece na instrução que me dá a respeito
dos prelados da Província da Conceição, e mais religiosos desta Capitania a
qual eu tanto necessitava porque na verdade vivia ignorando a necessidade
com que aqueles padres se opuseram à Lei da Abolição do Governo
Temporal e a Santíssima Lei das Liberdades fazendo os infames
requerimentos que Vossa Excelência me diz, e parece-me que Vossa
Excelência conhecera que só tivera notícia de tão abomináveis circunstâncias
não falaria a favor daquele comum nem uma só palavra pois agora que as sei
fico certo de que ele se faz indigno da menor atenção.153
Mas a tendência das coisas caminhava para o agravamento, porque o governador
cada vez mais interferia nos termos e na jurisdição eclesiástica. Tudo isso se tratava daquela
150
Só seria nomeado Ouvidor definitivamente em 1763, conforme o Decreto de 6 de novembro daquele ano.
AHU – 1763 Cx. 41 D. 4043. Essa nomeação se deveu em parte, à influência do Cardeal de Lisboa e irmão
de Carvalho e Melo, Paulo de Carvalho e Mendonça, com o qual Bruno Cardoso mantinha algum
relacionamento de parentesco obscuro, conforme escreveu em 1766. AHU – 1766 Cx. 42 D. 4162. Bruno
Cardoso logo entraria no ânimo do governador Mello e Póvoas.
151
AHU – 1761 Cx. 40 D. 3967.
152
AHU – 1761 Cx. 40 D. 3971
153
AHU – 1764 Cx. 41 D. 4052
74
“prevenção” administrativa, mencionada pelo Secretário da Marinha, Mendonça Furtado,
anteriormente mencionada. Mario Meireles aponta o seguinte:
Prevenção que logo se transmudaria em animosidade porque o novo
governante, louvado naturalmente nos direitos do regime de padroado,
entendeu de se imiscuir na escolha dos vigários, para exigir a retirada
daqueles que não considerava à altura do sagrado ministério por seus
escândalos de vida.154
Em 1764, o governador ainda escrevia a Mendonça Furtado, contando o caso do
cônego João Marques, que negociava grandes quantidades de farinha na capitania. Certa vez,
a cidade de São Luís experimentou uma grande falta deste gênero alimentício, ao que o
governador providenciou passar ordens ao Diretor da Vila de Guimarães, Francisco Pereira
Portugal, de quem já tratamos aqui, para que se carregasse a produção de farinha para remetêla à cidade. Tomando conhecimento daquela notícia, o cônego João Marques se antecipou aos
oficiais do governo, chegando primeiro àquela Vila, e carregando toda a produção de farinha,
que redundava em 260 alqueires dos produtores locais, em geral indígenas “civilizados”.
O religioso pretendia vender aquele carregamento na cidade a um preço mais alto do
que no interior do continente, como era costume. Apesar da intervenção do Diretor, pouco
conseguiu fazer para impedir aquele negócio, que foi finalmente barrado pelo governador, que
mandou prender no armazém da cidade, muito provavelmente o da Companhia de Comércio,
e ordenou o pagamento pelo produto ao padre, mas seguindo o preço praticado na Vila de
Cumã, o que o padre não aceitou.
Sobre esse caso, faz necessário lembrarmos aquela Representação155 citada no início
deste capítulo, escrita pelo Bispo D. Antonio de São José. Naquele texto, o Bispo diz que o
governador:
A casa do bispo mandou por um barqueiro repreender o cônego que nela
assistia, porque comprou fora da cidade vinte alqueires de farinha da terra
para a família do Bispo, e pobres. Era o caso que por ordem do governador
andavam um seu criado feito atravessador, comprando farinha pelas terras de
Cumã para as vender por maior preço em outras partes e o pior é, publicando
que o lucro se repartia entre o governador, e Ouvidor, como assim juraram
154
155
MEIRELES, 1974, p. 40
Este documento está datado de 1760, mas é evidente que essa data está errada, porque pelo seu conteúdo,
nota-se claramente que ele foi escrito muito tempo depois, porque é dirigido à rainha D. Maria I, e menciona
o tempo da demissão do Marquês de Pombal, reclamando que o governador do Maranhão, seu sobrinho,
deveria ser retirado do cargo, para que a Igreja do Maranhão fosse aliviada da tirania com que ele agia,
imitando o seu tio. Projeto Resgate – AHU – 1760 Cx. 40 D. 3904.
75
testemunhas, e se fez público na cidade, que no mesmo tempo se queixava
da fome, e carestia da farinha.156
Esta é a primeira vez, em todas as fontes estudadas, documentais ou bibliográficas,
em que a honestidade do governador Joaquim de Mello e Póvoas é questionada.
Além desta Representação, que elenca uma série de denúncias de desvios políticoadministrativos do governador Joaquim de Mello e Póvoas, louvado por todos os seus
contemporâneos subalternos da Capitania do Maranhão, e exaltado pela historiografia local,
há outra Representação, escrita e assinada por pessoas abastadas de Alcântara e São Luís, que
enviaram à Rainha D. Maria I, assim que souberam da notícia da queda de Pombal,
denunciando a tirania do governador e a opressão que praticava a todos mediante a
Companhia de Comércio, imitando o seu tio, Marquês de Pombal.157 Sem contar que a notícia
da demissão de Pombal provocou ridicularizações públicas do referido governador na
capitania. Esta visão de que a administração pombalina (e seus agentes) foi honesta perpassa
toda a historiografia local, o que parece não ser completamente verdadeiro.
Mas isso não era tudo. Conforme a epígrafe do início do capítulo, Mello e Póvoas
conseguiu submeter todos ao seu poder, criando o que o Bispo chamou de “monopólio de
jurisdições”, de modo que não havia quem o contestasse, ou se o fizesse, ficasse ileso. E ainda
é muito particularmente curioso o caso da farinha, porque o lucro era repartido entre o
governador e o ouvidor, pessoas tidas como da maior seriedade, metidas em “escândalos
públicos”. Mas parece óbvio que, sendo isso uma ocorrência verdadeira e não mera invenção
do Bispo, esta notícia jamais teria chegado com esta versão à Coroa ao tempo do seu governo,
senão no final, quando de fato a Representação do Bispo chegou à rainha.
Igualmente, ao que parece, a questão trabalhada no final do segundo capítulo, sobre
os problemas havidos entre Diretores e Párocos das Vilas, as atitudes do governador e o
posicionamento do Bispo, apresentava mais problemas do que imaginado. Segundo o
argumento do Bispo em sua Representação:
Quis um índio do Cumã casar-se com uma índia de outra povoação, e
pedindo-lhe licença ao governador, este despachou assim: O reverendo
pároco case o suplicante com a índia. Assim o referiu pessoa grave, que leu
o despacho, estranhando, que o desse quem não era vigário geral.
Era vigário daquela vila chamada de Guimarães Frei Pedro de Santa Rosa,
religioso capucho de exemplar procedimento, e exação no ministério
pastoral. Negava os sacramentos aos públicos amancebados. Era diretor dos
índios um tenente mal procedido que por ordem do governador no ano de
156
157
Referência da Representação.
AHU – 1778 Cx. 52 D. 5017
76
1764 remeteu para a cidade mais de cem índios por duas vezes com dois róis
deste título = Relação das pessoas que vão para o Maranhão por ordem do
Senhor Governador, por não cumprirem com o preceito da obrigação =
Remeteu o governador os róis ao cura da Sé para que se desobrigassem, feito
exame da doutrina; mas sem se ouvir o próprio pároco, que sabia melhor o
estado das suas ovelhas, que estavam sem se desobrigar no mês de setembro
do dito ano. (grifo nosso)
Note-se que a intervenção do governador na jurisdição espiritual era algo visível, que
desagradou a todos quantos dela era os responsáveis. Autorizar casamentos não era atribuição
dos governadores, mas dos vigários. Aquele Frei Pedro de Santa Rosa, tido como um mau
pastor das suas ovelhas – que oprimia aos indígenas, cobrando-lhes dinheiro além do que
poderiam pagar por serviços espirituais que deveriam ser administrados gratuitamente ou
conforme a consciência do cliente ditasse recompensar – parece não apresentar nenhum
defeito, porque segundo diz o bispo, era aquele padre de “exemplar procedimento”. Já no que
se refere ao Diretor Francisco Portugal, não passava de um “tenente mal procedido” que,
aliás, estava aliançado com o governador.
Durante esses acontecimentos, o Bispo, apesar das tentativas, não conseguiu evitar a
invasão da sua jurisdição, como já tem sido exposto longamente. Porém, isso não o impediu
de mesmo assim manifestar sua opinião sobre o caso. Uma característica marcante da sua
atuação é que foi se distanciando progressivamente dos interesses da política de Carvalho e
Melo, o que foi provocando o aumento dos seus embates com o governador.
Mario Meireles, contando outras polêmicas ocorridas entre as referidas autoridades,
comenta o seguinte:
E assim, com questiúnculas de tal porte – pelo recrutamento de um sacristão,
por um soldado não ter feito a Páscoa por estar doente, pela nomeação de um
membro do coro! – desentendiam-se, espicaçavam-se e afastavam-se
ofendidos, cada vez mais, o Governador e o Bispo.158
Estas “questiúnculas” poderiam ser chamadas segundo as palavras do governador
Mello e Póvoas: “paixões particulares”; porque em todos os casos mencionados por Meireles
– que não são os que foram citados aqui, não passavam de desinteligências pequenas e
pessoais, mascaradas por ambos os lados como problemas de jurisdição. Como mencionado
no início deste capítulo, Mello e Póvoas parece ter utilizado a mesma fórmula do tio, o
“exagero” nas noticias, nas causas, nos problemas, de modo que sempre o sujeito em questão
parecesse culpado.
158
MEIRELES, 1974, p. 43
77
É claro que aqui não demos conta de todos os escândalos e todas as querelas
ocorridas naquele tempo. Apenas elencamos algumas, a partir das quais seja possível enredar
a trama que vem sendo contada e discutida aqui.
4.2. A “Excomunhão” do Governador e o Castigo do Bispo
Para recordar alguns problemas entre as autoridades, tivemos o caso do El-Dourado
Maranhense,159 no qual estavam envolvidos dois padres durante o governo de Lobato e
Sousa, a expulsão dos jesuítas, na qual o bispo se viu contrariado em alguns aspectos e a
invasão de jurisdição do governador Mello e Póvoas nas decisões de caráter eclesiástico,
sobretudo no que se referia aos párocos das novas Vilas.
Em todo esse tempo e durante o desenvolvimento de cada uma destas questões, o
Bispo D. Frei Antonio de São José procurou todos os meios possíveis e cabíveis para agir, de
modo que tivesse sua autoridade respeitada, e participasse como em tese deveria ser, em pé de
igualdade das decisões administrativas, ainda que dentro da sua jurisdição.
Esse comportamento do bispo, em tentar contornar as ações do governador, fez com
que os ânimos se animassem cada vez mais. Mas um fato em especial se tornou decisivo
quanto ao lugar de cada um e, mais especificamente, quanto ao poder de cada um. Porque
embora atuassem em áreas jurisdicionais distintas, mas aliadas, um deles estava em
desvantagem. Sobre o fato mencionado, sigamos alguns relatos daquela ocasião.
D. Francisco de Paula e Silva diz que...
Dias depois foi visitar o senhor Bispo; este, porém, levado por zelo
intempestivo, disse-lhe coisas pesadas, chamando-o de “perseguidor da
Igreja, que vivia em pecado, estava excomungado, e possesso do Diabo.”
Quem afirma é o próprio Joaquim de Mello e Póvoas, em carta enviada à
Corte para se queixar desse procedimento descortês, desatencioso e violento
do Bispo [...]160 (Grifo nosso)
Mario Meireles diz que...
Tempos passados, sabendo que D. Antonio doente, foi o governador fazerlhe uma visita de cortesia, sem dúvida na convicção de que essa iniciativa
facilitaria uma aproximação amistosa. Recebeu-o mal o prelado, todavia e,
no curso da conversa, já exaltados os ânimos, acusou-o de, por sua
impiedade, ser o causador de seus males, talvez de sua morte próxima a
continuar com suas provocações; e, ao fim da conversa, que se transformara
159
Essa expressão é usada por D. Francisco de Paula e Silva, em seus Apontamentos Para a História Eclesiástica
do Maranhão, à página 127.
160
SILVA, 1922: p. 129
78
em violenta altercação, declarou-o em pecado mortal, excomungado e
possesso do Diabo.161 (Grifo nosso)
Nas duas citações, os autores fizeram um breve relato do momento, atribuindo ao
bispo certa violência e indelicadeza no trato da questão com o governador que, por sua vez,
foi a única voz ouvida por Silva e por Meireles. Nesse caso, para contradizer o dito e
publicado, precisamos ver o outro dito, porém desconhecido. D. Antonio de São José, em sua
Representação à rainha D. Maria I (1777-1816), que temos explorado aqui. Sobre o caso, ele
diz que...
O Promotor de Justiça deu notícia ao Bispo que por ordem do governador
iam soldados da cidade a prender o vigário do Mearim. Vindo no mesmo dia
o governador visitar o bispo, este com os termos mais corteses lhe propôs a
pena que lhe causava aquela notícia. Atalhou o governador a prática,
dizendo: não falemos nisso, se não vou-me embora. Instou o bispo, que
devia falar no que respeitava a liberdade da igreja, e tornou a receber a
mesma resposta já mais impaciente com algum movimento para se levantar:
Aqui julgou o bispo que devia paternalmente instruir e admoestar esta sua
ovelha. Disse-lhe que perturbava e usurpava a jurisdição eclesiástica, que
por vezes tinha incorrido em censuras por esta causa. Levantou-se agarrado e
dizendo que ia absolver-se: mas foi os termos poucos civis, com que se
portou. Assim se publicou o que sucedeu entre ambos sem mais testemunha,
do que o mesmo que não contou sinceramente o caso. (Grifo nosso)
Deu conta ao Ministério segundo a fama que correu no Maranhão, também a
Câmara da cidade deu conta contra o Bispo, pois entre os vereadores alguns
eram militares contra as ordens reais, que os proíbem e sumamente aditos ao
governador, que por este modo também ali dominava. Veio no mesmo tempo
a Lisboa o tenente Valentim Ribeiro, como doméstico, e empenhado
procurador da causa. O bispo sem ser ouvido foi desterrado e levado para o
convento de Santo Agostinho de Leiria por um corregedor. (Grifo nosso)
A versão que o bispo apresenta é particularmente curiosa. Ela evidencia pelo menos
dois pontos, que confrontados com o que se sabia do caso, geram falhas na história até então
contada. Conforme grifado, o governador contrariado pelo comportamento do Bispo, que não
menciona tê-lo excomungado, subiu à Coroa com argumentos falsos, ou se exagerados,
confirmados pelo Senado da Câmara, no qual tinha grande influência, já que o caso não tinha
testemunhas por ter ocorrido em ambiente privado. Era a palavra do governador... Apenas.
Mais ainda, o bispo não teve a oportunidade de se explicar, como de fato não se encontra
registro de uma interpelação da Justiça da Coroa ao religioso sobre essa questão, muito menos
qualquer carta por ele escrita em sua defesa, que não esta Representação tardia. Sabe-se tão
161
MEIRELES, 1974: p. 43
79
somente que foi chamado para o Reino em 18 de julho de 1766, para onde se dirigiu em
fevereiro do ano seguinte.162
Não havendo notícia da real excomunhão do governador – porque este continuou a
satisfazer e praticar sua religião e a exercer sua autoridade sem qualquer tropeço – considero
não passar de uma invenção discursiva, porque foi útil e eficiente para eliminar um opositor.
Porém, uma parte da fala do Bispo, no ato de admoestação do governador quanto aos seus
procedimentos contínuos de invasão de jurisdição eclesiástica, é muito interessante.
Segundo os relatos, quando o Bispo chamou o governador de Perseguidor da Igreja,
emendou que este “vivia em pecado”. Essa acusação é muito contraditória, quando o próprio
Mello e Póvoas se apresentava como um modelo de religioso, casto e devoto de Nossa
Senhora do Carmo, honesto administrador e possuidor de refinados costumes. Esta imagem é,
aliás, enfatizada por Mário Meireles, em seu estudo de cunho biográfico daquele governador,
quando diz que...
[...] procurando seguir à risca os conselhos epistolares do tio Ministro e sua
política anticlerical, procurava pautar em rígidos e inflexíveis princípios
tanto sua vida pública quanto a privada [...] Óbvio se afigura que, em tais
circunstâncias, um homem casto e virtuoso, austero e autoritário, como
dizem seus contemporâneos que era o novo governador, não poderia tolerar,
e muitos menos da parte dos Ministros de Deus, escândalos, imoralidades e
sórdidos interesses [...]163 (Grifo nosso)
A política pombalina não era, como se sabe, anticlerical e sim antijesuítica e, no
limite, contra o poder temporal dos religiosos, não contra os religiosos diretamente, porque os
principais responsáveis pelo germe ideológico do processo de laicização que se assistia eram
os religiosos da Congregação do Oratório e os padres jansenistas, que ganharam força em
Portugal após a expulsão dos jesuítas.
Ao contrário do que Mario Meireles apontou, o Bispo denunciou o desvio do
governador – caso já citado – em agir em interesse particular, ao intervir no comércio da
farinha realizado por um padre, de modo que um subalterno seu pudesse praticá-lo livremente,
recebendo parte dos lucros. Demais disto, da sua religião ninguém duvida, mas da sua
castidade sim. Aliás, o bispo não apenas duvidou como afirmou claramente que o governador
havia tido uma filha com uma mulher, a qual o governador queria casar com um parente dela,
muito provavelmente um primo, para encobrir a publicidade do nascimento da menina.
162
163
SILVA, D. Francisco de Paula. Op. Cit. p. 129.
MEIRELES, 1974: p.40,41
80
Ele deu conta contra o Padre Pedro Barbosa Canais, que foi governar o
bispado na ausência do Bispo por ordem real, e queixa-se o dito padre, que a
origem ou causa de perder o lugar foi não querer dispensar, para que se
casasse uma mulher, de quem o dito governador teve uma filha, com um
parente dela em grau dirimente. (Grifo nosso)
Quanto ao autoritarismo do governador, o bispo repete exaustivamente o
“despotismo” e “tirania” de Mello e Póvoas em todos os aspectos e muito particularmente nos
assuntos referentes à Igreja no Maranhão. Logo, não parece óbvio, como até agora parecia,
que o governador tenha agradado a todos. Além desta Representação do Bispo, há outra,
escrita e assinada por pessoas abastadas de Alcântara e São Luís, que enviaram à Rainha D.
Maria I, assim que souberam da notícia da queda de Pombal, denunciando a tirania do
governador e a opressão que praticava contra todos mediante a Companhia de Comércio,
imitando o seu tio, Marquês de Pombal. O governador permaneceria ainda no cargo durante
dois anos após a demissão do seu tio, sendo ridicularizado publicamente na cidade durante
esse tempo. 164
No mais, o Bispo ainda acusava ao governador, como se vê adiante.
Ausente o bispo, conformou-se o governador no seu despotismo. Militares,
ministros de justiça, cabido da catedral, clérigos, povo tremiam ou
lisonjeavam. Ele por seu arbítrio decidia as causas: ele mandava derrubar
casas para compor as ruas: ele tirava parte da cerca pertencente a Igreja para
ampliar um terreiro: ele aumentou as casas da sua residência, que já por
serem grandes, se chamavam Palácio, com novas obras supérfluas, e com
detrimento dos Ministros da Igreja, e soldados, que tinham necessidade de
pagamentos: ele ordenou, ou aprovou, que os administradores da Companhia
de Comércio pagassem as côngruas dos Ministros da Sé com panos para eles
os passarem; coisa indecente. Ele acabou com o cabido, que se lhe pusesse
almofada na Sé, que juntamente em observância dos estatutos o bispo lhe
negou. Ele ordenou por carta sua aos religiosos de Nossa Senhora das
Mercês que elegessem três religiosos, que nomeava para comendadores (isto
é, prelados) dos três conventos que há no Maranhão, ameaçando-os, se assim
o não fizessem com o termo aliás. Ele mandou prender um marinheiro por se
casar sem sua licença. Ele ouvidas as queixas de dois casados, que
mutuamente se acusavam perante ele, decidiu, que se separassem. [...] Ele
por não dizer mais, um pároco, e religioso capucho tirou da igreja, e remeteu
para o seu convento, onde esteve preso por ordem sua. Destas coisas teve
notícia o bispo assim por cartas do Maranhão, como também pelos ditos de
pessoas que vieram a esta corte para receber ordens sacras, ou para outros
negócios, conspirando todo, que é governador despótico.165
164
165
Esta Representação é mencionada algumas linhas atrás, neste capítulo.
Mesma Representação que vem sendo trabalhada.
81
Não foram poucos os casos reclamados, mas afinal das contas, no tempo em que esta
Representação foi feita, o bispo já não corria nenhum risco. Por fim, cabe registrar o que D.
Francisco de Paula escreveu sobre o castigo do Bispo, a quem já demos muita voz aqui.
Não vemos a proporção entre a descortesia do Bispo para com o governador,
e o castigo (pois castigo era) do seu chamado à Corte para se justificar. A
nosso ver isso foi apenas uma ocasião favorável de que lançou mão o astuto
e matreiro ministro de D. José, que não podia perdoar a simpatia do Bispo do
Maranhão pelos seus figadais inimigos, os Jesuítas, e a oposição que fez à
expulsão desses beneméritos Filhos de S. Inácio, quando a declarou injusta,
visto faltar para um ato dessa natureza consulta prévia da Santa Sé e ordens
positivas do Rei de Portugal. Mas, naquele tempo, ninguém se opunha
impunemente às vontades do prepotente Ministro sem lhe sentir logo as iras.
O modo como o senhor Bispo foi recebido em Lisboa por D. José e seu
exílio por dez anos em Leiria bem provam que não eram somente as rixas
com os governadores que lhe atraiam essa desgraça...166
Mas antes de se retirar do Maranhão para a Corte para se explicar, quando na
verdade foi exilado sem explicação, D. Antonio de São José procurou meios de deixar um
aparentado seu em boa condição na capitania. Trata-se do cônego João Pedro Gomes, que foi
empossado proprietário do ofício de escrivão da Câmara Eclesiástica. Em novembro de 1766,
foi concedido ao padre José Antonio Martins o direito de trabalhar no ofício de escrivão,
porém, em seguida se assinou outra provisão, concedendo o direito de posso do ofício ao
cônego Pedro Gomes, com a condição de que o serventuário, ou seja, quem ocupasse o cargo,
deveria pagar 4$008 réis ao mês. Quem disponibiliza esses dados é o vigário geral Barbosa
Canais em sua carta pastoral, aquela que supostamente havia sido destruída, conforme dito no
primeiro tópico do primeiro capítulo deste trabalho. Na verdade, uma cópia daquele texto se
salvou pelas mãos do próprio vigário, acusado de tê-la rasgado em migalhas pelo cônego
Pedro Gomes.167 Esse lugar do ofício de escrivão na Câmara Eclesiástica estava na origem da
briga entre o cônego Pedro Gomes e o Vigário Geral Barbosa Canais, apresentada no início
deste trabalho.
Leiria (o lugar do exílio) era o Bispado para onde D. Miguel de Bulhões (antigo
desafeto do bispo D. Antonio de São José) foi nomeado pelo Ministro Pombal, como
recompensa da sua tarefa de “Reforma”, leia-se “destruição” da Companhia de Jesus na
América Portuguesa setentrional. Também, a despeito da clara e aberta defesa que D.
Francisco de Paul faz do Bispo D. Antonio de São José, e da condenação repetitiva do
Marquês de Pombal e seus prepostos, ele traz em seu comentário observações importantes e
166
167
SILVA, D. Francisco de Paula. Op. Cit. p. 130.
AHU – 1769 Cx. 43 D. 4243
82
aqui interessantes. Um deles foi a oposição que o Bispo ofereceu ao governo após a expulsão
da Companhia de Jesus, aspecto aqui já amplamente explorado. Os outros dois são a situação
de quem se opunha àquela política, fosse clérigo ou não; e sobre o tratamento dado ao Bispo.
Daquele combate político por parte de Pombal e seu irmão, e teológico por parte dos
oratorianos e jansenistas, os jesuítas saíram derrotados, como sinal da eminência do Estado
sobre a Igreja, sobretudo se considerados aqueles padres que se submeteram à política
pombalina. Fortalecia-se o Estado em comunhão com uma nova Igreja nacional, submetida ao
poder laico. Todavia, para, além disso, esse desdobramento histórico é significativo para
entender que a política pombalina resultou de influências ideológicas de seu tempo e, ao
mesmo tempo, orquestrou mecanismos para reduzir o poder temporal da Igreja, enquanto o
transferia para o rei ou o Estado.168
No sentido de um embate político entre os agentes do Estado português e os agentes
da Igreja, fica evidente agora a situação de quem se opunha à administração do Ministro
Carvalho e Melo. No caso particular do Bispo D. Antonio de São José, foi exilado em Leiria
durante dez anos, só saindo de lá quando da demissão do Marquês de Pombal. Mal tratado e
exilado, o Bispo não dispunha mais de nenhum poder, uma vez destituído na prática do seu
poder eclesiástico, das suas imunidades e qualquer privilégio, como o de escolher o seu
substituto, por exemplo. D. Francisco de Paula e Silva era por direito canônico, o poder de
escolha do substituto do bispo.169 O que não surtiu efeito algum. Como dito pelo próprio
prelado, uma vez ausente do seu poder, único com força suficiente para se opor de forma
relativamente eficaz, o governador se conformou em seu “monopólio de jurisdições”,
submetendo a todos os agentes do Estado e da Igreja, com certo favor àqueles em detrimento
destes.
Porém, um “monopólio de jurisdições” não era algo exclusivo do governador
Joaquim de Mello e Póvoas. Isso era um problema local. Ao nível imperial, seu tio também
detinha um poder parecido, aliás, muito mais expressivo e sempre confirmado pela Real Mão.
Com este poder aumentado, El-Rey nomeou o cônego Pedro Barbosa Canais, doutor em
Teologia, para substituir ao bispo do Maranhão, usurpando definitivamente a jurisdição
eclesiástica, levando à máxima expressão a doutrina corrente do regalismo, amparado pelo
Padroado Real.
168
No Antigo Regime, as monarquias eram absolutas. Portanto, o Estado era personificado no rei. Disso é
exemplo a célebre frase do rei da França (1643-1715), Luís XIV, “O Estado sou eu”.
169
SILVA, D. Francisco de Paula e. Op. cit. p. 137.
83
Se voltarmos um pouco para fazer uma breve lembrança, o bispo acusou em sua
Representação que os problemas que este substituto, nomeado Vigário Geral pelo Cabido da
Sé de São Luís às ordens do Rei, encontrou com o governador, foram causados pela
promiscuidade deste com uma mulher, sem nome. E se voltarmos um pouco mais na história
que estamos acompanhando, foi contra este Vigário Geral, Doutor Pedro Barbosa Canais, que
o governador escreveu em 1768 ao seu tio, Secretário do Ultramar Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, acusando o Vigário Dr. Barbosa Canais de criar sérios problemas no
governo do Bispado do Maranhão, de quem trataremos agora.
4.3. “Imprudente, Arrebatado e Brigão”
Como dito no primeiro tópico do primeiro capítulo deste trabalho, o lugar reservado
nas obras clássicas de História do Maranhão e da Igreja no Maranhão para este personagem é
um tanto diminuto. Até aqui acompanhamos a briga dos agentes do Estado com os agentes da
Igreja no Maranhão. Porém, os governadores do Bispado também eram agentes do Estado,
conforme o Padroado. Não acompanhamos, como de fato não seria possível, como a mesma
história se desenvolveu no Reino senão por comentários superficiais. Porém, as repercussões
entre os acontecimentos da Corte e do Maranhão não foram poucas; uma relação entre estas
partes e o que aconteceu em cada uma é perfeitamente plausível, considerando-se as devidas
proporções, é claro.
Assim, pode-se lançar mão de um argumento para esta etapa da análise em questão,
como sugerido desde o início: não parece óbvio que o Vigário Geral Pedro Barbosa Canais
tenha sido meramente um agente eclesiástico “imprudente, arrebatado e brigão”, como foi
adjetivado pela historiografia local. Não parece óbvio um comportamento ingênuo como esse,
vindo de um homem letrado, e certamente muito consciente de tudo o que havia afetado sua
Igreja e religião recentemente. Principalmente porque veio nomeado pelo rei, segundo uma
prática nova, vigente segundo o pensamento iluminista-regalista então corrente e a prática
efetivada de nomeação de prelados diocesanos no período pombalino pelo poder régio e não
papal, como apontou José Pedro Paiva, citado na introdução deste trabalho. 170
Porque estamos tratando dos padres declarados inimigos do Estado, já demos voz ao
Bispo. Agora vejamos o que tem o Vigário a dizer e em contradizer ao governador e seus
agentes aliados. Não se trata de tomar o discurso dos religiosos como verdade histórica, em
170
PAIVA, José Pedro. Os novos prelados Diocesanos Nomeados no Consulado Pombalino. In: PENÉLOPE, n°
25, 2001, pp. 41-63.
84
substituição do discurso dos agentes do Estado. Porque assim como temos dito que a
historiografia local, nomeadamente, Mario Meireles, comprou a versão dos tais agentes, se
apoiar no discurso dos agentes da igreja seria “trocar seis por meia dúzia”.171 O que interessa,
ao observar o que os religiosos tem a dizer sobre o que viveram naquele tempo, é por em
evidência a contradição dos interesses e das versões contadas.
Tanto o Doutor Vigário Capitular quanto o Bispo atribuíram uma opressão dos
agentes do Estado, sobretudo a partir do governador Mello e Póvoas, sobre a Igreja no
Maranhão. E ambos apontaram a origem dessa situação na expulsão dos jesuítas, o que, aliás,
faz todo sentido. Era do interesse do Consulado Pombalino – e todos os seus prepostos
estavam cuidadosamente orientados – a não aceitação de qualquer poder temporal dos
religiosos.
Com o vácuo criado pela expulsão dos jesuítas, foram criados uma série de
instrumentos e mecanismos para substituir aqueles agentes da evangelização católica e da
colonização portuguesa na América. Nem sempre eficientes para os fins para os quais foram
criados.
A Igreja sede da Companhia de Jesus foi seqüestrada e transferida para o controle
episcopal de São Luís, tornando-se a nova Sé da cidade. O colégio contíguo foi posto para
habitação dos religiosos. No mais, igrejas, aldeias ou Missões povoadas por indígenas,
fazendas de gado e escravos passaram à administração estatal. Mas esse foi o ápice de um
primeiro momento de esvaziamento do poder temporal da Igreja. O segundo momento foi a
nomeação dos prelados diocesanos diretamente pelo soberano português, porque havia
rompido com a Cúria Romana, e a esta nenhum religioso poderia mais recorrer. O Bispo do
Maranhão, ao notar esse desenvolvimento das coisas, procurou de variadas formas, impedir as
decisões que julgou abusivas e jurisdicionalmente invasivas por parte do governador. Porém,
sua reação ao esvaziamento do poder eclesiástico lhe rendeu o exílio em Leiria, no Reino.
Assim como foi indicado pelo Consulado Pombalino, este nomeou diretamente Pedro Barbosa
Canais para o lugar de Vigário Geral e Governador do Bispado do Maranhão, em substituição
do bispo exilado. E também assim como o bispo, o vigário geral estava alerta à situação
eclesiástica, muito embora estivesse muito mais pronto para reagir do que para cuidar em não
cair no desgosto do governador, “perseguidor da Igreja”.
171
Ouvi essa frase ser repetidamente proferida pelo professor Josenildo de Jesus Pereira (Depto. de História –
UFMA), ao tratar das questões escravistas, sociais e culturais africanas e das armadilhas que devem ser
desativadas quanto aos usos de conceitos e prática cotidiana, durante a graduação.
85
Seguindo, de certo modo, o raciocínio criado para aquele cenário político
administrativo e religioso pelos antigos autores com os quais se discutiu aqui, este trabalho
apontou inicialmente o Vigário Geral Barbosa Canais como o causador de algumas polêmicas
no Bispado, cujo ápice foi a publicação de uma suposta Carta Pastoral, publicada no púlpito
em um dia de missa, quando havia muita gente na Igreja. Prontamente, o cônego discriminado
naquela Carta, interpôs cinco agravos contra o Vigário Geral172, no que foi muito bem
“assessorado” pelo Ouvidor Bruno de Meneses, a cuja causa se juntou o governador Joaquim
de Mello e Póvoas. Os três contra o dito vigário, de modo que por força da quantidade de
sujeitos em um partido ou causa contra outro sozinho, e a força dos seus argumentos geram
uma inclinação que faz crível a culpa do que está sozinho.
Todavia, tendo em vista o exposto pelo bispo em sua Representação, aqui
apresentada, muita gente em prol de uma causa não a torna verdadeira, porque se sabe da
influência do governador junto a vários setores da administração e da sociedade naquela
época: um “monopólio de jurisdições” forjado no seio de um “despotismo e tirania”
imitadores do comportamento do Ministro Carvalho e Melo, seu tio. Eis uma visualização
clara do eclipse dos poderes, onde o(s) eclipsado(s) perde(m) vez e voz.
O que vem se tentando fazer aqui é contornar essa formação e visualizar a situação
do eclipse do poder do Estado sobre o poder da Igreja, materializado nos seus agentes, a partir
de um ângulo diferente mediante instrumentos novos (documentos aparentemente
desconhecidos ou ignorados), mas sem sair do ponto de observação, a Capitania do
Maranhão.
No caso deste Vigário Capitular, Dr. Pedro Barbosa Canais, segundo relatou em uma
de suas correspondências ao Secretário da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, no início do seu governo no bispado não houve qualquer problema. Foi
muito bem recebido pelo governador e por todos de bom agrado.
As felicidades que experimentei na minha viagem me anunciam ditosos
progressos no governo deste Bispado, para onde Vossa Excelência foi
servido mandar-me: nem posso duvidar da assistência das divinas Luzes
172
Aqui cabe um esclarecimento. Segundo o Regimento do Arcebispado da Bahia, então vigente, o Vigário
Geral era o substituto do Bispo e governador do Bispado. Nessa condição era também o Juiz do Tribunal
Eclesiástico. Como suscitado no início do trabalho, a justiça eclesiástica estava ausente nessa briga interna entre
dois padres: essa ausência se justifica pelo fato de o cônego João Pedro Gomes estar denunciando o próprio Juiz
Eclesiástico. Não faria sentido algum o Vigário Geral abrir um processo contra ele mesmo. Daí o cônego ter
solicitado apoio na Justiça Régia, desembocando nessa situação toda.
86
para o acerto, reconhecendo, que a Ilustrada inteligência de Vossa
Excelência me destinou para este Sagrado emprego.
Cheguei, com efeito, a esta cidade de São Luís em 35 dias; do Navio fui
conduzido à praça pelo sargento mor do regimento e saudado aí pelo
Ilustríssimo Senhor Governador [...] acompanhei ao dito Senhor até o
Palácio Régio da sua residência, aonde me determinou não só a hospedagem,
mas também assistência, enquanto se não põem hábil a minha habitação no
Colégio, que foi dos jesuítas.173 (Grifo nosso)
Como vínhamos dizendo acerca da suspeita de que o Doutor Pedro Barbosa Canais
não era ingênuo aos acontecimentos recentes, temos nesta citação acima uma evidência muito
forte. O elemento que indica o racionalismo ilustrado está na expressão “ilustrada
inteligência” que o vigário empregou ao se referir aos atos acertados do Conde de Oeiras, o
ministro Carvalho e Melo, a quem se dirigia. Mais interessante ainda é que seu relato aponta
que as relações iniciais pareciam muito amistosas. O próprio Cabido testemunhou acerca da
aceitação de todos, governantes e prelados, em relação ao novo Vigário Geral:
Pela Real Carta de vinte e cinco de abril do presente ano foi Vossa
Majestade servido participar-nos que para negócio de suma importância
mandara ir a esse Reverendíssimo e Excelentíssimo Bispo desta Diocese, e
que na ausência do mesmo nomeamos ao Reverendo Doutor Pedro Barbosa
Canais para reger a dita Diocese como Vigário Capitular: o que sem demora
executamos, cedendo, no sobredito Reverendo Doutor Pedro Barbosa Canais
toda a jurisdição, que tínhamos e podíamos dar por direito: em virtude do
que deu juramento em nossa presença, de que se fez termo, e está exercendo,
e governando esta Diocese com grande aceitação de todos.174 (Grifo nosso)
Como grifado, no final da citação, “com grande aceitação” era o estado geral daquele
religioso em relação ao lugar para o qual foi nomeado e assim se manteve durante um tempo,
inclusive no relacionamento com o governador, como citado. Porém, sendo ele conhecedor da
situação eclesiástica naquele momento, com sua jurisdição invadida ou agravada pelo poder
temporal do governador, não demorou a que aquele quadro de aceitação virasse pelo avesso.
O historiador Mario Meireles comenta o seguinte.
Além de tudo isso, permitimo-nos acrescentar, estúpido de inteligência pois
que, vindo por escolha d’El-Rey, não se compreende que, em aqui chegando,
entrasse a provocar ao Governador que, sobre ter naturalmente o prestígio
do cargo, tinha mais o de ser sobrinho do onipotente Primeiro-Ministro; e
provocá-lo com ridicularias como a de negar-lhe, em cerimônia religiosa na
Sé, o lugar especial que lhe assegurava o protocolo ou a de anunciar a venda
das alfaias e vasos da Catedral, sob o pretexto de estar passando fome pelo
atraso no recebimento da côngrua. E não só o governador se indispôs com
ele; também o Ouvidor Geral, contra o qual representou, às autoridades
173
174
Projeto Resgate – AHU – 1767 Cx. 42 D. 4180.
Projeto Resgate – AHU – 1767 Cx. 42 D. 4179.
87
superiores na metrópole, alegando que estava indevidamente reformando
decisões suas e com o próprio clero quando, por exemplo, mandou proibir a
tradicional procissão do Santíssimo Sacramento que há cento e quarenta
anos os carmelitas faziam realizar em São Luís [...]175
Ao escrever esta história, Mário Meireles tinha plena consciência de que o
governador estava de fato invadindo a jurisdição eclesiástica desde o governo do Bispo D.
Antonio de São José. Porém, seguindo a razão do governador Mello e Póvoas, não vê que sua
atuação era abusiva e transgredia os limites do seu poder temporal. A reação do Bispo e do
Vigário Capitular não era estupidez de inteligência, mas ações racionais contra o abuso
administrativo de Mello e Póvoas. Afinal, enquanto autoridades, não poderiam ficar parados
vendo o seu poder ser minado por uma autoridade cujo poder se limitava a outra jurisdição, a
temporal, e não e a espiritual.
O texto de Meireles é particularmente curioso, quando usa de termos e expressões
carregadas de conotação valorativa ou pejorativa para cada personagem em questão. Segundo
tudo o que se acompanhou até agora, não parece que o vigário tenha “provocado” o
governador com “ridicularias”. Antes usou do seu poder para por limites àquela invasão
jurisdicional. Ao que parece, o governador construiu o seu poder local muito mais através do
medo que metia em todos, “monopolizando” as jurisdições graças ao parentesco que mantinha
com o Ministro Plenipotenciário, que se transformava em prestígio. Era claro e aberto o apoio
que Carvalho e Melo oferecia ao seu sobrinho. Como mencionado anteriormente, bastou o
Marquês de Pombal cair na Corte, que logo um grupo de pessoas importantes de São Luís se
levantou contra o governador, acusando-o de tirania e opressão. Era uma reclamação que
ficou em silêncio durante dezesseis anos. E antes de ser retirado do cargo, o governador teve
de suportar ainda durante dois anos aberta rejeição dos senhores locais, porque não havia mais
quem o amparasse com poder: os laços foram desatados, porque a sustentação no poder
central cessou.
Outro ponto a se notar é que a venda em praça pública de alguns bens da Catedral,
feita pelo vigário capitular, não era um simples “pretexto”. De fato, seus salários, assim como
significativa parte da folha eclesiástica viviam em atraso.
No caso do Ouvidor, não parece menos verdade que de fato estava “reformando”
algumas decisões do vigário. Não foi à toa que o Ouvidor Dr. Bruno Antonio de Cardoso e
175
MEIRELES, 1977, p. 152
88
Meneses escreveu176 ao arcipreste da Patriarcal de Lisboa, Paulo de Carvalho e Mendonça (tio
do governador), reclamando do comportamento de alguns Ministros em assuntos religiosos,
dizendo que estes agiam de modo sutil e, em muitos casos, negavam castigos aos religiosos
que ele, Ouvidor, elevava ao Juízo da Coroa como culpados por crimes diversos. Bruno
Cardoso dizia que aqueles Ministros agiam mansamente com tais religiosos porque tinham
medo da excomunhão – que de fato era um mecanismo que poderia ser usado contra eles e
que servia de modo eficiente para ameaçar e fazê-los retroceder em suas decisões
condenatórias. Porém, este Ouvidor parecia estar mais bem informado do que aqueles
Ministros de quem reclamava: conviveu com um governador excomungado pelo Bispo. No
final das contas, aquela excomunhão parece não ter tido a menor validade, já que o bispo foi
suspendido dos seus poderes. Condenar os padres que eram elevados ao Régio Tribunal não
parecia um risco concreto de excomunhão.
Até aqui temos feito algumas considerações sobre a unilateralidade do discurso feito
sobre a relação entre os agentes do Estado e os religiosos. Considerações que não podem ser
confundidas pelo leitor, de forma alguma, como uma defesa dos padres. O esforço lógico que
vem sendo empregado aqui não é valorizar um em detrimento do outro, mas equilibrar os
argumentos, pondo em evidência a visão daqueles que foram destituídos, desacreditados e
retirados dos cargos que ocupavam, em um processo que temos aqui chamado de “eclipse”.
Em outras palavras, os agentes da Igreja, outrora detentores de um grande poder temporal,
foram ofuscados, deixados para trás pelos agentes do Estado, que passaram ao controle de
uma significativa área de atuação político-administrativa.
Para o último caso citado por Mario Meireles quando resumiu algumas confusões nas
quais o vigário se envolveu com autoridades régias, temos a proibição da procissão do
Santíssimo Sacramento se fundava no fato de, embora fosse tradicional, não possuía licença
diocesana para ser realizada. Devemos lembrar que esta era a religião do governador.
“Desatendido, o Doutor Canais publica do púlpito da Sé suspensão contra toda a comunidade
carmelita fora de sua igreja”177 Aliás, este vigário tinha por costume tratar dos assuntos nos
quais se envolvia do mesmo púlpito da Sé, onde publicava Pastorais contra qualquer um que o
desobedecesse ou lhe criasse problemas. Porém, essa reação veemente do vigário terminou
por levá-lo a cair no descrédito dos fiéis, dos clérigos e dos próprios parentes.178
176
AHU – 1769 Cx. 43 D. 4253.
PACHECO, 1969, p. 59.
178
PACHECO, idem.
177
89
No mais dos casos, passamos agora à briga com o cônego João Pedro Gomes, porque
esta foi relativamente extensa, se comparada com os outros acontecimentos mencionados,
muito embora tenha sido quase na mesma época. Este embate se iniciou quando o vigário
capitular Barbosa Canais retirou o direito do padre Pedro Gomes de receber o pagamento
mensal de 4$000 réis, porque era tido como proprietário do ofício de escrivão da Câmara
eclesiástica em São Luís, desde o ano 1766, quando o bispo D. Antonio de São José foi
chamado à Corte. Quem servia no lugar de escrivão era o padre José Antonio Martins.
Sentindo-se agravado, Pedro Gomes interpôs recurso junto à Ouvidoria, no que foi
plenamente auxiliado pelo Ouvidor, também recebendo ajuda com a intervenção discursiva do
governador Mello e Póvoas. Disto tratamos no início do primeiro capítulo, onde foi
apresentada uma versão parcial da briga iniciada entre o cônego Pedro Gomes e o Vigário
Geral Barbosa Canais, por causa, principalmente, de uma Pastoral publicada pelo Cura da Sé,
padre Bernardo Beckman, sob ordens do Vigário, na qual supostamente o cônego sofria
injúrias por parte do vigário. Estas injúrias e acusações de “crime atrocíssimo”, como dito
pelo cônego parece ser a denúncia feita pelo vigário de que a posse do ofício de escrivão não
era legítima, mas fraudulenta. Naquele tópico inicial do primeiro capítulo, foram feitas
algumas observações e questionamentos, dos quais alguns já foram respondidos, restando
outros pontos a serem observados ainda.
O recurso interposto pelo cônego junto ao Tribunal da Coroa teve resultado favorável
para este, porque apresentou um documento, escrito pelo bispo, no qual garantia a sua posse
sobre aquele ofício. Neste caso, temos um indício do que poderia ter sido a intervenção do
Ouvidor nas sentenças do vigário geral, neste caso contrariado. Em vistas disso, usou da
publicação de outra Carta Pastoral no púlpito da Sé contra o Ouvidor e contra o cônego Pedro
Gomes. Apesar de estes sujeitos terem dito que a referida Carta fora destruída pelo Vigário,
este, contudo, apresentou uma cópia daquele documento ao Secretário da Marinha, Mendonça
Furtado.179
Em uma carta dirigida ao Secretário do Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, o Vigário Barbosa Canais expôs os males a que estava sujeito e as atribulações
porque passava. De início tratou de deixar claro que o sossego no qual havia sido recebido era
algo aparente, porque o fanatismo havia infectado a todos na Capitania. Fanatismo, segundo
este, que havia sido iniciado contra os jesuítas e depois da sua expulsão, não cessou, antes foi
179
AHU – 1769 Cx. 43 D. 4243.
90
transferido para outros religiosos que usassem do seu poder em prol de qualquer causa. E um
ponto bem observado pelo Vigário em seu texto é que as brigas e confusões que se
instauravam eram resultado da intriga promovida pelo padre João Pedro Gomes. Segundo
contou, aquela posse que este padre tinha do ofício de escrivão na Câmara eclesiástica se
sustentava em um documento falso que, embora escrito pelo bispo, não possuía validade
alguma por não ter sido registrado, nem tornado público. Foi apenas um produto interno de
uma articulação familiar, já que o cônego Pedro Gomes era parente do bispo D. Antonio de
São José. Outrossim, o comportamento do cônego frente ao vigário é apontado por este como
sendo motivado pela inveja de ver o lugar do seu parente ser ocupado por um estranho e agora
inimigo. A partir daí, o cônego achou pretexto para criar embaraços e ver minado o poder e a
jurisdição eclesiástica que estavam sendo exercidos pelo vigário Barbosa Canais. Assim
sendo, declarou fraudulenta a posse daquele ofício por parte do cônego em sua Carta Pastoral.
Indignado com aquela publicação, o cônego Pedro Gomes tratou de interpor mais cinco
recursos contra o Vigário geral, no que foi atendido com desvelo pelo Ouvidor. Acusação de
fraudar um documento era o “crime atrocíssimo” que o exagero fez o Ouvidor escrever.
Quando o escrivão da Ouvidoria em São Luís, João Mendes da Silva foi entregar as
cópias dos recursos ao Vigário, este teria proferido “blasfêmias” contra o Ouvidor, segundo o
testemunho do governador.
Constando-me que esse vigário capitular Pedro Barbosa Canais, levando-lhe
o escrivão da Coroa cinco autos de recurso, rompera em blasfêmias, sem
razão alguma contra o Ouvidor e Juiz da Coroa Bruno Antonio de Cardoso e
Meneses, pois que é certo a não podia ter para semelhante excesso, tanto
pelo cargo, que ocupa, como pela bondade, inteireza e desinteresse,
jurisprudência de que é dotado esse Ministro; e para que eu pudesse por na
presença de Vossa excelência autenticamente esta verdade lhe disse
mandasse passar uma certidão pelo escrivão da Coroa do que tinha ouvido
ao mesmo vigário capitular, e é inclusa, em que verá também Vossa
excelência que para dar aqueles autos o não fez se não dali a quinze dias: o
que tudo prova bem absolutamente o prelado.180
João Pedro Mendes foi colocado como testemunha das injúrias proferidas pelo
Vigário contra o Ouvidor. No seu testemunho, ele não diz exatamente que tipo de
“blasfêmias” foram proferidas pelo Vigário, mas afirma que foram todas “injuriosas”. O
Vigário, por sua vez, nos diz o contrário, que não havia um recurso não qual não era injuriado.
Combalido eu e atacado pelos poderes da minha jurisdição não tenho já mais
que aquele que me permite o Juízo da Coroa, e se me revogam todas as
sentenças, e despachos sem dito, nem justiça, mais do que pelas leis da sua
180
AHU – 1769 Cx. 43 D. 4252.
91
[do Ouvidor] vontade: o que pode averiguar dos processos afeitos ao dito
Tribunal.
[...]
Quando saiu o primeiro agravo deste cônego julgando-lhe a posse a
propriedade do ofício do auditório eclesiástico: desejando eu conseguir uma
concórdia por meio do arbítrio, o tentei por via do chantre e se me deu a
repulsa conforme as cópias do n° 5: à vista do que para mostrar ao povo a
minha reta intenção de vê acatarem as discórdias: saí com a pastoral copiada
no papel do n° 6 aonde também vão cópias das provisões respectivas ao
mesmo ofício: o que daqui resultou foram mais cinco agravos que no dia
seguinte da publicação da pastoral me vieram juntos para responder,
animados com tanto [atrevimento] e esperado de arrogância que a pastoral
chamou expresso, e a um edital chamou cartel...181
Força e violência são alegadas de ambas as partes, de modo que não dá para dizer
quem tem razão, até porque isto não é papel do historiador. Interessa compreender os
argumentos e a força que tiveram naquele momento.
O vigário apontou ainda o medo e a lisonja que se fazia entre a “classe da nobreza”
em relação ao governador; também tornou a mencionar o atraso do pagamento dos seus
salários, tendo que por à venda alguns bens para poder suprir a alimentação mais básica.
Menciona também em sua correspondência o caso de um padre do Parnaguá, “por fabricar
banhos falsos, injúria a um vigário da vara e fugido de cadeia.”182 Mesmo ordenando que o
dito padre fosse preso, este interpôs três recursos à Ouvidoria e foi solto por ordens do
governador. Depois de solto, o dito padre foi hospedado na casa do Ouvidor.183
Em todos os momentos, temos a justiça secular atuando em todos os casos citados
dentro do período aqui compreendido. Os padres possuíam foro privilegiado184 e, portanto,
deveriam ser julgados pela justiça eclesiástica, mas em nenhum momento esta é evidenciada.
As mesmas Constituições baianas previam pena “de excommunhão maior
ipso facto incurrenda, e de sincoenta cruzados para despezas da Justiça e
acusador”531 se qualquer pessoa, não importando a dignidade, grau e
condição, fizesse ou ordenasse qualquer coisa que fosse prejudicial a
imunidade eclesiástica, a liberdade das Igrejas e das pessoas eclesiásticas ou
usurpasse e embargasse a jurisdição eclesiástica, impedindo que seus
ministros usassem dela livremente. Ao que se acrescentava que era proibido
aos juízes seculares que procurassem “trazer a seu juízo, e tribunais as
pessoas ou communidades Ecclesiásticas de nosso Arcebispado; nem
181
Mesmo documento da nota anterior.
AHU – 1769 Cx. 43 D. 4243.
183
Estas informações estavam fragmentadas e divididas entre o documento da nota anterior e o 38° quesito da
História Eclesiástica do Maranhão, de D. Felipe Condurú Pacheco.
184
MENDONÇA, Pollyanna Gouveia. Parochos Imperfeitos..., p. 154. UFF, 2011 tese de doutorado.
182
92
conheçam de suas causas crimes, ou cíveis de qualquer qualidade, ou quantia
que sejão”.185
Para este caso, em seu recente estudo de doutorado, a historiadora Pollyanna
Gouveia Mendonça, após apresentar o excerto acima, aponta que havia exceções na justiça
civil, quando esta poderia interferir na jurisdição eclesiástica e julgar os religiosos, desde que
a causa estivesse sob uma Igreja do regime de Padroado. “Muitas vezes as autoridades
seculares justificavam suas investidas contra o poder eclesiástico evocando a soberania do
rei.”186 Pelo visto, estas exceções foram a regra no período pombalino no Maranhão. A
invasão do poder estatal sobre a jurisdição eclesiástica foi tamanha, como longamente
demonstrado, que se tornou a regra. Quanto às legislações, determinações e regimentos
quaisquer, na prática não tiveram muito efeito. O período aqui estudado foi apenas um
exemplo. De tempos em tempos, o poder real avançava sobre a jurisdição eclesiástica, usando
de um recurso chamado de “temporalidades”. Segundo D. Francisco de Paula e Silva...
O Recurso ou Agravo à Coroa é um expediente de que lançou mão o poder
temporal para influir, dominar e subordinar o poder eclesiástico em suas
decisões, sob o pretexto de que ao Soberano temporal cabe o dever de
proteger seus súditos da opressão e violência. [...] Finalmente, governando
os Felipes, o excesso do século XIV se transformou em direito e foi regulado
pela nova legislação preparada no fim do século XVI, a despeito dos
protestos de Roma. Mas nesta mesma legislação, mau grado o espírito que a
dominava, algumas hipócritas deferências ainda se guardavam com o poder
eclesiástico. Essas deferências foram pouco a pouco caindo em desuso,
dominando em Portugal as doutrinas jansenico-galicanas no século XVIII, e
sobretudo no reinado de Rei D. José, do que é suficiente demonstração o
alvará de 18 de janeiro de 1765, expedido em ódio da Autoridade
Eclesiástica, com que não poucos arbítrios se praticaram no Brasil e outras
colônias portuguesas.187
Bem se viu aqui alguns exemplos acerca das tais temporalidades.
Por fim, não podemos deixar de saber da opinião pessoal do Ouvidor Bruno de
Cardoso, um dos envolvidos diretos nas confusões mais recentes. Em uma carta dirigida ao
arcipreste da Patriarcal de Lisboa, Paulo de Carvalho e Mendonça, com quem tinha um
relacionamento familiar indeterminado, fez alguns comentários interessantes. Este Paulo de
Carvalho era irmão do Marquês de Pombal e do ex-governador e Secretário Mendonça
Furtado e tio do governador Joaquim de Mello e Póvoas. O lugar de Ouvidor na Capitania do
185
MENDONÇA, Pollyanna Gouveia. Op. cit. p. 154 e 155.
Idem, p. 156.
187
SILVA. Op. cit. p. 86 e 87.
186
93
Maranhão foi conseguido pelo padre Paulo de Carvalho, segundo consta no mesmo
documento.
Porque tenho a honra de ouvir da Coroa nesta capitania o vigário capitular
me tem inquietado de sorte em recursos que dela se tem a Junta da mesma
Coroa, que nem [com armas] do mesmo Rei me posso defender das suas
imposturas, e das suas sátiras com que responde aos ditos recursos, que os
Ministros da Coroa são perseguidores da Igreja, que [aumentam] em
desatinos, que são fanáticos, compara-os com Pilatos, que a Junta é um
seminário de injúrias, e [chama] me de insolente e que de mim há de dar
cabo.
Nenhuma razão pode ter para tais rompimentos nos termos da Lei
Novíssima, que ordena aos Juízes eclesiásticos cumpram as cartas das
Juntas, e se não conservem nas suas decisões o prestem portanto do
Desembargo do Paço onde se lhes fará melhor justiça e devem seguir esta
ordem, e não [descansarem] os Ministros, que [suposto] dão à Lei é para
desoprimir os vexados e sossegar os vassalos de Sua Majestade, porém como
não podem deixar de cumprir as cartas [incompreensível] os ditos juízes fiéis
e obedientes às Leis do Soberano [...] os obrigam a iniquidade como diz o
capitular em resposta sua: finalmente mau gênio tinha o Bispo, mas o deste
capitular não tem [comparação] sem Sua Majestade não possa servi-lo
mandar que não pudessem excomungar os Ministros e mais oficiais de
Justiça, há muito estávamos todos declarados excomungados.
O senhor Governador põe os fatos na presença do Excelentíssimo Senhor
Francisco Xavier de Mendonça e por isso eu o não faço, mas sim peço as
Vossas Excelências me livrem desta guerra em que vivo há dois anos, e já
tão mistificado, como não sei dizer a Vossa Excelência, a cheio de achaques
que estou com o meu gênio oprimido, porque nunca o tive para dissensões
de nenhuma qualidade e me vejo grandemente aflito, sentido e triste, vendo
que o sossego público se tem perturbado depois de eu viver seis anos nesta
capitania com muita paz e boa harmonia e para prova do meu ânimo com o
mesmo bispo.188 (Grifo nosso)
Se o Vigário Geral reclamava de uma “batalha” em sua Pastoral publicada na Igreja,
onde acusava o cônego João Pedro Gomes de fraudar documentos e afirmar que o Ouvidor
atendia a este sem investigação aprofundada, corroborando um ato errôneo e os interesses
particulares daquele padre, este Ouvidor, por sua vez, reclamava de uma verdadeira “guerra”.
Se a sua mão tracejou seus sentimentos reais, pode-se dizer que, enquanto um agente
e, mais especificamente, enquanto um preposto pombalino, não eram seus interesses
particulares que estavam em jogo no fato de auxiliar o cônego Pedro Gomes contra o Vigário
Geral, mas sim o interesse político-administrativo para o qual trabalhava. Se o histórico
recente do Vigário apontava seus desentendimentos com o governador, e sendo este muito
amigo do Ouvidor, não parece difícil crer que sofreu influências em suas decisões. Mas ainda
188
AHU – 1769 Cx. 43 D. 4253.
94
assim, não parece completamente ingênuo, porque, conforme já exposto, também
compartilhava de um desvio administrativo, que era receber parte do lucro da venda das
farinhas em São Luís, conforme denunciou o Bispo em sua Representação tardia.
Depois disso, o vigário desistiu do seu governo e foi chamado à Corte ainda em
1769, entregando ao Cabido o governo do bispado. A Sé ficou “quase vacante”, sendo
novamente ocupada por um bispo catorze anos depois, em 1783, D. Frei Antonio de Pádua e
Bellas, cinco anos depois da saída de Joaquim de Mello e Póvoas do governo do Maranhão.189
Na Capitania do Maranhão, o eclipse dos poderes envolveu a expulsão dos jesuítas, a
transferência do controle das sociedades nativas das ordens religiosas para o Estado, as
invasões de jurisdição por alguns agentes, o exílio do bispo e a “batalha-guerra” entre o
Vigário Geral e o Ouvidor. Os ânimos se exaltaram extremamente, os governantes foram
ameaçados de excomunhão pelo bispo, que foi exilado em Leiria, e o vigário capitular
desacreditado publicamente pelo Ouvidor junto com o padre João Pedro Gomes, cujos
interesses deste último eram tão somente particulares.
No meio desse movimento a nível macro, do avanço do Estado sobre o campo de
atuação da Igreja na colonização, havia uma série de elementos: a oposição entre os agentes
do Estado e os agentes da Igreja, oposições e “paixões particulares” driblando as regras
estabelecidas. Desentendimentos internos entre os próprios agentes de cada instituição; a
ameaça da excomunhão pelos religiosos e um caso de excomunhão invalidada. Nos
movimentos a nível micro, assistimos basicamente, em cada caso contado, a briga por
interesses pessoais, amparados ou alegados como interesses mais amplos, de Deus ou do Rei.
Como se as brigas aqui ocorridas fossem reflexos da relação entre Deus e o Rei.
Como Padroeiro, Sua Majestade Fidelíssima era um representante direto de Deus na
terra, assim como o Papa. O poder real, instituído em um estado absolutista, tomou para si o
papel que estava nas mãos do poder papal até então, instituído em uma Igreja ultramontana.
A separação dos poderes é algo característico desse movimento que, paradoxalmente
não pressupunha um Estado separado da Igreja. Uma ruptura com a Cúria Romana, como
experimentado em 1760 não pode ser confundida com uma separação, principalmente porque
alguns dos ideólogos pombalinos eram agentes eclesiásticos, como mencionado na introdução
deste trabalho o consulado pombalino contou com a maioria dos religiosos na época para
189
PACHECO, 1969, P. 59. & SILVA, 1922, pp. 136-142
95
implantar uma reforma da Igreja Católica em Portugal. É claro também que as estadas de
Carvalho e Melo em Londres e Viena em muito contribuíram para a sua política ilustrada.
Assim, o eclipse ocorreu entre dois objetos distintos, mas não separados. Estado e Igreja não
estavam separados, antes agiam juntos no período pombalino. O Consulado Pombalino e a
Cúria Romana romperam ligações. Estado e Igreja são diferentes e ainda que estivessem
juntos, Pombal entendia cada qual com funções e atribuições claras, definidas e diferentes.190
O “eclipse dos poderes” pode ser compreendido, assim, como uma rivalidade entre
autoridades, da mesma jurisdição ou não, sobre um espaço político-administrativo
determinado, ou sobre uma jurisdição, ou sobre um objeto específico, como visto ao longo de
todo o trabalho. De modo que o poder de um se sobrepunha ao poder do outro naquela esfera
de disputa. Logo, não é uma metáfora exclusiva desse período; pode ser aplicada a outros
períodos com características semelhantes, como aquele caso citado pelo governador acerca do
castigo de um bispo do Maranhão no final do século XVI por destruir documentos, guardadas
as devidas proporções, é claro.
No caso do estudo aqui realizado, observaram-se dois principais modelos de eclipse.
O primeiro é entre o poder do Estado e o poder da Igreja, levado a cabo pelo Consulado
Pombalino a partir da conjugação entre o Regalismo e o Iluminismo. O segundo é entre as
autoridades diversas, cada qual segundo suas “paixões particulares”, em nome do Rei, agindo
em benefício próprio. Usavam seus poderes atribuídos para rivalizar com outra autoridade
sobre determinadas matérias e decisões ou controle sobre algo específico. Não se quer, com
isso, dizer que havia uma sincronia entre as brigas surgidas entre os governadores e os
prelados no Maranhão como reflexo da relação entre Estado e Igreja naquele momento no
Reino, ou mesmo que os agentes enviados à colônia tivessem uma clareza iluminada sobre os
princípios que fomentavam e dirigiam aquela política e administração desenvolvidas pelo
Marquês de Pombal no reino, de modo que pudessem aplicá-los na colônia. Os agentes de
modo geral, e os prepostos pombalinos em particular, estavam apenas cumprindo ordens e, no
meio do processo, obtendo algumas vantagens. Mas não foi o caso de todos, ou se o foi com
qualquer um, essas vantagens não duraram muito tempo.
190
CASTRO, Zília Osório. O Estado e a Igreja: pensamento de Antonio Nunes Ribeiro Sanches. In: ____.
Estudos em Homenagem a Luís Antonio de Oliveira Ramos. Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
2004, p. 399-406.
96
5. AS PESSOAS EM SEU TEMPO: CONCEITOS E CONCEPÇÕES
“[...] e tendo lido em um daqueles dias as Vozes Saudosas do
Pe. Antonio Vieira, [...] peço-lhe que no livro [...] vejas as três
quais são: – “Política” – “Doutrinal” e mais devagar a”
Zelosa”, que mandada àquela parte em que o padre deixa o
caminho aberto para estabelecer o alto domínio a que aqui tem
chegado a sua religião [...] quanto à liberdade dos índios.”
(Francisco Xavier de Mendonça Furtado)
“Como, porém, pelos nossos grandes pecados, se tem
introduzido no mundo a abominabilíssima máxima de
Maquiavel, de que a simulação da virtude aproveita e a mesma
virtude estorva, para se adquirir os bens temporais, deste ponto
saem por linha reta todas as desordens que repetidíssimas
vezes vimos praticar e agora o experimentamos, assim na Corte
com o sermão do Pe. Balester como nesta capitania [do Rio
Negro] com as práticas e exercícios do Pe. Roque Hunderfurp,
e no Pará com as do Pe. Aleixo Antonio...” (Francisco Xavier
de Mendonça Furtado)
Se as coisas devem estar no seu devido lugar, as pessoas também devem ser
reconhecidas no seu próprio tempo. Compreender essa acepção é fundamental para organizar
o pensamento e o conhecimento ampliado com o estudo ora realizado. Assim, visualizando as
pessoas no seu tempo, é possível entender alguns conceitos que embasam um aspecto teórico
do presente trabalho hoje e as concepções que embasaram a visão de mundo daqueles sujeitos
no século XVIII. Uma distância de duzentos anos que é, sem dúvida nenhuma, sensível.
Sebastião José de Carvalho e Melo foi escolhido pelo novo rei, D. José I, em 1750
para o ministério plenipotenciário de Portugal, e sua atuação ao longo dos anos foi marcada
pela articulação de alguns fatores: a filosofia iluminista, da qual era adepto; a influência de
seu irmão, governador do Grão-Pará e Maranhão (1751-1759); o regalismo português, que se
acentuou na sua época; e o movimento religioso jansenista, que pregava uma reforma na
Igreja Católica.191 Isto desembocou no conflito e na negociação com a religião (Catolicismo)
e constitui – deve-se esclarecer – apenas uma das facetas da política pombalina.
191
Esta pesquisa foi iniciada de modo independente, sob o título “A Influência do Iluminismo e o Processo de
Laicização no Maranhão Setecentista”, alguns meses antes de ser convidado pela professora Antonia da
97
Apropriado e ressignificado no mundo português, no que se refere ao conhecimento
científico e ao poder temporal da religião, o Racionalismo Ilustrado contribuiu de modo
significativo na ação pombalina na reforma das instituições de ensino do Estado português, a
fim de promover o seu progresso econômico, das quais era necessário retirar o caráter
eminentemente canônico e inserir cátedras que atendessem à demanda técnica pretendida.192
Em Portugal, os maiores expoentes dessa corrente do pensamento, eram os padres do
movimento disciplinar jansenista, que tiveram grande atuação política durante o consulado
pombalino, sobretudo na campanha antijesuítica.
Em pouco tempo e à força, Pombal reposicionou a ação e a importância dos poderes
na administração do Reino Português, tanto do Estado quanto da Igreja, dividindo setores da
própria Igreja nos domínios de Portugal. Esta questão, que envolve entre outras coisas a
ruptura de Pombal com a Cúria Romana em 1760, é discutida por vários historiadores, como
Zília Osório de Castro (1987), José Pedro Paiva (2001), José Eduardo Franco (2005) e George
Evergton Sales Souza (2009).
Isso se deve ao fato de o Marquês combinar ideias do Iluminismo e do Regalismo,
doutrina defendida principalmente pelos padres oratorianos, que primava pela “supremacia do
poder civil sobre o poder eclesiástico”, prescindindo da centralidade papal, pois entendiam
que Deus concedia diretamente aos soberanos o poder sobre os povos (CASTRO, 2001).
Apoiado nas ideias dos padres oratorianos, o Despotismo Esclarecido pombalino se fortaleceu
e pôs em prática a reforma do Estado e da Igreja nacional. Os padres da Congregação do
Oratório foram, em grande medida, os responsáveis pela expansão do Iluminismo no Reino
Português. Ao mesmo tempo defendiam que os bispos católicos deveriam ter autoridade
própria sobre seus rebanhos, prescindindo da centralidade papal, que atuava como uma
monarquia sobre todos os reinos católicos. Disto é exemplo a obra teológica e intelectual do
Padre Pereira de Figueiredo.
Mas a política pombalina, e seu iluminismo católico português,193 que sacralizava o
poder do rei e laicizava o poder do Papa, foi construída também ao sabor das relações entre o
seu ministério (e seus ideólogos) e os governos ultramarinos, a partir das necessidades e dos
192
193
Silva Mota, para participar de seu projeto de pesquisa em 2009. Muitas das concepções e compreensões
iniciais estão superadas, ou redefinidas e refinadas atualmente, bem como mudadas as estratégias de
pesquisa.
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: Paradoxo do Iluminismo. Tradução: Antonio de Pádua Danesi.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.
SANTOS, Cândido. “Matrizes do Iluminismo Católico da Época Pombalina”. Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2004. (Artigo)
98
problemas que surgiram ao longo do tempo, principalmente o governo de seu meio-irmão,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, no Grão-Pará e Maranhão.
A fim de cumprir o Tratado dos Limites,194 celebrado entre as Coroas da Península
Ibérica, Sebastião José de Carvalho e Melo enviou seu irmão,195 Francisco Xavier de
Mendonça Furtado para demarcar os limites da América Portuguesa setentrional em 1751, ao
mesmo tempo em que extinguia o antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará, com capital em
São Luís e criava o Estado do Grão-Pará e Maranhão, transferindo a sede administrativa para
a cidade de Belém. Isto era estratégico na delimitação dos territórios americanos entre a Coroa
lusitana e a castelhana, para defesa de invasões das nações do norte da Europa nas terras
amazônicas, tornando a região um ponto com especial atenção por parte da Coroa portuguesa
(DIAS, 1970).
Mendonça Furtado foi nomeado governador plenipotenciário e capitão-general do
novo estado e durante seu governo na colônia (1751-1759), enfrentou uma série de problemas
estruturais, sobretudo o poder que as ordens religiosas mantinham sobre as sociedades
nativas, pois na região era a mão de obra indígena motivo de riqueza na sua muita quantidade
e principalmente motivo de pobreza na sua falta, devido à insuficiente quantidade de escravos
africanos. Legitimados pela evangelização dos povos indígenas, os padres regulares,
sobretudo os da Companhia de Jesus, mantinham os nativos sob um sistema de servidão,
monopolizando a economia das drogas do sertão, atividade na qual a mão de obra indígena
era largamente utilizada. Com isso, segundo as autoridades régias, impediam não apenas os
colonos de possuírem escravos em quantidade suficiente como também, e exatamente por
isso, impediam o desenvolvimento econômico da região, ao mesmo tempo em que tinham
seus cofres cada vez mais enriquecidos, segundo as queixas dos proprietários rurais locais. Os
padres inacianos, por exemplo, haviam construído um verdadeiro império temporal196 – muito
maior do que o de outras ordens religiosas – e sua não colaboração no projeto de demarcação
do território e no governo das conquistas do norte fomentou a oposição do governador
194
Este tratado foi “[...] concluído em Madri no dia 16 de janeiro de 1750, entre o ministro da Espanha, D. José
Carvalhal de Lancaster e o plenipotenciário de Portugal, D. Luís de Melo e Silva, [...] ratificado em Lisboa a
26 de janeiro do mesmo ano” (MARQUES, 1970, p. 339).
195
É claro que as relações familiares falaram mais alto na escolha de alguém de confiança, porque Mendonça
Furtado não era importante no Reino, mas seu irmão sim, e seu pai também, Francisco Luís da Cunha de
Ataíde, Chanceler-Mor do Reino.
196
RAYMUNDO. Letícia de Oliveira. “O Estado do Grão-Pará e Maranhão na nova ordem política
pombalina: A Companhia Geral do Maranhão e o Diretório dos Índios (1755-1757).” Relatório de Iniciação
Científica. USP, 2005.
99
Mendonça Furtado.197 Em suas cartas198 dirigidas ao irmão, o tom antijesuíta passou a
aumentar expressivamente, e do lugar de onde estava e com a autoridade com que falava,
terminou por influenciar o ministro Carvalho e Melo contra o poder dos jesuítas no norte da
América portuguesa. As Leis de Abolição do Poder Temporal dos Religiosos Regulares e da
Liberdade dos Índios, publicadas em 1755 foram medidas tomadas em virtude da constante
correspondência do governador, que insistia e argumentava em retirar dos padres a
administração do trabalho dos nativos, mantendo-se, entretanto, a sua obrigação espiritual
para com os mesmos.
Quando escreveu o texto utilizado como epígrafe no início deste capítulo, Mendonça
Furtado estava não apenas muito bem instruído nas determinações de seu irmão, como
também demonstrava bastante conhecimento acerca da questão que envolvia o poder dos
religiosos, notadamente os jesuítas. Na continuação dos seus textos dizia que:
A proposição que proferiu aquele padre no púlpito, não só escandalosíssima
pelo que respeita à submissão e reverência com que se devem tratar as leis
dos soberanos; mas [...] sempre é bastantemente contra a religião católica;
este padre [Roque Hunderfurp] intentou pregar, como dogma e doutrina
certa, que o negócio conteúdo naquele estabelecimento [Companhia de
Comércio] continha pecado mortal, e por ele ficava quem entrasse naquela
sociedade condenado ao inferno, fazendo assim no povo ignorante e rude
uma consciência errônea; e querendo revoltar o mesmo povo não só contra
os ministros que Sua Majestade consultou para tomar aquela resolução, mas
até chegar ao ponto execrando de tocar na soberania com aquela infernal
doutrina [...]
No Maranhão se aceitou [a Companhia de Comércio] [...]. Deus queira que
continue o mesmo gosto.199
Fica clara a posição dos jesuítas em atrapalhar aquela Companhia de Comércio,
porque retirava daquela ordem religiosa o seu antigo “monopólio” do comércio. Por outro
lado, a oposição jesuíta foi interpretada como um atentado à soberania do rei português e à
sua religião: isto é, considerando que o governador Mendonça Furtado considerava a
Companhia de Jesus como uma ordem nefasta aos interesses régios.
Enquanto isso, no Reino, os jesuítas tinham outros inimigos, sobretudo a defesa
ideológica do movimento disciplinar jansenista de reforma de setores da Igreja Católica. Os
197
Inicialmente apontada por Boxer (2002), esta ideia constitui a tese defendida na monografia de Josimar Vieira
da Cruz (2009) apresentada ao Depto. De História da Universidade Federal do Maranhão, intitulada “Sob os
estigmas pombalinos: Uma imagem distorcida dos jesuítas do Maranhão seiscentista (1607-1661)”.
198
MENDONÇA, Marcos Carneiro. A Amazônia na Era Pombalina...
199
A Amazônia na Era Pombalina..., Tomo II, p. 410, 411, 497, 498.
100
jansenistas consideravam que a Companhia de Jesus estava corrompida por acumular
riquezas, quebrando seu voto institucional de pobreza.200
O Jansenismo se entrelaçava nas suas origens com o Protestantismo, sobretudo nos
pontos referentes à salvação humana mediante a Graça divina, pela fé em detrimento das
obras, sendo amplamente combatido pela Companhia de Jesus. No tempo do Marquês de
Pombal, segundo Souza:
É claro que alguns acontecimentos que marcaram o reinado de D. José I
foram decisivos para que o jansenismo pudesse ganhar terreno. Além da
adesão do governo ao sistema regalista, a submissão da Inquisição ao
governo, a expulsão dos jesuítas, seguida de uma maciça campanha
antijesuítica, tiveram importância fundamental na criação das condições de
implementação das novas orientações relativas ao pensamento teológico,
eclesiológico e moral do mundo português.201
Nesse sentido, D. Luís da Cunha, por exemplo, um dos ideólogos pombalinos,
concebeu que a pobreza de Portugal, a qual as Reformas praticadas pelo Marquês buscavam
mudar, bem como o atraso de sua economia tinha sua origem na atuação administrativa da
Companhia e Jesus, praticada independentemente do poder régio.
Os padres da Companhia de Jesus foram abertamente responsabilizados pela pobreza
e atraso de Portugal durante a governação do Marquês de Pombal, sendo eliminados da cena
política em 1759, expulsos pela lei de 3 de setembro daquele ano. Em 1766, Louis Michael
Van Loo, pintava sob encomenda, o famoso quadro do Marquês de Pombal desterrando a
Companhia de Jesus para Roma. Para sustentar tal ação, em 1767 foi publicada, em três
volumes a “Dedução Cronológica e Analítica” para justificar todo o prejuízo causado pelos
padres inacianos ao Reino lusitano, de que foram acusados quando da sua expulsão.
A política pombalina, manifestando a prática dos ideais iluministas da crítica ao
poder temporal da Igreja Católica, não pretendia combater a fé dos “fiéis vassalos do rei”, mas
o que julgava abusivo de parte das Ordens Religiosas, sobretudo a Companhia de Jesus, por
caracterizar um Estado dentro de outro Estado, já que seu poder, legitimado na missão
evangelizadora e, ao mesmo tempo, no aumento dos vassalos do rei, agia de modo
independente da administração colonial nos domínios portugueses.
200
201
CONSIGLIO, 2003 apud CRUZ, 2009.
SOUSA, George Evergton Sales. Jansenismo e reforma da Igreja na América Portuguesa. Bahia, UFBA,
2009. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/evergton_sales_sousa.pdf.
Acesso em 2009
101
No último ano do generalato de Mendonça Furtado no Grão-Pará, Pombal decretou a
Lei de 03 de setembro de 1759, expulsando os jesuítas de Portugal e dos domínios
ultramarinos. Nesse sentido, seu governo não foi apenas um mediador entre as determinações
da Metrópole e sua aplicação na colônia, mas também uma matriz onde se formaram muitas
das ideias e ações políticas que determinaram o governo da região e do Reino. Assim, o
governo de uma colônia interferiu nos rumos da política pombalina a nível imperial, a partir
das articulações diversas que envolviam aqueles funcionários régios, seus postos de poder, e
os lugares geográficos onde estavam situados, Lisboa e o Grão-Pará e Maranhão, que era
então importantíssimo para a Coroa.
Entretanto, ao eliminar os jesuítas da cena, Pombal criou outros problemas,
indignando os padres e os fiéis católicos do reino e das colônias, e que não foram resolvidos
tão facilmente. Além do mais, um ano após a expulsão dos jesuítas, em 1760, o ministro
português rompeu com a Cúria Romana. Quando da queda de Pombal, as suas reformas foram
abolidas, especialmente da religião portuguesa, o catolicismo, tendo seus traços de outrora
revividos, mas não de forma idêntica como antes, evidentemente. Disto é exemplo a
publicação das leis testamentárias em 1766 e 1769, que causaram grande confusão no mundo
português. Cite-se ainda que após a expulsão dos jesuítas do Maranhão, a sua Igreja, mesmo
passando ao controle de outros religiosos, ficaram vazias, conforme carta de Mello e Póvoas
datada de 12 de maio de 1761, quando ainda governador do Rio Negro.
Portanto, daquele combate político por parte de Pombal e seu irmão, e teológico por
parte dos oratorianos e jansenistas, os jesuítas saíram derrotados, como sinal da eminência do
Estado sobre a Igreja, sobretudo se considerados aqueles padres que se submeteram à política
pombalina. Fortalecia-se o Estado em comunhão com uma nova Igreja nacional, submetida ao
poder laico. Todavia, para, além disso, esse desdobramento histórico é significativo para
entender que a política pombalina resultou de influências ideológicas de seu tempo e, ao
mesmo tempo, orquestrou mecanismos para reduzir o poder temporal da Igreja, enquanto o
transferia para o rei ou o Estado.202 Isto era um sinal das novas concepções que marcaram sua
época profundamente.
De igual modo, o governador Mello e Póvoas foi importante nesse contexto. Sua
trajetória administrativa no governo do Maranhão,203 traçada em um breve artigo do
202
No Antigo Regime, as monarquias eram absolutas. Portanto, o Estado era personificado no rei. Disso é
exemplo a célebre frase do rei da França (1643-1715), Luís XIV, “O Estado sou eu”.
203
MEIRELES, Mário Martins. “Melo e Póvoas, capitão-general do Maranhão”. SIOGE, São Luís, 1974.
102
historiador Mário Meireles, onde apontou as características gerais da sua personalidade, do
seu governo e da sua relação com os tios. Todavia, a despeito do juízo de valor empregado
por aquele historiador em seu trabalho, exaltando a administração do sobrinho de Pombal e do
relato superficial e da interpretação tendenciosa de questões enfrentadas pelo governador
Mello e Póvoas durante seu generalato no Maranhão, ofereceu informações importantes e
relevantes sobre aquele funcionário régio, sobretudo no que se refere à relação mantida com a
religião, alinhando-se à política pombalina e sua posição quanto à mesma. Com esta posição
travamos uma intensa discussão neste trabalho. Na seção que trata do “prestígio do poder
temporal”, Meireles relatou algumas pequenas brigas ocorridas entre o governador e o então
bispo do Maranhão, Frei D. Antonio de São José. A oposição política que o bispo ofereceu ao
governo de Mello e Póvoas se tratou da herança conflituosa estabelecida entre ele e o exgovernador e antecessor Gonçalo Pereira de Lobato, devido à Lei de liberdades dos indígenas
e à consequente abolição do poder temporal dos padres regulares sobre o trabalho dos nativos,
ao que os religiosos, em parte, não aceitaram.
Articuladas de modo indissociável, enquanto a política significa as ideias e planos de
governo, bem como seu relacionamento (conflito e negociação) entre os governantes e
governados, a administração diz respeito à execução das ordens régias ou de seus
representantes, à prática governativa exercida sobre os povos habitantes dos domínios do rei
de Portugal.204 De igual modo, como se articulavam ou eram articuladas pelos agentes régios
(governadores, capitães-generais, secretários e conselheiros) no controle das instituições
citadas e, sobretudo, os reflexos disso no mundo colonial, resultavam nos conflitos de
jurisdição que se mostravam constantes.205 Como é sabido, o rei de Portugal estava amparado
por um vasto e, por vezes, confuso aparelho administrativo, cuja ingerência estava a cargo de
uma legião de funcionários régios. Para o que interessa aqui, a Secretaria de Estado dos
Negócios do Reino e Mercês, criada durante o reinado de D. João V, em 28 de julho de 1736,
respondia pelas finanças de Portugal e seus domínios: isso incluía o comércio das especiarias,
o tráfico de escravos e os tributos, por exemplo. No mesmo decreto, EL-REY criava ainda
outras duas divisões, a Secretaria dos Negócios da Marinha e Conquistas e a Secretaria dos
Negócios Estrangeiros e da Guerra.206 Naquela época, era importante para a Coroa Portuguesa
204
SOUZA, op. cit.
CARDIM, Pedro. “Administração” e “Governo”: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime. In:
BICALHO, Fernanda. (org.) “Modos de Governar...”
206
Em 1750, Pombal seria nomeado como secretário dos Negócios do Reino e em 1759 seu irmão Mendonça
Furtado, ex-governador do Grão-Pará, seria nomeado secretário da Marinha e Ultramar.
205
103
a ampliação das suas estruturas administrativas, a fim de prover as necessidades que um
Império com aquelas dimensões manifestava.207
Assim, no período pombalino, enquanto o ministro Carvalho e Melo (Secretário dos
Negócios do Reino) se apoderava da legitimidade real208 para executar a sua política através
de seus prepostos administrativos no Reino e nas colônias, principalmente seus parentes – seu
já citado irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado no governo do Grão-Pará e Maranhão
(1751-1759) e Secretário da Marinha e Ultramar (1759-1770) e seu sobrinho Joaquim de
Mello e Póvoas no governo da Capitania do Rio Negro (1759-1761) e na Capitania do
Maranhão (1761-1779),209 - isto beneficiava sua família. Deles recebia em troca a fiel
colaboração à sua política, na administração da América Portuguesa setentrional. Nesse
sentido, põe-se em evidência a dinâmica existente entre o centro administrativo e as partes
coloniais, tendo estas, por vezes, poder de interferência ou influência nas decisões do centro,
como se viu no caso de Mendonça Furtado.
O relacionamento, que envolveu obviamente conflito e negociação, entre aqueles
agentes régios e papais, se deu a partir do interesse comum de jurisdição. Em outras palavras,
quando da lei de liberdade dos índios e abolição do poder temporal dos regulares sobre o
trabalho dos nativos, isso gerou insatisfação nos religiosos, achando nisso motivo para se opor
ao governo dos prepostos de Pombal, especificamente o caso de Joaquim de Mello e Póvoas.
Nesse sentido, o procedimento posterior sobre a administração civil e espiritual executada
sobre os povos indígenas, na forma de Vilas e Diretorias, formadas a partir de descimentos
forçados, e ainda, o sequestro dos bens dos jesuítas e sua disposição, constituem os três
aspectos centrais, supõe-se, geradores do problema maior em questão, ou seja, os conflitos
entre os padres e os governantes pombalinos, que devido o extenso período de administração
(vinte anos), nos detemos apenas em dezenove anos, teve que lidar com os religiosos
“revoltosos inimigos comuns do Estado”, sob orientação direta de seus tios, mentores daquela
política de laicização, entendida aqui como processo de autonomização do poder estatal frente
ao poder eclesiástico.
A oposição do Bispo D. Antonio de São José foi uma realidade concreta. Apesar de
ameaçar com excomunhão e de ter declarado o governador excomungado, por causa das suas
207
Dicionário Histórico de Portugal Online. Disponível em:
<http://www.arqnet.pt/dicionario/estrangeirossecretaria.html>. Consulta em: 15/10/2010
208
Boxer. Charles. “O Império Marítimo Português”.
209
MARQUES, César. “Dicionário Histórico...”
104
constantes invasões da jurisdição eclesiástica, a força do Bispo era pouca comparada com a do
governador. O bispo sofreu exílio de 10 anos no bispado de Leiria, onde governava seu antigo
rival, o ex-bispo do Pará, D. Miguel de Bulhões. Destituído dos seus poderes, também não
pôde indicar o seu substituto, o que foi feito pelo rei D. José I, que havia rompido com a Cúria
Romana em 1760 e que, portanto, nomeava diretamente os prelados diocesanos dentro dos
seus domínios, pelo direito de Padroado.
O substituto no governo do bispado do Maranhão, o doutor em Teologia Pedro
Barbosa Canais que, na historiografia local, tem um lugar muito tímido, pequeno, sendo
inclusive acusado de incapacidade para o cargo no qual fora nomeado, ponto aqui discordado
e justificado. Mesmo tendo obtido inicialmente sucesso no relacionamento com o governador
e demais autoridades locais, o Vigário Geral logo se meteria em brigas e conflitos, por
discordar de algumas atitudes, mesmo tendo clareza de toda a questão, saindo derrotado de
quase todas e publicamente desacreditado. No fim, desistiu do cargo e foi chamado à Corte.
El-Rey incumbiu o Cabido da Sé de governar o bispado, que ficou vacante até o ano de 1783,
quando definitivamente ocupado de novo por um bispo. Um período de catorze anos de
vacância, que é relativamente longo se comparado a outros períodos de vacância
experimentados na diocese do Maranhão.
Por fim, há um último ponto, já tocado, que é o sentido da política pombalina
enquanto um processo de laicização, ou seja, um desenvolvimento político que implica a
perda do poder de influência da Igreja. Na verdade, a ideia de uma laicização naquele
momento implica uma sistematização teórica mais rigorosa quanto àqueles acontecimentos.
Nesse sentido, cabe destacar uma observação feita em um artigo recentemente publicado na
coletânea Religião e Religiosidades no Maranhão:
A política pombalina agiu no sentido de autonomizar as instâncias de poder
do Estado frente ao poder eclesiástico: uma questão política, laicizadora.
Com isso, não se pretende afirmar que a laicização deu certo, ou que tal
concepção já vigorava na época, mas sim que nesse período, e sob a
governança ilustrada do Marquês de Pombal, os ideais iluministas sobre a
religião foram concretizados através da racionalização do poder.210
No artigo, faço uma discussão mais aprofundada acerca da laicização naquele
período, tomando as leis testamentárias como referencial para a questão. A fim de embasar
melhor esse argumento, temos um comentário de Zília Osório de Castro, em um breve artigo,
210
SANTOS, Nivaldo Germano dos. A Salvação, Os Bens e os Herdeiros: As “ultimas vontades” no contexto
das Leis Testamentárias no Maranhão Colônia. In: SANTOS, Lyndon de Araújo; et al (orgs.). Religião e
Religiosidades no Maranhão. São Luís, EDUFMA, 2011. pp. 209-235.
105
no qual trabalhou o pensamento de um dos muitos intelectuais sobre os quais Pombal se
apoiou.
Pombal, por seu lado, assumiu clara e exclusivamente a secularização, não
só porque a origem direta e imediata do poder, aliada à finalidade do seu
exercício, definia a esfera temporal da sua jurisdição, mas porque colocava a
sacralidade da Igreja ao serviço do Estado. [...] Deste modo, a Igreja e o
Estado, embora com esferas de jurisdição específicas, conjugavam a sua
atividade em benefício de um objetivo que era próprio e específico do poder
temporal – a felicidade e o bem-estar dos súditos. Neste sentido, se bem que,
quanto aos princípios, as esferas de jurisdição do poder espiritual e do poder
temporal ficassem bem definidas, na prática, a Igreja veria as suas pessoas e
os seus bens submetidos à autoridade política, tal como acontecia com a
sacralidade das suas funções. Isto significava que o Estado utilizava a seu
favor o princípio da especificidade de jurisdição, sem dessacralizar a Igreja,
mas colocando-a ao seu serviço. Extinguiam-se, assim os possíveis
resquícios de eventual neutralidade eclesial e eclesiástica do Estado porque
considerados politicamente atentatórias da sua função.211
O processo de laicização/secularização desenvolvido durante o consulado pombalino
significou, genericamente, submeter a Igreja ao poder temporal, sem dela se desfazer. Daí a
solução para o fato de o Estado ser secular, mas permanecer católico. Não é a Igreja quem
determina ou influencia os assuntos, o que seria característica de um Estado religioso; mas ela
é determinada e influenciada pelo Estado, que a mantém ao seu serviço espiritual, católico.
São os interesses temporais que estão acima dos interesses espirituais, e estes usados em prol
daqueles. Logo, como visto o processo de laicização não foi fechado e encerrado, mas aberto
e incompleto, para não dizer interrompido. Ou então, ainda pode ser considerada como uma
iniciação ao que se desenvolveu mais tarde, no século XIX.
211
CASTRO, Zília Osório. O Estado e a Igreja: pensamento de Antonio Nunes Ribeiro Sanches. In: ____.
Estudos em Homenagem a Luís Antonio de Oliveira Ramos. Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
2004, p. 399-406.
106
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse posicionamento dos poderes gerou o processo aqui chamado de “eclipse dos
poderes”, quando os agentes do Estado passaram a ocupar o lugar antes ocupado pelos
religiosos, o que nos encaminha para um problema final. Se houve um eclipse, não parece que
esta situação tenha permanecido assim para sempre, mas foi algo que durou um tempo e
depois acabou. Quando um eclipse acaba, o objeto eclipsado volta ao seu estado original e a
ocupar a jurisdição de antes. No caso pombalino, isso ocorreu na “Viradeira”, onde muitas
medidas tomadas durante a administração do Marquês foram revogadas pela Rainha D. Maria
I. Porém, em se tratando da Companhia de Jesus, não houve retorno. O Bispo não retornou ao
seu Bispado, porque segundo dizia em sua Representação, voltaria para sofrer a opressão e
tirania do governador Joaquim de Mello e Póvoas, que permaneceu no governo do Maranhão
ainda durante dois anos após a queda do seu tio na Corte. Quanto ao Vigário, não se viu mais
notícia no Maranhão. O próprio governador retornou à Corte empobrecido e desprestigiado,
morrendo pouco tempo depois na casa de um primo.212 Porém, as ordens religiosas, se não
voltaram ao “despotismo absoluto” com que agiam antigamente na colônia, recobraram forças
e a liberdade eclesiástica, outrora sufocada pelo poder temporal.
Deve-se lembrar também que o “eclipse dos poderes” ocorreu em vários níveis da
hierarquia administrativa temporal e espiritual e como dito, tratou-se da rivalidade entre
autoridades sobre o controle de um espaço ou objeto.
Outro ponto a se observar é que o “eclipse dos poderes” é visto da Capitania do
Maranhão, muito embora ele estivesse acontecendo em um nível que pudesse ser visualizado
principalmente no Reino. A colônia é um domínio diferente e distante da metrópole, mas
ambas não são nem estão separadas. A massa líquida do oceano serve de elo. A distância
geográfica não parece um bom argumento para as diferenças existentes entre essas partes, que
são ao todo, menos aparentes que as continuidades, todavia bastante significantes. Há
diferenças, é claro: é isto que determina as relações entre as partes e o que faz de uma a
metrópole e da outra a colônia. Porém, metrópole e colônia são partes do mesmo império.
Por fim, cabe observar que no caso de um eclipse, como metáfora aqui utilizada, se
pode primeiro visualizar plenamente os objetos: o lugar ocupado e o poder de influência do
Estado e da Igreja na colônia; depois se percebe o movimento de um avançar sobre o outro.
Neste caso, o Consulado Pombalino desabilitando progressivamente os poderes e influências
212
MEIRELES, Mario. Mello e Póvoas: capitão-general do Maranhão. São Luís, SIOGE, 1974. p. 100.
107
da Igreja e de seus agentes. O Estado começa a cobrir ou deixar para trás o poder da Igreja até
certo ponto, um eclipse quase total, porque os religiosos não foram completamente apagados,
porque a distância do Reino, as circunstâncias e a questões são semelhantes em parte, mas
diferentes em outros pontos.
O eclipse quase total está formado: Estado e Igreja e os agentes de cada um tem face
pública (a parte visível de ambos) e essa face (imagem) que construíram foi tomada em parte
pela historiografia local como a forma que um eclipse é visualizado: dois objetos superpostos,
de modo que quem vê, somente pode enxergar de longe apenas um lado de ambos os objetos
ao mesmo tempo. Assim, prevalece, durante a formação, a imagem do objeto eclipsante e uma
pequena parcela do objeto eclipsado. Assim, seguindo a formação, a historiografia se deteve
muito mais na imagem evidente do Estado e de seus agentes do que na Igreja e seus agentes.
Ainda que se conte a história de padres no período, em geral são os que aderiram ao
pombalismo, ou no caso dos que se opuseram, vê-se o seu fim.
Como ficaram os que não aderiram, para além de serem apagados? Qual a opinião
deles em relação a tudo isso? Nesse sentido, se fez necessário não mudar o ponto de
observação (Maranhão), mas sim usar de um mecanismo de observação diferente, que não
seja o olho nu, porque se olha diretamente, mas a partir da documentação como instrumento,
ignorada por essa historiografia local, para dar uma volta e conseguir “ver” o lado “oculto” do
objeto eclipsante, o seu lado particular, que está frontalmente situado em relação ao objeto
eclipsado, que por sua vez, está ocultado durante o eclipse. Desta forma se procedeu no
terceiro capítulo, de modo que isto permitiu ver a situação do Bispo e do Vigário Capitular
para além das suas supostas desinteligências e castigos tomados. Foi possível conhecer o que
pensavam a respeito e o que tinham a dizer sobre os agentes do Estado com quem brigaram,
considerados nada honestos na visão dos religiosos. Não que estes fossem o exemplo em
honestidade e probidade administrativa, mas porque a sua visão contradiz o que se conhecia
da questão até então. Desta forma, viu-se não apenas a formação a olho nu, o aparentemente
óbvio, mas o núcleo do problema e os pontos até então desconhecidos.
108
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