IGREJA PRESBITERIANA DA BAHIA: O PROSELITISMO PROTESTANTE E A DISCIPLINA DOS FIÉIS Mariana Ellen Santos Seixas 1 [email protected] Resumo Numa tentativa de ampliar os estudos sobre o Protestantismo da Bahia do século XIX, esta comunicação visa apresentar alguns dados coletados em pesquisa sobre a Igreja Presbiteriana da Bahia, organizada na Cidade do Salvador em 1872, bem como algumas características de sua membresia, atentando para os valores ensinados pelos líderes da denominação e para a resposta desses fiéis ao padrão de cristandade requerido. Palavras-Chave: Protestantismo, Presbiterianismo, Família Na cidade de Salvador, durante boa parte do século XIX, não havia uma concorrência religiosa explícita. A Igreja Católica soubera congregar em si e sob si outras formas de religiosidade popular, cristãs ou não. Até mesmo com os anglicanos, que passaram a viver na cidade, os católicos não tiveram grandes problemas. A Igreja Anglicana, primeira denominação protestante a se instalar em Salvador, não tinha a preocupação de conquistar fiéis nesta cidade, não representava uma ameaça ao predomínio do catolicismo. Entretanto, em 1871, chega a Salvador um pastor responsável por uma pequena transformação nesse quadro. Organizando a primeira denominação protestante de cunho proselitista a se fixar em Salvador, a presbiteriana, esse pastor iniciaria uma ainda tímida disputa pelas almas da cidade ao apresentá-la como uma "alternativa genuinamente cristã". Antes, porém, quero apresentar as origens e os principais fundamentos do presbiterianismo para uma maior compreensão do universo abordado. Em 15 de Dezembro de 1888, a Igreja Presbiteriana da Bahia instaurou processo contra Eugenia Maria dos Santos, que disse ter entrado na igreja “illudida” pelo marido, e que não queria mais pertencer-lhe (LIVRO PRIMEIRO DAS ATAS DA IGREJA PRESBITERIANA DA BAHIA, p. 59-60). Isso ofendeu gravemente o Conselho daquela Igreja, pois os fundamentos do presbiterianismo defendem que 1 Mestranda em História Social – UFBA. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. ninguém pode se tornar um membro da comunidade sem conhecer as responsabilidades que disso advém. Em princípio, todo e qualquer candidato a membro da Igreja Presbiteriana precisa conhecer e adotar as identidades desta denominação, quais sejam a de reformado, calvinista e presbiteriano. O movimento reformado seria o ramo do protestantismo que surgiu na Suíça do século dezesseis, liderado, a princípio, por Ulrico Zuíglio e, posteriormente, por João Calvino; suas “concepções teológicas e formas de organização eclesiástica” divergem das de outros grupos protestantes, destacando-se aí a “soberania de Deus". O calvinismo é, evidentemente, o sistema teológico elaborado pelo francês João Calvino (1509-1564), que, além de conter o corpo de doutrinas, “inclui concepções específicas a respeito do culto, da liturgia, do ministério, da evangelização e do governo da igreja.” Sua principal obra é a Instituição da Religião Cristã, ou Institutas, publicada pela primeira vez em Basiléia, em 1536, e tida como uma interpretação sistematizada das Escrituras, enfatizando a soberania de Deus como “criador, preservador e redentor". Entre 1618-1619, no Sínodo de Dorf, os discípulos de Calvino elaboraram, em oposição às idéias de Tiago Armínio sobre a predestinação, os chamados “cinco pontos do Calvinismo”: depravação total do homem, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos. Essa é a base ideológica do presbiterianismo. Sabe-se que o termo “presbiteriano” foi adotado, inicialmente, nas Ilhas Britânicas, onde John Knox (1514-1572), discípulo de Calvino, teve uma grande atuação, e indica um tipo de sistema de governo. À época, os monarcas ingleses e escoceses preferiam o sistema episcopal (governo de bispos e arcebispos), pois este facilitava a interferência e controle do Estado sobre a Igreja. O presbiterianismo estabelece o governo de presbíteros eleitos pela comunidade, e posteriormente reunidos em Concílio. Todo membro da Igreja poderia votar e ser votado desde que atendesse a alguns requisitos, como, por exemplo, tempo de conversão. Era um sistema mais “democrático e autônomo", conferindo à comunidade local maiores responsabilidades. O calvinismo se expandiu para outros países e chegou à América do Norte com os puritanos ingleses, no início do século XVII. Estes primeiros grupos preferiram adotar a forma de governo congregacional. Dentre os primeiros calvinistas presbiterianos estavam os holandeses, que fundaram a cidade de Nova Amsterdã (hoje Nova York), em 1623. Contudo, os principais responsáveis pela introdução do presbiterianismo nos EUA foram os mais de 300 mil escoceses-irlandeses que cruzaram o Atlântico durante o século XVIII, de quem descende o Rev. Ashbel Green Simonton, de quem falaremos mais adiante. Inclusive, os presbiterianos tiveram entre seus membros alguns participantes do movimento de Independência das Treze Colônias, em 1776, como o Rev. John Witherspoon, o único pastor a assinar a Declaração de Independência. Em 1801, presbiterianos e congregacionais se uniram para acelerar o processo de evangelização da população que estava indo para o Oeste, um trabalho conhecido como Plano de União. Todavia, a unidade da Igreja Presbiteriana seria comprometida pelas disputas acerca do anti-escravismo e avivamento espiritual da Igreja do Norte e do conservadorismo e rejeição à unidade com os congregacionais da Igreja do Sul. Em 1837, houve a ruptura formal, criando as duas grandes igrejas presbiterianas, a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América (PCUSA), no Norte, que criou a Junta de Missões Estrangeiras, e a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos (PCUS), no Sul. As duas comunidades enviaram missionários para o Brasil. Ashbel Simonton, em 1859 (PCUSA) e Edward Lane e George Morton (PCUS). A Igreja Presbiteriana da Bahia foi fundada em 21 de abril de 1872, pelo pastor Francis Joseph Christopher Schneider que nasceu em Erfurt, na Alemanha, em 1832, mas naturalizou-se americano. Pouco ou nada se sabe de sua história antes de chegar ao Rio de Janeiro, em 7 de dezembro de 1861, para ajudar Simonton e Blackford, os pioneiros presbiterianos no Brasil. A Junta de Missões dos Estados Unidos o enviou para trabalhar exclusivamente com os imigrantes alemães, por isso não houve necessidade de que ele aprendesse a língua portuguesa antes de vir para o Brasil. A princípio fixado em Rio Claro (SP), o pastor chegou a Salvador em 1871, para, no ano seguinte, organizar oficialmente a primeira comunidade presbiteriana da Bahia, sendo também o primeiro contato desta denominação com o que hoje denominamos região Nordeste. Fator interessante é que, na Bahia, este Protestantismo de Missão representado pela IPBa não procurou apenas “converter à sua denominação os fiéis que não podiam ser acompanhados pela Igreja Católica”, como afirmou Martin Dreher (2003, p. 45-46) em termos gerais sobre o Brasil, mas também ocupar novos espaços que estavam surgindo na sociedade, em decorrência de transformações não somente de ordem religiosa, mas também social, econômica e infra-estrutural, pois, segundo Pierre Bourdieu (1987. p. 35), essas transformações (urbanização, atividades profissionais mais racionalizadas) “só podem favorecer a ‘racionalização’ das necessidades religiosas”; foi exatamente isso que o presbiterianismo propôs aos baianos. Em 1872, é provável que o número de habitantes da cidade de Salvador tenha girado em torno de 108.200 pessoas. A freguesia que nos interessa é a de São Pedro, onde a IPBa se instalou, que possuiu, neste período, cerca de 8.340 habitantes. Esta foi reunindo, ao longo do século XIX, o “maior número de profissionais liberais, como médicos e advogados, como também empregados públicos e desembargadores e servindo ainda de residência provisória de senhores de engenhos”. (NASCIMENTO, 1996, p. 81) Segundo Nascimento (p. 126), “torna-se evidente que, nessa época, a freguesia de São Pedro abrigava grande parte da elite intelectual e social da cidade. Assim, pode-se inferir que o missionário Francis Joseph Christopher Schneider quando obteve do Presbitério do Rio de Janeiro autorização para implantar o trabalho presbiteriano na Bahia, escolheu um lugar habitado pela massa intelectual, pelos profissionais liberais e por famílias razoavelmente abastadas. Foi a essa província que o já experiente pastor Schneider chegou em 9 de fevereiro de 1871. É necessário enfatizar sua experiência, pois seria muito imprudente e insensato enviar um missionário ainda jovem para formar a primeira comunidade presbiteriana da Bahia. Primeiro porque o Estado era a sede do arcebispado metropolitano e o centro da ação católica no país, ainda respirando as tentativas de romanização realizadas por D. Romualdo Seixas, arcebispo entre 1827-1860; depois, porque a população que aqui vivia estava impregnada por um catolicismo muito particular, produzido pela mescla de diversas influências religiosas aglutinadas ao longo dos três séculos. Quero chamar atenção, no entanto, para um dado importante. Normalmente o protestantismo dito histórico foi, e por vezes ainda é, associado às camadas mais elevadas da população, sendo confundido até mesmo com as esferas burocráticas do Brasil. Émile Leonard (1981, p. 95) sugeriu a realização de um estudo mais minucioso da “adesão ao protestantismo de membros relativamente numerosos da aristocracia brasileira, nos últimos trinta anos do século XIX”. Sem querer desmerecer esta sugestão, procurarei navegar em sentido oposto, pois o que mais me chamou atenção foi o fato de um homem “creoulo”, Marcos Luiz da Boa Morte, um carpinteiro negro ter chegado a um dos cargos mais importantes na hierarquia presbiteriana: o cargo de presbítero na IPBa. A primeira informação sobre este homem é que foi ele quem “entregou ao missionário mudas de laranja baiana, que, levadas aos Estados Unidos, foram o ponto de partida para o cultivo dessa variedade naquele país” (MATOS, 2004, p. 44.). Falarei sobre Boa Morte mais adiante. Através da pesquisa para o mestrado, quero fazer uma análise quantitativa da membresia da IPBa e perceber se o caso de Boa Morte é uma exceção ou se outros homens conseguiram esses ganhos dentro da igreja. Assim, quero entender se mesmo sem abandonar os padrões comportamentais trazidos de uma outra cultura e sem considerar a possibilidade de se “adaptar” aos valores brasileiros (ou baianos ou soteropolitanos), o presbiterianismo representou um ruptura em algum sentido para os convertidos; se surgiram novas formas de convivência em termos de etnia, e classe, promovendo a interação de indivíduos vindos de extratos sociais muito diferentes e até mesmo invertendo a ordem da “subordinação”: no caso apresentado acima, o presbítero Boa Morte (negro) era um dos líderes da Igreja Presbiteriana, na qual congregavam muitos brancos, homens e mulheres pertencentes às classes abastadas da sociedade (mercadores, negociantes). Casos de adultério, embriaguez pública, concubinato, conflitos domésticos, agressão física, negligência religiosa, irregularidades no exercício das profissões, etc., aparecem nas Atas de Reunião da Igreja Presbiteriana da Bahia, que começou a implantar normas e padrões de comportamento muito diferentes dos predominantes em Salvador. Havia uma presença protestante na cidade, com os anglicanos e suas capelas, mas eles não almejavam conquistar adeptos, não incomodavam tanto, pois não propunham uma mudança de costumes. Os presbiterianos tomaram um caminho diferente. Foram até as pessoas e apresentaram uma alternativa ao catolicismo, oferecendo benefícios como a leitura mais apurada da Bíblia; os presbiterianos procuravam transmitir a idéia de mais autoridade e moral do que a maioria do clero católico, “corrompido” e distante de atender às necessidades espirituais do povo. Mas para todos esses ganhos haveria um preço: a boa conduta. Era preciso “merecer” fazer parte daquela comunidade e demonstrar concordância com as regras para receber os benefícios. Nada sabemos a respeito do período entre a chegada do pastor Schneider e a implantação da Igreja. É provável que tenha começado a fazer reuniões em sua casa, na “Ladeira dos Aflitos, n 219” até conquistar o primeiro fiel, o português Torquato Martins Cardoso, batizando-o em 21 de abril de 1872, juntamente com sua esposa, a brasileira Maria Pereira Cardoso. Esta data foi considerada o dia da fundação da Igreja Presbiteriana da Bahia. Uma semana depois, os filhos do casal, Julio (11 anos), Antônio (9 anos), Ignez (5 anos), Ricardo (2 anos) e Moyses (9 meses) também foram batizados, juntamente com a filha de Schneider e Ella, Mary, que contava 10 meses. (LIVRO PRIMEIRO DAS ATAS DA IGREJA PRESBITERIANA DA BAHIA, p. 44). De 1872 a 1877, o período em que Schneider esteve à frente da Igreja, foram batizadas 17 pessoas adultas, entre as quais 3 casais, e 13 crianças. A maioria dos batizados era de brasileiros. Foram realizadas 10 cerimônias de casamento; dentre os noivos, 3 eram brasileiros e 7 eram estrangeiros (Suíça, Inglaterra, Dinamarca, Baviera, Estados Unidos). Este é um dado interessante, e prolongaremos sua análise mais adiante. Entre 1872 e 1900 foram realizadas 50 cerimônias de casamento pelos pastores presbiterianos, mas, a princípio, vamos destacar apenas 4 delas. Nos questionamos a respeito dos locais em que essas cerimônias foram realizadas. Destes 10 casamentos, temos informações um pouco mais precisas sobre 4. O casamento de William George Dutton e Julia Blanchet, um inglês e uma brasileira, foi realizado em 10-06-1874, numa capela inglesa. Não sabemos o porquê do próprio ministro anglicano não ter celebrado a cerimônia e não sabemos se o casal era anglicano ou presbiteriano. Já J. B. Heim, também suíço e com 35 anos, e a viúva Dora Hüpeden, alemã de 36 anos, se casaram na casa da noiva, no bairro da Vitória, em 12-06-1875. Julio Lange, dinamarquês de 25 anos e Isabel Bartels, de 31, “hannoveriana”, se casaram na Sala de Culto, em 05-07-1875. Os baianos José da Costa Ferreira, filho de um capitão com mesmo nome, de 25 anos, e Margarida C. de Oliveira, 19 anos, se casaram na casa do pastor Schneider, cujo endereço já foi mencionado. Somente este último casal era membro da Igreja, um fato curioso que mostra que casais não-presbiterianos convidavam o pastor Schneider para presidir seus casamentos, fossem na própria igreja ou não. Esta era uma alternativa à falta da opção do casamento civil. É possível extrair um modelo de vida cristã ensinado por essa comunidade, como por exemplo: um bom cristão é aquele que freqüenta assiduamente os cultos, estuda a Bíblia, cuida bem de sua família, não trabalha aos domingos e não anda em más companhias. Obviamente, transformar uma mentalidade já consolidada há gerações não foi uma tarefa fácil e gerou inúmeros conflitos dentro da comunidade. Mesmo antes de fazer parte do rol de membros, o indivíduo deveria atender a uma série de requisitos que o fariam apto a participar da comunhão presbiteriana: se vivesse "amancebado", deveria oficializar a união; se morasse de favor, deveria arrumar uma residência decente; se estivesse desempregado, deveria arrumar um emprego honesto; deveria se afastar das más amizades; enfim, ser um cidadão respeitado na terra para ser um cidadão dos céus. Um caso que chamou atenção foi o fato de um homem “creoulo” citado com certa freqüência nas Atas, Marcos Luiz da Boa Morte, um carpinteiro negro ter chegado a um dos cargos mais importantes na hierarquia presbiteriana: o cargo de presbítero. Pouco sabemos sobre este personagem. Os registros indicam que era filho de Luiz da Boa Morte e Esperança de Jesus. Nasceu provavelmente em 1835, uma vez que, ao se casar com Carlotta Rosa da Lima, em 22-06-1874, contava com 39 anos. A propósito, sua esposa nunca esteve arrolada entre os membros da IPBa; é provável que nunca tenha se convertido. Foi batizado em 27-09-1874. Há indícios de que teve 2 filhos, Maria, nascida em 18-121874 e Saturnino, nascido em 30-11-1875. É certo que Marcos e Carlotta já mantinham uma relação antes de oficializar o casamento, pois sua primeira filha nasceu apenas 6 meses depois da cerimônia. Pode ter acontecido o seguinte: ao decidir se tornar protestante, o pastor Schneider teria dado a Boa Morte como motivo de impedimento seu relacionamento não oficializado, chamado, sem maiores sutilezas, de concubinato. É sabido que as uniões consensuais eram bastante comuns, principalmente entre a população mais pobre. Mas para o pastor, que tinha acabado de chegar à Bahia, e que se orgulhava de cumprir a bíblia à risca, seria inimaginável permitir que um homem “amancebado” se tornasse membro da igreja. Boa Morte, então, tratou de oficializar sua união com Carlotta, Três meses depois, faria sua profissão de fé e seria batizado. Batizou também seus dois filhos na Igreja Presbiteriana, não sabemos se com ou sem o consentimento de sua mulher. (LIVRO PRIMEIRO DAS ATAS DA IGREJA PRESBITERIANA DA BAHIA, p. 44, 82 e 106). Com isso, não queremos dizer que Boa Morte foi o único “negro presbiteriano” da Bahia oitocentista, nem o único presbítero negro. Obviamente, não vamos desconsiderar que entre as estratégias para implantar uma comunidade protestante estava levantar lideranças locais. O que chama atenção é que ele é o único homem que teve sua cor registrada no rol de membros. É bem provável que o pastor Schneider tenha sido “um pouco mais atento” a esses critérios do que os outros pastores que passaram pela igreja. Se Boa Morte é o único homem registrado como negro, Maria da Annunciação dos Santos é a única mulher negra. Sabemos menos ainda sobre ela. Foi batizada no mesmo dia que Boa Morte, 29-091874; não sabemos se há algum parentesco entre os dois. A última referência a ela nas Atas de Reunião foi quando seu filho, José Patrício dos Santos, foi batizado, em 26-12-1875, com, aproximadamente, 12 anos. Não consta o nome do pai da criança. Se os membros não correspondessem ao ideal, os líderes da Igreja Presbiteriana da Bahia tinham duas alternativas: repreender verbalmente o "acusado", e, se a primeira alternativa não desse resultado, punir com a suspensão ou a expulsão. Esta última opção foi razoavelmente comum, nos 28 anos estudados. "Suspender da comunhão" significava proibir o fiel de comungar enquanto não resolvesse o problema pelo qual havia sido punido. A expulsão do rol de membros era o último recurso utilizado para extirpar da comunidade alguém que não se arrependia de seus "pecados", resistia às repreensões, e/ou continuava sendo motivo de escândalo para a sociedade e para a igreja. Para ter uma idéia mais clara dos motivos dessas suspensões, é preciso apresentar alguns dados coletados durante a pesquisa. As causas mais freqüentes de suspensão eram a ausência dos cultos (12 ocorrências) e o concubinato (4 ocorrências). Ainda constam "trabalhar aos domingos", "casamento ou batismo na Igreja Católica'", "brigas domésticas", entre outras causas. As expulsões giraram mais em torno de conflitos diretos com a liderança da igreja, como o caso de Tibúrcio José de Sant'Anna, que brigou com o pastor e com os presbíteros, aparentemente seus "inimigos". O caso de Tibúrcio é o mais significativo, em minha opinião. Tendo deixado de freqüentar os cultos há muito tempo (e, segundo boatos, proibido a família de fazê-lo), ele foi admoestado pelo Conselho da Igreja (composto pelos Pastor e presbíteros, que dirigem a igreja administrativa e espiritualmente), sendo lembrado das conseqüências das suas faltas. Tibúrcio respondeu que "não se submeteria a julgamento de homens". Mas não teve como escapar do processo eclesiástico aberto pelo Conselho da Igreja. Foram 4 acusações: se ausentar do culto por 8 ou 9 meses; impedir sua família de freqüentar os cultos; tratar com crueldade sua esposa, tendo com ela constantes brigas, ameaçando-a com “páo de vassoura”, e chegando ao real espancamento; e constantemente falar mal da Igreja e do Pastor, dizendo que ali não há crentes e fazendo “insinuações injuriosas contra os moradores da Cidade da Palha” (provavelmente, corresponde hoje ao bairro de Cidade Nova). Mesmo tendo dito que não se "ausentou" da Igreja e, sim, se "retirou" por ter se desentendido com o Pastor Blackford, foi considerado culpado da primeira acusação. Sua esposa, Fausta Maria Isabel, disse que o marido nunca a havia proibido de assistir aos cultos; mas Tibúrcio foi considerado culpado por tratar mal a esposa e espancá-la, sendo esse fato conhecido de todos e motivo de escândalo pra igreja. Por último foi considerado culpado por falar mal da Igreja e do pastor (segundo Tibúrcio, o pastor o havia estimulado a ir para um lugar onde era sabido que os crentes estavam sendo apedrejados – Maragogipinho). Tibúrcio acabou sendo suspenso da comunhão e, em 1891, seu nome foi riscado do livro de membros. Seu caso é um excelente exemplo do tipo de comportamento abominado pelo Conselho: um membro que não tem uma vida familiar estabilizada e que se desentende com a liderança da Igreja, sem aceitar as admoestações e as interferências no seu jeito de viver. (LIVRO SEGUNDO DAS ACTAS DA IGREJA PRESBYTERIANA DA BAHIA, pp. 12, 13, 16, 22--26, 31) Analisando este "estilo" eclesiástico, com uma perspectiva particular do século XX, Rubem Alves (1982) foi um severo crítico da maneira presbiteriana de lidar com os fiéis. Segundo o autor, a onipresença dos líderes da igreja na vida dos fiéis rompia com os limites entre o particular e o privado; não havia punição apenas para os pecados cometidos dentro de um "espaço sagrado": a jurisprudência do Conselho (ou Sessão) atingia todos os espaços. Alves afirmou que a igreja procurou padronizar um perfil moral do crente, estabelecendo os limites entre o permitido e o proibido, punindo com mais rigor os pecados sexuais, a transgressão do Domingo ("sinal de pureza da Igreja e de sua separação do mundo"), os vícios (como o alcoolismo), os crimes contra a propriedade, e as heresias, combatidas como a própria manifestação do Diabo. O presbiterianismo trouxe um padrão de espiritualidade já pronto e não intentava torná-lo mais acessível para a população de Salvador, acostumada com uma religiosidade popular. Esse padrão de comportamento pode ser até comumente divulgado no universo cristão; todavia, o diferencial do presbiterianismo no Brasil, em geral, e em Salvador, em particular, é a cobrança sistemática feita pelas lideranças dessa denominação aos membros da Igreja. Os pastores e presbíteros se outorgavam o direito de interferir diretamente na vida familiar (e conjugal), financeira e social, entre outros aspectos, de seus membros, quer eles permitissem ou não. Essa interferência gerou muitos conflitos entre as partes envolvidas e definiu o perfil desta denominação pioneira na cidade do Salvador. Na dissertação, o objetivo é abordar as relações estabelecidas entre uma população acostumada ao catolicismo, de vivência festiva, com a presença de santos e anjos, e uma nova hierarquia eclesiástica protestante, uma nova forma de praticar a religiosidade que estimulava a racionalidade do culto e um procedimento diário regrado pela Bíblia e pelas normas trazidas de outra cultura, protestante e, sobretudo, estadunidense, alheia à grande maioria dos baianos. FONTES LIVRO PRIMEIRO DAS ATAS DA IGREJA PRESBITERIANA DA BAHIA. (1872-1885) LIVRO SEGUNDO DAS ACTAS DA IGREJA PRESBYTERIANA DA BAHIA. (1885-1900) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, Eduardo Basto de. Distinções no Campo de Estudos da Religião e da História. In: GUERRIERO, Silas (Org.). O Estudo das Religiões: Desafios Contemporâneos. São Paulo: Paulinas, 2003 (Coleção Estudos da ABHR). DREHER, Martin N. Protestantismos na América Meridional. In: SIEPIERSKI, Paulo D. e GIL, Benedito M. (org.) 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